Open-access Solução de problemas em saúde e ambiente: ciência pós-normal e comunidade ampliada de pares em um município brasileiro de pequeno porte

Problems solving in health and environment: "post-normal science" and "extended peer community" in a small brazilian municipality

Resumos

Este texto apresenta o caminho pelo qual temos evoluído em direção a uma solução para os problemas de Guapirimirim (Rio de Janeiro, Brasil) na área de saúde e ambiente. Nosso objetivo vem sendo atingido a partir de um estudo interdisciplinar e de uma parceria que vem assimilando, gradativamente, conceitos e práticas propostos por teóricos contemporâneos para lidar com complexidade, incerteza e avaliação. Os conceitos de ciência "pós-normal", "comunidade ampliada de pares" e "transdisciplinaridade" servem de base para o entendimento do empreendimento científico em curso naquele município, e para a formulação de uma proposta para sua continuidade.

Ciência "Pós-normal"; Comunidade Ampliada de Pares; Transdisciplinaridade; Relato de uma Experiência


This article reports the way in which we are evolving towards a solution for health and environmental problems in Guapimirim (Rio de Janeiro, Brasil). Our goal is being achieved trough an interdisciplinary study and through a partnership, which is gradually getting concepts and praxis proposed by contemporary theorists to deal with complexity, uncertainty and evaluation. The concepts of "post-normal science", "extended peer community" and "transdisciplinarity" were basic to our understanding of the scientific experience in course at the Municipality and to the proposals for its continuity.

Post-normal Science; Extended Peer Community; Transdisciplinarity; an Experience's Report


ARTIGO

ARTICLE

Marisa da Silveira Soares 1

Cesar Luiz Pinto Ayres Coelho da Silva 1

Magali Gonçalves Muniz Barreto 1

Darcílio Fernandes Baptista 1

Denise Assunção Borges 1

Solução de problemas em saúde e ambiente: ciência pós-normal e comunidade ampliada de pares em um município brasileiro de pequeno porte

Problems solving in health and environment: "post-normal science" and "extended peer community" in a small brazilian municipality

1 Autores-Professores do Laboratório de Comportamento: Departamento de Biologia do Instituto Oswaldo Cruz - Fiocruz.

Abstract This article reports the way in which we are evolving towards a solution for health and environmental problems in Guapimirim (Rio de Janeiro, Brasil). Our goal is being achieved trough an interdisciplinary study and through a partnership, which is gradually getting concepts and praxis proposed by contemporary theorists to deal with complexity, uncertainty and evaluation. The concepts of "post-normal science", "extended peer community" and "transdisciplinarity" were basic to our understanding of the scientific experience in course at the Municipality and to the proposals for its continuity.

Key words "Post-normal Science", "Extended Peer Community", "Transdisciplinarity"; an Experience's Report

Resumo Este texto apresenta o caminho pelo qual temos evoluído em direção a uma solução para os problemas de Guapirimirim (Rio de Janeiro, Brasil) na área de saúde e ambiente. Nosso objetivo vem sendo atingido a partir de um estudo interdisciplinar e de uma parceria que vem assimilando, gradativamente, conceitos e práticas propostos por teóricos contemporâneos para lidar com complexidade, incerteza e avaliação. Os conceitos de ciência "pós-normal", "comunidade ampliada de pares" e "transdisciplinaridade" servem de base para o entendimento do empreendimento científico em curso naquele município, e para a formulação de uma proposta para sua continuidade.

Palavras-chave Ciência "Pós-normal"; "Comunidade Ampliada de Pares"; "Transdisciplinaridade"; Relato de uma Experiência

Introdução

A recente descoberta de duas espécies de moluscos hospedeiros intermediários do Schistosoma mansoni (Thyengo et al., 1997) em áreas de Guapimirim submetidas a impactos antrópicos, e a preocupação com a qualidade da água de abastecimento local, captada em fontes possivelmente contaminadas e distribuída sem tratamento prévio, levaram as Secretarias Municipais de Infra-estrutura e de Saúde deste município a convidar nossa equipe a avaliar o risco de transmissão local da esquistossomose e de outras doenças infecciosas e parasitárias de veiculação hídrica. Já nos primeiros contatos com técnicos dessas secretarias pudemos perceber, por um lado, uma convicção de que a complexidade da situação sanitária ultrapassava as possibilidades de solução a curto e médio prazos; e, por outro, a incerteza quanto aos rumos do desenvolvimento da região e seus desdobramentos em termos de ampliação dos problemas ambientais já instalados, e geração de outros problemas.

