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TRADUZINDO A DIVERSIDADE LINGUÍSTICA E O CONTEXTO CULTURAL EM TERRA SONÂMBULA, DE MIA COUTO: ESTRATÉGIAS DE TRADUÇÃO E PARATEXTOS NA VERSÃO CHINESA

TRANSLATING LINGUISTIC DIVERSITY AND CULTURAL CONTEXT IN MIA COUTO’S SLEEPWALKING LAND: TRANSLATION STRATEGIES AND PARATEXTS IN THE CHINESE VERSION

Resumo

A diversidade linguística presente na obra Terra Sonâmbula de Mia Couto, resultante da inserção das palavras indígenas na escrita, desempenha um papel fundamental na construção do contexto cultural africano e na busca da identidade nacional moçambicana. Para traduzir a diversidade linguística e reproduzir o contexto africano do original, a tradutora chinesa, Min Xuefei, adotou uma abordagem híbrida para lidar com as palavras indígenas. Por um lado, algumas palavras indígenas são transliteradas para permitir uma desconexão dos leitores chineses do seu próprio contexto, possibilitando a sua imergência no contexto africano da obra. Por outro lado, diante das palavras indígenas que constituem símbolos culturais africanos conhecidos pelos leitores chineses, a tradutora traduz diretamente o seu significado semântico para manter a estabilidade desses símbolos. Ao invés de consagrar a estrangeirização como a única maneira de evidenciar a diversidade linguística da obra, este artigo tenta, através da análise da tradução chinesa por Min, explora a possibilidade de combinação dos métodos estrangeirizante e domesticador para criar uma tradução acessível sem ocultar as especialidades culturais. Além disso, uma vez que a tensão linguística presente no original é difícil de transmitir diretamente na tradução, a pesquisa examina e valoriza os elementos paratextuais da versão chinesa, em que a tradutora desmascara as perspectivas do autor sobre a diversidade de línguas, especialmente em um contexto pós-colonial.

Palavras-chave
diversidade linguística; línguas indígenas; estrangeirização e domesticação; paratexto

Abstract

The linguistic diversity in Mia Couto’s Sleepwalking Land, resulting from the insertion of indigenous words in the text, plays a fundamental role in constructing the African cultural context and seeking Mozambican national identity. To translate this linguistic diversity and reproduce the African context of the original, the Chinese translator, Min Xuefei, adopted a hybrid approach to deal with indigenous words. On one hand, some indigenous words are transliterated to disconnect Chinese readers from their own context, allowing them to immerse themselves in the African context of the work. On the other hand, when faced with indigenous words that constitute culturally recognizable symbols for Chinese readers, the translator directly translates their semantic meaning to preserve the stability of these symbols. Instead of solely relying on foreignization as the only way to highlight linguistic diversity in the work, this article explores the possibility of combining foreignization and domestication to create an accessible translation that does not obscure cultural nuances, through an analysis of Min’s Chinese translation. Furthermore, as the linguistic tension present in the original is challenging to convey directly in translation, the research examines and values the paratextual elements in the Chinese version, where the translator unveils the author’s perspectives on language diversity, especially in a post-colonial context.

Keywords
linguistic diversity; indigenous languages; foreignization and domestication; paratext

Introdução

Nascido em Beira em 1955, Mia Couto é amplamente reconhecido como um dos escritores contemporâneos mais preeminentes do seu país. Apesar de ser descendente de uma família de imigrantes, Mia Couto manifesta firmes convicções anticolonialistas. Durante os seus anos de graduação, ele aderiu à Frente de Libertação de Moçambique (FRELIMO), uma organização empenhada na libertação e emancipação do país e, consequentemente, se engajou ativamente na Guerra de Independência de Moçambique na função de jornalista.

Em 1983, deu ao prelo o seu primeiro livro de poesia, Raiz de Orvalho. Depois disso, as suas obras têm conquistado crescente destaque tanto no cenário nacional quanto internacional, fomentando a publicação das suas obras em várias nações. Em 1992, foi publicado o seu romance de estreia, Terra Sonâmbula. Vale sublinhar que, após a independência nacional, Mia Couto, em consonância com alguns dos seus escritores contemporâneos moçambicanos, se empenha na construção da identidade nacional por meio da sua produção literária. Em suas observações e reflexões sobre a realidade moçambicana, ele defende que, para consolidar a identidade nacional, o país não pode se alienar do seu passado. Portanto, a valorização das narrativas e tradições moçambicanas é um tema recorrente nas suas obras, a exemplo de Terra Sonâmbula.

É de destacar que, a recuperação das tradições da literatura oral e a inovação no estilo de linguagem literária constituem elementos pelos quais Couto edifica a moçambicanidade. No que concerne à inovação linguística, esta engloba não somente a recriação de palavras, mas também a fusão de língua portuguesa com as línguas indígenas moçambicanas. Entretanto, a complexidade dessa inovação linguística invariavelmente acarreta desafios na tarefa de tradução. Visto que o autor incorpora na sua escrita numerosas palavras provenientes das línguas indígenas moçambicanas, notadamente, a língua Bantu, o texto original assume uma natureza multilíngue. Sendo uma técnica com potencial de representar a realidade moçambicana, de encontrar a moçambicanidade e de preservar os símbolos do discurso pós-colonial, a sua importância exige indubitavelmente cautela na escolha de estratégias de tradução.

Ciente do valor da inovação linguística de Terra Sonâmbula, este artigo examinará a transmissão dessas técnicas literárias na tradução chinesa da Xuefei Min, com ênfase especial à tradução das palavras indígenas moçambicanas. No que se refere à perda inevitável na tradução, serão analisados os efeitos de compensação dos paratextos na versão chinesa e as razões pelas quais a tradutora adota esta estratégia para compensar a perda de sentido implícito contido na presença da diversidade linguística no texto original.

