Open-access Avaliação da insegurança alimentar no contexto da COVID-19: associação com o auxílio emergencial e recebimento de doação de alimentos na população em vulnerabilidade social de uma capital do Nordeste do Brasil

Assessment of food insecurity in the context of COVID-19: association with emergency aid and collecting food donations among the socially vulnerable population of a capital in Northeastern Brazil

Resumo

O estudo objetivou investigar a prevalência de insegurança alimentar no contexto da COVID-19 e sua associação com o programa de transferência de renda Auxílio Emergencial e o recebimento de doação de alimentos na população em vulnerabilidade social. Estudo transversal, realizado com famílias em vulnerabilidade social, oito meses após a confirmação do primeiro caso de COVID-19 no Brasil. Foram incluídas 903 famílias, residentes em 22 aglomerados subnormais de Maceió, em Alagoas. Avaliaram-se características sociodemográficas e foi aplicada a Escala Brasileira de Insegurança Alimentar. A associação da insegurança alimentar com as variáveis estudadas foi realizada por meio de regressão de Poisson com estimativa robusta das variâncias, considerando α = 5%. Do total da amostra, 71,1% estavma em insegurança alimentar, situação que se associou com o recebimento de doação de alimentos (RP = 1,14, IC95%: 1,02; 1,27) e ser beneficiário do Auxílio Emergencial (RP = 1,23, IC95%: 1,01; 1,49). Os resultados mostram que a população em vulnerabilidade social foi fortemente afetada pela insegurança alimentar. Em contrapartida, essa população foi beneficiada por ações que foram implementadas no início da pandemia.

Palavras-chave: Pobreza; Sars-CoV-2; Segurança alimentar

Abstract

The scope of this study was to investigate the prevalence of food insecurity in the context of COVID-19 and its association with the emergency aid income-transfer program and the collecting of food donations by the population in a situation of social vulnerability. A cross-sectional study was carried out with socially vulnerable families eight months after confirming the first case of COVID-19 in Brazil. A total of 903 families, living in 22 underprivileged communities of Maceió, in the state of Alagoas, were included. Sociodemographic characteristics were evaluated, and the Brazilian Food Insecurity Scale was applied. The association of food insecurity with the variables studied was performed using Poisson regression with robust variance estimation, considering α = 5%. Of the total sample, 71.1% were food insecure, a situation associated with receiving food donations (PR = 1.14; 95%CI: 1.02; 1.27) and being a beneficiary of emergency aid (PR =1.23; 95%CI: 1.01; 1.49). The results show that the population in a situation of social vulnerability was strongly affected by food insecurity. On the other hand, the population group in question benefited from actions implemented at the outset of the pandemic.

Key words: Poverty; Sars-CoV-2; Food security

Introdução

Diante do início da pandemia de COVID-19, decorrente da disseminação do coronavírus SARS-CoV-2 no Brasil, com o primeiro caso confirmado em 26 de fevereiro de 2020, as consequências econômicas já previstas se instalaram, afetando de forma mais grave a população que vive em situação de vulnerabilidade social1,2. Como essa população apresenta renda mais baixa e acesso limitado a uma alimentação adequada, com as medidas restritivas impostas em decorrência da pandemia essa situação se agravou, refletindo-se no aumento da insegurança alimentar (IA)3,4.

No Brasil, a Política Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional define a IA por meio de duas vertentes, a alimentar, caracterizada pela disponibilidade dos alimentos por meio da sua produção, comercialização e acesso, e a nutricional, relacionado a escolha, preparo, consumo alimentar e a relação com a saúde e a utilização biológica dos nutrientes5. Dessa forma, a falta de alimentos, seja em quantidade ou qualidade, implica prejuízos na saúde do indivíduo.

A IA se agravou em todo o mundo, sendo percebido que 2,37 bilhões de pessoas não tinham acesso a uma alimentação adequada em 2020, um aumento de 320 milhões quando comparado a 2019. Esse panorama se refletiu na situação de fome, sendo projetado que cerca de 768 milhões de pessoas em todo o mundo enfrentavam essa condição em 2020, 118 milhões a mais do que em 20196. No Brasil, em 2020, 43,4 milhões de pessoas estavam em IA moderada ou grave, não tendo acesso a alimentos em quantidade suficiente para atender às suas necessidades, com 19 milhões pessoas em situação de fome7.

