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Validade do instrumento para triagem de domicílios em risco de insegurança alimentar em diversos estratos da população brasileira

Validity of an instrument for screening households at risk of food insecurity in different strata of the Brazilian population

Validez del instrumento de triaje de hogares en riesgo de inseguridad alimentaria en diferentes estratos de la población brasileña

Resumos

A ausência de instrumentos de triagem de risco para insegurança alimentar compromete a capacidade de avaliar, monitorar e ofertar assistência imediata a pessoas em situação de fome, especialmente durante emergências, como a crise da COVID-19. Assim, o objetivo deste estudo foi testar a validade do instrumento de Triagem para Risco de Insegurança Alimentar (TRIA), em diversos estratos da população brasileira. A TRIA é composta pelas questões 2 e 4 da Escala Brasileira de Insegurança Alimentar (EBIA), validada, originalmente, a partir de dados da Pesquisa Nacional de Demografia e Saúde da Criança e da Mulher (PNDS 2006). Neste estudo, utilizando dados da Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios (PNAD 2013), testou-se sua reprodutibilidade por meio da repetição dos procedimentos combinatórios originais, examinando se os parâmetros de sensibilidade, especificidade, acurácia e valores preditivos positivo (VPP) e negativo (VPN) resultariam no mesmo arranjo de questões. Ainda, analisou-se a validade convergente comparando a força de associação entre insegurança alimentar e variáveis alimentares por meio de dois modelos de regressão binomial (TRIA x EBIA). Os resultados indicaram que a combinação das questões 2 e 4 apresentou melhor desempenho entre os estratos populacionais estudados, além de ótima validade convergente. O VPP e VPN ajustado pela prevalência de insegurança alimentar nos estados variou de 42,8% (Santa Catarina) a 87,6% (Amazonas) e 95,8% (Amazonas) a 99,5% (Santa Catarina), respectivamente. Em conclusão, além de ser reprodutível, a TRIA apresentou excelentes parâmetros de validade, sobretudo em grupos vulnerabilizados. Assim, seu uso pode ser recomendado na prática assistencial e como instrumento de vigilância alimentar e nutricional no Brasil.

Palavras-chave:
Fome; Segurança Alimentar; Epidemiologia Nutricional; Atenção Primária à Saúde


The absence of risk screening tools for food insecurity compromises the ability to assess, monitor, and provide immediate assistance to those in hunger, especially during emergencies such as the COVID-19 crisis. Hence, this study sought to test the validity of an instrument for Screening Households at Risk of Food Insecurity (TRIA) in different strata of the Brazilian population TRIA uses questions 2 and 4 of the Brazilian Food Insecurity Scale (EBIA), originally validated using data from the Brazilian National Survey of Demography and Health of Children and Women (PNDS 2006). In this study, using data from the Brazilian National Household Sample Survey (PNAD 2013), its reproducibility was tested by repeating the original combinatorial procedures, examining whether the parameters of sensitivity, specificity, accuracy, and positive predictive values (PPV) and negative values (NPV) would result in the same arrangement of questions. Moreover, convergent validity was analyzed by comparing the strength of association between food insecurity and dietary variables using two binomial regression models (TRIA x EBIA). Results indicated that the combination of questions 2 and 4 performed best among the population strata studied, and presented optimal convergent validity. PPV and NPV adjusted for food insecurity prevalence in states ranged from 42.8% (Santa Catarina) to 87.6% (Amazonas) and 95.8% (Amazonas) to 99.5% (Santa Catarina), respectively. In conclusion, besides being reproducible, TRIA presented excellent validity parameters, especially among vulnerable groups. It can thus be used in care practice and as an instrument of food and nutritional surveillance in Brazil.

Keywords:
Hunger; Food Security; Nutritional Epidemiology; Primary Health Care


La ausencia de instrumentos de triaje de riesgo para la inseguridad alimentaria compromete la capacidad de evaluar, monitorear y brindar asistencia inmediata a las personas en situación de hambre, especialmente durante emergencias como la crisis de la COVID-19. Por lo tanto, el objetivo de este estudio fue probar la validez del instrumento de Triaje para Riesgo de Inseguridad Alimentaria (TRIA) en diferentes estratos de la población brasileña. El TRIA consta de las preguntas 2 y 4 de la Escala Brasileña de Inseguridad Alimentaria (EBIA), originalmente validada con base en datos de la Encuesta Nacional de Demografía y Salud de la Mujer y el Niño (PNDS 2006). En este estudio, utilizando datos de la Encuesta Nacional por Muestra de Domicilios (PNAD 2013), se probó su reproducibilidad repitiendo los procedimientos combinatorios originales, examinando si los parámetros de sensibilidad, especificidad, exactitud y valores predictivos positivos (VPP) y negativo (VPN) resultarían en el mismo arreglo de preguntas. Además, se analizó la validez convergente comparando la fuerza de asociación entre la inseguridad alimentaria y las variables alimentarias por medio de dos modelos de regresión binomial (TRIA x EBIA). Los resultados indicaron que la combinación de las preguntas 2 y 4 presentó el mejor desempeño entre los estratos poblacionales estudiados, además de excelente validez convergente. El VPP y el VPN ajustado por la prevalencia de inseguridad alimentaria en los estados osciló entre el 42,8% (Santa Catarina) y el 87,6% (Amazonas) y entre el 95,8% (Amazonas) y el 99,5% (Santa Catarina), respectivamente. En conclusión, además de ser reproducible, el TRIA presentó excelentes parámetros de validez, especialmente en grupos en situación de vulnerabilidad. Por lo tanto, se puede recomendar su uso en la práctica asistencial y como instrumento para la vigilancia alimentaria y nutricional en Brasil.

