Open-access Saúde mental na comunidade Tupinambá da Serra do Padeiro, sul da Bahia, Brasil: comunidade e luta como fontes de saúde

Resumo

Este trabalho apresenta concepções e práticas ligadas à saúde mental na comunidade indígena Tupinambá da Serra do Padeiro, no sul da Bahia. Pesquisa de natureza qualitativa, utiliza o método da cartografia para mapeamento de processos e relações existentes no território Tupinambá. Observação participante, entrevistas semiestruturadas, diário de campo e estudos bibliográficos foram as técnicas de produção de dados. A responsabilidade compartilhada caracteriza o modo como se organiza o cuidado da medicina indígena no território. Os fatores de produção do sofrimento psicossocial, as práticas de cuidado e de enfrentamento dos conflitos, são compreendidos a partir das interações entre modos de cuidado indígenas e não-indígenas. A inseparabilidade entre psíquico e social conjuga-se com as dimensões territoriais, reforçando a ligação entre saúde mental e o cotidiano comunitário. A luta pelo território possibilita a reconstrução de um ethos subjetivo que recusa a servidão, deslocando-se de condições de precariedade e subalternização anteriores, com a expulsão do território, para outros processos de subjetivação mais autônomos e coletivos. O exemplo da Serra do Padeiro colabora para levantar que a saúde maior, quem dá, é a luta.

Palavras-chave: Saúde Mental; Populações Indígenas; Violência Étnica; Coesão Social

Abstract

This work presents concepts and practices linked to mental health in the Tupinambá Indigenous community of Serra do Padeiro in southern Bahia, Brazil. This qualitative cartographic research mapped existing processes and relationships in the Tupinambá territory. Data production techniques were participant observation, semi-structured interviews, field diary, and bibliographic studies. Shared responsibility characterizes how Indigenous medicine care is organized in the territory. The factors that produce psychosocial distress, care practices, and conflict coping are understood from the interactions between Indigenous and non-Indigenous ways of care. The inseparability between psychic and social is combined with territorial dimensions, reinforcing the link between mental health and daily community life. The struggle for territory enables the reconstruction of a subjective ethos that refuses servitude, moving from previous conditions of precariousness and subalternity, with expulsion from the territory to other more autonomous and collective subjectivation processes. The example of Serra do Padeiro highlights that the struggle offers the most significant health.

Key words: Mental Health; Indigenous Populations; Ethnic Violence; Social Cohesion

Resumen

Este trabajo presenta conceptos y prácticas relacionados con la salud mental en la comunidad indígena Tupinambá de Serra do Padeiro, en el sur de Bahía. Esta investigación cualitativa utiliza el método cartográfico para mapear los procesos y relaciones existentes en el territorio Tupinambá. La observación participante, las entrevistas semiestructuradas, los diarios de campo y los estudios bibliográficos fueron las técnicas utilizadas para producir los datos. La responsabilidad compartida caracteriza la forma en que se organiza el cuidado de la medicina indígena en el territorio. Los factores que producen sufrimiento psicosocial, las prácticas de atención y el enfrentamiento de los conflictos se comprenden a partir de las interacciones entre los modos de atención indígenas y no indígenas. La inseparabilidad entre lo psíquico y lo social se combina con las dimensiones territoriales, reforzando el vínculo entre la salud mental y la vida cotidiana de la comunidad. La lucha por el territorio permite reconstruir un ethos subjetivo que rechaza la servidumbre, pasando de condiciones anteriores de precariedad y subalternización, con la expulsión del territorio, a otros procesos de subjetivación más autónomos y colectivos. El ejemplo de Serra do Padeiro demuestra que la mayor fuente de salud proviene de la lucha.

Palabras clave: Salud Mental; Población Indígenas; Violencia Étnica; Cohesión Social

Introdução

Se a visibilidade dos problemas de saúde mental tem se alastrado no Brasil, impulsionada com o advento da pandemia, guerras, desastres ambientais, econômicos, políticos e sociais, o mesmo ocorre com os problemas dos povos indígenas1. A morosidade das demarcações de terras indígenas, o Marco Temporal, os conflitos por direitos territoriais, a exploração ilegal de recursos naturais, as diversas violências de Estado e civis geram mazelas que funcionam como “fatores que colaboram diretamente com a fragilização nos territórios indígenas e são responsáveis pelos acirramentos dos conflitos de terras no país”2, produzindo sofrimentos diversos nessas populações.

As relações entre saúde mental, violências interétnicas e crises climáticas se mostram em crescente eminência analítica. Os conflitos ligados às terras indígenas e aos projetos desenvolvimentistas compõem este quadro problemático. Dentre os impactos na vida dos povos originários estão: alterações nos modos de vida tradicionais, nos modos de produção e consumo, nos hábitos; prejuízos no desenvolvimento integral e seguro de crianças; fragilização da população idosa, principal guardiã dos saberes indígenas; consumo prejudicial de drogas ilícitas e lícitas (incluindo medicações psicotrópicas); aumento de casos de suicídio e outras violências3. O processo de saúde-doença em povos indígenas considera, entre os seus determinantes socioeconômicos e culturais, a dimensão do direito à terra, sua preservação e permanência, associada à autodeterminação política e sanitária destes grupos sociais. A relação com a terra, os meios naturais e os seres espirituais compõem a construção coletiva de suas organizações, intrinsicamente ligadas também ao equilíbrio corporal e psíquico4. Os sistemas de saberes e práticas da medicina indígena e a relação com seres não-humanos são componentes de suas cosmologias, fundantes e organizadores dos seus modos de vida.