Neste artigo, procuramos apresentar o caminho pelo qual, partindo-se desta realidade, com poucas possibilidades de ação concreta, repleta de "complexidades" e "incertezas", temos evoluído em direção a uma saída através de uma parceria que se formou um tanto fortuitamente, sem maiores instrumentações e motivações teórico-metodológicas, mas que tem assimilado, gradativamente, concepções e práticas propostas por pensadores de vanguarda em diferentes áreas do conhecimento científico. Para enriquecer este relato com informações úteis à solução efetiva de problemáticas semelhantes, mais do que expor as metodologias específicas ou peculiares a cada disciplina envolvida no entendimento da questão, ou do que discutir os resultados a elas relacionados, optamos por enfatizar a nossa visão atual sobre o problema e suas possíveis soluções, após amadurecimento propiciado pela vivência e por idéias propostas por Funtowicz e Ravetz (1997), e por Naomar de Almeida Filho (1997).

Descrição da experiência

Algumas afirmativas e generalizações apresentadas baseiam-se em impressões colhidas em entrevistas com nossos pares e com a população.

A questão saúde-ambiente- desenvolvimento em Guapimirim

Guapimirim destaca-se na periferia da Região Metropolitana do Rio de Janeiro pela exuberância de suas paisagens, em grande parte ainda preservadas, que incluem o pico conhecido por "Dedo de Deus", um dos "cartões postais do Brasil". Recursos hídricos abundantes, uma extensa área de Mata Atlântica localizada, principalmente, na encosta da Serra dos Órgãos, e um manguezal típico, garantem a riqueza da biodiversidade e a singularidade desta área, verdadeiro oásis na chamada "Baixada Fluminense", cuja natureza foi, há muito, desfigurada por um processo de intensa degradação socioecológica. Tais características, aparentemente, têm sido decisivas à preservação da identidade e auto-estima da sua população, tendo aparecido como um dos fatores "catalizadores" da emancipação municipal.

Mas a principal motivação popular para a emancipação do, então, Distrito de Guapimirim era o fato de que, embora este contribuísse com a maior parcela de recursos para a arrecadação do Município de Magé, ao qual pertencia, pouco usufruía dos mesmos. Guapimirim era, assim, uma região relegada a segundo plano, em um dos municípios mais desfavorecidos do ponto de vista social, econômico e político, dentro da sofrida Baixada Fluminense. Reconhecia-se, na ocasião do plebiscito que criou o município, que a falta de investimentos e de planejamento para a região há muito contribuíam para a evolução de um quadro socioeconômico e político complexo, que se evidenciava em uma urbanização desordenada, caracterizada pela proliferação de loteamentos clandestinos para a população de baixa renda (sem infra-estrutura urbana); na contaminação do solo e dos recursos hídricos decorrente do acúmulo de lixo e do escoamento de esgotos domésticos (geralmente a céu aberto); na redução da Mata Atlântica e comprometimento da biodiversidade, em grande parte pela expansão de condomínios residenciais para veranistas e população de alta renda; e, em menor escala, por práticas predatórias, como a caça e a extração mineral sem controle.

Neste contexto, com grande expectativa de risco para a saúde ambiental do município, na sua acepção mais ampla (física, biológica, social, sanitário, etc.), as pretensões de desenvolvimento da indústria do turismo, em especial, o ecológico, reconhecida como vocação local, assim como a manutenção de outras atividades vitais (pesca, por exemplo) e a própria auto-estima da população, tendiam a ficar cada vez mais comprometidas. Em contrapartida, havia entre os indivíduos engajados na emancipação municipal a consciência da necessidade de valorização crescente dos recursos naturais da região, como parte da promoção da qualidade de vida dos seus 32 mil habitantes, o que deveria implicar, entre outras coisas, em investimentos para a preservação e a recuperação ambiental. É simbólico que a principal via pública da cidade, onde estão sediadas a Prefeitura e as Secretarias municipais, além da Câmara de Vereadores, tenha passado a se chamar "Alameda Chico Mendes" após a criação do município. Não se pode esquecer, também, que o município foi fundado um ano após a RIO-92, sendo provável, portanto, que os setores mais esclarecidos da população e preocupados com a questão ambiental estivessem ainda sob influência das discussões sobre conservação da biodiversidade, entre outros temas.