Revisão de literatura

Não é incomum que os pesquisadores interpretem a produção literária de Mia Couto com um ato tradutório em si. A complexidade envolvida em situação tradutória das obras de Mia Couto está intimamente ligada à presença de uma forma de “tradução interna” nessas obras, que implica a transposição de outra cultura para outra. Em um artigo que explora a possibilidade de utilizar o conceito de tradução para refletir sobre de algumas questões críticas nos estudos pós-coloniais, Elena Brugioni elucida que a linguagem da escrita de Mia Couto corresponde a “translated otherness” que “neutraliza a lógica de autenticidade linguística e cultural e que está subjacente à coexistência de diferentes línguas com conotações simbólicas e políticas que estão inscritas no texto literário escrito em português” (Brugioni, 2017Brugioni, Elena. “Escrevendo a partir de outras margens. Diferença, exceção e tradução no mundo de língua portuguesa: contrapontos entre representações literárias e paradigmas críticos”. Cadernos de Tradução, 37(1), p. 65-89, 2017. DOI: https://doi.org/10.5007/2175-7968.2017v37n1p65
https://doi.org/10.5007/2175-7968.2017v3...
, p. 78-79). Em um capítulo de Translation and World Literature, ao mencionar a escrita de Mia Couto, Paulo de Medeiros também enfatiza que a leitura desse escritor pressupõe sempre uma forma de tradução, mesmo quando se lê a obra no idioma original. O pesquisador salienta ainda que, para que a obra de Mia Couto seja efetivamente apreciada, nunca poderá ser domesticada e familiarizada através da tradução. Em um artigo publicado em 2010, Maria Nogueira até mesmo propôs uma interpretação da provável vinculação entre renovação linguística de Mia Couto e o conceito de tradução estrangeirizadora:

Mia Couto evoca também para a sua linguagem a ideia de tradução estrangeirizadora definida por Lawrence Venuti (1995)Venuti, Lawrence. The Translator’s Invisibility: A History of Translation. Londres: Routledge, 1995., ao incluir a utilização de formas linguísticas que se distanciam do português padrão em benefício do uso de um português que convive coma fala do povo moçambicano

(Nogueira, 2010Nogueira, Maria das Graças de Castro. “A tradução nas literaturas africanas de língua portuguesa: a posição de Mia Couto”. Cadernos CESPUC de Pesquisa Série Ensaios, 2(20), p. 40-47, 2010., p. 42).

Se é uma verdade que muitos pesquisadores têm reconhecido o valor metafórico da renovação linguística de Mia Couto, não é menos verdade que as pesquisas relacionadas à tradução das suas obras ainda carecem de um aprofundamento significativo. No que se refere às pesquisas mais relevantes ao nosso tema, vale destacar a análise de Bajanca (2009)Bajanca, Ana Isabel Bento Mendes. Mia Couto em inglês: inconvenções de tradução em A Varanda do Frangipani-Under the Frangipani. Dissertação (Mestrado em Estudos da Tradução) – Faculdade de Letras, Universidade de Coimbra, Coimbra, 2009. sobre a tradução de palavras de origem indígena realizada por David Brookshaw. Conforme a pesquisadora, o tradutor demonstra uma tendência de fornecer explicitações internas dessas palavras, visando facilitar a compreensão dos leitores anglófonos. A sua estratégia da tradução, de carácter domesticador, parece ter sido influenciada pelos interesses das editoras britânicas e pela cultura predominante anglo-americana. No entanto, considerando que as obras de Mia Couto só foram traduzidas para o chinês a partir de 2018 e que os estudos sobre a tradução das literaturas da língua portuguesa na China ainda se encontram em uma fase inicial, as lacunas de pesquisa sobre a tradução chinesa das obras de Mia Couto nos conduzem a nossa análise da tradução chinesa de Terra Sonâmbula.

Tendo em conta as pesquisas anteriores, será pertinente inferirmos que a tradução chinesa das obras de Mia Couto (e as traduções das outras línguas) pode estar envolvida em uma relação complexa entre estrangeirização e domesticação em ato tradutório. Com efeito, esses dois métodos de tradução têm sido objeto de estudo desde os primórdios, e foi em uma conferência em 1813 que Schleiermacher propôs que havia apenas dois métodos de tradução: “ou bem o tradutor deixa o escritor o mais tranquilo possível e faz com que o leitor vá a seu encontro, ou bem deixa o mais tranquilo possível o leitor e faz com que o escritor vá a seu encontro” (Scheleiermacher, 2010Schleiermacher, Friedrich Daniel Ernest. “Sobre os diferentes métodos de tradução”. Tradução de Celso Braida. In: Heidermann, Werner. (Org.). Clássicos da Teoria da Tradução: Alemão-Português. Florianópolis: Núcleo de Pesquisas em Literatura e Tradução, 2010. p. 38-101., p. 57).

Com base na perspectiva de Scheleiermacher, em The Translator’ Invisibility: A history of translation, Lawrence Venuti interpreta o método de domesticação como “reduction of the foreign text to target-language cultural values, bringing the author back home”, enquanto o método de estrangeirização como “ethnodeviant pressure on those values to register the linguistic and cultural difference of the foreign text, sending the reader abroad” (Venuti, 1995Venuti, Lawrence. The Translator’s Invisibility: A History of Translation. Londres: Routledge, 1995., p. 20). Considerando o método de estrangeirização como uma forma de resistir à violência etnocêntrica da tradução, Venuti é um dos defensores dos atos tradutórios que mantêm a estranheza do texto original e da cultura de partida. Antoine Berman, por seu turno, valoriza a fidelidade à “letra” (lettre) do original e considerá-la como ética da tradução. Sendo um conceito concebido para lutar contra a hegemonia cultural de determinados países, não é incomum que tenha sido valorizada a estrangeirização de tradução. No entanto, não é incomum que alguns tradutores e pesquisadores considerem a estrangeirização como a única estratégia ideal de tradução, enquanto condenem a domesticação, o que não deixa de ser uma visão extrema e até uma construção de uma outra dicotomia semelhante à oposição de “tradução literal e tradução livre”. Tendo em conta a complexidade de cada ato tradutório, que é contribuída não apenas pelas diferenças entre a língua-fonte e a língua-alvo, mas também pelo contexto da atividade tradutória, é raramente viável adotar método de tradução puramente estrangeirizante ou domesticador. Sendo assim, ao invés de analisar a tradução chinesa de Terra Sonâmbula em termos de uma oposição binária entre os dois métodos supracitados, será mais produtivo examinar as estratégias aproveitadas pela tradutora chinesa que buscam pelo equilíbrio entre a estrangeirização e a domesticação, demonstrando como a combinação dos dois métodos pode resultar em um texto acessível sem ocultar as especialidades culturais do original.