Este trabalho apresenta uma cartografia das concepções e práticas relacionadas à saúde mental na comunidade Tupinambá da Serra do Padeiro, no sul da Bahia. Apresenta-se algumas concepções do sofrimento psicossocial, diferentes práticas de cuidado e estratégias de enfrentamento realizadas em um território de conflitos de terra. A interação entre os modos de cuidado indígenas e não-indígenas é um aspecto a ser observado, frente à importância que possui para tal coletivo. Os modos de conceber e cuidar dos sofrimentos psicossociais, a influência da luta pelo território e da organização comunitária na recuperação e na prevenção de agravos - são aspectos norteadores neste trabalho.

Os resultados deste trabalho apresentam concepções próprias de saúde mental de um grupo cultural, uma articulação entre seus significados e práticas e os modos de vida e de resistência do Povo Tupinambá. Dialogam com a perspectiva transcultural presente no documento que orienta a atenção psicossocial na política de saúde dos povos indígenas, no qual “compreende-se que a saúde mental ou psicossocial ou bem viver se referem a algo mais do que simplesmente a ausência de sofrimento ou doença, mas sim ao bem-estar ou bem viver individual, familiar e social/comunitário”3. A baixa presença de trabalhos sobre saúde mental em contextos indígenas no Nordeste brasileiro (menos ainda sobre os Tupinambás) é uma lacuna enfrentada. Na análise da confluência entre luta, comunidade e saúde mental encontra-se a inovação deste trabalho diante dos demais, onde os problemas estudados centralizam-se em marcadores da política apontada.

Tupinambá da Serra do Padeiro

A Terra Indígena (TI) Tupinambá de Olivença possui cerca de quarenta e sete mil hectares, estendendo-se do litoral às serras, abrangendo mais de 20 localidades indígenas. Situada entre os municípios de Buerarema, Ilhéus, São José da Vitória e Una, na região sul do estado da Bahia, a Serra do Padeiro é uma das comunidades da TI. O governo brasileiro reconheceu a identidade étnica Tupinambá em 2002. Os procedimentos de identificação e delimitação da TI se iniciaram em 2004. A homologação do território ao povo Tupinambá vem encontrando diversos obstáculos do Estado brasileiro e atualmente encontra-se estagnada.

O andamento insatisfatório do processo demarcatório para os Tupinambá requereu iniciarem em 2004 o processo de retomada de terras, no qual áreas tradicionalmente ocupadas, sob posse de não índios, são recuperadas a partir da ação direta dos Tupinambás5. Esse processo fomentou reações continuadas dos proprietários rurais, agentes públicos e empresariado local. Assassinatos; monitoramento das locomoções de lideranças; prisões; torturas; emboscadas; difamações midiáticas; racismo étnico; são algumas ações realizadas. “Diante da ausência de conclusão do processo de regularização fundiária, são os Tupinambá que têm garantido, por ação direta, a posse efetiva, senão de todo o território, de boa parte dele”2. Conquistá-lo demanda da comunidade modos de organização, aprimoramento de estratégias de luta e sobrevivência, além de cuidar dos efeitos dos conflitos e viver bem.

A comunidade possui notório respaldo dentro dos movimentos indígenas e indigenistas, por órgãos nacionais e internacionais. Tem histórico protagonismo na luta pelos direitos indígenas, no que diz respeito à terra, saúde, educação, cultura e ancestralidade. Séculos de convivência com não indígenas acarretaram o aprendizado da necessidade de articulação com os conhecimentos do “mundo do branco” para fortalecimento da luta6. É na organização comunitária que obtém seu reconhecimento. Uma mostra é o Manto Tupinambá7, onde a pesquisa e confecção de mantos utilizados ancestralmente por Tupinambás tem potencializado a reconstrução étnica e comunitária, a proteção ambiental, as artes e as ciências indígenas.

Dados da Secretaria Especial da Saúde Indígena (SESAI) para 2019 assinalavam em 5.038 o contingente demográfico de indígenas na TI2. Um censo realizado na Serra do Padeiro em 2016 levantou o quantitativo de 483 indígenas na comunidade2. A política de saúde indígena se faz presente a partir da atuação da Equipe Multidisciplinar de Saúde Indígena (EMSI), ligada ao Polo-Base de Ilhéus, unidade técnico-assistencial ligada ao Distrito Sanitário Especial Indígena da Bahia (DSEI-Bahia), órgão descentralizador da SESAI.

