Resumos
No Brasil a provisão de medicamentos é marcada pelo predomínio dos gastos e da oferta privada em farmácias e pela regulação historicamente liberal sobre a comercialização. Nos anos 2000 e 2010 houve expansão e concentração do varejo farmacêutico e crescente financeirização no setor saúde. O artigo analisa as expressões da financeirização em empresas do varejo farmacêutico brasileiro considerando três dimensões transversais: patrimonial, contábil-financeira e política. Foram analisados dados quantitativos e qualitativos de variadas fontes sobre as dimensões patrimonial e contábil das 10 maiores redes de farmácias brasileiras e à dimensão política da ação de quatro entidades representativas do subsetor. As informações coletadas foram reunidas no banco de dados da pesquisa fonte (Banco de Dados sobre Empresariamento na Saúde - BDES). Na dimensão patrimonial, identificou-se verticalização, diversificação, capitalização por operações financeiras e patrimoniais, intensificação de fusões e aquisições, abertura de farmácias, entrada de investidores, mudanças na gestão e organização interna. Na contábil-financeira, constatou-se aumento de porte (receitas, ativos, patrimônio) e bom desempenho (retorno sobre capital próprio, giro do ativo e capitais de terceiros) das redes em comparação à empresas brasileiras e da saúde. Na política houve embates e colaborações entre entidades e o poder público (Executivo, Legislativo e Judiciário) a depender da pauta, com desfechos geralmente favoráveis ao subsetor e protagonismo da Associação Brasileira de Farmácias e Drogarias (Abrafarma). A financeirização do padrão de acumulação de empresas do varejo farmacêutico e o fortalecimento de sua atuação política se mostraram relevantes para compreensão das mudanças na provisão de medicamentos e no setor farmacêutico.
Palavras-chave: Farmácia; Comercialização de Medicamentos; Assistência Farmacêutica; Economia da Saúde; Política de Saúde
The provision of medicines in Brazil is marked by the predominance of private expenditures and supply in pharmacies and by the historically liberal regulation of retail drug sales. The first two decades of the 21st century witnessed the expansion and concentration of the retail pharmaceutical sector and growing financialization of the health sector. The article analyzes the characteristics of financialization of Brazilian retail pharmaceutical companies, considering the following three crosscutting dimensions: ownership structure, financial/accounting, and political. Quantitative and qualitative data from various sources were analyzed including ownsership and account informations of the ten biggest Brazilian retail pharmacies chains and political action of four business associations. The information collected was stored in the source project database. The ownership structure dimension revealed verticalization, diversification, capitalization via financial and shareholding operations, intensification of mergers and acquisitions, opening of pharmacy branches, entry of investors, and changes in internal management and organization. The financial/accounting dimension revealed an increase in size (revenues, assets, net worth) and good performance (return on equity capital, capital turnover, and third-party capital) of the networks compared to Brazilian companies and health companies. The policy arena revealed both clashes and collaborations between representative associations and government (Executive, Legislative, and Judiciary), depending on the issue, with outcomes that were generally favorable to the pharmaceutical sector and leadership by the Brazilian Association of Pharmacy and Drugstore Networks (Abrafarma). The financialization of the retail pharmaceutical companies’ accumulation pattern and the strengthening of their political action proved relevant for understanding the changes in the provision of medicines and in the pharmaceutical market.
Keywords: Pharmacy; Pharmaceutical Trade; Pharmaceutical Services; Health Economic; Health Policy
En Brasil la provisión de medicamentos está marcada por el predominio de los gastos y oferta privada en farmacias, así como por la regulación históricamente liberal sobre su comercialización. En los años 2000 y 2010 hubo una expansión y concentración de la red minorista farmacéutica y una creciente financiarización en el sector salud. El artículo analiza las expresiones de la financiarización en empresas de la red minorista farmacéutica brasileña, considerando tres dimensiones transversales: patrimonial, contable-financiera y política. Se analizaron datos cuantitativos y cualitativos de variadas fuentes, reunidos en el banco de datos del estudio fuente, relacionados con las dimensiones patrimonial y contable de las diez mayores redes de farmacias brasileñas, y con la dimensión de la actuación política de cuatro entidades representativas del subsector. En la dimensión patrimonial, se identificaron: verticalización, diversificación, capitalización por operaciones financieras y patrimoniales, intensificación de fusiones y adquisiciones, apertura de farmacias, entrada de inversores, cambios en la gestión y organización interna. En la contable-financiera, se constató un aumento de tamaño (ingresos, activos, patrimonio) y buen desempeño (rendimiento sobre capital propio, rotación del activo y capitales de terceros) de las redes, en comparación con empresas brasileñas y de salud. En política hubo enfrentamientos y colaboraciones entre entidades y poder público (Ejecutivo, Legislativo y Judicial) dependiendo de la agenda de cada uno, con desenlaces generalmente favorables al subsector y protagonismo de la Asociación Brasileña de Farmacias y Droguerías (Abrafarma). La financiarización del patrón de acumulación de empresas en la red minorista farmacéutica y el fortalecimiento de su actuación política fueron relevantes para la comprensión de los cambios en la provisión de medicamentos y en el sector farmacéutico.