Palabras-clave:
Hambre; Seguridad Alimentaria; Epidemiología Nutricional; Atención Primaria de Salud


Introdução

Apesar dos avanços na situação de segurança alimentar e nutricional no Brasil entre 2004 e 2013 11. Santos TG, Silveira JAC, Longo-Silva G, Ramires EKNM, Menezes RCE. Tendência e fatores associados à insegurança alimentar no Brasil: Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios 2004, 2009 e 2013. Cad Saúde Pública 2018; 34:e00066917., que culminou na saída do Brasil do mapa da fome em 2014, dados recentes indicam que a insegurança alimentar voltou a ser um expressivo problema no estado de bem-estar social da população brasileira, especialmente entre as famílias vulnerabilizadas pelas circunstâncias sociais e econômicas do país. Em 2017-2018, mais de um terço dos domicílios brasileiros se encontravam com algum grau de insegurança alimentar (36,7%) 22. Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística. Pesquisa de Orçamentos Familiares 2017-2018. Rio de Janeiro: Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística; 2020..

Diante da inoperância do Estado para garantir o direito humano a alimentação e nutrição adequadas (DHANA) da população, em 2020, em decorrência da pandemia de COVID-19, a prevalência de insegurança alimentar saltou para 55,2% 33. Rede Brasileira de Pesquisa em Soberania e Segurança Alimentar. Food insecurity and Covid-19 in Brazil. http://olheparaafome.com.br/VIGISAN_AF_National_Survey_of_Food_Insecurity.pdf (acessado em 23/Mai/2022).
http://olheparaafome.com.br/VIGISAN_AF_N...
. No entanto esse cenário não é reflexo apenas do aprofundamento das crises econômica e social e dos entraves políticos para aprovação da renda básica emergencial nas fases iniciais da pandemia; é também produto de um conjunto de ações políticas de desconstrução da capacidade do Estado de articular uma resposta à situação de insegurança alimentar e nutricional da população, como a extinção do Conselho Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional (CONSEA), a desarticulação da Câmara Interministerial de Segurança Alimentar e Nutricional (CAISAN) e o desmonte do Sistema Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional (SISAN) 33. Rede Brasileira de Pesquisa em Soberania e Segurança Alimentar. Food insecurity and Covid-19 in Brazil. http://olheparaafome.com.br/VIGISAN_AF_National_Survey_of_Food_Insecurity.pdf (acessado em 23/Mai/2022).
http://olheparaafome.com.br/VIGISAN_AF_N...
,44. Moura TAA, Santos CRB, Barros DC, Freitas CM. COVID-19 e (in)segurança alimentar e nutricional: ações do Governo Federal brasileiro na pandemia frente aos desmontes orçamentários e institucionais. Cad Saúde Pública 2020; 36:e00161320..

Desde 2004, a Escala Brasileira de Insegurança Alimentar (EBIA) vem sendo utilizada em pesquisas nacionais e locais para obter informações sobre a insegurança alimentar nos domicílios brasileiros 22. Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística. Pesquisa de Orçamentos Familiares 2017-2018. Rio de Janeiro: Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística; 2020.,55. Centro Brasileiro de Análise e Planejamento, Ministério da Saúde. Pesquisa Nacional de Demografia e Saúde da Criança e da Mulher - PNDS 2006. Dimensões do processo reprodutivo e da saúde da criança. Brasília: Ministério da Saúde; 2009. (Série G. Estatística e Informação em Saúde).,66. Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística. Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios. Segurança alimentar 2013. Rio de Janeiro: Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística; 2014.. A EBIA foi adaptada e validada a partir da escala americana Módulo de Pesquisa de Segurança Alimentar Doméstica dos Estados Unidos [United States Household Food Security Survey Module - US-HFSSM] 77. Pérez-Escamilla R, Segall-Corrêa AM, Maranha LK, Sampaio MFA, Marín-León L, Panigassi G. An adapted version of the U.S. Department of Agriculture Food Insecurity Module is a valid tool for assessing household food insecurity in Campinas, Brazil. J Nutr 2004; 134:1923-8., e seus resultados permitem estimar a prevalência dos graus de insegurança alimentar na população e investigar associações com variáveis sociodemográficas e de saúde com o intuito de subsidiar programas e políticas públicas de enfrentamento da insegurança alimentar e da fome 88. Poblacion A, Segall-Corrêa AM, Cook J, Taddei JAAC. Validity of a 2-item screening tool to identify families at risk for food insecurity in Brazil. Cad Saúde Pública 2021; 37:e00132320..

Apesar de serem fundamentais para análises situacionais e gestão de políticas públicas de saúde e de segurança alimentar e nutricional, tais inquéritos não têm como objetivo a identificação individual de famílias em insegurança alimentar. Assim, a ausência de instrumentos de fácil aplicação e que estejam integrados aos sistemas de saúde e de assistência social compromete a capacidade de ofertar assistência imediata aos indivíduos em situação de fome, especialmente em situações de emergência e calamidades, como a crise sanitária da COVID-19.