Diante desse cenário, com intuito de minimizar os impactos da pandemia da COVID-19 e diminuir a situação de IA, várias estratégias foram implementadas, e outras já pré-existentes foram modificadas pelo poder público brasileiro, seja no âmbito nacional ou estadual, como a doação de cestas básicas e refeições com recursos oriundos do Programa Nacional de Alimentação Escolar, a reestruturação do Programa de Aquisição de Alimentos, ocorrendo a compra e doação simultânea de alimentos, além da distribuição de alimentos por meio dos equipamentos de segurança alimentar e nutricional, como os restaurantes populares 8.

Adicionalmente, ocorreu a implementação do programa de transferência de renda denominado Auxílio Emergencial (AE). Essa proposta, mesmo que de forma tardia, foi enviada pelo Governo Federal para apreciação pelo Congresso Nacional, com intuito de realizar a transferência direta de renda no valor de R$ 200,00 para a população que foi mais afetada economicamente durante a pandemia. Após forte pressão da sociedade civil organizada e de diversos parlamentares, ocorreu a modificação do valor que seria repassado, ficando a proposta final aprovada em R$ 600,008.

Também foi percebido um importante aumento na doação de alimentos para a população mais pobre, por meio de ações protagonizadas pela sociedade civil organizada. Essas ações foram fundamentais por conta do aumento observado na taxa de desocupação no Brasil, passando de 11,9% para 13,5%, quando comparados os anos de 2019 e 2020, tendo sido identificada uma situação ainda pior no estado de Alagoas, que passou de 14,9% para 18,6% no mesmo período, apresentando o segundo maior percentual de desocupação do país9.

Dessa forma, avaliar a situação de IA mostra-se essencial neste período, com intuito de retratar de maneira mais completa o risco ou temor relativo à dificuldade de acesso aos alimentos vivenciado pela população vulnerável. Assim será possível agir de modo mais rápido e eficiente na reversão da situação encontrada10, identificando se as ações até o momento implementadas conseguiram minimizar os efeitos negativos do contexto em que essa população está inserida.

Nesse cenário, o objetivo do presente estudo foi investigar a prevalência de insegurança alimentar oito meses após a confirmação do primeiro caso de COVID-19 no Brasil e sua associação com o programa de transferência de renda Auxílio Emergencial e o recebimento de doação de alimentos na população que vive em situação de vulnerabilidade social na cidade de Maceió, Alagoas, região Nordeste do Brasil.

Métodos

Trata-se de um estudo transversal que faz parte de um estudo maior intitulado “Avaliação do ambiente nutricional em aglomerados subnormais em Maceió/AL”, realizado em 22 aglomerados subnormais do município de Maceió, capital do estado de Alagoas, região Nordeste do Brasil, distribuídos em cinco das oito regiões administrativas da cidade. No Brasil, os aglomerados subnormais também são conhecidos como favelas, grotas, comunidades, loteamentos irregulares, entre outras maneiras, e são caracterizados como espaços que apresentam precariedade no que se refere às condições socioeconômicas, de saneamento e moradia11.

Inicialmente, foram identificados os aglomerados que seriam estudados, e a população e o número de domicílios existente em cada um, utilizando os dados do Plano Local de Habitação de Interesse Social de Maceió12.

O estudo tinha o propósito de avaliar 40 aglomerados subnormais em sete das oito regiões administrativas de Maceió. Um dos critérios para a seleção desses locais foi o número de residências existentes em cada um, sendo excluídos os de menor porte, fazendo com que a primeira região administrativa, que apresenta apenas um aglomerado subnormal, não fosse incluída. Contudo, por conta do agravamento da pandemia, o estudo teve que ser interrompido, tendo sido concluída a avaliação de 22 aglomerados subnormais.