Palabras-clave: Farmacia; Comercialización de Medicamentos; Servicios Farmacéuticos; Economía da Saúde; Política de Salud
Introdução
As farmácias são estabelecimentos de caráter assistencial e comercial com papel relevante tanto na dinâmica dos sistemas de saúde quanto do mercado farmacêutico 1,2. A literatura sobre políticas farmacêuticas no Brasil enfatiza temas como acesso, utilização e gastos com medicamentos 3,4,5; marcos institucionais, normativos e regulatórios das políticas públicas 6; financiamento, gestão, infraestrutura e organização da assistência farmacêutica no Sistema Único de Saúde (SUS) 7; dinâmica sanitária, econômica e tecnológica do setor farmacêutico 8. Todavia, são escassos estudos sobre o papel da provisão privada de medicamentos no sistema de saúde, a dinâmica econômica do varejo farmacêutico e a atuação política das farmácias.
A provisão de medicamentos no Brasil é marcada, primeiramente, pelos altos e regressivos gastos privados, principal fonte de financiamento. Em 2017, cerca de 73% do consumo de medicamentos foi financiado pelas famílias, 13% pela saúde privada e 12% pelo governo, e as despesas familiares representaram 1,6% do Produto Interno Bruto (PIB) 9. Essas despesas incidem mais sobre os mais pobres, que gastam mais com analgésicos, antigripais e anti-inflamatórios, enquanto os mais ricos dispendem valores absolutos superiores e mais voltados para doenças crônicas 3.
Há forte predomínio da oferta em farmácias privadas 2, principal fonte de obtenção de medicamentos de uso eventual e relevantes para diversas condições crônicas e classes terapêuticas 4,5. A provisão pública desmercantilizada contribui para reduzir desigualdades e ampliar o acesso gratuito a tratamento para doenças crônicas, medicamentos estratégicos de baixo interesse comercial e os especializados de alto custo e densidade tecnológica 2,4. Contudo, as compras públicas representam apenas 16% do mercado de medicamentos no Brasil 10.
Aproximadamente 69% do faturamento da indústria farmacêutica é oriundo do comércio varejista 10, cujas margens podem representar 38% do preço dos medicamentos 11. Em 2017, o comércio de produtos farmacêuticos respondeu por 19% do valor adicionado pelas atividades econômicas relacionadas à saúde 9. Portanto, dentro da cadeia produtiva farmacêutica, as farmácias privadas são fundamentais na circulação, distribuição e oferta de produtos.
A regulação sobre as farmácias no Brasil é predominantemente liberal quando considerados aspectos como: (a) propriedade, se restrita a farmacêuticos ou ao Estado, ou se livre à iniciativa privada, formação de redes e integração vertical com distribuidores e produtores; (b) distribuição e entrada de novas farmácias, se livre ou regulada por critérios sanitários, geográficos e demográficos; (c) exercício profissional, se exigido profissionais qualificados, se farmacêuticos exercem responsabilidade técnica, dispensam, prescrevem e/ou prestam serviços; (d) controle sanitário da comercialização, se permitidos medicamentos de venda livre e produtos de conveniência, se dispensação depende de prescrição, se outros serviços são prestados; (e) controle e regulação de preços; (f) relação com seguros públicos e privados e programas governamentais 1,12,13.
O caráter centrado na atividade comercial é reconhecido pela Lei nº 5.991/197314, que não limita propriedade, distribuição e entrada de novas farmácias no mercado, e é também dúbia quanto ao papel do farmacêutico, introduz a figura das drogarias (estabelecimentos sem manipulação de fórmulas) e dos correlatos (produtos não medicamentosos) 15,16. Após quatro décadas, a Lei nº 13.021/201417, reconheceu as farmácias como estabelecimentos de saúde, a obrigatoriedade da presença do farmacêutico e a ampliação dos serviços, mas sem alterar na prática a essência da regulação sobre o varejo ou reorientar o caráter dos estabelecimentos.
As farmácias seguem orientadas pela maximização das vendas e distantes da promoção do uso adequado de medicamentos. A dispensação é realizada por balconistas com baixa qualificação, permeada por práticas como metas de vendas, comissões e bonificação pelas indústrias 18,19. Farmacêuticos exercem funções majoritariamente administrativas e sua ausência é realidade em muitos estabelecimentos 18,19,20. Cerca de 84% da população e 89% dos farmacêuticos percebem as farmácias como lojas de conveniência, perfumaria, cosméticos ou supermercados 20.
O rol de produtos ofertados é definido por estratégias promocionais da indústria e das próprias farmácias, por tipo de especialidade 21. Atualmente, o faturamento do varejo é composto majoritariamente por medicamentos de prescrição (referência, genéricos e similares - 59%); seguido por não medicamentosos (higiene e beleza, alimentos, produtos médicos, conveniência - 26%) e por medicamentos isentos de prescrição (19%) 2.
A conformação desses padrões tem longa trajetória histórica. Desde a década de 1930 as antigas boticas adaptaram-se, subordinadas à expansão da indústria farmacêutica. Especialmente, a partir dos anos 1950 e 1960, tornaram-se entrepostos comerciais de medicamentos industrializados e desassociaram-se da prática liberal do farmacêutico. Sem prioridade ao acesso, controle da comercialização e com a provisão pública residual, as farmácias desenvolveram-se usando estratégias de venda agressivas e práticas de estímulo ao consumo e à medicalização 15,16.