Nos quatro anos subseqüentes à criação do município, enquanto a expansão das áreas de degradação ambiental na Mata Atlântica e no Manguezal vinha sendo coibida, com dificuldade, pela existência de um parque Nacional (PARNA Serra dos Órgãos/PARNA SO), de um Centro de Primatologia (CPRJ) e de três áreas de proteção ambiental (Estação Ecológica do Paraíso, APA Petrópolis, e APA Guapimirim), os problemas ambientais, na periferia dessas áreas e no restante do município, se avolumaram. A prevenção desse processo de deterioração ambiental tornou-se cada vez mais difícil devido a entraves de ordem política, à complexidade dos problemas já instalados, às múltiplas carências de recursos humanos, técnicos e financeiros do município e à inexistência de diagnósticos seguros da situação, particularmente, dos impactos mútuos entre degradação ambiental e degradação da saúde humana. Cabe lembrar, também, que, dada a história do município e o pouco tempo decorrido desde a sua criação, não havia experiências locais prévias em que se basear para o enfrentamento da situação. Nem mesmo a promulgação da Lei Orgânica Municipal (21/12/90), medida legal que poderia orientar um tratamento mais adequado da questão ambiental, se traduziu em alteração substancial da situação.

Nessa ocasião, correspondente à Segunda gestão municipal, que substituiu a primeira nos dez últimos meses do mandato, alguns setores do governo perceberam que, no âmbito do município, seria imprescindível atrair parceiros que pudessem contribuir nessa empreitada. Foi quando as dúvidas sobre a qualidade da água se intensificaram e foi aventada a hipótese de transmissão local da esquistossomose, fatores que motivaram a cooperação entre a nossa equipe e as duas secretarias mencionadas.

Procedimentos preliminares e evolução da parceria

Após a sucessão na Prefeitura Municipal, a continuidade do trabalho foi assegurada sem maiores necessidades de negociação, tendo como roteiro uma minuta de convênio assinada pela Fiocruz e pela Secretaria Municipal de Saúde na gestão anterior. Feito isso, cabia realizar uma avaliação preliminar dos vários níveis da questão ambiental (ecológico, epidemiológico, político, etc.). Os primeiros passos desta avaliação indicaram a necessidade de amadurecer a parceria, seja pela incorporação de novos atores, com ênfase em profissionais em educação e formas de representação popular, seja assimilando práticas para discussão de metodologias e resultados e troca permanente de informação, tendo em vista o número de questões que se evidenciavam paulatinamente. Esta avaliação tem sido feita através de um estudo-piloto iniciado há cerca de oito meses, o qual narramos a seguir, sob duas perspectivas distintas: a) um diagnóstico preliminar de problemas na área de saúde e ambiente; e b) a experiência de evolução da parceria.

Diagnóstico na área de saúde e ambiente

O estudo preliminar tem por objetivos: a) diagnosticar problemas ambientais da bacia do rio Guapimirim; b) levantar o perfil eco-epidemiológico da população; c) estudar as representações sociais em saúde e ambiente; d) investigar possíveis associações entre variáveis humanas (biológicas ou sociais) e ambientais; e) fortalecer as ações de vigilância epidemiológica pela incorporação de conceitos e práticas da área da epidemiologia ambiental. Sua atuação concentra-se em uma área-piloto que compreende localidades urbanas e peri-urbanas (uma das quais contígua ao PARNA SO) que acompanham a bacia do rio Guapimirim. Estão em andamento as seguintes atividades: levantamento da biodiversidade, com ênfase no registro de insetos, moluscos, e mamíferos; diagnóstico ambiental sobre a integridade dos rios ou córregos adjacentes a residências ou onde haja moluscos hospedeiros do Schistosoma mansoni através do Índice de Petersen (1992); mapeamento de áreas de ocorrência de poluição e/ou exploração predatória de recursos naturais no ecossistema de rio, que possam implicar em perigo para a biodiversidade; identificação de vetores e reservatórios de doenças; estudo da abundância, distribuição e infecção de Biomphalaria glabrata pelo S. mansoni; análises físico-química e bacteriológica da água de abastecimento e dos trechos de rio estudados; levantamento das condições de infra-estrutura (abastecimento de água, coleta de lixo, rede de esgotos); inquéritos parasitológico, epidemiológico, socioeconômico e socioecológico; sorologia para infecção por S. mansoni; hemogramas; levantamento de representações de saúde, ambiente e saneamento; tratamento das moléstias diagnosticadas (ou tomada de providências iniciais que o permitam); vigilância em epidemiologia ambiental.

Os resultados preliminares mais relevantes são os seguintes: a) água de abastecimento de escolas e residências imprópria para consumo, e esgotos a céu aberto vertidos nas coleções hídricas usadas pela população; b) prevalências de parasitoses intestinais elevadas, mesmo se comparadas a dados de áreas com nível socioeconômico inferior; c) perda de diversidade biológica nos rios; d) cerca de 70% da rede de drenagem avaliada e classificada como "ambiente amplamente degradado"; e) condições ambientais extremamente favoráveis à transmissão de doenças infecciosas e parasitárias, inclusive da esquistossomose. Estes resultados têm sugerido que a solução dos problemas diagnosticados está vinculada a ações enérgicas no campo do planejamento municipal em infra-estrutura e meio ambiente. Mas, além disso, os níveis de degradação ambiental e os efeitos da precariedade em infra-estrutura sobre a saúde humana têm mostrado a necessidade também de ações imediatas, sobretudo em saúde e educação.