Outrossim, o conceito de paratexto definido por Genette também contribuirá para uma compreensão das soluções adotadas pela tradutora ao enfrentar as limitações de reprodução do hibridismo linguístico. No artigo “The Proustian Paratexte”, Gérard Genette e Amy McIntosh oferecem um esclarecimento desse conceito.

By the word “paratext”, I mean all of the marginal or supplementary data around the text. It comprises what one could call various thresholds: authorial and editorial [...]; media related [...] and private [...], as well as those related to the material means of production and reception, such as groupings, segments, etc. Less a well-defined category than a flexible space, without exterior boundaries or precise and consistent interiors, the paratext consists, as this ambiguous prefix suggest, of all those things which we are never certain belong to the text of a work but which contribute to present-or to “presentify”- the text by making it into a book

(Genette & McIntosh, 1988Genette, Gérard & McIntosh, Amy G. “The Proustian Paratexte”. SubStance, 17(2), p. 63-77, 1988. DOI: https://doi.org/10.2307/3685140
https://doi.org/10.2307/3685140...
, p. 63).

É verdade que Genette focaliza a função de paratexto na literatura em geral, considerando que o paratexto possui “caraterísticas espacial, temporal, substancial, pragmática e funcional” (Genette, 1997Genette, Gérard. Paratexts: Thresholds of Interpretation. Tradução de Jane E. Lewin. Cambridge: Cambridge University Press, 1997., p. 4), que podem exercer influência profunda sobre os leitores. No entanto, o paratexto tem-se tornado um objeto de estudo na área dos estudos de tradução, especialmente após a sua “viragem cultural”. Não é raro que os pesquisadores estejam atentos às implicações culturais e ao poder ideológico, político e comercial do paratexto. Teóricos da tradução pós-colonial e feminista, em particular, julgam o paratexto como um meio crucial para transmitir os pensamentos políticos e culturais dos escritores e tradutores.

Ao estender o conceito de paratexto à tradução, em Text, Extratext, Metatext and Paratext in Translation, Pellatt (2014)Pellatt, Valerie. (Org.). Text, Extratext, Metatext and Paratext in Translation. Cambridge: Cambridge Scholar Publishing, 2014. propõe que a discussão sobre os paratextos em tradução requer respostas a duas questões principais: quais são as funções e efeitos do paratexto de texto original e, em que medida essas funções e efeitos são necessários, retidos e de relevância positiva na tradução. É importante notar que os paratextos nos textos traduzidos não se limitam aos elementos anexados aos textos originais. Eles também podem incluir novos elementos paratextuais concebidos e adicionados pelos tradutores e editores, como prefácios ou posfácios de tradutores, a maneira como o nome do tradutor é apresentada na publicação, a imagem da capa, entre outros. Mesmo não sendo parte de texto-fonte, esses elementos também possuem o potencial de explicar o texto, de acrescentar informações de referência, e de moldar a recepção do texto estrangeiro pelos leitores. É justamente a partir dessa consciência das funções dos paratextos que realizarei também uma análise de alguns elementos paratextuais na tradução chinesa de Terra Sonâmbula, descobrindo, desse modo, como a valorização da diversidade linguística de Mia Couto é apresentada ao público leitor chinês por meio das iniciativas da tradutora.

Tradução de palavras indígenas: um equilíbrio entre estrangeirização e domesticação

De acordo com as estatísticas, a língua portuguesa serve como segunda língua para pelo menos 40% da população moçambicana. No entanto, mesmo reconhecendo a importância do português como uma língua de comunicação, Mia Couto está ciente de que essa língua está longe de ser capaz de traduzir completamente a realidade africana. É justamente a necessidade de demonstrar melhor a realidade moçambicana que o levou a importar palavras indígenas para sua escrita literária. Através das imagens evocadas por esses elementos lexicais, os leitores do texto-fonte conseguem imergir efetivamente na realidade construída pelo escritor. Contudo, um pré-requisito para que leitores não moçambicanos possam se envolver nessa realidade africana é que eles se desvinculam de seus próprios contextos e, essa desvinculação depende normalmente de um sentimento de estranhamento. Conforme a definição de Oxford Concise Dictionary of Literary Terms, “estranhamento” se refere ao “efeito distintivo alcançado pelas obras literárias ao perturbar a nossa percepção habitual do mundo, permitindo-nos ‘ver’ as coisas de novo” (Baldick, 1996Baldick, Chris. Oxford Concise Dictionary of Literary Terms. Oxford: Oxford University Press, 1996., p. 83). Portanto, é razoável supor que uma das tarefas essenciais dos tradutores seja recriar o sentimento de estranhamento resultante da inserção das palavras indígenas, a fim de envolver os leitores no contexto moçambicano.

Na tradução chinesa de Terra Sonâmbula, merece a nossa atenção uma tentativa de caráter estrangeirizante — a estratégia de transliteração as palavras indígenas. Acredita-se que a transliteração é uma forma de tradução alicerçada na fonética da língua-fonte. Com base na pronúncia da língua do original, os tradutores chineses que adotam a estratégia de transliteração normalmente buscam caracteres chineses foneticamente semelhantes para substituir determinadas palavras da língua-fonte. Esses caracteres chineses juntados muitas vezes não correspondem a nenhuma palavra chinesa com significado semântico. De modo geral, essa estratégia é utilizada para traduzir substantivos próprios, como nomes de pessoas e de lugares etc. Para destacar as diferenças entre as palavras indígenas e as palavras do português padrão, a tradutora chinesa optou pela transliteração de algumas das primeiras, recriando, com sucesso, o efeito de estranhamento. Por exemplo, ao traduzir um trecho em que o protagonista Kindzu deixou a aldeia de barco e encontrou o fantasma na lenda, a tradutora seguiu a estratégia de transliteração no caso da palavra “psipocos” (uma palavra de língua bantu):

Suas formas não figuravam um desenho de descrever, semelhando um maufeitor vindo dos infernos. Sempre eu só ouvira falar deles, os psipocos, fantasmas que se contentam com nossos sofrimentos. Ali estava um deles, inteiro de sombra e fumo

(Couto, 2009Couto, Mia. Terra Sonâmbula. Lisboa: Editorial Caminho, 2009., p. 59).