Durante a década de 1990, o mercado farmacêutico sofreu impactos estruturais com a liberalização dos preços, redução de barreiras de importações, retirada de estímulos à indústria nacional, desvalorização cambial e endurecimento da legislação de patentes 8,21. As vendas e os preços médios aumentaram enquanto o volume de unidades comercializadas diminuiu entre 1989 e 1998 21. Além das indústrias transnacionais, o varejo farmacêutico também foi beneficiado e passou por transformações relevantes.
Avanços logísticos e tecnológicos (automação, gestão de estoques, computação) possibilitaram ganhos competitivos e de escala pelas redes. Inspiradas nas drugstores estadunidenses, diversificaram produtos, introduziram autosserviço, gôndolas e caixas na saída 22. Outros empresários responderam à concorrência com o associativismo. Novos grupos de interesse formaram a Associação Brasileira de Redes de Farmácias e Drogarias (Abrafarma) em 1991 e a Federação Brasileira de Redes de Farmácias Associativistas (Febrafar) em 2000, se somando à Associação Brasileira do Comércio Farmacêutico (Abcfarma) de 1959.
No fim da década de 1990 os marcos regulatórios, legais e institucionais das políticas de medicamentos foram atualizados visando adequá-los às diretrizes gerais do SUS, como a universalização, descentralização e integralidade, corrigir disfuncionalidades trazidas pela liberalização. Em 1998 foi promulgada a Política Nacional de Medicamentos; em 1999 criou-se a Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa) e introduziu-se os medicamentos genéricos; em 2000 realizou-se a Comissão Parlamentar de Inquérito (CPI) dos Medicamentos e a regulação de preços foi reintroduzida, entre outros 6.
Entre 2000 e 2015 o mercado farmacêutico experimentou forte expansão 8,23, paralelamente ao ciclo de crescimento econômico, ampliação da renda e do consumo durante governos progressistas. Observou-se a ampliação do déficit na balança comercial e fortalecimento dos produtores nacionais impulsionados pelos genéricos e por políticas industriais 8. O Programa Farmácia Popular do Brasil, de 2004, estabeleceu parcerias com farmácias privadas para dispensação de medicamentos mediante subsídio do Ministério da Saúde em 2006 2.
Entre 2003 e 2013, o faturamento e as unidades vendidas do varejo cresceram em média 14,7% e 9,1%, respectivamente 23. A quantidade de farmácias aumentou de cerca de 50 mil em 1999 24 para quase 88 mil em 2018 25, chegando a uma proporção de 4,2 farmácias por 10 mil habitantes, superior à média de todas as regiões do mundo 26,27. No Distrito Federal, o número de estabelecimentos cresceu 350% entre 2000 e 2012 19. Há concentração de farmácias em cidades grandes, bairros centrais e de renda elevada, associados a maior rentabilidade dos pontos de venda e forte concorrência territorial 19.
Essa expansão é marcada pela concentração de capital e a ampliação de escala. As quatro maiores redes possuíam entre 93 e 197 estabelecimentos em 1999 e as farmácias independentes representavam 77% do faturamento do varejo 24. Em 2018, as quatro primeiras redes tinham entre 700 e 1.825 lojas 28. A participação das cinco líderes no faturamento subiu de 16% para 29% entre 2005 e 2012 e a das independentes caiu para 47%, mesmo representando 87% dos estabelecimentos 23. Em 2018, os membros da Abrafarma chegaram a 43% de participação no mercado e 61% em metrópoles 29.
A consolidação do setor foi marcada por fusões e aquisições, abertura de capital, capitalização a partir de mecanismos financeiros, diversificação de atividades, movimentos também identificados entre farmácias estadunidenses, europeias 27,30 e latino-americanas 13. Nas empresas brasileiras do setor saúde, a análise de informações contábeis e patrimoniais 31,32 fornecem evidências sobre o bom desempenho econômico, aumento de porte, valorização patrimonial, centralização de capital, mudanças nos padrões jurídico-organizacionais, de governança, financiamento, propriedade e controle. Esses fenômenos refletem a financeirização do padrão de acumulação de empresas do setor saúde 33,34,35.
A financeirização é o padrão sistêmico de definição, gestão e realização da riqueza no capitalismo contemporâneo, que estabelece uma dinâmica estrutural orientada por uma lógica financeira geral. Progressivamente, os retornos financeiros se tornam foco dos principais agentes econômicos via recebimento de juros, dividendos e/ou valorização patrimonial e a competição se acirra entre grandes grupos econômico-financeiros, multinacionais, multissetoriais e multifuncionais 36.
As empresas não financeiras, compostas por diferentes tipos de empresas, patrimonialmente interligadas, tendem a uma generalização nas formas de operação, organização, estrutura e estratégia em função do acirramento da concorrência financeira que está superposta e conectada à concorrência industrial e comercial em escala global. Isso ocorre originalmente nas grandes corporações transnacionais do capitalismo central, mas tende a expandir-se a diferentes países e setores. Assim, as empresas não financeiras tornam-se partes ativas crescentemente integradas à dinâmica financeira geral, e não vítimas de um processo externo 36.