Esse cenário tem intensificado a demanda por instrumentos de triagem para risco de insegurança alimentar. No contexto brasileiro, a atenção primária à saúde (APS) apresenta grande potencial para implementar um instrumento de triagem, devido a sua capilaridade nacional, integração com políticas intersetoriais (p.ex.: Programa Bolsa Família) e inserção nos diversos territórios, favorecendo resposta imediata quando detectada a situação para risco de insegurança alimentar. Outra vantagem de um instrumento de triagem na APS seria sua fácil incorporação ao Sistema de Vigilância Alimentar e Nutricional (SISVAN), do Ministério da Saúde 99. Secretaria de Atenção Primária à Saúde, Ministério da Saúde. Vigilância alimentar e nutricional nos serviços de saúde e SISVAN. https://aps.saude.gov.br/ape/vigilanciaalimentar/van_sisvan (acessado 23/Mai/2022).
https://aps.saude.gov.br/ape/vigilanciaa...
, cobrindo as lacunas de informação deixadas pelos inquéritos nacionais sobre segurança/insegurança alimentar 22. Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística. Pesquisa de Orçamentos Familiares 2017-2018. Rio de Janeiro: Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística; 2020.,66. Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística. Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios. Segurança alimentar 2013. Rio de Janeiro: Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística; 2014. e, dessa forma, promovendo seu monitoramento contínuo em nível local.

No Brasil, Poblacion et al. 88. Poblacion A, Segall-Corrêa AM, Cook J, Taddei JAAC. Validity of a 2-item screening tool to identify families at risk for food insecurity in Brazil. Cad Saúde Pública 2021; 37:e00132320., utilizando dados da Pesquisa Nacional de Demografia e Saúde da Criança e da Mulher (PNDS) de 2006, validaram um instrumento de dois itens baseados na EBIA com a finalidade de identificar domicílios compostos por famílias com crianças menores de cinco anos em risco para insegurança alimentar, posteriormente intitulado Triagem para Risco de Insegurança Alimentar (TRIA) 1010. Departamento de Promoção da Saúde, Secretaria de Atenção Primária à Saúde, Ministério da Saúde. Insegurança alimentar na atenção primária à saúde: manual de identificação dos domicílios e organização da rede. Brasília: Ministério da Saúde; 2022.. A TRIA apresentou sensibilidade de 79,31%, especificidade de 92,95%, valor preditivo positivo (VPP) de 74,62%, valor preditivo negativo (VPN) de 94,5% e área abaixo da curva ROC de 86,13%, mostrando-se capaz de detectar famílias em risco para insegurança alimentar; ainda, apresentou validade convergente com a EBIA na identificação de fatores associados à insegurança alimentar. No entanto, uma vez que a validação foi realizada apenas para famílias com crianças menores de cinco anos, os próprios autores recomendam estudos adicionais para avaliar a reprodutibilidade da TRIA em outros estratos da população brasileira, a fim de verificar sua adequação e viabilidade de incorporação aos serviços de saúde e assistência social.

Portanto o objetivo deste estudo foi testar a validade da TRIA em diferentes estratos populacionais a partir de dados da Pesquisa Nacional de Amostra por Domicílios (PNAD) de 2013 66. Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística. Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios. Segurança alimentar 2013. Rio de Janeiro: Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística; 2014.. Adicionalmente, foram analisadas a validade convergente e o comportamento da TRIA em diferentes regiões brasileiras por meio da estimação dos VPP e VPN ajustado pelas prevalências estaduais de insegurança alimentar.

Métodos

Delineamento e amostragem do estudo

Este estudo utilizou dados de domínio público da terceira edição da PNAD 2013 66. Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística. Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios. Segurança alimentar 2013. Rio de Janeiro: Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística; 2014.. Trata-se de um inquérito transversal com amostragem probabilística complexa em três estágios que possui representatividade da população brasileira residente em domicílios particulares e unidades de habitação coletivas, realizado pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE). No primeiro estágio, os municípios são classificados em autorrepresentativos, com probabilidade máxima de pertencerem à amostra, e não autorrepresentativos, com probabilidade proporcional à população residente obtida no Censo Demográfico brasileiro de 2010. No segundo estágio, são selecionados setores censitários em cada município da amostra, tendo as unidades domiciliares como medida de tamanho. Por fim, no terceiro estágio, são selecionados os domicílios particulares e as unidades de habitação coletivas dentro de cada setor censitário, com equiprobabilidade, para investigação das características dos moradores e da habitação 66. Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística. Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios. Segurança alimentar 2013. Rio de Janeiro: Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística; 2014..

Critérios de elegibilidade e seleção para a amostra do estudo

Na PNAD 2013, foram coletadas informações de 148.697 domicílios. Para compor a amostra analítica deste estudo, consideraram-se como elegíveis os domicílios particulares permanentes, cujo módulo de segurança alimentar estava completamente respondido por um morador (n = 110.699). Após a incorporação da estrutura do plano amostral, a amostra analítica representou um total de 348.536 domicílios, onde residiam 193.825.885 pessoas.