Nos 22 aglomerados avaliados, a estimativa é de que existam 39.393 moradores, habitando 10.994 domicílios. Levando em consideração esses dados, com o intuito de obter um nível de confiança de 95,0%, e uma margem de erro de 2,5%, era necessário visitar 903 domicílios se a prevalência observada de IA moderada e grave fosse de 20%13. A amostra foi estratificada proporcionalmente entre os aglomerados, de acordo com o tamanho populacional de cada um.

Foi realizado o sorteio de uma rua de cada aglomerado, sendo visitadas todas as residências dessa rua, continuando as visitas nas ruas adjacentes à mesma. Foram incluídas todas as casas em que residia pelo menos uma mulher adulta com idade entre 20 e 45 anos que aceitou participar da pesquisa. A inclusão de domicílios apenas com mulheres, e nessa faixa de idade, ocorreu por conta do objetivo do estudo maior, no qual este trabalho encontra-se inserido, que buscou avaliar apenas mulheres adultas em idade reprodutiva. Foi entrevistada uma mulher em cada domicílio.

Não foram entrevistadas mulheres que apresentavam alguma deficiência mental, auditiva ou vocal, situação que era relatada, a priori, por outros membros da família, pois impossibilitaria a compreensão dos questionários e a condução da entrevista. Nos domicílios em que havia mais de uma mulher que atendesse aos critérios de inclusão da pesquisa, foi entrevistada aquela que era considerada a chefe da família ou responsável pela alimentação no domicílio. Foram incluídos domicílios chefiados ou não por mulheres.

Os dados começaram a ser coletados oito meses após a confirmação do primeiro caso de COVID-19 no Brasil. As visitas domiciliares ocorreram entre novembro de 2020 e março de 2021, período entre as 45ª e 53ª semanas epidemiológicas (SE) de 2020, e entre a 1ª e 8ª SE de 2021. Esse período pode ser caracterizado como o final da primeira e início da segunda onda de COVID-19 no Brasil. A coleta de dados foi suspensa um pouco antes de ocorrer o pico de contaminação durante a segunda onda de casos no país, na 12ª SE, quando cerca de 540 mil casos foram confirmados14.

As entrevistas foram realizadas nos domicílios por equipe treinada nas dependências da Universidade Federal de Alagoas por professores da instituição. A equipe foi composta por sete nutricionistas, todos mestrandos vinculados a programas de pós-graduação, e quatro estudantes de graduação em nutrição. As coletas foram supervisionadas por dois nutricionistas, sendo uma professora doutora e um doutorando vinculados a instituições públicas federais. Após a finalização de cada entrevista, os questionários eram avaliados pelos supervisores para identificar possíveis inconsistências, e, caso necessário, retornava-se ao domicílio com intuito de sanar a possível situação.

Durante a realização das entrevistas, foram adotados todos os protocolos de biossegurança preconizados pela Organização Mundial da Saúde, como o distanciamento de pelo menos dois metros entre entrevistadores e entrevistados, utilização de máscara facial e face shield pelos entrevistadores e de álcool em gel para higienização das mãos. Também foram distribuídas máscaras faciais para toda a população entrevistada. Foi aplicado um questionário estruturado, adaptado da Pesquisa de Orçamento Familiar (POF) 2017-2018, para obter informações socioeconômicas e demográficas, e a Escala Brasileira de Insegurança Alimentar (EBIA)15.

A variável dependente do estudo foi a IA, avaliada por meio da EBIA15, cujo formulário contém 14 perguntas (sim ou não) sobre a experiência de insuficiência alimentar em seus diversos níveis de intensidade nos últimos três meses. Cada resposta positiva corresponde a um ponto. A classificação da IA foi realizada da seguinte maneira: residência com menores de 18 anos - 0: segurança alimentar, 1-5: IA leve, 6-9: IA moderada, e 10-14: IA grave; residência sem menores de 18 anos - 0: segurança alimentar, 1-3: IA leve, 4-5: IA moderada, e 6-8: IA grave15. Nesse estudo, a prevalência de IA foi determinada por meio da soma dos seus três níveis (leve, moderado e grave).