Em resumo, as farmácias e o padrão de oferta de medicamentos no Brasil passaram por transformações que requerem análises e interpretações. O estudo da dinâmica de acumulação, estratégias empresariais e ação política de entidades representativas podem trazer elementos para novas perguntas e hipóteses. Este artigo tem como objetivo analisar expressões da financeirização em empresas do varejo farmacêutico brasileiro considerando três dimensões transversais de investigação: patrimonial, contábil-financeira e política.
Metodologia
O trabalho apresenta, de forma descritiva e exploratória para o subsetor varejo farmacêutico, resultados do projeto Complexo Econômico Industrial da Saúde, Inovação e Dinâmica Capitalista: Desafios Estruturais para a Construção do Sistema Universal de Saúde no Brasil, cujas bases teóricas e metodológicas gerais foram descritas por Bahia et al. 37. Para cada dimensão de análise - patrimonial, contábil-financeira e política - foram elaborados bancos de dados específicos 31,32, que compõem o Banco de Dados sobre o Empresariamento da Saúde (BDES).
O BDES-A (A - dimensão patrimonial-societária) e o BDES-B (B - dimensão contábil-financeira), referentes às dimensões patrimonial e contábil, respectivamente, contém dados em faturamento em 2015 das 10 maiores redes de farmácias. Já a dimensão política trata da atuação de entidades nacionais de representação empresarial do varejo farmacêutico: Abrafarma, Febrafar, Abcfarma e Confederação Nacional do Comércio de Bens, Serviços e Turismo (CNC).
Fontes de dados, indicadores e categorias de análise
Dimensão patrimonial
Foram coletados dados quantitativos e qualitativos em diferentes fontes primárias: Receita Federal, Comissão de Valores Mobiliários, juntas comerciais estaduais, demonstrativos financeiros, relatórios anuais, sites de empresas, imprensa tradicional e especializada (jornais, revistas e sites). As informações foram reunidas no BDES-A 32 e agrupadas em três seções: (A1) forma jurídica, propriedade e controle em 2017, incluindo nome, estado sede, natureza jurídica, estrutura do capital e do controle, e perfil dos sócios e acionistas em 2017; (A2) número e valor de operações patrimoniais realizadas entre 2008 e 2016; e (A3) atividades produtivas e assistenciais das empresas, presença territorial e magnitude em 2017.
As informações foram analisadas a partir de categorias da Economia Industrial, como organização interna, diversificação, estrutural de capital e financiamento 38, também considerando os efeitos da financeirização sobre as empresas não financeiras 36. A metodologia de construção do BDES-A, a definição e aplicação das categorias analíticas são descritas em trabalho específico 31.
Dimensão contábil-financeira
O BDES-B 37 contém informações contábeis de empresas do setor saúde entre 2009 e 2015, extraídas de demonstrações financeiras obtidas da Comissão de Valores Imobiliários, de páginas das empresas, jornais e diários oficiais. Foram coletadas em diversos formatos, extraídas e tratadas seguindo a metodologia contábil padronizada. O banco reúne rubricas e indicadores de empresas do setor saúde e de dois grupos de comparação: empresas de capital aberto da base Economática e da lista Maiores & Melhores da Exame.
São considerados quatros aspectos: porte, desempenho econômico, situação patrimonial e relevância das aplicações financeiras. Neste artigo, foram selecionados indicadores que expressam elementos distintivos da dinâmica de acumulação do varejo farmacêutico em comparação com empresas do setor saúde e do restante da economia brasileira: dois indicadores de porte, ativos e receita líquida; três de desempenho, rentabilidade do capital próprio, margem líquida e giro do ativo; e um de endividamento, participação de capital de terceiros. Os procedimentos de elaboração do banco BDES-B, que inclui os conceitos dos indicadores contábeis empregados neste estudo, estão pormenorizados em outro trabalho específico 32.
Dimensão política
Foram reunidas informações qualitativas sobre a ação política de entidades empresariais (Abrafarma, Abcfarma, Febrafar e CNC) e sobre as respostas do poder público (níveis centrais do Legislativo, Executivo e Judiciário) em temas de interesse entre 2008 e 2017, obtidas em fontes primárias (sites, publicações oficiais das entidades, notícias, reportagens, entrevistas e declarações de representantes em jornais e revistas - G1, Valor, O Globo, Folha de S.Paulo, Estadão, Exame).
Os desdobramentos de pautas empresariais em ações e decisões de órgãos do poder público foram obtidos em buscas nos sites da Câmara dos Deputados e do Senado Federal (palavra-chave: farmácia), do Supremo Tribunal Federal (STF) e no Superior Tribunal de Justiça (STJ) (palavra-chave: nome da entidade). No Executivo, foram analisadas ações da Presidência (vetos de matérias legislativas, medidas provisórias); políticas públicas do Ministério da Saúde; ações regulatórias da Anvisa e da Câmara de Regulação do Mercado de Medicamentos (CMED).
As informações foram compiladas e analisadas através de uma matriz que considerou os propositores (entidades, poder público) e proposições (agendas, pautas, princípios, posicionamentos, sobre políticas públicas, regulação, leis e projetos, ações judiciais e do poder público).