Padrão-ouro: EBIA

O nível de insegurança alimentar foi avaliado por meio da EBIA, uma escala psicométrica adaptada e validada para a população brasileira. A escala possui 14 perguntas referentes à experiência de insegurança alimentar e fome percebida pelos residentes de um domicílio nos três meses anteriores à entrevista 66. Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística. Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios. Segurança alimentar 2013. Rio de Janeiro: Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística; 2014.. Os pontos de corte que definem o grau de insegurança alimentar no domicílio são baseados na soma das respostas positivas e variam em função da presença ou ausência de moradores menores de 18 anos, sendo classificados como em “segurança alimentar” (0 pontos), “insegurança alimentar leve” (1-5 pontos na presença de moradores < 18 anos ou 1-3 pontos na ausência de moradores < 18 anos), “insegurança alimentar moderada” (6-9 pontos na presença de moradores < 18 anos ou 4-5 pontos na ausência de moradores < 18 anos) e “insegurança alimentar grave” (10-14 pontos na presença de moradores < 18 anos ou 6-8 pontos na ausência de moradores < 18 anos) 1111. Ministério do Desenvolvimento Social e Combate à Fome. Nota Técnica nº 128/2010. Relatório da Oficina Técnica para análise da Escala Brasileira de Medida Domiciliar de Insegurança Alimentar. Brasília: Ministério do Desenvolvimento Social e Combate à Fome; 2010.,1212. Segall-Corrêa AM, Marin-León L, Melgar-Quiñonez H, Pérez-Escamilla R. Refinement of the Brazilian Household Food Insecurity Measurement Scale: recommendation for a 14-item EBIA. Rev Nutr 2014; 27:241-51.

A classificação do domicílio como em segurança alimentar indica que todas as pessoas têm acesso regular e permanente a alimentos de qualidade e em quantidade suficiente. A insegurança alimentar leve identifica o comprometimento da qualidade da alimentação em detrimento da manutenção da quantidade percebida como adequada para os moradores do domicílio. Já a insegurança alimentar moderada remete à insuficiência de alimentos com restrições de sua quantidade ou mudança nos padrões usuais da alimentação entre os adultos. Os domicílios que apresentam insegurança alimentar grave são caracterizados pela quebra do padrão usual da alimentação, com redução da quantidade de alimentos nas refeições de todos os membros da família, inclusive das crianças residentes nesse domicílio, o que inclui conviver com a experiência de fome 1111. Ministério do Desenvolvimento Social e Combate à Fome. Nota Técnica nº 128/2010. Relatório da Oficina Técnica para análise da Escala Brasileira de Medida Domiciliar de Insegurança Alimentar. Brasília: Ministério do Desenvolvimento Social e Combate à Fome; 2010.. Para estimar a prevalência e realizar as análises inferenciais, a variável de segurança alimentar foi dicotomizada em SA/IL (segurança alimentar e insegurança alimentar leve), e IAM/G (insegurança alimentar moderada e insegurança alimentar grave).

Reprodutibilidade do instrumento de TRIA

A reprodutibilidade da TRIA foi verificada a partir da repetição dos procedimentos metodológicos combinatórios entre as questões da EBIA adotados por Poblacion et al. 88. Poblacion A, Segall-Corrêa AM, Cook J, Taddei JAAC. Validity of a 2-item screening tool to identify families at risk for food insecurity in Brazil. Cad Saúde Pública 2021; 37:e00132320., a fim de examinar se as análises da sensibilidade, especificidade, acurácia, VPP e VPN resultariam no mesmo arranjo de questões validado pelos autores para domicílios com crianças menores de cinco anos de idade.

Esses arranjos foram organizados a partir das quatro primeiras questões da EBIA, que consistem nas perguntas: Q1. “Nos últimos três meses, os moradores deste domicílio tiveram a preocupação de que os alimentos acabassem antes de poderem comprar ou receber mais comida?”; Q2. “Nos últimos três meses, os alimentos acabaram antes que os moradores deste domicílio tivessem dinheiro para comprar mais comida?”; Q3. “Nos últimos três meses, os moradores deste domicílio ficaram sem dinheiro para ter uma alimentação saudável e variada?”; Q4. “Nos últimos três meses, os moradores deste domicílio comeram apenas alguns alimentos que ainda tinham porque o dinheiro acabou?”. Na EBIA, essas quatro perguntas representam um filtro para aplicação integral do formulário, uma vez que, quando respondidas negativamente, encerra-se o questionário dada a baixa probabilidade de o domicílio estar em insegurança alimentar.

A reprodutibilidade do método de combinação das questões foi realizada em três etapas. A primeira consistiu em analisar cada uma das quatro questões de forma independente. Em seguida, foram realizados arranjos binários das quatro questões, onde se considerou uma resposta afirmativa entre duas questões (p.ex.: Q2 ou Q4). Por último, foram analisados os arranjos binários em que ambas as respostas foram afirmativas (p.ex.: Q2 e Q4). Em cada etapa foram calculadas a sensibilidade, especificidade, acurácia, VPP e VPN.

A sensibilidade avalia a capacidade do instrumento de triagem de identificar corretamente os domicílios com IAM/G, dessa forma minimizando os falsos negativos. A especificidade mede a capacidade do instrumento de identificar corretamente os domicílios com SA/IL, minimizando os falsos positivos. A acurácia descreve o desempenho de um novo instrumento fornecer resultados verdadeiros, ou seja, proporção entre os verdadeiros positivos e negativos. O VPP mostra a proporção de famílias identificadas pelo instrumento com IAM/G que verdadeiramente estão nessa condição (proporção de verdadeiros positivos). Já o VPN mostra a porcentagem das famílias não identificadas pelo instrumento com IAM/G que realmente não estão em situação de IAM/G (proporção de verdadeiros negativos) 1313. Almeida Filho ND, Rouquayrol MZ. Introdução à epidemiologia. 4ª Ed. São Paulo: Guanabara Koogan; 2006.. Nessas análises, o padrão-ouro para a classificação do nível de insegurança alimentar das famílias foi baseado na EBIA de 14 itens.