A evolução da parceria

Do ponto de vista da evolução da parceria, este estudo-piloto pretende: a) estreitar relações entre os grupos já associados e criar condições para a associação de novos pares, com especial interesse em formas de representação popular; b) democratizar as informações geradas pelo diagnóstico e promover práticas de comunicação em dois sentidos (mão dupla) que permitam a obtenção de subsídios para a tomada das decisões eficazes.

Nesses primeiros meses, a geração de um diagnóstico preliminar e o estabelecimento da parceria contaram com uma equipe composta, inicialmente, por grupos pertencentes a três das Secretarias Municipais (Saúde e Promoção Social, Educação e Infra-estrutura); grupos da Fiocruz que realizam pesquisas em epidemiologia, ecologia, parasitologia, malacologia, virologia e educação, ou que prestam serviço em análise de água; e grupos da UFRJ especialistas em mastozoologia, ecologia e entomologia. No decorrer do trabalho associaram-se: a Organização Não Governamental "Nascente Pequena" (Guapi Mirim), sediada no município, o Departamento de Patologia Clínica do Hospital Universitário Gaffré e Guinle, e o Instituto de Estudos Religiosos (ISER). Estão em andamento negociações para associação de grupos da Fiocruz que atuam nas áreas de antropologia, bacteriologia, virologia e de saúde do trabalhador, da Associação de Moradores do CAPIM, da EMATER/ Guapimirim, da APA Guapimirim, do CPRJ, e da Fundação Nacional da Saúde. Além disso, estão em andamento contatos com grupos que já desenvolvem importantes trabalhos no município nas áreas de educação ambiental. Pode-se considerar, portanto, que o primeiro objetivo está sendo alcançado satisfatoriamente, sendo necessário, entretanto, um envolvimento mais efetivo de indivíduos com função política, uma vez que tem havido apenas anuência por parte da prefeitura e das secretarias municipais, sendo nossos interlocutores, principalmente, os técnicos do segundo escalão do governo.

Quanto ao segundo objetivo, há dificuldades. O fluxo de informações tem dependido, em grande parte, de iniciativas individuais, assumidas por articuladores, não se tendo atingido, portanto, a prática desejada. Para facilitá-lo, recentemente se estabeleceu uma agenda que prevê, dentre outras atividades, a realização de seminários semestrais (em junho e dezembro), com a participação de representantes de cada equipe, culminando com uma reunião aberta à participação de toda a comunidade, e de reuniões ordinárias bimestrais com participação de representantes de cada instituição (Prefeitura, Fiocruz, EMATER, IBAMA, CPRJ, Hospital Universitário Gaffré e Guinle, UFRJ, UERJ). Essas práticas certamente propiciarão uma visão mais ampla da situação e o fortalecimento do diálogo entre os parceiros.

Iniciativas em saúde e ambiente concomitantes ao estudo-piloto

No período de realização deste estudo-piloto foram criadas as Secretarias Municipais de Meio Ambiente (ainda em fase de regulamentação) e de Turismo, e o Conselho Municipal de Meio-Ambiente (em vias de operação); foi elaborado, também, o Plano de Zoneamento, que, dentre outras medidas relevantes, delimitou uma região especial contígua às áreas de preservação total e relativa, restringindo legalmente sua ocupação a residências, hotéis e atividades culturais com a possibilidade de utilização de apenas 5% da sua área. Convém ressaltar que ainda não há uma estrutura fiscal capaz de assegurar o cumprimento da lei de zoneamento, e que esta só se completará com a elaboração do mapa de zoneamento. Através de uma portaria municipal foi criada a Comissão para a Elaboração do Plano Diretor do Município.

Outras iniciativas concomitantes ao estudo-piloto refletem a mobilização de grupos vinculados a instituições públicas e privadas de ensino e pesquisa em torno da questão ambiental em Guapimirim. Dentre estas, destacam-se ações em educação de iniciativa da Secretaria Municipal de Educação, do PARNA SO, e da "TV Machambomba", uma Organização Não Governamental.