他的形象不可描述, 仿佛是罪蘗深重之人, 从地狱而来。他是希波骨, 以我们的痛苦为乐的鬼魂。过去, 我只是听人提到过, 现在, 有一只就站在那里, 黑雾弥 漫, 烟雾缭绕

(Couto, 2018Couto, Mia. Terra Sonâmbula. Tradução de Min Xuefei. Pequim: CITIC Press Group, 2018., p. 45).

Enquanto David Brookshaw optou por transmitir diretamente a palavra “psipoco” em sua tradução inglesa, sem fazer alterações, Min Xuefei, na tradução chinesa de Terra Sonâmbula, adotou uma estratégia que sublinha a diferença entre as palavras indígenas e palavras portuguesas, ou seja, a transliteração. Nesse trecho, o “psipoco”, um fantasma lendário moçambicano, aparece após a saída de Kindzu da sua aldeia, ou seja, após o seu afastamento do passado e das tradições. Tendo em conta as conotações simbólicas, em vez de traduzir o significado semântico de “psipoco” (fantasma) de acordo com o glossário fornecido pelo escritor no final da obra original, Min optou por transliterar “psipoco” em chiês, mantendo e valorizando, portanto, a cultura tradicional e a visão de mundo única que a palavra “psipoco” carrega consigo.

Crê-se que a punição imposta por “psipoco” seja justamente uma punição para Kindzu, o jovem que traiu as suas tradições. Se “psipoco” fosse traduzido como “” (fantasma) em chinês, não apenas a diferença entre as línguas, mas também as culturas e tradições moçambicanas poderiam ser obscurecidas, o que impediria que os leitores se envolvessem na realidade cultural da obra original. Ao transliterar “psipoco” como “” em chinês, a tradutora conseguiu uma desconexão de “psipoco” em relação à imagem de “fantasma” no contexto chinês. Sublinha-se ainda que o carácter chinês “” em “” significa “osso”, que possibilita a criação de uma sensação de susto. Sendo assim, a transliteração das palavras indígenas moçambicanas produz o efeito de estranhamento e propicia a formação de um contexto africano na versão chinesa, permitindo aos leitores imergir no universo cultural em que essas palavras possuem valores únicos.

A consciência da tradutora sobre a importância de relevar as diferenças culturais e de criar o contexto moçambicano também é evidente na tradução chinesa da palavra “tchóti”. Depois de Kindzu deixar Matimati, ele encontra uma tempestade no mar e, é justamente nesse momento que “caiu[…] um tchóti, um desses anões que descem dos céus” (Couto, 2009Couto, Mia. Terra Sonâmbula. Lisboa: Editorial Caminho, 2009., p. 85). Nesse trecho, assim como a tradução de “psipoco”, a tradução de “tichóti” é “” (transliteração de “tichóti”),mas não “” (anão), o que implica a semelhança fonética dessa palavra com a palavra indígena e o surgimento do efeito de estranhamento. Aproveitando essa estratégia de caráter estrangeirizante, a tradutora lembra ao leitor público chinês a cultura de origem da obra e, simultaneamente, o fato de estar lendo uma tradução.

No entanto, tendo em consideração o número de palavras indígenas transliteradas, é importante apontar que essa estratégia não é predominante na tradução chinesa de Terra Sonâmbula. Em seu glossário, Mia Couto lista 47 palavras provenientes das línguas indígenas, mas apenas cinco delas passam por transliteração na tradução chinesa, incluindo “Mantakassa”, “Maquela”, “Makwa”, “Sura” e “Xipoco”. Ao decidir as palavras a serem traduzidas através da estratégia de transliteração, a tradutora demonstra a sua prudência. As palavras transliteradas são geralmente substantivos próprios, cujos significados são explicados pelo próprio autor no texto original. Por exemplo, no parágrafo em que a palavra “sura” aparece, o escritor oferece uma explicação para essa palavra.

É digno de nota que, além de estratégia de transliteração, para distanciar os leitores chineses do seu próprio contexto cultural, a tradutora também optou por traduzir algumas palavras indígenas para palavras que são menos conhecidas ou até inexistente na língua chinesa. Em outras palavras, ela cria algumas palavras chinesas novas para designar essas palavras indígenas.

A velha se ergueu e sacudiu a capulana. Passou o pano pelos ombros do miúdo e lhe disse: — Vem, vamos para nossa casa

(Couto, 2009Couto, Mia. Terra Sonâmbula. Lisboa: Editorial Caminho, 2009., p. 240).

老妇人站了起来, 抖了抖罩袍。 她将孩子揽入罩袍之中, 对他说: “走吧, 我们回家!”

(Couto, 2018Couto, Mia. Terra Sonâmbula. Tradução de Min Xuefei. Pequim: CITIC Press Group, 2018., p. 198).