Como variáveis independentes foram investigadas, as características do agregado familiar composto por número de moradores no domicílio (≤ 4; ≥ 5), presença de criança menor de cinco anos (sim; não) e número de cômodos (≤ 4; ≥ 5) no lar e renda familiar per capita (R$ ≤ 261,25; R$ > 261,25), considerando o ponto de corte de ¼ de salário-mínimo, levando em consideração o salário-mínimo vigente no ano de 2020 no Brasil (R$ 1.045,00) e recebimento do AE (sim; não). Todos os pontos de corte utilizados foram baseados em indicadores já utilizados em pesquisas nacionais, como a POF.

O programa de transferência de renda AE foi implementado pelo governo brasileiro durante a pandemia da COVID-19. O objetivo foi auxiliar a minimizar o impacto percebido na renda da população, situação ocasionada pela diminuição do número de postos de trabalho e das medidas restritivas impostas em todo o país, contemplando, nesse caso, os trabalhadores informais, microempreendedores individuais, autônomos e desempregados16.

Adicionalmente, foi avaliado se durante a pandemia a família recebeu alguma doação de alimentos (sim; não), identificando qual a sua origem. Também foram coletados dados da mulher entrevistada, como a idade, anos de escolaridade (≤ 8; ≥ 9), ponto de corte que corresponde à conclusão do ensino fundamental II, sua ocupação atual e se ela se considera chefe da família (sim; não). Todas as variáveis selecionadas tinham o objetivo de caracterizar a situação em que a família se encontrava, pois essas características podem se refletir na disponibilidade de alimentos na residência, situação diretamente relacionada à IA7.

Os dados foram digitados em dupla entrada. A análise dos dados foi feita com auxílio do software estatístico R (R Foundation for Statistical Computing), usando o pacote R-Commander. Para a estatística descritiva, as variáveis contínuas foram apresentadas como média, e intervalo de confiança de 95% (IC95%), atendendo aos seus pressupostos, e as variáveis categóricas como frequências absolutas e relativas.

A análise da associação entre o recebimento do AE e de doação de alimentos ao desfecho IA (sim ou não), tendo a segurança alimentar como referência, foi realizada por meio de regressão de Poisson com estimativa robusta das variâncias, estimando-se as razões de prevalência (RP) bruta e ajustada. O modelo ajustado incluiu as variáveis renda per capita, anos de estudo da mulher que respondeu à pesquisa e presença de criança menor de 5 anos na residência, definidos a priori, baseados no diagrama causal apresentado na Figura 1. Foi adotado um nível de significância de 5%.

Figura 1
Gráfico acíclico direcionado.

Este trabalho foi submetido e aprovado pelo Comitê de Ética da Universidade Federal de Alagoas (CAAE 57829016.9.1001.5013), com base na Resolução 466/2012 CONEP/CNS/MS do CN.

Resultados

O presente estudo entrevistou 968 mulheres, cada uma residindo em um domicílio diferente. Foram excluídas as mulheres que não responderam ao EBIA ou não relataram se alguém no domicílio havia recebido doação de alimentos e/ou auxílio emergencial (n = 65, 6,7%). Após as exclusões, permaneceram neste trabalho 903 mulheres, com média de idade de 30,9 (30,4; 31,5) anos. O aglomerado com maior e menor número de entrevistadas pertencem às 5ª e 6ª regiões administrativas do município, respectivamente. Nas famílias avaliadas, a renda per capita média foi de R$ 347,69 (330,4; 364,7), sendo que 45.6% da população apresentava renda per capita igual ou inferior a R$ 261,25 (≤ ¼ de salário-mínimo do ano de 2020 no Brasil), e 87% das residências avaliadas tinham pelo menos um beneficiário do AE.

Quando avaliadas as características da mulher que respondeu à pesquisa, foi visto que quase a metade (49,9%) tinha oito anos ou menos de escolaridade, a maioria estava desempregada ou era dona de casa (71,3%) e 44,2% se consideravam chefe da família. Entre as que estavam exercendo algum tipo de atividade profissional remunerada, as ocupações mais frequentes foram: faxineira (9,0%) e autônoma (7,0%) (Tabela 1).