Validação do instrumento de TRIA

Para validar o instrumento em diferentes grupos populacionais, o desempenho das combinações foi avaliado segundo diferentes arranjos familiares: domicílios com crianças menores de 10 anos; domicílios com adolescentes (idade entre 10 a 19 anos) 1414. Departamento de Ações Programáticas Estratégicas, Secretaria de Atenção em Saúde, Ministério da Saúde. Diretrizes nacionais para a atenção integral à saúde de adolescentes e jovens na promoção, proteção e recuperação da saúde. Brasília: Ministério da Saúde; 2010. (Série A. Normas e Manuais Técnicos).; domicílios em que a pessoa de referência é uma mulher; domicílios em que a pessoa de referência é um homem; domicílios em que a pessoa de referência é um idoso (idade ≥ 60 anos) 1515. Subsecretaria de Edições Técnicas, Senado Federal. Estatuto do idoso: dispositivos constitucionais pertinentes, Lei nº 10.741, de 1º de outubro de 2003, normas correlatas, índice temático. Brasília: Senado Federal; 2003.; domicílios em que a pessoa de referência se autodeclara preta; domicílios em que a pessoa de referência se autodeclara indígena; domicílios com baixa renda sem crianças (renda mensal domiciliar per capita ≤ 1/2 salário mínimo - aproximadamente R$ 339,00 - considerando o valor do salário-mínimo na época do estudo); e domicílios com baixa renda com crianças menores de 10 anos.

Dado que o valor preditivo é influenciado pela prevalência do evento em determinada população, avaliamos seu desempenho em diferentes cenários a partir do cálculo do VPP ajustado pela prevalência (VPPP) e do VPN ajustado pela prevalência (VPNP). Este cálculo é baseado no teorema de Bayes, que utiliza a prevalência do evento como probabilidade a priori1616. Khamis HJ. An application of Bayes' rule to diagnostic test evaluation. Journal of Diagnostic Medical Sonography 1990; 6:212-8.:

V P P P = p r e v a l ê n c i a × s e n s i b i l i d a d e p r e v a l ê n c i a × s e n s i b i l i d a d e + 1 - p r e v a l ê n c i a × 1 - e s p e c i f i c i d a d e × 100

V P N P = 1 - p r e v a l ê n c i a × e s p e c i f i c i d a d e p r e v a l ê n c i a × 1 - s e n s i b i l i d a d e + 1 - p r e v a l ê n c i a × e s p e c i f i c i d a d e × 100

A partir das fórmulas apresentadas, foram gerados dois gráficos. No primeiro, plotaram-se os valores de VPPP e VPNP, utilizando os parâmetros de sensibilidade e especificidades do melhor arranjo combinatório entre as quatro primeiras questões da EBIA, em função de uma prevalência teórica de IAM/G variando de 0% a 100%. No segundo gráfico, os desempenhos do VPPP e do VPNP foram analisados segundo as estimativas da prevalência de IAM/G das Unidades Federativas brasileiras em 2013. Os valores de sensibilidade e especificidade utilizados para os cálculos do VPPP e do VPNP foram os referentes à combinação “Q2 e Q4” de “todos os domicílios”.

Uma vez que se espera paridade entre as conclusões derivadas do instrumento de triagem e da EBIA, analisamos a validade convergente entre os dois instrumentos por meio da comparação das estimativas das razões de prevalência (RP) de insegurança alimentar para variáveis relacionadas com a redução da compra e do consumo de alimentos entre dois modelos lineares generalizados (MLG; distribuição binomial e função de ligação log), ajustados por variáveis sociodemográficas e econômicas. No primeiro modelo, utilizamos a variável de desfecho (IAM/G) definida a partir do padrão-ouro da EBIA e, no segundo, a insegurança alimentar baseada no instrumento de triagem de dois itens que demonstrou o melhor desempenho nas análises de sensibilidade, especificidade, acurácia, VPP e VPN. As estimativas dos MLG foram apresentadas com seus respectivos intervalos de 95% de confiança (IC95%).

Para obter as variáveis relacionadas à redução da compra e do consumo de alimentos, foram avaliadas as respostas do módulo “Estratégia da Família em Insegurança Alimentar”, para a seguinte pergunta referente os três meses anteriores à pesquisa: “Qual a principal atitude que vocês adotaram quando faltou alimento?”. Entre as 15 possibilidades disponíveis de resposta, foram escolhidas aquelas que poderiam refletir o consumo alimentar: deixaram de comprar alimentos supérfluos; comeram menos carnes; e comeram menos frutas, verduras e legumes. A escolha pela família por umas dessas três alternativas foi considerada como resposta afirmativa, e a escolha por uma das outras 12 alternativas restantes foi considerada como resposta negativa. Dessa forma, foram geradas as seguintes variáveis: redução do consumo de alimentos (não e sim); redução do consumo de carne (não e sim) e redução do consumo de frutas, verduras e legumes (não e sim).

As variáveis de ajuste foram selecionadas a fim de minimizar a variabilidade proveniente das diferenças sociais, econômicas e demográficas da amostra analisada. O nível de desenvolvimento econômico regional foi categorizado em regiões mais desenvolvidas (Sul, Sudeste e Centro-oeste) e regiões menos desenvolvidas (Norte e Nordeste) 1. Também considerou-se a divisão de acordo com a área do domicílio (urbana e rural).