Resultados
Dimensão patrimonial
Das 10 maiores redes de farmácias, em 2015, metade tinha sede em São Paulo e apenas duas fora da Região Sudeste. Cinco redes, presentes em pelo menos 10 estados, mostraram abrangência nacional. A grande maioria eram sociedades anônimas, cinco de capital fechado e três de capital aberto. Raia Drogasil e BR Pharma participam do mercado de ações desde 2011, já o grupo Dimed abriu capital nos anos 1980. Venâncio e Drogal, de menor porte, foram as únicas sociedades limitadas (Quadro 1).
Em oito empresas, os principais sócios e acionistas eram empresários e famílias, mas há uma crescente presença de investidores externos na propriedade e no controle, acompanhada de aportes financeiros. Destaca-se a BR Pharma, fundada pelo banco de investimentos BTG Pactual; a Pague Menos, que vendeu 17% das ações para o grupo financeiro estadunidense General Atlantic em 2015, ano em que o grupo Ultra, do setor de distribuição de combustíveis, adquire a Extrafarma. Na Raia Drogasil e na Dimed, fundos de investimentos participam do controle, junto às famílias proprietárias.
Observa-se a diversificação de atividades para além da comercialização de medicamentos. Há avanço na integração vertical com a distribuição, devido à necessidade de ampliação de escala e à nacionalização da concorrência. Cinco redes possuem centros de distribuição em mais de um estado. Algumas são sócias de empresas de convênios e tecnologia da informação, como a Pague Menos e Araújo com a ePharma. Raia Drogasil lançou a sua própria empresa, a Univers, e entrou no varejo de medicamentos especializados, com a aquisição da 4-Bio. Outra tendência, é a expansão da prestação de serviços remunerados, como vacinação, acompanhamento pelo farmacêutico, especialmente a partir da aprovação da Lei nº 13.021/201417.
O ritmo de abertura de novas farmácias acelerou-se entre 2008 e 2016 (Tabela 1). Em 2009, Raia e Drogasil tinham, cada uma, cerca de 300 farmácias. Chegaram a 2016 com mais de 1.400, abrindo mais de duzentas no ano. A Pague Menos, sem aquisições ou fusões, triplicou a quantidade de estabelecimentos. Grupo DPSP e PanVel crescem em ritmo menor. Houve também a abertura de novos centros de distribuição por todas essas empesas. A exceção é a BR Pharma, que saiu de zero para 1.200 farmácias entre 2010 e 2013, por meio de aquisições e, a partir de 2015, começou a se desfazer de ativos devido a maus resultados.
As operações patrimoniais foram relevantes para a expansão das principais empresas (Tabela 2), ainda que o subsetor tenha se destacado menos dentro do setor saúde. Em 2011, as duas maiores redes se formaram a partir das fusões de Raia/Drogasil (nova rede Raia Drogasil) e São Paulo/Pacheco (Grupo DPSP). Nas aquisições, o maior destaque foi da BR Pharma.
Houve crescente recurso ao financiamento direto, como a oferta de ações e emissão de debêntures para potencializar a expansão ou reestruturar dívidas e patrimônio. A Pague Menos realizou três emissões em 2012, 2013 e 2014 e acelerou o ritmo de abertura de farmácias. A BR Pharma, por sua vez, realiza oferta de ações em 2011 e 2013, na fase de expansão, e em 2016, no momento de crise e reestruturação. Também foram identificados empréstimos do Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES) para as redes Raia Drogasil e Grupo DPSP.
Dimensão contábil-financeira
Os indicadores contábeis evidenciam padrão de expansão e acumulação das redes de farmácias, comparados ao setor saúde e outras empresas nacionais. Há nítido crescimento do porte (Tabela 3), reflexo da consolidação das empresas. Entre 81 empresas do BDES-B, três redes estavam entre as dez maiores do setor saúde em ativos totais e receitas líquidas. Entre 2009 e 2015, todas ampliaram o ativo, cuja mediana se distanciou dos grupos de comparação.
O patrimônio líquido segue tendências similares, mas com hiato ainda maior, indicando menor alavancagem das farmácias. Com relação à receita líquida, a mediana das redes oscila em relação ao setor saúde, mas ambos indicadores se mantêm acima das empresas de capital aberto. A análise do retorno sobre capital, indicador de desempenho, mostra que a farmácias ofereceram retornos superiores ao setor saúde, empresas de capital aberto e Melhores & Maiores da Exame, favorecendo a atração de investimentos. Isso ocorre principalmente em 2009 e entre 2012 e 2015. As aplicações e receitas financeiras, ocultadas nas tabelas, não foram relevantes na estrutura do capital e nos resultados econômicos.
Os fatores que mais influenciaram os altos retornos aos investidores não foram as margens, relativamente baixas, mas o alto giro do ativo e a participação de capital de terceiros superior à mediana do setor saúde, o que condiz com o crescimento das vendas, expansão e consolidação.