Nessa parte, a palavra “capulana” refere-se ao avental, um vestuário de caraterísticas locais usado pelas mulheres moçambicanas à volta da cintura. Contudo, em vez de simplesmente adotar a transliteração da palavra “capulana” (que poderia ser “卡普兰纳” em chinês) ou simplesmente usar uma palavra mais comum como “围裙” (um dos possíveis equivalentes em chinês), Min traduziu essa palavra como “罩袍”. Com efeito, a transliteração seria a estratégia mais ousada para lembrar o leitor da origem estrangeira do texto, mas dificultaria também a compreensão dos leitores, pois o autor não oferece explicação no texto original. Embora a tradutora pudesse acrescentar notas de rodapé para esclarecer o significado dessas palavras, ela optou por não o fazer para não interromper a leitura. Entre os métodos puramente estrangeirizante e domesticador, Min escolheu a combinação desses dois, que busca permitir que os leitores chineses percebam a cultura de partida sem prejudicar a compreensão do texto. A tradutora chinesa cria, com efeito, uma palavra cujo significado pode ser inferido dos seus sinogramas, mas pouco familiar e até inexistente no vocabulário chinês. Quando os leitores deparam com a palavra “罩袍”, são capazes de perceber que se trata de algum tipo de vestuário. No entanto, como “罩袍” é um objeto inexistente no contexto chinês, surgirá daqui uma sensação de distanciamento, possibilitando, portanto, o acesso à realidade africana mais eficaz.

Tradução de palavras indígenas: estabilidade de símbolos culturais africanos

Quanto às maneiras como Mia Couto incorpora palavras indígenas nos seus textos, na maioria dos casos, essas palavras são inseridas no texto sem nenhuma explicação interna. Às vezes, o escritor utiliza palavras tanto do português padrão quanto das línguas indígenas para se referir a um mesmo objeto. Por exemplo, no excerto seguinte, Mia Couto utiliza tanto a palavra “hiena” quanto “quizumba” para se referir a esse animal.

Às vezes, enquanto seguia pelo escuro carregando a refeição do defunto, ouvia as hienas gargalhando. No desfrizar do medo me veio a suspeita: e se fossem as quizumbas a aproveitar das panelas? Ou se ele, o falecido, usasse a forma de bicho para se empançar? Uma noite, enquanto as hienas vozeavam eu vi um vulto saindo da cabana

(Couto, 2009Couto, Mia. Terra Sonâmbula. Lisboa: Editorial Caminho, 2009., p. 28).

Tanto na tradução inglesa como na tradução chinesa, as traduções de “hiena” e “quizumba” são mesmas, não reproduzindo a diferença presente no texto original.

Sometimes, while I was walking through the darkness carrying the dead man’s meal, I would hear the hyenas cackling. As my fears unfolded, I was suddenly struck by a doubt: supposing it was the hyenas availing themselves of the pots? Or supposing the deceased were using an animal form to fill his belly? One night, while the hyenas were cackling, I saw a figure leaving the hut (Couto, 2006Couto, Mia. Sleepwalking Land. Tradução de David Brookshaw. Londres: Profile Books, 2006., p. 14).

有时, 当我手捧这死者的晚餐走在黑暗里, 我会听到瓺狗的笑声。惊恐之下, 我不禁怀疑:是髨狗享用了锅中的美食? 还是他, 那死去的人, 化身为动物, 只为酒足饭饱? 一个晚上, 鬛狗在笑, 我看到一个身影从那栋房子里走出

(Couto, 2018Couto, Mia. Terra Sonâmbula. Tradução de Min Xuefei. Pequim: CITIC Press Group, 2018., p. 20).

Como os parágrafos acima demonstram, tanto Brookshaw quanto Min não mantêm a diferença entre “hiena” e “quizumba” para enfatizar a cultura de partida da obra. Isto se deve principalmente ao fato de que a hiena é considerada um animal de caraterísticas africanas e um dos símbolos culturais da África. Para os leitores anglófonos ou chineses, a dimensão cultural carregada pela palavra “quizumba” não requer necessariamente uma acentuação através de sua diferença em relação ao português padrão. As traduções em inglês “hyena” e em chinês “鬛狗” são capazes de evocar elementos de uma imagem da realidade africana. Se a palavra “quizuma” fosse transliterada ou traduzida em uma palavra desconhecida, sua ligação ao contexto africano poderia ser enfraquecida. Assim, é pertinente supor que, na tradução chinesa de Terra Sonâmbula, para melhor reconstruir o contexto africano, a tradutora não apenas reproduz as diferenças culturais destacadas pela presença dos elementos lexicais indígenas, mas também traduz diretamente o significado de certas palavras indígenas quando estas já constituem símbolos culturais africanos.

Considerando as estratégias tradutórias mencionadas acima e os efeitos resultantes, se é uma verdade que o caráter não convencional da escrita de Mia Couto requer que os tradutores traduzem as diferenças culturais do texto original, a tradução chinesa de Terra Sonâmbula demonstra que a estrangeirização não é a única opção viável para formar o contexto africano no texto de chegada. As estratégias estrangeirizantes e domesticadoras, ao invés de ser incompatíveis, podem ser combinadas de maneira a produzir um texto que não oculta a cultura de partida, sem cair em um exotismo vulgar marcado por leitura inacessível. Assim como afirma Torres, “ser ético para o tradutor é ser ético para com a cultura de origem e, ao mesmo tempo, para com a cultura de chegada” (Torres, 2021Torres, Marie-Hélène Catherine. “Tradução e ética: a problemática da retroconversão”. Cadernos da Tradução, 41(1), p. 174-184, 2021. DOI: https://doi.org/10.5007/2175-7968.2021.e84952
https://doi.org/10.5007/2175-7968.2021.e...
, p. 178).

Limitações para reproduzir o hibridismo linguístico

A inserção das palavras indígenas em Terra Sonâmbula não apenas evidencia a cultura moçambicana, mas também constitui um exercício de poder, visto que a língua em si pode ser ato político em estudo pós-colonial. No contexto do desenvolvimento da literatura pós-colonial africana, a tentativa de Mia Couto visa reconstruir a identidade nacional e está altamente ligada à política linguística da FRELIMO.