Saúde mental em contexto indígena

O conceito de sofrimento psicossocial trata das situações vivenciadas no cotidiano de vida produtoras de experiências de sofrimento. Um conjunto complexo de elementos constituem (individual, familiar, político, institucional, trabalhista, econômico, religioso, ambiental, cultural, estético) e interferem no cotidiano de vida. Compreende-se que a inseparabilidade entre a dimensão psíquica e o campo social reforça a ligação na saúde mental entre o cotidiano e suas tramas subjacentes, dos vínculos atuantes e seus efeitos na subjetividade. Em contexto ameríndio, a inseparabilidade entre o psíquico e o social conjuga-se com a dimensão territorial. A importância da terra para nações indígenas deve ser pensada não como um fim, mas um princípio. Para isso precisam, em meio a conflitos, aprimorar e reinventar suas práticas de proteção ambiental, de produção e consumo, de agenciar e de ritualizar. Práticas que, evidenciadas como ações de cuidado, colaboram para repensar a saúde mental não indígena, geralmente calcadas em noções biologicistas e individualizantes, e que favorecem processos medicalizantes da saúde nas populações indígenas4. Estes consistem na definição e tratamento de problemas não médicos como médicos, traduzindo-se em doenças8. A medicalização reduz a autonomia, desvaloriza os impactos do contexto na saúde, despolitiza os problemas sociais, simplificando as experiências de sofrimento.

As relações entre questões sociais e culturais e a saúde mental em povos indígenas se expressam em aspectos como: alimentação, corporeidade, ações curativas e preventivas, ritualísticas, batismos, remédios naturais, respeito a idosos e idosas, religiosidade, língua nativa, respeito aos saberes, assim como a própria luta indígena9. Trata-se de um repertório assinalado como formas de promoção da saúde. O processo colonialista, intervindo nesses aspectos, incide diretamente na produção do sofrimento mental e de adoecimentos entre os povos, diante das dificuldades para viver o “ethos indígena”. “Estar enredado em sofrimento mental é estar com problemas relacionados a internalidades e às coisas dos brancos”10. A luta histórica dessas nações “não é uma escolha, mas, uma forma para manter ou para criar condições favoráveis para promoção da saúde, sobretudo, para sua permanência”9. Lutar e resistir é um vetor produtor de saúde, ao mesmo tempo seu atestado. Luta e saúde se retroalimentam.

Método

Utilizou-se o método da cartografia, método de pesquisa-intervenção de cunho qualitativo utilizado para construção de conhecimentos de processos e relações ligadas a determinados territórios. Propõe-se acompanhar processos, delinear a rede de forças ligadas ao fenômeno pesquisado, investigando seus movimentos permanentes e suas modulações, captando dinâmicas e acontecimentos em um território de produção de saúde11.

A inserção no campo ocorreu, pelo primeiro autor, após contatos com lideranças da comunidade para autorização prévia mediante trâmites éticos e planejamento do período para realização da pesquisa. Não houve dificuldades nesta autorização diante das relações estabelecidas desde 2017 com a comunidade de cooperação, vinculação e convivência. As técnicas utilizadas foram: observação participante, entrevistas semiestruturadas, diário de campo e estudos bibliográficos. O período de campo durou três semanas, seguido de acompanhamento à distância de processos da comunidade a partir de contatos e notícias. As observações ocorreram em espaços comunitários ordinários, festejos realizados, trabalhos coletivos e reunião mensal da associação comunitária. Nesta, foi solicitada uma pauta para apresentação, avaliação, autorização coletiva e delimitação dos critérios de participação.

A indicação das pessoas a serem entrevistadas ocorreu de comum acordo com a comunidade, pelo primeiro autor e por algumas pessoas entrevistadas. Foram realizadas quinze entrevistas, registradas em gravações de áudio. Uma pessoa pertence à etnia Pataxó Hã-Hã-Hãe, as demais são Tupinambá. Foram nove mulheres e seis homens entrevistados. Quatro mulheres são idosas, as demais possuem acima de trinta anos. Dos homens, um idoso, os demais com faixa etária que varia de 30 a 55 anos. Três pessoas atuam na equipe de saúde, duas técnicas de enfermagem e a outra é Agente Indígena de Saúde. Uma técnica realiza a coordenação do setor da saúde. As entrevistas ocorreram em visitas domiciliares e em espaços particulares, de modo a manter o sigilo. O Termo de Consentimento Livre e Esclarecido (TCLE) de participação na pesquisa foi apresentado e assinado em todas as entrevistas.

O tratamento das entrevistas ocorreu com a escuta e transcrição das gravações. As perguntas do roteiro de entrevista colaboraram, mas não definiram, a estruturação dos eixos temáticos. O agrupamento de trechos transcritos em eixos temáticos permitiu analisar a variedade de discursos e elaborações sobre o mesmo tema. Por exemplo, expressões utilizadas, eventos e memórias, afetos e sentimentos durante a experiência do dizer.