Dimensão política
Quanto às proposições e ações de entidades representativas do varejo farmacêutico e à repercussão de pautas em instâncias do poder público, observou-se que, de modo geral, as entidades se alinham em princípios como a defesa da não intervenção governamental (Quadro 2). Todavia, nem sempre houve unanimidade e ações conjuntas, na medida em que estão envolvidos diferentes aspectos, como interesses de cada ator, força econômica, articulação com parceiros, acesso à influência junto a instituições públicas. O período foi marcado por embates e colaborações tanto entre as entidades e o poder público quanto entre as próprias entidades.
A Abrafarma, representante das grandes redes, teve maior protagonismo e se envolveu mais em matérias no judiciário, vencendo pautas importantes. No Executivo, teve posturas variadas. Com relação ao Ministério da Saúde, colaborou na implementação do Programa Farmácia Popular do Brasil e se posicionou contra cortes de recursos no governo Temer. Com relação à Anvisa, se opôs à Resolução de Diretoria Colegiada (RDC) nº 44/200939, que restringia a comercialização de MIP em autosserviço e o rol de produtos de conveniência permitidos, obtendo vitórias judiciais contra a agência. No Legislativo, impulsionou a constituição da frente parlamentar pela desoneração de medicamentos junto à Interfarma, associação de indústrias multinacionais. Apoiou a aprovação da Lei nº 13.021/2014, que dispõe sobre as atividades dos estabelecimentos farmacêuticos, ações e serviços de assistência farmacêutica públicos e privados, define as farmácias como unidades de assistência à saúde e obriga a presença do farmacêutico. As diretrizes aprovadas têm sido usadas pela Abrafarma para estimular a expansão da prestação de serviços nas afiliadas.
A Abcfarma é uma entidade nacional que congrega sindicatos estaduais do comércio farmacêutico e representa as farmácias independentes. Opôs-se à obrigatoriedade dos farmacêuticos nas farmácias, teve destaque em ações judiciais e na discussão da Lei nº 13.021/2014. Após aprovação da lei, a entidade recorreu a uma secretaria da Presidência da República. Em seguida, a presidente Dilma Rousseff editou a Medida Provisória nº 653/201340, isentando farmácias independentes dessa obrigação. Todavia, a Medida Provisória perdeu eficácia, uma derrota em um assunto historicamente caro à entidade. Em 2015, acionou o STF contra a cobrança de multas pelos Conselhos de Farmácia em caso de ausência de farmacêutico.
Ao lado da Abrafarma, a Abcfarma recebeu decisão favorável do STF sobre constitucionalidade de leis estaduais que ampliam o rol de produtos de conveniência comercializados. No STJ, participou de ações contra a RDC nº 44/200939, da Anvisa, e contra a cobrança de multas e taxas por Conselhos e pela Anvisa. No Executivo, integrou o comitê técnico do Programa Farmácia Popular do Brasil, assim como a Febrafar, que, por sua vez, teve atuação mais discreta nas três esferas de poder.
A CNC, que representa todo o setor comercial, teve relevância enquanto aglutinadora de interesses do varejo farmacêutico, fornecendo apoio técnico, político e jurídico a outras entidades. Em 2001, a Confederação criou a Câmara Brasileira de Produtos Farmacêuticos, que reúne periodicamente representantes nacionais e estaduais de farmácias e distribuidoras para discussões, articulação e acompanhamento conjunto de pautas.
A ação de esferas de poder público em temas de interesse das farmácias revelou uma postura em geral favorável às demandas do subsetor, com exceções relevantes. No Executivo, o Ministério da Saúde se apoiou e foi apoiado pelas farmácias privadas, especialmente a Abrafarma, para implementação de uma política de destaque, o Programa Farmácia Popular do Brasil. A Presidência da República, por sua vez, se colocou ao lado da Abcfarma e da CNC, intervindo contra a obrigatoriedade do farmacêutico em farmácias, o que não se confirmou no legislativo.
As ações da Anvisa geraram maiores conflitos com as entidades e outras esferas do poder. Com relação à RDC nº 44/2009, após polêmicas e ações judiciais, a Agência recuou na questão dos medicamentos isentos de prescrição com a RDC nº 41/201241, autorizando novamente a venda em autosserviço. Quanto aos produtos de conveniência, STF e STJ decidiram contra a aplicação da resolução da Agência. A proibição de anorexígenos pela RDC nº 52/201142 foi revertida por decreto legislativo de 2014 e pela Lei nº 13.454/201743. Em outros casos prevaleceram diretrizes da Anvisa, sem oposição: a exigência de receita para antibióticos; a intercambialidade de medicamentos similares e a regulação de preços pela CMED.
No Legislativo, a promulgação da Lei nº 13.021/2014, após duas décadas de tramitação, foi aprovada em consenso entre Abrafarma, conselhos de farmácia e sindicatos de farmacêuticos. Entre os projetos de lei, foram identificadas iniciativas alinhadas e contrárias às pautas do setor.
Discussão
A população brasileira combina, em diferentes medidas, acesso gratuito a medicamentos essenciais, por meio do SUS, e desembolso direto em farmácias 2,4,5, com padrões de acesso e consumo desiguais, variando de acordo com o tipo de produto, preços, capacidade de pagamento, utilização de serviços de saúde, perfil de prescrições médicas, estratégias de marketing de farmácias e da indústria farmacêutica 3,20. Assim, apesar da implantação de um sistema de saúde universal, políticas públicas e oferta privada conformaram um padrão de especialização da provisão baseado na segmentação do acesso, da demanda e do mercado entre classes sociais, especialidades farmacoterapêuticas e fontes públicas e privadas de obtenção.