Após a independência, sob a liderança da FRELIMO, o país continuou a adotar o português como a língua oficial. Essa política linguística tem várias razões, incluindo o facto de que nenhuma língua indígena é falada pela maioria esmagadora da população e a ambição da FRELIMO de usar o português como um laço para unir todo o país. Essa ideia foi expressa em discursos de líderes políticos, como a então ministra de Educação e Cultura, que afirmou na abertura do 1º Seminário sobre o Ensino da Língua Portuguesa que a língua portuguesa “permite quebrar as barreiras criadas pelas línguas maternas” (Firmino, 2008Firmino, Gregório. “A situação do Português no contexto multilíngue de Moçambique”. Simpósio Mundial de Estudos da Língua Portuguesa, 1., 2008, São Paulo. Disponível em: https://simelp.fflch.usp.br/sites/simelp.fflch.usp.br/files/inline-files/06_26.pdf. Acesso em: 30 nov. 2023.
https://simelp.fflch.usp.br/sites/simelp...
, p. 9). Embora a promoção do ensino da língua portuguesa tenha como objetivo de enfraquecer o seu cunho colonial e de transformá-la em um apoio essencial da identidade nacional, essa promoção constitui uma ameaça para várias línguas indígenas moçambicanas. Para Mia Couto, essa realidade não deixa de ser problemática. Em uma entrevista, Couto (2003)Couto, Mia. “A Língua Portuguesa em Moçambique”. Ciberdúvidas da Língua Portuguesa. 09/05/2003. Disponível em: https://ciberduvidas.iscte-iul.pt/outros/antologia/a-lingua-portuguesa-em-mocambique/709. Acesso em: 1 out. 2023.
https://ciberduvidas.iscte-iul.pt/outros...
indica que esta apropriação da língua nacional põe em risco as mais de 30 línguas indígenas, provocando reflexões sobre os modos de garantir o convívio das línguas sem hegemonia.

Ciente da realidade linguística moçambicana, Mia Couto valoriza as línguas indígenas e a diversidade linguística. Desse modo, o hibridismo linguístico presente nas suas obras desempenha um papel crucial na sua tentativa de reconstruir a identidade moçambicana. Portanto, é necessário revelar nas traduções a diferença entre o português padrão e as línguas indígenas para que os leitores percebam o hibridismo linguístico presente em Terra Sonâmbula. No entanto, transmitir esse aspeto político de Terra Sonâmbula é uma tarefa complicada tanto na tradução em inglês quanto na tradução em chinês.

Na tradução inglesa de Terra Sonâmbula, David Brookshaw preserva, em certa medida, a diferença entre o português e as línguas indígenas, o que possibilita a reprodução do hibridismo linguístico do original. Ele mantém algumas palavras indígenas sem tradução, por exemplo, as palavras indígenas no trecho seguinte.

— Só o nganga lhe pode ajudar. Talvez ele sabe um lugar sossegadinho.

Sim, eu deveria consultar o adivinho. Só ele podia saber do tal recantinho, coisa de eu guardar meus sonhos. Contudo, eu nunca poderia lhe falar sobre os naparamas. Isso era competência dos feiticeiros do Norte

(Couto, 2009Couto, Mia. Terra Sonâmbula. Lisboa: Editorial Caminho, 2009., p. 42).

Nestes parágrafos, a inserção de palavras indígenas “nganga” e “naparama” pode ser considerada como uma prática de “superposição de línguas” proposta por Berman em A Tradução e a Letra ou o Albergue do Longínquo.

Numa obra em prosa — principalmente romanesca — as superposições de línguas são de duas espécies: dialetos coexistem com uma coiné, várias coinés coexistem [...]. Nestes dois casos, a superposição das línguas é ameaçada pela tradução. Esta relação de tensão e de integração existente no original entre o vernacular e a coiné, a língua subjacente e a língua de superfície etc., tende a apagar-se

(Berman, 2003Berman, Antoine. A tradução e a letra ou o albergue do longínquo. Tradução de Marie-Hélène Catherine Torres, Mauri Furlan & Andréia Guerini. Florianópolis: Copiart, 2012., p. 85).

Na tradução por Brookshaw, como as palavras das línguas indígenas são também escritas em alfabetos, é viável deixar completamente não traduzidas as palavras indígenas para revelar o hibridismo linguístico do texto original.

“Only the nganga can help you. Maybe he knows somewhere quiet.”

Yes, of course, I should consult the medicine man. Only he could know of some little corner, somewhere I could nurture my dreams. But I could never talk to him about the naparamas. Only the witch-doctors in the North possessed such competence

(Couto, 2006Couto, Mia. Sleepwalking Land. Tradução de David Brookshaw. Londres: Profile Books, 2006., p. 24-25).

Como os autores de The Empire Writes Back: Theory and Practice in Post-Colonial Literatures indicam, “no texto pós-coloinal, a ausência de tradução conta com um tipo particular de função interpretativa” e “a diferença cultural não é inerente ao texto, mas é inserida por tais estratégias” (Ashcroft, Griffiths & Tiffin, 2002Ashcroft, Bill; Griffiths, Gareth & Tiffin, Helen. The Empire Writes Back: Theory and Practice in Post-colonial Literatures. Londres: Routledge, 2002., p. 64). Ao adotar as palavras indígenas sem tradução, Mia Couto salienta o cruzamento de todas as línguas faladas na terra moçambicana. No entanto, quando esse hibridismo linguístico precisa de ser transmitido para outras línguas, como o inglês e o chinês, a complexidade linguística e cultural pode ser desafiadora de reproduzir completamente. A natureza hieroglífica dos caracteres chineses, por exemplo, torna difícil deixar as palavras indígenas sem tradução na versão chinesa. Em outras palavras, a discrepância entre os sistemas de escrita conduz inevitavelmente a algumas perdas na tradução chinesa. Na tradução inglesa por Brookshaw, embora a não-tradução das palavras “nganga” e “naparama” no texto inglês possibilite aos leitores anglófonos a perceção do hibridismo do original, mais precisamente, as diferenças entre as línguas indígenas e o português padrão, ainda há uma perda inevitável na capacidade de reproduzir completamente a tensão entre o português, o inglês e as línguas indígenas presente no original de Terra Sonâmbula, que é uma tensão altamente vinculada com a história do desenvolvimento do sistema de escrita das línguas indígenas africanas.