A análise dos dados ocorreu com a composição dos eixos temáticos e sua coleção de trechos, de modo a avaliar a convergência (e divergências) entre os temas. Quando aplicável, as palavras-chave mais significativas no rol de expressões dos eixos guiaram o estabelecimento das categorias analíticas. O uso de palavras-chave buscou tornar os modos de expressão dos participantes categorias analíticas, conceitos para explicar a saúde mental e a luta pela terra. O uso diário de campo e a revisão bibliográfica complementaram os resultados da pesquisa.

O uso de pseudônimos deve-se a dois aspectos simbólicos fornecidos pela comunidade. A parentalidade com plantas, especialmente árvores, ou seja, a nomeação de espécies vegetais, frutíferas ou não, com nomes de parentes. Segundo, à identidade com os pássaros12.

Este trabalho foi aprovado na Comissão Nacional de Ética em Pesquisa (CONEP) e no Comitê de Ética e Pesquisa, respondendo às solicitações de ambos, fazendo parte da dissertação de mestrado do primeiro autor13.

Resultados e discussão

Concepções de saúde mental

As concepções sobre saúde mental manifestadas por interlocutores Tupinambá alternam entre as seguintes dimensões: genético-hereditária, familiares, interpessoais dentro e fora da comunidade (inclusive com não indígenas), eventos ao longo da vida, conflitos territoriais e espiritualidade. O tema da loucura é geralmente citado quando se fala em saúde mental. A dimensão espiritual foi citada como determinante na ocorrência de situações e casos considerados problemas de saúde mental. Conforme define Biriba, liderança e anciã na comunidade, “tem gente que já nasce com problema. Outros, devido à vida, à depressão (ou, ao que o povo chama depressão), que se invoca com uma coisa. Têm outros que é espiritual, tem um espírito, um negócio que incorpora na pessoa”. “Doido (ou endoidar)”, “louco (ou enlouquecer)”, “depressão”, “estresse”, “dor nos nervos”, “distúrbio”, “doença mental”, “mente boa”, “problema de cabeça”, “mongoloide”, “bem-estar do dia a dia”, “não tá bem da mente”, “psicologia da mente ou do cérebro”, “não conversa coisa com coisa”, “esquecido”, “fala demais”, “toma remédio”, foram alguns termos empregados para se referir ao tema.

O termo doido é o mais utilizado para se referir à pessoa que apresenta algum problema mental. É usado geralmente de maneira pejorativa, bem-humorada, mais genérica ou com algum critério avaliativo. “Tem o doido inteirado [por inteiro, completamente], que é aquele que corre e joga pedra, e tem doido que vive com a gente, mais não bate bem da mente, é o meio doido”, aponta Biriba. Tal concepção tem desdobramentos concretos, a exemplo da necessidade do uso de medicamentos. Alegam que existem aqueles que não precisam de remédios, outros que precisam e conseguem se “controlar” com eles, e aqueles que, mesmo usando-os, não se controlam. À prudência de Biriba em diferenciar níveis de doidice, para não colocar tudo em um mesmo conjunto, Guará, adulto de meia-idade e liderança, assim o faz. Entre o deboche e a seriedade, aponta elementos para compreender um princípio Tupinambá.

Nós, Tupinambá, é muito confuso. Primeiro, que tratamos que todo mundo é doido (risos). Temos um princípio de que todo mundo é doido. O que precisamos é respeitar a individualidade do outro. E a individualidade do outro é muito diferente da minha. [...] entendemos que muitas vezes o que chama de loucura de alguém na verdade é que ele quer que alguém sente e ele passe o dia todo falando e o outro ouvindo. O que ele quer é ser ouvido. No ponto em que todo mundo está preocupado e não para e ouve, trata-se como louco porque ele fica nervoso, estressado, começa a xingar, porque ninguém parou para ouvir. Têm outros casos [em] que a pessoa está com raiva da vida, porque quer ficar sozinho num canto sem olhar para ninguém (Guará).

O entendimento sobre o tema passa por mudanças com o processo de escolarização e de interação com não indígenas, incidindo diretamente nas maneiras de compreender e lidar com o tema. Lavandeira, liderança na educação e na cultura, aborda essa mudança. Da visão da doença sem cura e das práticas de contenção nas crises - relatos dos mais velhos da comunidade -, transita para uma compreensão calcada no recurso dialógico da palavra e menos ligada ao uso de medicações, priorizando ações inclusivas na vida comunitária.

É entender esse lugar mesmo da saúde mental. A gente entendia que tudo era doença. Ou seria para ser internado no hospício, ou não teria uma cura. Poderia ser que melhorava, dava um paliativo. Tinha que tomar medicamento, tinha que ser medicado. Com esse entendimento da saúde mental é que existe uma outra forma de lidar com isso e de tratar, que não seria necessariamente com medicamento (Lavandeira).