Foi iniciado, ainda, o Plano de Despoluição da Baía de Guanabara (PDBG), dotado de recursos orçamentários de grande monta e de um planejamento multidisciplinar, mas que atua de formas diferenciadas nos municípios co-responsáveis pela poluição da baía. No caso de Guapimirim, durante a sua primeira fase, com duração prevista até o ano 2000, esse programa estará contribuindo com vagas em cursos de capacitação de pessoal e com um diagnóstico preliminar da situação do município no que diz respeito à contribuição para a poluição da baía de Guanabara. Ainda neste prazo está prevista a construção, em Magé, de uma usina para tratamento de resíduos sólidos de Guapimirim e outros municípios, cuja execução ainda não foi iniciada. Em sua Segunda fase (entre 2000 e 2010), não está descartada a possibilidade de o PDBG ampliar sua atuação no município com a execução de coleta e tratamento de esgotos.

"Comunidade ampliada de pares" e ciência "pós-normal" como solução para os problemas em saúde e ambiente no município de Guapimirim

Esta experiência tem proporcionado a todos os seus participantes e, especialmente, ao grupo de pesquisa que dela participa, uma excelente oportunidade tanto para reflexão acerca das limitações da chamada "ciência normal" na resolução de problemas ambientais, como para avaliação, reformulação ou, mesmo, abandono de práticas indesejáveis que tendemos a reproduzir, seja por viés de formação ou por terem estas o aval dessa mesma ciência "oficial" a qual nos acostumamos a aceitar. Para melhor explicar a nossa visão sobre a questão com que nos defrontamos, apresentamos, a seguir, algumas das idéias que têm nos embasado.

Superação de reducionismos, transdisciplinaridade e comunidades ampliadas de pares

Em geral, quando equipes com formação em uma determinada área do conhecimento se defrontam com questões semelhantes às que estamos examinando tendem a se concentrar em conceitos e metodologias próprios à sua formação assumindo uma postura reducionista que dificulta o diálogo e as negociações políticas necessárias à formulação de propostas realísticas realmente capazes de originar soluções mais efetivas e duradouras. Quando a equipe é composta por pessoas das áreas de ciências sociais ou de desenvolvimento tecnológico o entendimento do problema e as soluções propostas costumam não levar em conta conhecimentos biológicos e biomédicos imprescindíveis. Por outro lado, sendo estas mesmas questões apresentadas a uma equipe técnico-científica composta, basicamente, por profissionais da área biomédica, esta conduta simplista e sectária também é indesejável, pois, além de também não ser suficiente para esclarecer muitas das questões subjacentes ao problema e dificultar o diálogo, oferece como produto a prestação de serviços assistenciais (laudos, tratamentos, etc.) que, sem o acompanhamento de conceitos e métodos típicos da área de ciências sociais, tende a ser paternalista. A assistência, nesse caso, alivia o sofrimento imediato da população (o que é importante e necessário) mas, por outro lado, produz um resultado paliativo na medida em que diminui tensões e adia negociações políticas necessárias à solução definitiva do problema. Este papel acaba por ser conivente com as distorções sociais e políticas, tornando-se instrumento de dominação.

Esta impossibilidade de resolver plenamente os problemas em saúde e ambiente de forma reducionista é, hoje, amplamente reconhecida, como também o são as dificuldades de promoção efetiva do diálogo entre as diferentes áreas do conhecimento e setores envolvidos.

Em uma proposição capaz de contribuir para a solução desse impasse, Funtowicz e Ravetz (1997) discutem o papel da ciência frente aos desafios ambientais, tomando como matriz as discussões epistemológicas contemporâneas sobre disciplina e sobre enfrentamento de questões complexas e urgentes da atualidade, sendo sua perspectiva inédita quanto à ênfase nos conceitos de complexidade, incerteza e avaliação. Baseados nesta análise, estes autores propõem que se enfrentem os problemas ambientais a partir do que definem como ciência "pós-normal", uma estratégia para resolução de problemas científicos que se distinguem dos tradicionais pelas complexidades e incertezas envolvidas e pelas decisões em jogo. Para eles, a ciência dita "normal" não está apta a lidar com estas características inerentes à quase totalidade dos problemas ambientais por não admitir, por exemplo, um controle de qualidade dos resultados baseado em conhecimentos adquiridos por outra via que não o método científico. Como alternativa, propõem a ampliação dos grupos e "saberes" relacionados ao empreendimento científico, através da formação de "comunidades ampliadas de pares", que admitam todos os setores (populares, públicos ou privados) envolvidos na questão. Esta seria a via mais profícua para o enriquecimento de habilidades, controle de qualidade dos resultados e avaliação crítica do processo, e uma vez que as decisões em jogo geralmente envolvem questões éticas, além de políticas, esta prática seria a mais conveniente para a prevenção de impasses e viabilização de mudanças de rumo, entre outras possibilidades de fortalecimento do diálogo imprescindível às transformações para promoção da saúde ambiental (Funtowicz & Ravetz, 1997). Esse trabalho sugere, ainda, um diagrama para identificar, segundo as decisões em jogo e o nível de incerteza envolvido na questão científica, a melhor estratégia de atuação: ciência pura, ciência aplicada, consultoria profissional, ciência pós-normal ou combinações entre elas.