A institucionalização das políticas de assistência farmacêutica do SUS contribuiu para a ampliação do acesso e da provisão pública, para redução de iniquidades e para a regulamentação sanitária dos medicamentos 4,6. O Programa Farmácia Popular do Brasil inseriu as farmácias privadas nas políticas de saúde, ora como alternativa de acesso frente às falhas da provisão pública, ora atendendo prescrições de origem privada. Todavia, o programa não foi capaz de reorientar a lógica dos estabelecimentos privados, levou à sobreposição de ações em farmácias públicas e privadas e privilegiou a terceirização, ainda que a oferta pelo setor público seja economicamente mais vantajosa e assistencialmente mais abrangente 2. Em relação aos preços, a regulação da CMED é questionada por favorecer setores regulados, fixar preços máximos muito acima dos praticados no mercado, estimular o lançamento de novos produtos e não conter aumentos abusivos 44.
As políticas públicas não alteraram a preponderância das farmácias privadas como canal de oferta 2 e o padrão de altos e regressivos gastos privados com medicamentos 9, aspectos também identificados em países periféricos e latino-americanos 45, onde a regulação da propriedade, o controle da comercialização e a relevância do setor público são menores, com farmácias desarticuladas das políticas de saúde e permeadas por conflitos de interesse 1,13. Ainda que análises comparativas sejam necessárias, essas questões parecem ser entraves comuns ao Brasil 2,18,19.
O estudo mostrou que a inserção das farmácias em uma estrutura articulada de oferta e demanda privada com forte caráter mercantil se consolidou, se modernizou e se acentuou no período analisado. Isso não se explica apenas por fatores demográficos, políticas públicas, ciclos econômicos ou ampliação do consumo. Os dados patrimoniais e contábeis apresentados contribuíram para a caracterização das maiores redes de farmácias brasileiras e de um padrão de acumulação crescentemente condicionado pela financeirização, que se reflete nas estratégias empresariais e conflitos políticos e econômicos.
A vigorosa expansão das lojas e faturamento do varejo farmacêutico descrita em outras publicações 19,23 foi observada nas empresas analisadas com intensidade ainda maior. Os indicadores contábeis mostram que seu porte cresceu comparado ao de grandes empresas brasileiras e ao setor saúde. O bom desempenho foi constatado pela ampliação superior de receitas, ativos e patrimônio, o alto giro de ativo e maior participação de capital de terceiros. Em outras palavras, as redes analisadas são capazes de girar o estoque e o ciclo de produção mais rapidamente que os grupos comparados, com desempenho atrativo a investidores, apesar de margens relativamente baixas e receitas financeiras irrelevantes.
As informações da dimensão patrimonial permitem constatar a centralização de capital com formação de empresas oligopolizadas, nacionalização da concorrência e profundas transformações na lógica de operação e organização, como a profissionalização da gestão, separação de propriedade e gerência, crescente importância do financiamento direto por meio de venda de ações e emissão de títulos financeiros.
Apesar da predominância do controle familiar, a entrada de bancos, fundos de investimentos e corporações de outros segmentos da economia ampliou a influência desses agentes sobre estratégias empresariais e sobre padrões de concorrência. Isso tem sido identificado entre empresas de saúde e outros setores, no Brasil e no mundo 13,30,31,33,34,35,46.
No padrão de concorrência identificado, a expansão das redes depende da abertura de novas lojas por crescimento interno, fusões e aquisições, aumento da produtividade dos pontos de venda e do giro do estoque, intensa competição territorial e por preços nos mercados mais rentáveis, verticalização da distribuição, diversificação de atividades econômicas e assistenciais. A integração das principais empresas à lógica financeira tornou-se vantagem competitiva fundamental, na medida em que potencializa o processo de acumulação e as transformações organizacionais e tecnológicas internas. Todos esses processos são coerentes com os efeitos da financeirização sobre as empresas não financeiras 31,32,36.
Todavia, nem sempre a participação de agentes financeiros foi bem-sucedida. A falência da BR Pharma, em 2019, levou à quebra de redes regionais adquiridas e à venda de ativos para concorrentes, fundos de investimento ou distribuidoras 47. Apesar do fracasso, o movimento do BTG Pactual no início da década estimulou e acelerou o processo de consolidação do varejo. Não houve a entrada de redes estrangeiras, como acontece na Europa e na América Latina 13,27, mas principalmente de investidores institucionais. A estadunidense CVS ensaiou movimentos no mercado brasileiro, mas vendeu suas operações em 2019. Também não se observou movimentos de aquisição e fusão envolvendo redes de farmácias e planos de saúde, como protagonizou a própria CVS nos Estados Unidos 48.
O varejo farmacêutico brasileiro é fragmentado quando comparado a países como Estados Unidos, Reino Unido, Chile, México, Peru e Colômbia 13,23. A forte presença de redes locais e farmácias independentes 23,29 nas margens dos mercados mais concorridos, periferias e interiores indica que há grande heterogeneidade e espaço para aprofundamento da centralização de capital e diferenciação de grandes redes das farmácias de menor porte.