Tais mudanças repercutem na distinção entre perspectivas originárias e ocidentais da saúde mental14. Apresentam um processo de revisão de concepções manicomiais presentes - também heranças coloniais -, corroborando que unificar um entendimento sobre saúde mental é inviável3. Ao mesmo tempo, dizem de um cenário interétnico, de contato secular, onde a noção de saúde mental (e demais saberes ocidentais) se faz presente. Mesmo que cada sociedade indígena compreenda a saúde mental de diferentes modos, a presença dos efeitos da medicalização ocidental nos territórios traz domínios complexos para seu entendimento. As variadas práticas de saúde delineadas a partir da interação entre saberes indígenas e ocidentais dizem de movimentos de negociação, trocas e agências em construção continuada, mais que estabilizações homogêneas15. Aqui reside uma primeira tarefa para qualquer atuação interétnica3-11,13,14,16.

Na maioria dos casos, a luta pela terra é tida como fonte produtora de sofrimentos. “Uma coisa que os mais velhos falam aqui que muita gente enlouqueceu também da questão do território, do pertencimento do local. Porque todo mundo vivia aqui, e de repentemente chegou a cerca”, relembra Lavandeira. A vivência continuada de emoções, como medo, apreensão e raiva, com a indefinição da situação territorial e do conflito existente, incitam adoecimentos que vão do deprimir ao enlouquecer. Jenipapo, Agente Indígena de Saúde, inserido nas retomadas desde os onze anos, acredita que “ficar louco” é um fato decorrente de “pensar muito e de medo”, devido às “guerras”, suas confusões e sobrecargas. “Medo de uma coisa e ficar pensando naquilo”, se referindo às preocupações constantes das disputas territoriais.

Para ter a nossa sanidade mental e não ter essa variação, o território precisa estar bem, a terra precisa estar bem, a natureza precisa estar bem. Porque a gente tem essa responsabilidade, essa ligação com a terra, a gente não tá deslocado. E as pessoas tentam cortar esse cordão umbilical (Lavandeira).

Os conflitos também comprometem o ir e vir, assim como o estabelecimento de vínculos externos e até internos. A migração forçada do território foi elencada como fonte de desorientação e sofrimentos. Em alguns casos, a dificuldade de se relacionar pode levar a situações de solidão, referidas como uma fonte de sofrimento, especialmente da depressão. “Sempre tem alguns parentes que saem e enquanto não volta fica desorientado”, afirma Pintassilgo, adulto de meia-idade, referindo-se a casos familiares e talvez a si mesmo, que já foi migrante, constatando a influência do território e da comunidade para o bem-estar. São territorialidades compulsórias frente às intempéries da não demarcação que conformam processos de sofrimento com repercussões na saúde mental17.

Cuidados

Há diferentes maneiras de nomear e referenciar as ações de cuidados. Os cuidados “tradicionais”, a medicina indígena - “porque é uma medicina”, diz Biriba -, é amplamente referida no uso de banhos com plantas nativas ou cultivadas, ervas, chás, medicações de produção caseira, rezas (rezar a cabeça), banhos naturais em grutas de pedras, nascentes de água, caminhadas. São ações que deixam o espírito forte e promovem cuidados para aflições, sofrimentos e adoecimentos. Dificuldades para dormir, problemas com o consumo de bebida alcóolicas, fraquezas físicas, perturbações mentais de ouvir vozes, ver vultos, mal-estar físico e mental, agitação motora e psíquica, abatimento e melancolia, são alguns dos males citados.

Verifica-se na população idosa um grupo importante na realização dos cuidados em saúde mental. Procurados em momentos de angústias, aflições, dúvidas e conflitos, ou para se obter alguma benção, reza, ajuda material, cuidado com filhos, recomendação medicinal, reconciliação entre casais e de familiares, tal atuação não se reduz à atuação do pajé, se estendendo a outras idosas e idosos da comunidade. O costume de visitar o domicílio é um recurso no repertório de cuidados e no itinerário terapêutico local. Conforme Pintassilgo, que presenciou cuidados de idosos, com a referência de seu avô, rezador e antigo pajé, “esses mais velhos sabiam conversar com as pessoas”. A maneira de conversar resolve muita coisa. Jenipapo aborda a atuação do pajé: “tenho certeza [de] que ele afasta muito essas coisas, da pessoa chegar ao ponto assim de enlouquecer. Com as rezas dele, os banhos, afasta muito as coisas ruins, de chegar ao ponto de a pessoa endoidar”.

A descentralização e a responsabilidade compartilhada nos cuidados tradicionais se apresentam como atributo do modo como se organiza o cuidado da medicina indígena no território. Com a participação de diferentes agentes, pode ocorrer de modo independente nos domicílios e proximidades, ou encaminhamentos para consulta com o pajé podem ocorrer, quando o problema persistir. A avaliação do pajé pode gerar desdobramentos, como a avaliação da equipe de saúde. Em muitos casos, a terapêutica pode utilizar o uso das duas medicinas. Esse fluxo pode vir do posto de saúde, que orienta a procura do pajé, enquanto seguem o acompanhamento.