Outra proposição que pode contribuir para a superação dos reducionismos, na prática, é feita por Almeida Filho (1997), quando define transdisciplinaridade. Para ele, embora a interdisciplinaridade pressuponha horizontalização das relações de poder entre os campos, identificação de uma problemática comum e geração de "uma fecundação e aprendizagem mútua, que não se efetua por simples adição ou mistura, mas por uma recombinação de elementos internos" (Vasconcelos, 1996), não se aplica a certos tipos de problema, cuja solução é mais viável através de uma abordagem transdisciplinar, mais radical do que a interdisciplinar e por trazer implícita a idéia de "comunicação não entre campos disciplinares, mas entre agentes em cada campo, através da circulação, não do discurso (pela via da tradução), mas pelo trânsito dos sujeitos dos discursos" para permitir o diálogo mais genuíno. O autor ousa apresentar o perfil de indivíduos essenciais aos empreendimentos transdisciplinares, como "mutantes metodológicos", sujeitos prontos para o trânsito interdisciplinar, transversais, capazes de transpassar fronteiras, à vontade nos diferentes campos de transformação, agentes transformadores e transformantes".

Perspectivas e desdobramentos previstos com base na realidade constatada e nas reflexões acima

Nos itens iniciais deste artigo procuramos primeiro situar o leitor em relação aos problemas em estudo, contextualizando-os através de um breve histórico do município e de informações sobre iniciativas concomitantes na área de saúde e ambiente. Apresentamos, também, um resumo dos métodos empregados e dos resultados preliminares. Para situá-los em relação aos objetos desta experiência de parceria, que também são seus sujeitos, ousamos expor, a seguir, intencionalmente sem a preocupação de parecermos ingênuos ou simplistas, as impressões que nos têm acompanhado nos últimos nove anos de trabalho. Para concluir, apresentamos a seguir o resultado de uma auto-avaliação e uma proposta que pretende compatibilizar teoria e prática; ou antes, levar para a nova experiência as convicções (e o sentimento) resultantes das vivências e reflexões teórico-metodológicas.

Experiências anteriores

O nosso projeto, que, convém ressaltar, foi concebido por biólogos, pretende enfrentar o desafio de superar, na prática, esses reducionismos. Esta motivação originou-se em experiências anteriores, repletas de reflexões sobre incertezas, complexidades, necessidade de avaliação em vários níveis e, principalmente, sobre a ética tanto na metodologia como nas relações com a população, com o poder público ou com o setor privado. Incomodava-nos a sensação de que, por mais que nos empenhássemos em aproximar nossos métodos dos ideais de eficiência técnico-científica e de respeito aos direitos das populações (humanas) que estudávamos, em geral nossos produtos eram sub-utilizados pelas administrações municipais, servindo, convenientemente, tão-somente para engrossar relatórios, discursos e páginas de jornais locais. Por outro lado, as populações tendiam a encarar nossos diagnósticos, tratamentos e recomendações, nossas aulas, feiras de ciências, conversas, etc., como "uma bênção".

A não-conversão dos nossos resultados em mudança substantiva na qualidade de vida, que constatamos por anos consecutivos, parecia-nos uma espécie de "fatalidade" inerente à nossa condição de grupo de pesquisa de campo, nas áreas biológica/biomédica, em um país do terceiro mundo, com uma determinada cultura político-administrativa. A aceitação deste desafio, aproveitando a oportunidade do convite para trabalharmos em Guapimirim, é um verdadeiro "ato de resistência", resultante, em grande parte, das nossas convicções ético-filosóficas, mas calcado, também, na convergência entre nossas conclusões tiradas a partir das experiências mais infelizes ou encorajadoras e essas novas proposições teóricas oriundas de reflexões contemporâneas sobre a ciência e seu papel. Ressaltamos que o nosso embasamento teórico tem se beneficiado pelo fomento às discussões sobre saúde, ambiente e desenvolvimento na instituição onde trabalhamos, que, pela pluralidade de formações profissionais e atividades que congrega, oferece, também, campo fecundo à experiência do diálogo.