As condições de saneamento sanitário foram determinadas seguindo o modelo elaborado por Santos et al. 11. Santos TG, Silveira JAC, Longo-Silva G, Ramires EKNM, Menezes RCE. Tendência e fatores associados à insegurança alimentar no Brasil: Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios 2004, 2009 e 2013. Cad Saúde Pública 2018; 34:e00066917., o qual considera adequado quando há acesso à rede geral de abastecimento de água, rede coletora de esgoto ou fossa séptica e coleta de resíduos sólidos; e inadequado na presença de uma ou mais das seguintes condições: (a) acesso à água de poço, nascente ou outra fonte; (b) resíduos sólidos queimados, enterrados, jogados em terreno baldio, logradouro, rio, lago, mar ou outro destino; (c) esgoto destinado à fossa rudimentar, vala, rio, lago, mar ou outro; (d) ausência de banheiro ou sanitário no domicílio.

Em relação às características dos moradores dos domicílios, foram incluídas as seguintes variáveis: número de pessoas no domicílio (≤ 4 e > 4 pessoas); presença de crianças no domicílio (não e sim); raça/cor de pele autodeclarada (branca/amarela, preta/parda e indígena); idade (≥ 60 e < 60 anos); escolaridade, considerando a conclusão do Ensino Fundamental como ponto de corte (> 8 e ≤ 8 anos); estado civil (com parceiro e sem parceiro), em que aqueles que fossem casados foram considerados como tendo parceiro, e os solteiros, viúvas, desquitados/separados judicialmente ou divorciados foram considerados sem parceiro; renda per capita (> 1/2 e ≤ 1/2 salário mínimo). Na época do estudo, o salário era de R$ 678,00.

Análise de dados

A união e a análise dos bancos de dados da PNAD foram realizadas por meio do software Stata versão 13 (http://www.stata.com). A fim de considerar os efeitos de estratificação e agrupamento do delineamento amostral complexo e, consequentemente, a representatividade territorial, todas as análises foram realizadas utilizando o prefixo svy.

Aspectos éticos

O estudo foi dispensado de apreciação por Comitê de Ética em Pesquisa com Seres Humanos por se tratar de microdados anonimizados e de domínio público.

Resultados

A prevalência de IAM/G entre os domicílios brasileiros em 2013 foi 8,8% (IC95%: 8,6-9,1). A Tabela 1 traz informações acerca das características sociais, demográficas, econômicas e alimentares da população brasileira, segundo a insegurança alimentar. Como esperado, as maiores prevalências de IAM/G foram encontradas em todas as categorias que representavam condições de privação econômica, restrições sociais e maior concentração de pessoas em um domicílio.

Tabela 1
Características sociais, demográficas, econômicas e alimentares, segundo insegurança alimentar, determinada pela Escala Brasileira de Insegurança Alimentar (EBIA), em domicílios brasileiros. Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios (PNAD), Brasil, 2013.

Nas Tabelas 2 e 3, são apresentados os dados de sensibilidade, especificidade, acurácia, VPP e VPN das combinações binárias das quatro primeiras questões da EBIA para diferentes subgrupos populacionais, baseados na pessoa de referência do domicílio. Ao compararmos as combinações com uma ou duas respostas afirmativas (Tabela 2) e com as duas respostas afirmativas (Tabela 3), observa-se que o melhor desempenho na identificação de famílias em risco para IAM/G foi obtido pela combinação das questões 2 e 4. Apesar de todas as combinações terem apresentado valores ótimos de sensibilidade, especificidade e VPN, o arranjo das duas respostas afirmativas para as questões 2 e 4 apresentaram os melhores parâmetros de VPP, variando entre 61,8% (domicílio com crianças) e 75,9% (domicílios em que a pessoa de referência é um idoso) (Tabela 3).

Tabela 2
Desempenho das combinações binárias das questões 1 a 4 da Escala Brasileira de Insegurança Alimentar (EBIA) com uma ou duas respostas afirmativas para compor o instrumento de triagem de risco para insegurança alimentar. Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios (PNAD), Brasil, 2013.
Tabela 3
Desempenho das combinações binárias das questões 1 a 4 da Escala Brasileira de Insegurança Alimentar (EBIA) com duas respostas afirmativas para compor o instrumento de triagem de risco para insegurança alimentar. Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios (PNAD), Brasil, 2013.

Uma vez identificado que a reprodução do procedimento metodológico publicado por Poblacion et al. 88. Poblacion A, Segall-Corrêa AM, Cook J, Taddei JAAC. Validity of a 2-item screening tool to identify families at risk for food insecurity in Brazil. Cad Saúde Pública 2021; 37:e00132320. resultou na mesma combinação de questões, avaliamos o VPPP da Tria em diferentes cenários (Figura 1). Na análise com a prevalência teórica (Figura 1a), os resultados indicam que, em cenários onde a prevalência de IAM/G é maior do que 10%, a probabilidade de que as famílias classificadas em risco pela TRIA estejam efetivamente com IAM/G é maior que 70%. Utilizando as estimativas da prevalência em 2013 (Figura 1b), esse desempenho seria observado em 14 das 27 Unidades Federativas do Brasil.