A pasta da saúde é acompanhada por lideranças e comunidade assiduamente, integrante do planejamento da associação local, compondo um dos seis departamentos. Ocorre devido à falta de insumos, combustíveis para os veículos sanitários, manutenção das estradas, pagamento de motoristas, dentre outros problemas. No Relatório do Planejamento de 2019-2023, planejamento quinquenal comunitário, no item da saúde, o primeiro apontamento trata do “Acompanhamento saúde mental junto à SESAI”, apresentando a relevância dada à questão16. Nele, ao citar a precária situação da saúde indígena, acrescentam:

Com os Tupinambás não é diferente. Muitos problemas precisam ser resolvidos, principalmente na qualidade do atendimento, hoje visivelmente precário. Uma das particularidades dos tupinambás é a saúde mental, que hoje está distante de fornecer o acompanhamento que necessitam. A AITSP atua no sentido de atender as necessidades que o Estado não consegue suprir16 (p.14).

A equipe de saúde e os tratamentos com a medicina não indígena são referidos frequentemente, inseridos como recurso de cuidado para a saúde mental na comunidade. A assistência especializada ocorre principalmente no Centro de Atenção Psicossocial do município de Una e no hospital psiquiátrico de Ilhéus. Consultas particulares com psiquiatras no município de Itabuna realizadas são cobertas com recursos da associação. É unânime o relato da dificuldade de acesso aos serviços de Una, sendo o itinerário menos utilizado. Distâncias, estradas sem manutenção, dificuldades de marcação e transporte, são barreiras de acesso presentes, que também apontam possíveis dificuldades do DSEI e do Polo Base para articular serviços. Assim, as agências que a comunidade constrói com sua equipe de saúde consegue, muitas vezes, enfrentar problemas com recursos próprios.

Antigamente não tinha medicina para ajudar. [...] Era aqui que tinha que cuidar e hoje não, graças a Deus, tem a parte do espiritualismo e tem a parte da medicina que é muito boa também, que ajuda. Só em remédio, que você pega lá [no posto de saúde] e o cara já aquieta. Isso é uma benção. Quando é um médico que não é incrédulo, não rejeita a nossa medicina, é melhor ainda. [...] A gente pode beber o remédio que for, mas se não tomar um banho, um chá, não serve (Biriba).

As ciências indígenas são componentes da promoção da saúde mental nas comunidades e fazem parte da atenção diferenciada3, com diferentes obstáculos para sua implementação, pois os saberes biomédicos muitas vezes não são trabalhados a partir da complementaridade. As agências com seres do próprio território, os rituais, as dietas, aparecem como recursos de enfrentamento dos sofrimentos ligados aos conflitos territoriais e outros ligados ao cotidiano9,14,17. Na Serra do Padeiro, o diálogo intercultural de cuidadores e cuidadoras indígenas, das lideranças e da comunidade com a política de saúde indígena (equipe e gestão), aponta uma atuação interétnica e diferenciada a partir do protagonismo comunitário e de seus agentes no território.

Território e espiritualidade

A retomada de parte dos territórios ancestrais é um eixo estruturante da vida comunitária5,6 que possibilita a reconstrução de um ethos subjetivo de recusa à servidão para processos de subjetivação mais autônomos. Realiza o deslocamento das condições e experiências de privações, precariedade e subalternização anteriormente impostas com o esbulho do território. A retomada das atividades de produção e organização via associativas e cooperativas comunitárias acarretam melhores condições de vida, reconstruindo vínculos comunitários, fortalecendo a lida com problemas de convivência e de ameaças externas. Se conjuga com o fortalecimento identitário, conectando laços socioculturais e territoriais.

A reorganização das terras ocupadas promove a recuperação ambiental, cuja manutenção é encargo dos Tupinambás, sob a orientação dos encantados. Entidades não-humanas ou “extra-humanas” que podem adquirir a forma humana a partir de incorporações, os encantados compõem o sistema espiritual, cosmológico e cosmopolítico Tupinambá e de muitas etnias indígenas do Nordeste brasileiro18. Sua atuação cuidadora e protetora é um aspecto fundamental na Serra do Padeiro.

Os vínculos entre Tupinambás, encantados e território fundamentam a existência e a identidade étnica comunitária. Os encantados aparecem principalmente por meio de incorporações e em sonhos. No primeiro caso, principalmente em rituais chamados de Toré/Poranci. Atuam diretamente na luta pelo território, nos cuidados com a saúde, na gestão escolar, na proteção dos habitantes e da vida comunitária, no zelo dos vínculos internos e externos, na recuperação ambiental, cultural e étnica2-6. Na saúde, orientam, realizam cuidados e acompanham situações de acidentes, sofrimentos e adoecimentos. Na saúde mental, sua atuação insere as influências ecológicas e cósmicas na esfera biopsicossocial. A espiritualidade estabelece estreitas ligações com a saúde mental. A escuta de vozes é uma experiência comumente atribuída à espiritualidade, cuja interpretação requer cautelas em qualquer tradução intercultural.