Tabela 1
Características socioeconômicas e demográficas da população em vulnerabilidade social do município de Maceió, nordeste do Brasil, oito meses após a confirmação do primeiro caso de COVID-19 no país (n = 903).

Foi identificado que mais da metade das famílias avaliadas receberam doação de alimentos durante a pandemia, tendo essas doações ocorrido, na sua maioria, por algum seguimento da administração pública (58,4%), com a mesma família recebendo doações de mais de um seguimento, como as secretarias Estadual e Municipal de Assistência Social, a escola em que a criança residente no domicílio estudava ou alguma organização da sociedade civil (31,5%), sendo os mais citados o Centro de Recuperação e Educação Nutricional de Maceió e o Instituto MANDAVER. A população relatou que os alimentos mais frequentes nas doações eram arroz, feijão, macarrão, mandioca e batata doce, demonstrando que a sua base/cultura alimentar foi respeitada. Também foi identificado que 71,1% da população estudada apresentavam algum grau de IA, sendo que 24,1% estavam em IA moderada ou grave (Tabela 1).

Foi observada associação entre o recebimento de doação de alimentos e ser beneficiário do AE com a IA, tanto na análise bruta quanto na ajustada para renda per capita, escolaridade e ter pelo menos uma criança menor de 5 anos na residência. Na análise ajustada, o recebimento de doação de alimentos (RP = 1,1, IC95%: 1,0; 1,3) e do AE (RP = 1,2, IC95%: 1,0; 1,5) se associaram à situação de IA vivenciada pela população (Tabela 2).

Tabela 2
Associação por regressão de Poisson entre a insegurança alimentar e recebimento de doação de alimentos e ser beneficiário do programa de renda básica auxílio emergencial, na população em vulnerabilidade social do município de Maceió, nordeste do Brasil, oito meses após a confirmação do primeiro caso de COVID-19 no país (n = 903).

Discussão

O presente estudo encontrou uma elevada prevalência de IA (71,1%), identificando que mais de 10% da população encontra-se em IA grave. Também foi visto que 87,0% das residências tinham ao menos um beneficiário do programa AE, e que mais da metade da população (50,3%) recebeu doação de alimentos durante a pandemia, estando essas duas situações associadas positivamente à ocorrência de IA.

Vale destacar a elevada prevalência de IA leve que foi encontrada (47,0%). Esse achado demonstra que quase metade da população mais pobre apresenta preocupação no que se refere ao acesso a alimentos. Esse panorama pode ser reflexo do aumento do preço dos gêneros alimentícios, que apresentou crescimento acima do registrado em períodos anteriores17. A alta do preço dos alimentos, associada à defasagem do valor do salário-mínimo brasileiro, fez com que a população apresentasse menor poder de compra, situação que provavelmente se agrava na população estudada, visto que o Nordeste do Brasil, historicamente, apresenta os piores indicadores sociais do país.

A pandemia de COVID-19 surge em um momento em que o Brasil apresenta piora dos seus indicadores econômicos e enfraquecimento das políticas públicas, sobretudo aquelas voltadas para o combate à miséria e à fome, ocasionando o aumento da parcela da população que vive em vulnerabilidade8. Essa situação se refletiu diretamente na IA no país, que já vinha acometendo de forma preocupante a população, principalmente os mais pobres18, sendo identificado o aumento da prevalência de IA, passando de 22,6% em 2013 para 36,7% em 202019.

Estudo realizado no estado de Alagoas, cinco anos antes do início da pandemia no Brasil, identificou que a prevalência de IA era de 58,3%, acima da média nacional20. Em Maceió, estudos feitos antes da pandemia com a população em vulnerabilidade social encontraram prevalências de IA de 92,0%21 e 76,0%22.