Figura 1
Comportamento do valor preditivo positivo (VPP) e negativo (VPN) da Triagem para Risco de Insegurança Alimentar (TRIA) ajustado pela prevalência, segundo diferentes cenários de insegurança alimentar e nutricional moderada e grave (IAM/G). Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios (PNAD), Brasil, 2013.

Por fim, observou-se que a redução da compra de alimentos, a redução do consumo de carne e a redução do consumo de frutas, verduras e legumes se associou com a IAM/G em ambos os modelos (Tabela 4). Como esperado, o tamanho de efeito foi ligeiramente menor no modelo que utilizou a TRIA, no entanto, a proximidade ou sobreposição dos IC95% reforça a comparabilidade entre os dois instrumentos, indicado boa validade convergente da TRIA.

Tabela 4
Associação entre variáveis alimentares e insegurança alimentar moderada e grave (IAM/G) identificada pela Escala Brasileira de Insegurança Alimentar (EBIA) ou pela Triagem para Risco de Insegurança Alimentar (TRIA) para identificação de domicílios em risco para insegurança alimentar. Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios (PNAD), Brasil, 2013.

Discussão

Após uma década de redução da insegurança alimentar, a Pesquisa de Orçamentos Familiares (POF) de 2018 22. Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística. Pesquisa de Orçamentos Familiares 2017-2018. Rio de Janeiro: Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística; 2020. descreveu pela primeira vez um significativo aumento na prevalência de insegurança alimentar no Brasil. Não obstante, o processo de fragilização dos direitos sociais decorrente da crise político-institucional iniciada em 2014 e da implementação de políticas de austeridade fiscal, associada aos novos (des)arranjos sociais impostos pela pandemia de COVID-19, culminou na violação do DHANA de 55,2% da população brasileira 33. Rede Brasileira de Pesquisa em Soberania e Segurança Alimentar. Food insecurity and Covid-19 in Brazil. http://olheparaafome.com.br/VIGISAN_AF_National_Survey_of_Food_Insecurity.pdf (acessado em 23/Mai/2022).
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, sendo experienciada com mais frequência pelas famílias vulnerabilizadas social e economicamente.

Diante da importância de identificar as famílias em risco de insegurança alimentar para assisti-las em suas necessidades alimentares básicas, este trabalho teve como finalidade analisar a reprodutibilidade da TRIA, proposto por Poblacion et al. 88. Poblacion A, Segall-Corrêa AM, Cook J, Taddei JAAC. Validity of a 2-item screening tool to identify families at risk for food insecurity in Brazil. Cad Saúde Pública 2021; 37:e00132320., visando referendar ou não sua utilização em serviços de saúde e de assistência social, bem como por organizações da sociedade civil que atuam dentro do escopo da fome.

Por ter se baseado na amostra da PNDS de 2006, uma das limitações da TRIA era a impossibilidade de estabelecer sua validade para domicílios que não fossem caracterizados pela presença de crianças menores de cinco anos de idade vivendo com suas mães com idade entre 19 e 49 anos. Portanto, a fim de superar essa limitação, nosso estudo utilizou na edição de 2013 da PNAD, a qual incorpora estratos populacionais mais amplos em seu desenho amostral, além de ter como um de seus objetivos primários a análise da situação de segurança alimentar e nutricional no país.

A reprodução dos métodos adotados no desenvolvimento da TRIA, utilizando os dados da PNAD 2013, corroborou com o mesmo arranjo de questões, segundo o melhor desempenho nos indicadores de especificidade, sensibilidade, VPP e VPN para identificação de famílias em risco de insegurança alimentar. Portanto nossos resultados referendam o uso combinado das questões 2 e 4 para compor o instrumento de triagem, devendo-se considerar como situação de risco elevado domicílios em que residentes responderem afirmativamente para ambas as questões:

Agora vou ler para você duas perguntas sobre a alimentação em sua casa. Responda sim ou não para cada uma delas.

(1) Nos últimos três meses, os alimentos acabaram antes que os moradores deste domicílio tivessem dinheiro para comprar mais comida?

(2) Nos últimos três meses, os moradores deste domicílio comeram apenas alguns alimentos que ainda tinham porque o dinheiro acabou?

Um aspecto fundamental sobre a TRIA é que ela não é uma versão reduzida da EBIA. Sua finalidade não é classificar os domicílios segundo diferentes níveis de insegurança alimentar (segurança alimentar, insegurança alimentar leve, insegurança alimentar moderada e insegurança alimentar grave), mas sim de identificar domicílios em risco de insegurança alimentar.

Por ser de rápida aplicação e fácil interpretação, a utilização da TRIA pode ocorrer como parte da rotina dos serviços de saúde, inclusive integrado às visitas domiciliares realizadas por agentes comunitários de saúde. No contexto do Sistema Único de Saúde (SUS), por se tratar de uma ferramenta compatível com ações de vigilância alimentar e nutricional, ela pode ser facilmente incorporada ao SISVAN, além de instrumentalizar a articulação intersetorial com o SISAN e o Sistema Único de Assistência Social (SUAS), por meio do encaminhamento de famílias em risco para insegurança alimentar para equipamentos públicos de segurança alimentar e nutricional e os Centro de Referência de Assistência Social (CRAS). Já nos CRAS, a TRIA pode ser utilizada tanto nos atendimentos por demanda espontânea quanto na busca ativa. Ainda, em situações de emergência prolongada, governo e as organizações da sociedade civil podem utilizar a TRIA para apoiar a racionalização nos seus processos de trabalho.