Os brancos dizem que existe a esquizofrenia. As pessoas ouvem vozes. Os povos indígenas sempre conversaram com os espíritos, sempre dialogaram com eles. Mas, no mundo dos brancos, dão o nome disso de esquizofrenia, para retirar o dom do outro conversar com algo que não se enxerga. Muitos povos indígenas estão à flor da pele e estão cada vez ouvindo mais. Até os da cidade que não sabiam que eram índios começaram a despertar e a ouvir vozes e ver coisas que outros não veem12.

Na experiência da produção do Manto Tupinambá, Silva7 relata sua própria experiência, que se aproxima com o tema do ouvir vozes, da loucura e da espiritualidade.

Eu vejo que o Manto realmente falou comigo, não é uma fantasia minha. Porque eu pensei assim, “será que eu estou delirando, será que estou louca?”. Mas não, realmente o Manto falou comigo, e essas imagens vieram se concretizando no real7 (p.331).

A íntima relação entre as experiências perceptivas (ouvir vozes) e a espiritualidade é compreendida aqui a partir da atuação dos encantados. Ouvir vozes não se situa como sintoma de um possível transtorno, doença. Atributo do ser indígena, diz da ligação com seres do território. Ouvir e imaginar, fora da captura de alucinações e delírios, podem se conectar com experiências espirituais e até mesmo artísticas. O advento do “conversar com algo que não se enxerga” também pode incidir em perturbações que levem a experiências de enlouquecimento. Vale notar como o proceder epistemológico expropriatório e colonial dos saberes e práticas não indígena geralmente operam no campo da subjetividade a redução de tais experiências em sintomas e diagnósticos19. No presente caso, ouvir vozes pode oferecer indicações práticas para cuidar e sanar alguns males, já que a experiência da loucura, do desvio, é incorporada enquanto elemento da subjetividade. Todavia, pelo longo contato interétnico, a loucura pode ser também vista como desvio, o que reforça a prudência interpretativa.

Coletividade, cultura e trabalho

A vida cultural na Serra do Padeiro tem lugar diferencial na sua organização. Animada geralmente pelo grupo jovem, pela escola e em eventos religiosos, festejos e rituais, além de renovar e fortalecer a ação dos encantados e os vínculos comunitários, ampliam e consolidam articulações políticas com atores e organizações externas. É mais um componente da diversidade de atuação do projeto comunitário.

Um aspecto atual e relevante é a repercussão do Manto Tupinambá. Presente em diferentes esferas da produção do conhecimento e das artes, vem inserindo a Serra do Padeiro definitivamente no mapa da arte e da educação indígena7. Isto agrega às suas boas práticas produtivas, de subsistência e de cuidados em espiritualidade. Mais que uma repercussão externa, o Manto Tupinambá demarca um território de fortalecimento interno da comunidade e suas lideranças.

Biriba resume os entrecruzamentos entre a cultura e a saúde. Agrega dois aspectos marcantes de Tupinambá: a comida e o comer. Síntese de sua filosofia, sua ciência, sua medicina. Fonte de sustentação da vida. Aforismática, diz: alegria vem das tripas!

Duas coisas que tupinambá gosta: comer pimenta e labutar e resolver todos os problemas. Pode ser o pior dos problemas. E é graça, a gente só faz sorrir. Pode estar a raiva que for, só encontra nós sorrindo, alegre. E a alegria vem das tripas. Se tiver com fome não tem alegria certa. É doido, come. É são, come. [...] É isso que é viver (Biriba).

No que diz respeito ao trabalho, um aspecto se sobressai nos relatos: fazer o que gosta. Eis o critério muitas vezes definidor das escolhas e definições na divisão do trabalho. Pintassilgo, coordenador de área, traz para sua atividade a percepção sobre o que “os outros gostam de fazer”. “Cada um tem um dom para fazer alguma coisa”. Trabalhar se apresenta como mais uma modalidade de cuidado individual e coletivo. Pode estar conectado à estratégia de esquecimento, “trabalhar em vez de ficar pensando no pior”, pois se mantendo assim “fica com uma pancada a mais”, adverte. Também aparece como recurso para enfrentar as restrições de circulação impostas devido às ameaças, como no caso de lideranças.

É comum em coletivos que um problema queira se sobrepor a outro. Requere assim um tema-chave, um guia para seguir, mesmo nas turbulências das quizilas. “Tem momentos que a gente enxerga a quizila, tem momentos que a gente vê o território, e atropela qualquer quizila”, afirma Guará. “Índio caindo bêbado é questão do território? Índia casar com drogado, índio roubar, ou outros tipos de problemas, não são motivos para não lutar pelo território!”, complementa, atento a uma retórica comum sobre o assunto. Tema prioritário, redimensionador dos problemas, direcionando as forças e tensões da luta, o território é onde a comunidade é tecida.