A implementação do AE, associado ao aumento na doação de gêneros alimentícios, fez com que a população, mesmo que de forma pontual, tivesse menos dificuldade no acesso aos alimentos. Também vale destacar que, de acordo com o relatado nas entrevistas, os alimentos mais frequentes nas doações eram in natura ou minimamente processados, como arroz, feijão, macarrão, mandioca e batata doce, fazendo com que se mantivesse uma base alimentar adequada, sem a inserção desenfreada de ultraprocessados, situação que impactaria negativamente na qualidade da alimentação dessa população.

A maior rede de doação de alimentos, seja por iniciativas de órgãos e entidades do poder público ou da sociedade civil, contribuiu para que não ocorresse um aumento vertiginoso da IA, em especial na sua forma grave, na população mais pobre8,22. Em momentos de calamidade, a adoção de medidas de curto prazo para assegurar, mesmo que minimamente, o acesso à alimentação é imprescindível, e nesse caso a doação de alimentos é a estratégia mais rápida e eficaz, até que se possa planejar e implementar medidas mais eficientes para reverter a situação identificada.

Os efeitos da pandemia relacionados à IA foram percebidos desde o seu início. Nessa perspectiva, estudo realizado um mês após a confirmação do primeiro caso de COVID-19 no Brasil em comunidades vulnerais do município de São Paulo identificou que 95,0% da população estudada estava em situação de IA23, mostrando que as medidas restritivas que foram impostas em decorrência da pandemia afetaram fortemente os mais pobres. A situação de IA também foi agravada no Quênia e em Uganda, países africanos de baixo poder econômico, sendo percebido um aumento de 38,0% e 44,0%, respectivamente, da sua prevalência, o mesmo ocorrendo um mês após a confirmação do primeiro caso confirmado de COVID-19 na África Oriental (março de 2020)24. Entretanto, a situação encontrada nesses três cenários pode ser ainda mais grave, pois essas avaliações foram realizadas por meio de aplicação de um formulário eletrônico. Dessa forma, aqueles que não tem acesso à internet, geralmente pessoas que de menor nível socioeconômico, não foram incluídos.

Nossos achados mostram um panorama menos grave relacionado à IA entre os mais pobres, quando comparado aos dados encontrados em comunidades vulneráveis de São Paulo no início da pandemia23. Essa situação pode ser explicada pela formação de uma maior rede de apoio capitaneada pela sociedade civil organizada, visto que mais de metade da população avaliada recebeu doação de alimentos, situação que pode ter auxiliado na diminuição da prevalência de IA, pois as famílias tiveram maior acesso aos gêneros alimentícios, aumentando assim sua disponibilidade nos domicílios, em quantidade e qualidade. Essa situação condiz com o discutido pelo Departamento de Assuntos Econômicos e Sociais da Organização das Nações Unidas, de que a recuperação da situação provocada pela pandemia perpassa a existência de uma maior rede de solidariedade e cooperação, auxiliando a população que mais necessita de ajuda nesse momento25.

Outra estratégia que foi importante para minimizar o impacto da pandemia no que se refere à alimentação da população, principalmente entre os mais pobres, visto que foram os mais afetados, auxiliando na melhora da situação de IA, foi a implementação do programa de transferência de renda AE, um programa governamental que para a sua aprovação contou com forte movimentação do Congresso Nacional e da sociedade civil organizada. A movimentação desses setores foi necessária, porque além da demora para iniciar o pagamento a quem encontra-se elegível para ser beneficiado pelo programa, o governo federal havia vetado o seu recebimento por determinados grupos vulnerabilizados, como pescadores artesanais, agricultores familiares, motoristas, entre outros8, situação que acentuou ainda mais a crise financeira e alimentar vivenciada pela população brasileira.

Após sua implementação integral, o valor repassado por trabalhador era de R$ 600,00. Sendo que nos domicílios com dois ou mais trabalhadores, e com mães chefes de família, o valor poderia chegar a R$ 1.200. Esses valores, associado ao tempo de recebimento do auxílio, foram importantes para ajudar na compra de alimentos, sendo identificado que mais de 60% da população mais pobre utilizava o recurso recebido para essa finalidade, situação que acaba impactando na diminuição da IA26.