Diálogo entre disciplinas

Adotando-se as definições de disciplina e derivados discutidas e enriquecidas por Almeida Filho (1997), pode-se dizer que temos assumido, até aqui, uma abordagem tendendo para a interdisciplinaridade, com a ecologia e a epidemiologia como disciplinas integradoras. Entretanto, isto não significa que a condição básica para o diálogo esteja assegurada, já que, além do papel de integração, as disciplinas da nossa área de formação têm predominado, estando as ciências sociais timidamente representadas no projeto pela Antropologia, presente com um enfoque despretensioso. Além disso, devido à natureza do problema em questão, suas possibilidades de "convertê-lo em algo, até certo ponto administrável" não serão plenas. As complexidades e incertezas e, sobretudo a importância política, social e econômica das decisões que acompanham a investigação científica neste caso apontam para a necessidade de abordagem transdisciplinar. Sem perder essa perspectiva, na qual, intuitivamente, sempre apostamos, acreditamos que, para a evolução deste trabalho e da nossa capacidade de lidar com as diferenças e o diálogo, o primeiro passo deva ser o investimento na interdisciplinaridade com a contribuição mais equilibrada de diferentes áreas do conhecimento. Em especial, entendemos que seria desejável fortalecer o grupo com contribuições da sociologia e da ciência política.

Ciência "normal" e ciência "pós-normal" como estratégias complementares

No caso que se nos apresentou em Guapimirim, a ciência aplicada e as consultorias profissionais, embora necessárias, não oferecem a mesma possibilidade de resolução de problemas proporcionada pela ciência pós-normal. Trata-se de uma situação em que a complexidade é notória: os problemas em saúde e ambiente do município têm causas e efeitos econômicos, políticos, climáticos, ecológicos, históricos, comportamentais, culturais, em níveis local e global.

Por outro lado, as incertezas são inúmeras e, de modo geral, residem nas dificuldades de se prever com exatidão os riscos de agravamento de cada problema ambiental (uso equivocado da terra, diminuição da biodiversidade, redução das populações de predadores de vetores de doenças, etc.); a extensão dos riscos relacionados à transmissão e à morbidade de cada doença, em cada localidade, cada trecho de rio, grupo etário, gênero, grupo cultural, em cada época do ano, etc.; os riscos relacionados à diminuição da biodiversidade em cada localidade, cada trecho de rio, nas proximidades de cada grupo social, etc.; os riscos relacionados à saúde humana em cada situação de degradação ambiental; os riscos relacionados a comportamentos da população e aos interesses políticos e econômicos. As incertezas já se evidenciam no simples fato de Guapimirim ser um município novo, cujo processo de desenvolvimento ainda não está bem delineado, e cuja máquina administrativa ainda está em formação, especialmente no que concerne à implementação de estruturas e mecanismos relacionados ao planejamento municipal, ao meio ambiente e ao turismo.

A grande maioria dos exemplos de complexidade e incerteza citados envolve soluções delicadas, dependentes de decisões políticas de alto custo. Nessas circunstâncias, é previsível que sem um campo adequado para fluxo de informações e para negociações, como o que pode ser oferecido pelas "comunidades ampliadas de pares", as situações de risco, suas causas e conseqüências permaneçam ignoradas, em alguns casos, pelas partes interessadas, e sem solução, a despeito de serem de grande interesse público. Neste particular pensamos que, ao buscarmos novos parceiros entre associações de moradores e grupos de pais de alunos, ao insistirmos na participação mais efetiva de Secretários Municipais, e ao propormos práticas de circulação de informação e crítica estamos caminhando rumo à situação desejável.

Os casos específicos da esquistossomose e da qualidade da água (de abastecimento ou das coleções hídricas) podem ser tomados, didaticamente, para exemplificar quão óbvia é a necessidade de mudança na abordagem científica de problemas ambientais. Os problemas relacionados à água para abastecimento e lazer são tão graves e generalizados que, aparentemente, nenhum grupo socioeconômico está seguramente fora de risco, com o agravante de, no caso da população pobre, a esses riscos somarem-se outros. Tomando-se por base o diagrama biaxial de Funtowicz e Ravetz, a questão da água mostra-se como um caso a ser tratado pela ciência "pós normal", pois, apesar de, neste caso, as incertezas serem reduzidas - todos sabem que vários riscos são iminentes - a importância das decisões em jogo, considerando-se o panorama político e econômico do município, aponta para a necessidade de um tratamento mais contundente da questão do que a ciência aplicada e as consultorias profissionais poderiam oferecer.