A sistematização da escrita das línguas indígenas começou a ser promovida após a chegada dos asiáticos (os Árabes e Persas) e dos europeus à terra africana. Visto que os comerciantes, missionários e funcionários não tinham conhecimento profundo sobre a fonética e a sintática das línguas indígenas, eles introduziram alfabetos árabe e latino para normalizar a escrita dessas línguas indígenas. Nesse processo, os missionários europeus que pretendiam converter os africanos desempenharam um papel proeminente, especialmente os missionários protestantes. Visto que algumas concordatas internacionais, nomeadamente a Conferência de Berlim (1884-1885), tinham garantido a liberdade religiosa nas colónias africanas, havia uma paixão entre os missionários protestantes pela educação dos colonizados. Na década de 1940, os missionários protestantes já se enraizaram em numerosas regiões de Moçambique. Com a introdução das letras que não fazem parte do alfabeto português, letras como “k” e “w”, esses missionários conseguiram certa influência cultural ao imporem um sistema de escrita diferente do da língua oficial da colónia. Sendo assim, a interferência deles no sistema de escrita das línguas indígenas tornou a realidade linguística moçambicana ainda mais intrincada. Como Rothwell indica:

A interferência do inglês é uma das matérias mais sensíveis para os falantes de português de todo o mundo e tem um significado muito especial quando se refere a Moçambique desde que a chamada ‘Corrida a África’ dividiu o continente africano entre os competitivos poderes europeus do século XIX

(Rothwell, 2015Rothwell, Phillip. Leituras de Mia Couto. Lisboa: Leya, 2015., p. 67-68).

A questão da tensão entre as línguas é de fato um elemento importante na obra de Mia Couto, incluindo em seu livro Terra Sonâmbula. O nome do protagonista, “Kindzu”, é um exemplo dessa tensão. Vindo do idioma indígena, o nome de “Kindzu” é um símbolo da sua identidade. Contudo, a presença da letra “k” em “Kindzu” revela a interferência dos britânicos e do alfabeto inglês, o que é evidente para os leitores da língua portuguesa, pois a letra “k” não pertence ao alfabeto português. Ao questionar a dominação do português padrão, Mia Couto desmascara também a natureza contraditória de construir a identidade nacional através de um sistema de escrita influenciado pelo alfabeto inglês. Entretanto, como os caracteres chineses são hieróglifos, é bastante desafiador reproduzir a tensão linguística no original e transmitir as suas implicações internas. Ainda por cima, dado que o contexto cultural e linguístico dos leitores chineses em potencial é distinto do contexto moçambicano, é-lhes difícil entender as reflexões do escritor sobre a condição multilíngue moçambicana. Quanto à tradução inglesa, mesmo que o nome “Kindzu” seja completamente preservado, os leitores anglófonos também não conseguem perceber o elemento do alfabeto inglês na escrita das línguas indígenas, pois a letra “k” pertence naturalmente ao alfabeto inglês. Sendo assim, é uma tarefa complexa desmascarar a tensão entre várias línguas tanto na tradução chinesa quanto na tradução inglesa.

Paratextos na tradução chinesa de Terra Sonâmbula

Como definido por Genette, o paratexto é “aquilo por meio de que um texto se torna livro e se propõe como tal a seus leitores, e de maneira mais geral ao público” (Genette, 2009Genette, Gérard. Paratextos editoriais. Tradução de Álvaro Faleiros. Cotia: Ateliê Editorial, 2009., p. 9). Em sua obra Paratexts: Thresholds of interpretation, Genette elenca diversas funções desempenhadas pelo paratexto, incluindo designação ou identificação, descrição da obra (conteúdo e género), valor conotativo e tentação. Dada a complexidade de reproduzir plenamente o hibridismo linguístico e a tensão entre várias línguas presentes em Terra Sonâmbula na tradução chinesa, Min oferece aos leitores chineses um paratexto informativo de grande relevância: a intervenção de Mia Couto na Conferência Internacional de Literatura WALTIC, realizada em Estocolmo e intitulada “Línguas que não sabemos que sabíamos”. Inserido como apêndice da versão chinesa da obra, esse paratexto constitui um meio de apresentar a visão do autor sobre a situação linguística em Moçambique.

Nessa intervenção, Mia Couto indica que muitas pessoas tendem a enfatizar a natureza instrumental das línguas, enquanto negligenciam a importância da diversidade linguística, o que contribui para o surgimento e desenvolvimento da hegemonia linguística. Na sua perspectiva, as línguas não se limitam apenas a servir como ferramentas de comunicação, mas também desempenham um papel fundamental na própria existência da humanidade. Neste discurso, além de apresentar a realidade linguística do país, Mia Couto menciona as dificuldades enfrentadas por uma equipa da ONU em suas conversas com a população local. Essas dificuldades evidenciam, de facto, as diferenças de modos de pensar escondidas detrás das diferenças linguísticas. Através da tradução desse discurso, a tradutora chinesa fornece informações essenciais para uma melhor compreensão, interpretação e decodificação da obra, ao mesmo tempo que dá voz ao próprio autor para enfatizar a importância da diversidade linguística em Terra Sonâmbula. No final dessa intervenção, Mia Couto cita a conexão entre o multilinguismo e os indivíduos civilizados proposta pelo sociólogo André Beteille. O autor destaca que, embora o multilinguismo em África seja considerado problemático no dia de hoje, pode representar “uma potencialidade para o futuro” (Couto, 2011Couto, Mia. E se Obama fosse africano? São Paulo: Companhia das Letras, 2011., p. 16).

O que advogo é um homem plural, munido de um idioma plural. Ao lado de uma língua que nos faça ser mundo, deve coexistir uma outra que nos faça sair do mundo. De um lado, um idioma que nos crie raiz e lugar. Do outro, um idioma que nos faça ser asa e viagem

(Couto, 2011Couto, Mia. E se Obama fosse africano? São Paulo: Companhia das Letras, 2011., p. 16).