A criação de programas de transferência de renda, como é o caso do AE, é uma medida importante para melhorar a situação de IA, em especial nas suas formas moderada e grave, uma vez que auxilia no aumento da renda per capita, fazendo com que o acesso aos alimentos seja facilitado, contribuindo para que a população apresente uma expectativa mais promissora de poder de compra, modificando a memória recente de acessibilidade dificultada aos alimentos27.

As famílias que foram contempladas pelo AE e por doação de alimentos apresentaram maior risco de estarem em situação de IA do que aquelas que não receberam. Isso reforça que a população investigada se encontra em situação de pobreza e que entre os critérios de elegibilidade de recebimento dos benefícios está a baixa renda. A pobreza é fortemente associada à IA28,29, o que corrobora o achado do estudo de que, mesmo com o recebimento dos benefícios, a população continuou exposta à IA, sendo necessária a implementação de estratégias de curto e médio prazo que priorizem a geração de renda, para que a população saia da condição de pobreza.

Mesmo com a menor prevalência de IA identificada quando comparada a outros estudos no início da pandemia, percebe-se que a população que apresenta os indicadores socioeconômicos mais fragilizados ainda está sendo fortemente afetada. Essa situação corrobora outros achados já descritos23,24,30, demonstrando que os determinantes socioeconômicos da população estão relacionados com a ocorrência da IA, afetando, inclusive nas regiões mais desenvolvidas, aqueles que apresentam menor renda30.

Percebe-se que a inserção em programas de transferência de renda, além do recebimento de doação de alimentos, acontece de forma mais prevalentes entre as mulheres. Essa situação ocorre porque elas, a priori, costumam destinar os recursos financeiros ou materiais oriundos de doações de maneira mais equânime para minimizar as principais carências apresentadas pela família, principalmente no que se refere à alimentação31. Outra situação diz respeito ao maior risco de IA em famílias chefiadas por mulheres7,32, mostrando que a relação entre o sexo e condições socioeconômicas ainda se apresenta como merecedora de atenção, reforçando a necessidade de que as famílias chefiadas por mulheres sejam contempladas por programas assistenciais32.

Nosso estudo apresenta algumas limitações, como a escolha não aleatória dos domicílios que foram visitados e a inclusão somente daqueles em que residia pelo menos uma mulher adulta com idade entre 20 e 45 anos. Contudo, não é do nosso conhecimento a realização de pesquisas de base domiciliar realizadas após o agravamento da pandemia decorrente do coronavírus SARS-CoV-2 com o intuito de avaliar a situação de IA da população em vulnerabilidade social. Dessa forma, as informações aqui contidas mostram-se relevantes, podendo auxiliar na formulação de novas estratégias e políticas públicas com foco nesse seguimento populacional.

Como conclusão, o presente trabalho identificou uma elevada prevalência de IA na população em vulnerabilidade social do município de Maceió oito meses após a confirmação do primeiro caso de COVID-19 no Brasil, identificando a sua associação com estratégias emergências que foram adotadas no país, como a implementação do programa de transferência de renda Auxílio Emergencial e o fortalecimento da rede de doação de alimentos para a população.

Esse achado demonstra que a população beneficiada por essas ações eram de fato as que mais estavam expostas a IA, sendo necessária a implementação de novas estratégias que se associem às que estão em vigência, a fim de garantir o direito a uma alimentação adequada, como o aumento de ações que promovam geração de renda e o incentivo a micro e pequenos empreendedores, gerando mais oportunidades para a população e fazendo com que saia do ciclo de pobreza, o que contribui para a promoção da segurança alimentar em longo prazo. A continuidade da avaliação da IA na população em situação de vulnerabilidade social se mostra necessária como forma de identificar a evolução dessa condição, sendo possível planejar, implantar e implementar políticas públicas de médio e longo prazos para a garantia da segurança alimentar em situações emergenciais.

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  • Editores-chefes:
    Romeu Gomes, Antônio Augusto Moura da Silva

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    06 Mar 2023
  • Data do Fascículo
    Mar 2023

Histórico

  • Recebido
    10 Set 2021
  • Aceito
    20 Set 2022
  • Publicado
    22 Set 2022
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