A endemização da esquistossomose no município poderia ser considerado como um acidente com nível de incerteza mediano, pois, apesar da presença do molusco hospedeiro intermediário em coleções hídricas contaminadas por esgotos e utilizadas pela população humana, pouco se sabe, por exemplo, sobre a estabilidade de suas populações em relação ao elevadíssimo índice pluviométrico local. Além disso, não se tem confirmação da ocorrência de casos autóctones nem de casos recentes em humanos e/ou hospedeiros não-humanos. As decisões em jogo, por sua vez, são tão delicadas quanto na questão da contaminação da água. Seria lícito manter as águas contaminadas e proibir a população de usá-las? Sendo esta a decisão, como fazê-lo? A população teria outras alternativas mais seguras de lazer e abastecimento doméstico a um custo individual reduzido? Trata-se, assim, de mais uma situação para a qual a ciência "pós-normal" e a "comunidade ampliada de pares" mostram-se mais adequadas.

Este exemplo também serve para mostrar uma situação em que várias estratégias são admitidas. A ciência pura levantou o problema através de um estudo sobre a malacofauna local; a ciência aplicada tem se incumbido dos diagnósticos ambientais e na população humana; a busca de correlações entre esses diagnósticos exemplifica o que Funtowicz e Ravetz chamam de consultoria profissional e, através da "comunidade ampliada de pares" e de práticas de informação e comunicação em "mão-dupla" que permitam a obtenção de subsídios para a tomada das decisões necessárias, cabe à ciência "pós normal", pelo menos, os seguintes papéis: a) avaliar esses conhecimentos, não questionando a sua validade científica, que permanece sendo prerrogativa dos cientistas, mas discutindo o seu papel social e as implicações políticas e econômicas envolvidas na solução dos problemas levantados; b) aglutinar a esses conhecimentos novos saberes; c) reavaliar com freqüência o rumo das investigações; d) levantar novas questões.

Uma importante perspectiva se abre através de um convite para que representantes da parceria componham uma comissão de assessoramento à elaboração do Plano Diretor do Município. A se confirmar, esta será uma oportunidade riquíssima de contribuir para o desenvolvimento sustentável do município.

O pesquisador como agente social

O papel do cientista nos exemplos citados não pode se resumir a fornecer argumentação técnico-científica para enfatizar o óbvio: a necessidade de tratar a água de abastecimento, de prevenir a contaminação das coleções hídricas e de tratar os esgotos. Há que participar de uma engrenagem suficientemente bem montada para sustentar discussões e negociações políticas pautadas pelo conhecimento científico e outros saberes mas balizadas pela ética, para que os interesses em jogo resultem no bem comum.

Considerações finais

Como Funtowicz e Ravetz, consideramos que, no que concerne à distribuição social de conhecimentos e habilidades, estão maduras as condições para enriquecermos a pesquisa com este novo tipo de prática. Mas, para que os nossos objetivos sejam alcançados, as tarefas mais árduas serão, sem dúvida, interagir com a cultura político-administrativa local e nacional e enfrentar as restrições orçamentárias crescentes que se abatem, atualmente, sobre todas as instituições oficiais participantes e que atingem, principalmente, os itens de dispêndio relativos a pessoal.

Referências bibliográficas

  • Almeida Filho N 1997. Transdisciplinaridade e Saúde Coletiva. Revista Ciência & Saúde Coletiva II(1/2):5-20.
  • Funtowicz S & Ravetz J 1997. Ciência Pós-normal e Comunidades Ampliadas de Pares face aos Desafios Ambientais. História, Ciências, Saúde-Manguinhos 4(2):219-230.
  • Petersen Jr RC 1992. The RCE: A Riparian, Channel and Environmental Inventory for Small Streams in the Agricultural Landscape. Freshwater Biology 27: 295-306.
  • Thyengo SC, Fernandez MA, Boaventura MFF & Santos SB 1997. On the Occurrence of Biomphalaria Straminea in the "Microrregião Serrana" of the State of Rio de Janeiro, Brazil, p. 158. VI International Simposium on Schistosomiasis, Belo Horizonte.
  • Vasconcelos E 1996. Desinstitucionalização e Interdisciplinaridade em Saúde Mental. Escola de Serviço Social, Universidade do Estado do Rio de Janeiro, mimeo. In N Almeida Filho 1997 - Transdisciplinaridade e Saúde Coletiva Revista Ciência & Saúde Coletiva II(1/2): 5-20.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    28 Jul 2006
  • Data do Fascículo
    1998
location_on
ABRASCO - Associação Brasileira de Saúde Coletiva Av. Brasil, 4036 - sala 700 Manguinhos, 21040-361 Rio de Janeiro RJ - Brazil, Tel.: +55 21 3882-9153 / 3882-9151 - Rio de Janeiro - RJ - Brazil
E-mail: cienciasaudecoletiva@fiocruz.br
rss_feed Acompanhe os números deste periódico no seu leitor de RSS
Acessibilidade / Reportar erro