É também possível que a ampliação de escala, verticalização e fortalecimento do poder de mercado das redes pressione por disputas mais acirradas por margens, preços e descontos junto à indústria e distribuidores 30,49, o que pode ser potencializado pela financeirização. Todavia, há uma clara sinergia entre as práticas comerciais das farmácias, a segmentação da demanda e as ações promocionais da indústria junto a prescritores e ao público em geral, no sentido da maximização das vendas, ampliação do mercado e promoção de determinados padrões de consumo 21.
As transformações econômicas do varejo farmacêutico também reverberaram na ação política de suas entidades representativas. Nem sempre coesas e alinhadas, tiveram atuação relevante em diversos assuntos e instâncias do poder público. A década de 2000 marca a ascensão da Abrafarma, seja como apoiadora de políticas públicas - como os genéricos e o Programa Farmácia Popular do Brasil -, seja em reações contra regulações sanitárias, acionando o legislativo e o judiciário. A Anvisa avançou na restrição da venda de antibióticos e de substâncias controladas, mas foi barrada na tentativa de limitar a venda de medicamentos isentos de prescrição fora do balcão e de restringir itens de conveniência.
A aprovação da Lei nº 13.021/2014 tornou mais clara a obrigatoriedade do farmacêutico nas farmácias e ampliou o escopo de serviços, gerando convergências entre interesses da Abrafarma e conselhos profissionais farmacêuticos. Em 2017 a vacinação em farmácias foi autorizada pela Anvisa 50 e em 2020 a agência colocou em discussão a autorização de realização de exames laboratoriais 51. Também cresceram questionamentos sobre o uso e comercialização de dados de pacientes coletados pelas farmácias 52.
Entre as limitações do estudo destacamos que a caracterização introdutória do subsetor se apoiou muitas vezes em literatura cinza, já que são escassos os dados e estudos científicos sobre as farmácias no Brasil. O volume de dados patrimoniais e contábeis obtidos foi satisfatório para as maiores redes, porém houve dificuldades para as de menor porte, o que não reduz a relevância dos dados inéditos. Os resultados não devem ser extrapolados para além da seleção e sem considerar a heterogeneidade e singularidade das empresas, cuja compreensão pode ser aprofundada em estudos de caso futuros.
Na dimensão política, o foco nas instâncias superiores dos três poderes não permitiu analisar a ação local de empresas e entidades do varejo, possivelmente relevantes, e não foi possível analisar a influência direta das entidades nas iniciativas parlamentares. Por fim, pelo recorte do estudo não foi possível aprofundar a compreensão sobre as relações das farmácias com outros elementos relevantes da cadeia farmacêutica (produtores, distribuidores, prescritores etc.), assunto que merece maior atenção científica.
Considerações finais
A oferta de medicamentos e a inserção das farmácias nos sistemas de saúde refletem desigualdades socioeconômicas, assimetrias globais, escolhas políticas, modelos assistenciais e a construção histórica de cada país. No Brasil, apesar de avanços nas políticas de saúde e no acesso, os altos gastos privados, as falhas na provisão pública, a mercantilização e ausência de regulações mais estritas sobre as farmácias caminharam junto à expansão do mercado farmacêutico, da reprodução de desigualdades sociais e sanitárias no acesso e nos padrões de consumo de medicamentos.
Constatou-se que partir dos anos 2000 a forte expansão do varejo farmacêutico foi acompanhada pela financeirização dos padrões de acumulação das grandes redes de farmácias. A entrada de investidores e a inserção ativa das empresas na lógica financeira tornaram-se fundamentais para a concorrência pois ampliaram as possibilidades de capitalização e valorização patrimonial, potencializando o ritmo de expansão, ampliação de escala, verticalização, concentração e centralização de capital.
Os impactos da financeirização sobre as farmácias podem reverberar na conformação da oferta, preços, estratégias comerciais, padrões assistenciais e tecnológicos, temas que requerem maior atenção social e científica. A dominância financeira pode potencializar a mercantilização e a segmentação, acentuar disparidades existentes, fortalecer politicamente atores privados e dificultar o avanço de regulações sobre o setor.
Um olhar aprofundado sobre a provisão privada é fundamental para compreensão de todo o circuito de produção, circulação, prescrição e consumo de medicamentos. Sem considerações mais apropriadas sobre a dinâmica econômica e sanitária da comercialização de medicamentos e sobre a financeirização, corre-se o risco de superestimar a capacidade do SUS em orientar o desenvolvimento técnico e produtivo e as políticas farmacêuticas para as necessidades coletivas.
Agradecimentos
Agradecemos ao Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico pelo financiamento; à Ligia Bahia pela coordenação do projeto; a Christiane Gomes Mendes, Alessandra Cardoso Martins e Ialê Faleiros Braga pela contribuição na dimensão política; a Lucas Andrietta e Artur Monte Cardoso pela contribuição na dimensão contábil, pelos comentários e sugestões ao texto.
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Datas de Publicação
-
Publicação nesta coleção
26 Ago 2022 -
Data do Fascículo
2022
Histórico
-
Recebido
14 Abr 2021 -
Revisado
20 Ago 2021 -
Aceito
24 Set 2021