O Ministério da Saúde, por meio da recente publicação intitulada Insegurança Alimentar na Atenção Primária à Saúde - Manual de Identificação dos Domicílios e Organização da Rede1010. Departamento de Promoção da Saúde, Secretaria de Atenção Primária à Saúde, Ministério da Saúde. Insegurança alimentar na atenção primária à saúde: manual de identificação dos domicílios e organização da rede. Brasília: Ministério da Saúde; 2022., recomenda a aplicação da TRIA quando o tempo, as restrições financeiras ou a carga ao respondente impedirem a utilização da EBIA completa, especialmente em situações de Emergência em Saúde Pública de Importância Nacional, pois possibilita a pronta tomada de decisão a partir da identificação de famílias em risco de insegurança alimentar e com possível experiência de fome, garantindo o direito à saúde e à alimentação adequada e saudável.

As curvas de desempenho da TRIA demonstram a melhora da capacidade de identificar os domicílios em risco de IAM/G, na medida em que há aumento da prevalência, indicando especificamente a eficiência desse instrumento na triagem de populações vulnerabilizadas social e economicamente. Para ilustrar o potencial da TRIA no monitoramento da IA, as estimativas do VPPP e do VPNP foram recalculadas utilizando as prevalências de IAM/G da POF 2018 (15,9%) 22. Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística. Pesquisa de Orçamentos Familiares 2017-2018. Rio de Janeiro: Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística; 2020. e da pesquisa VigiSAN 2020 (20,5%) 33. Rede Brasileira de Pesquisa em Soberania e Segurança Alimentar. Food insecurity and Covid-19 in Brazil. http://olheparaafome.com.br/VIGISAN_AF_National_Survey_of_Food_Insecurity.pdf (acessado em 23/Mai/2022).
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. Nesses cenários, o VPP da TRIA seria acima de 80%, e a probabilidade da TRIA classificar famílias que verdadeiramente estão em IAM/G como sem risco seria menor que 5% (1-VPN).

Essas estimativas foram calculadas utilizando os valores de sensibilidade e especificidade para “todos os domicílios”. No entanto pessoas interessadas em trabalhar com grupos populacionais específicos (p.ex.: “domicílios com crianças” ou “domicílios em que a pessoa de referência se autodeclara indígena”) podem reproduzir as curvas de eficiência da Tria para identificar famílias em risco de insegurança alimentar, aplicando os valores de sensibilidade e especificidade obtidos para esses subgrupos nas equações apresentadas na seção Métodos.

A TRIA também demostrou alta capacidade de capturar consequências alimentares adversas, como redução da compra de alimentos, incluindo carne, frutas, verduras e legumes semelhante à EBIA. Resultados similares foram identificados por Poblacion et al. 88. Poblacion A, Segall-Corrêa AM, Cook J, Taddei JAAC. Validity of a 2-item screening tool to identify families at risk for food insecurity in Brazil. Cad Saúde Pública 2021; 37:e00132320., em que crianças (6-59 meses) oriundas de famílias que teriam sido triadas como em risco para insegurança alimentar, assim como as classificadas como em IAM/G, apresentaram maior probabilidade de não consumir carnes ou frutas e vegetais todos os dias, de estarem com desnutrição e de terem sido hospitalizadas pelo menos uma vez por diarreia ou pneumonia nos 12 meses que antecederam a pesquisa.

Do mesmo modo que a EBIA completa, a TRIA apresenta grande potencial na melhoria da governança da segurança alimentar, considerada central para o avanço do DHANA. Isso porque a Tria é um instrumento capaz de facilitar o monitoramento, o planejamento e a implementação de programas e políticas públicas coerentes e coordenadas de segurança alimentar e nutricional, contribuir com a transparência e a responsabilidade das instituições na garantia do DHANA, e subsidiar a tomada de decisões para a alocação equitativa de recursos 1717. Pérez-Escamilla R. Can experience-based household food security scales help improve food security governance? Glob Food Sec 2012; 1:120-5.,1818. Saint Ville A, Po JYT, Sen A, Bui A, Melgar-Quiñonez H. Food security and the Food Insecurity Experience Scale (FIES): ensuring progress by 2030. Food Security 2019; 11:483-91.,1919. Pérez-Escamilla R, Shamah-Levy T, Candel J. Food security governance in Latin America: principles and the way forward. Glob Food Sec 2017; 14:68-72.. O monitoramento sistemático da insegurança alimentar em nível local por meio da TRIA fornece à sociedade e aos tomadores de decisão dados fundamentais para a análise situacional e compreensão da magnitude do problema, demonstrando a capacidade da TRIA como instrumento de governança local.

Conclusões

A TRIA foi capaz de detectar com acurácia domicílios em risco para insegurança alimentar entre a população em geral, bem como de subgrupos específicos da população brasileira. Por ser um instrumento simples, fácil e rápido de ser administrado, nós recomendamos que a TRIA seja adotada na prática assistencial a fim de otimizar o suporte às famílias que necessitam de atenção imediata, além de cobrir lacunas de conhecimento dos inquéritos nacionais acerca da situação de insegurança alimentar na população brasileira.

Agradecimentos

À Coordenação de Aperfeiçoamento Pessoal de Nível Superior (CAPES) pela concessão da bolsa de estudos.

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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    15 Ago 2022
  • Data do Fascículo
    2022

Histórico

  • Recebido
    06 Out 2021
  • Revisado
    06 Jun 2022
  • Aceito
    10 Jun 2022
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