Além da tradução da intervenção, que torna nítida a valorização da diversidade linguística de Mia Couto, Min também salienta em seu posfácio o contexto de criação de Terra Sonâmbula, bem como as opiniões do autor sobre as línguas indígenas. A tradutora chinesa menciona que, enfrentando as políticas da FRELIMO, Mia Couto declara que “é preciso respeitar as tradições, as línguas indígenas e a história, que são raízes sem meios de desarraigar” (Couto, 2018Couto, Mia. Terra Sonâmbula. Tradução de Min Xuefei. Pequim: CITIC Press Group, 2018., p. 261-262). Através do posfácio da tradutora, destaca-se a conexão forte entre as línguas indígenas, as tradições e a identidade nacional. Portanto, mesmo que a tradução chinesa de Terra Sonâmbula não possa demonstrar completamente o hibridismo linguístico do original, através dos paratextos, a tradutora transmite aos leitores o valor da diversidade linguística enfatizado pelo autor em sua obra.

Essa estratégia de utilizar paratextos não apenas compensa as perdas da tradução, mas também está alinhada com o nível atual de conhecimento dos leitores chineses sobre a literatura africana. A literatura africana começou a receber atenção dos leitores chineses nas décadas de 1920s e 1930s, principalmente com obras relacionadas a histórias de revolução e anticolonialismo. Após a Segunda Guerra Mundial, houve um aumento da introdução, tradução e publicação de obras literárias africanas na China, nomeadamente as dos autores laureados com o Prémio Nobel, como Wole Soyinka, Naguib Mahfouz e John Maxwell Coetzee.

No entanto, a quantidade da literatura africana traduzida e publicada na China tem permanecido relativamente baixa em comparação com outras regiões do mundo. De acordo com as estatísticas, mais de 40,000 títulos de obras literárias estrangeiras foram publicados entre 1949 e 2010, mas a quota da literatura africana é bastante baixa. Na primeira década do século XXI, apenas 59 títulos de oito países africanos foram publicados na China. Os países de origem predominantes das obras traduzidas continuam a ser os europeus e norte-americano, bem como os países da Ásia Oriental. De acordo com a Teoria do Polissistema de Itamar Even-Zohar, a literatura africana ocupa uma posição periférica.

No artigo “Síntese sobre o estudo da literatura africana da língua portuguesa na Universidade de Pequim”, Min observa que “há uma lacuna no estudo das literaturas africanas da língua portuguesa e poucas obras de autores africanos da língua portuguesa foram traduzidas sistematicamente na China” (Min, 2018Min, Xuefei. “北京大学葡语非洲文学研究简况.” 中国非洲研究评论·非洲文学专辑(2016)总第六辑 , 2018., p. 20). Embora Terra Sonâmbula tenha sido publicada após Confissão da Leoa e Jesualém, as três obras fazem parte da primeira onda de introdução das obras de Mia Couto na China. Portanto, ao traduzir a obra, a tradutora utilizou os paratextos para estabelecer uma ponte entre os leitores e o autor. Quer através da voz de Mia Couto, quer através dos esclarecimentos da tradutora, os paratextos que acompanham e complementam a tradução chinesa de Terra Sonâmbula quebram alguns estereótipos sobre a literatura africana, proporcionando aos leitores chineses uma nova perspectiva e consciencialização sobre a busca da identidade cultural do povo moçambicano.

Considerações finais

Concluindo, no processo tradutório das palavras indígenas moçambicanas, a tradutora Min adota principalmente duas estratégias para reconstruir o contexto africano na tradução chinesa: a primeira consiste em evidenciar a cultura de origem através da transliteração das palavras indígenas ou pela criação das palavras desconhecidas no contexto chinês para designar as palavras indígenas, permitindo assim uma desconexão em relação ao contexto chinês e uma imersão no contexto africano; a segunda envolve a tradução direta do significado semântico das palavras indígenas quando estas já constituem símbolos culturais africanos, a fim de manter a estabilidade desses símbolos e facilitar uma compreensão natural por parte dos leitores em relação à realidade construída pelo texto original. Ambas as estratégias podem ser consideradas tentativas da tradutora chinesa de superar a dicotomia entre estrangeirização e domesticação.

A meu ver, em vez de simplesmente consagrar e idealizar o método de estrangeirização nas práticas tradutórios, especialmente quando se trata de traduções de obras não convencionais como as de Mia Couto, é mais imprescindível ponderar a singularidade de cada situação tradutória, uma vez que a forma de transmitir as conotações simbólicas do original pode ser o equilíbrio entre esses dois métodos da tradução ou até aquilo que transcende completamente esse arcabouço teórico.

Além disso, tendo em conta a realidade linguística intrincada de Moçambique, um elemento sublinhado na obra de Mia Couto, será pertinente notar que, embora a função do vocabulário indígena na criação e construção do contexto africano possa ser parcialmente reproduzida no texto-alvo, é desafiador revelar nas traduções o entrelaçamento das influências do português, das línguas indígenas e do inglês. Diante da possível invisibilidade da visão pós-colonial do escritor, a tradução da intervenção de Mia Couto e a elaboração do posfácio pela tradutora constituem esforços inequívocos para compensar as perdas na tradução chinesa. Acredita-se que os paratextos na tradução chinesa de Terra Sonâmbula atuam como uma ponte entre os leitores e o autor, contribuindo para desafiar e quebrar os estereótipos em relação à literatura africana. Se é uma verdade que a fase inicial da tradução e introdução das obras literárias africanas da língua portuguesa implica dificuldades adicionais para a recepção dessas obras, não é menos verdade que se abrem possibilidades para tentativas criativas por parte dos tradutores conscientes da responsabilidade de ser ético(a) tanto aos autores quanto aos leitores.

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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    17 Maio 2024
  • Data do Fascículo
    2023

Histórico

  • Recebido
    05 Nov 2023
  • Aceito
    24 Nov 2023
  • Publicado
    Dez 2023
Universidade Federal de Santa Catarina Campus da Universidade Federal de Santa Catarina/Centro de Comunicação e Expressão/Prédio B/Sala 301 - Florianópolis - SC - Brazil
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