Aqui tem muita gente unida, qualquer coisinha tá junto. Cada qual cuida da sua vida, mas quando precisa tá unido, junto”, observa Amescla, destacando os espaços de trabalho como as farinhadas e a reunião da associação, momentos em que estar junto fortalece o sentimento de união e seus efeitos na saúde. A comunidade é elemento ímpar no enfrentamento aos problemas psicossociais. Ferramenta problematizadora do cuidado, favorece arranjos de trabalho centrados na coletividade, nas interações entre si e com agentes externos, incluindo com a equipe de saúde. Caminho necessário para evitar e desconstruir modalidades tuteladoras e medicalizantes4. A formação de redes de apoio solidárias e de modos de produção coletivos atuam na sustentação das políticas de saúde e educação, exercendo um controle social ativo. Tal organização articula continuamente diferentes esferas da vida, favorecendo a compreensão dos modos Tupinambá de lidar com o sofrimento biopsicossocial.

Aprender e articular saberes para viver bem e lutar melhor, eis um aspecto relevante a ser considerado. O empoderamento econômico; a formação de alianças; o fortalecimento da ação política; a inserção em instituições de ensino superior; a formação permanente de jovens e adultos no movimento indígena; são algumas linhas de atuação encontradas. A soberania e autonomia, mais que uma consolidada conquista, permanecem na pauta do dia e demandam trabalhos diversos. Enquanto componente de produção subjetiva, há uma histórica recusa Tupinambá que atrela, ao modo de conceber a saúde na Serra do Padeiro, a condição guerreira. Aqui se apresenta um traço singular da atitude Tupinambá frente aos contextos de violência contra povos indígenas e seus impactos na saúde. Fazendo da luta bandeira inevitável para resolver seus problemas, encontra nela sua fonte permanente de cuidado e saúde, onde a morte não é motivo para recuar. É o que diz Guará: “nós, Tupinambá, nunca vai aceitar ser vassalo, porque somos um povo originário, autônomo e dono de si. Morre guerreando, mas nunca serve”.

Conclusão

Os diferentes aspectos apresentados da vida comunitária na Serra do Padeiro compreendem o estágio alcançado por este coletivo indígena na sua luta por um projeto autônomo e soberano. Contrastam com o imaginário e os estereótipos de pauperização e sofrimento atribuído às nações indígenas. Suas concepções sobre saúde mental abrangem variados modos de entender e praticar cuidados aos sofrimentos psicossociais. Na lida com o processo colonial, aprenderam a articular os saberes tradicionais e ocidentais para promover sua saúde lutando por direitos. Território, espiritualidade, comunidade, trabalho e cultura e se articulam intimamente. A centralidade da luta pela terra emerge enquanto eixo produtor de sofrimento, mas também de cuidados em busca de saúde, possível somente a partir do território. As retomadas das terras se engendram como marco histórico de reorganização territorial e comunitário. É no território e por ele que realizam seus trabalhos, que zelam pelo seu lugar, seus corpos, seus vínculos, seus ancestrais. Operam suas agências para defendê-lo e fazê-lo prosperar, e compartilham suas conquistas. Nesse ínterim, uma concepção integral de saúde se produz.

Um pequeno esquema pode ser traçado do processo que percorre os variados eventos geradores de sofrimentos ao movimento de zelo coletivo, fortemente agregado à ação dos encantados e do próprio território. O engajamento com a luta e seus frutos (a retomada da terra, das relações comunitárias, de direitos sociais, as condições de subsistência, de vida cultural e religiosa), promovem o acesso a experiências de abundância de recursos materiais, sociais, políticos, subjetivos, culturais e espirituais. A saúde precisa ser pensada abarcando os elementos citados e demais. O exemplo da Serra do Padeiro colabora para levantar que a saúde maior, quem dá é a luta.

Traçamos nesse trabalho estratégias para uma análise da saúde mental do ponto de vista comunitário. Tal ênfase diferencia-se dos marcadores da política de saúde indígena, voltados a indicadores e problemas saúde delimitados. Buscou-se prover reflexões para qualificar a atenção diferenciada, ofertando pistas que orientem práticas e pesquisas afins. O desafio de produzir metodologias cada vez mais participativas se faz presente.

Na Serra do Padeiro encontra-se experiências que questionam pilares da cultura da saúde, como: hierarquização entre serviços, profissionais e clientela; disputas de poder e desarticulação do controle social; preconceito e violências contra as diferenças; a individualização e a medicalização de questões sociais. Inserir a experiência da Serra do Padeiro no debate da atenção diferenciada qualifica também a luta antimanicomial. Ao tratar de práticas acima de tudo comunitárias, verificamos as potências da cultura e da sociabilidade para problematizar a Saúde Coletiva. Antes de se implantar verticalmente programas e modelos - como de costume -, é urgente constatar há muito o que se aprender com as nações indígenas, inclusive quando o assunto é coletividade, luta e saúde.

Referências

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  • Editores-chefes:
    Maria Cecília de Souza Minayo, Romeu Gomes, Antônio Augusto Moura da Silva

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    16 Dez 2024
  • Data do Fascículo
    Dez 2024

Histórico

  • Recebido
    15 Set 2023
  • Aceito
    29 Fev 2024
  • Publicado
    30 Abr 2024
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