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TRADUÇÃO LITERÁRIA COMO CONSTRUÇÃO DA IDENTIDADE CULTURAL: A TRADUÇÃO DA LITERATURA BRASILEIRA NA CHINA ENTRE 1919 E 1966

LITERARY TRANSLATION AS THE CONSTRUCTION OF CULTURAL IDENTITY: THE TRANSLATION OF BRAZILIAN LITERATURE IN CHINA BETWEEN 1919 AND 1966

Resumo

Geralmente se supõe que a tradução da literatura brasileira nos primeiros anos da República Popular da China (1949-1966) foi principalmente impulsionada por forças políticas, devido às mudanças ideológicas oficiais e nas reformas do sistema editorial naquela época. No entanto, este argumento não leva em conta a continuidade da tradução literária antes e depois de 1949, nem considera o esforço dos tradutores naquela época em escolherem os melhores representantes da literatura brasileira e conservarem ao máximo a qualidade das obras originais. Ao analisar a tradução da literatura brasileira na China de 1919 a 1966 como um todo, com revisão especial do caso de Jorge Amado, este artigo tenta demonstrar que a publicação da literatura brasileira após 1949 seguiu o mesmo caminho da tradução da literatura das nações desfavorecidas na primeira metade do Século XX, e que tinha como objetivo de quebrar a hegemonia cultural dos países ocidentais, a fim de construir uma nova nação e uma nova literatura.

Palavras-chave
Tradução e recepção; Literatura Brasileira; China; Identidade cultural

Abstract

It is generally assumed that the translation of Brazilian literature in the early years of the People’s Republic of China (1949-1966) was mainly driven by political forces, given the change of official ideology and the reforms of the publishing system at that time. However, this argument does not take into account the continuity of literary translation before and after 1949, nor does it consider the efforts of translators of the time to choose the best representatives of Brazilian literature and to preserve as much as possible the quality of the original works. By analyzing the translation of Brazilian literature in China from 1919 to 1966 as a whole, with special emphasis on the case of Jorge Amado, this article attempts to demonstrate that the publication of Brazilian literature after 1949 followed the same path as the translation of the literature of disadvantaged nations in the first half of the 20th Century, and that it aimed to challenge the cultural hegemony of Western countries in order to build a new nation and a new literature.

Keywords
Translation and reception; Brazilian literature; China; Cultural identity

Introdução

Quando se fala da tradução da literatura latino-americana na China, ou mais especificamente, da literatura brasileira, os anos entre 1949 e 1966 sempre foram o período que recebeu mais atenção dos pesquisadores. Por um lado, este foi o período do começo da tradução da literatura brasileira na China em larga escala, e a interação entre escritores chineses e brasileiros estava mais ativa do que nunca; por outro lado, essa tradução é geralmente atribuída a fatores políticos e ideológicos, ao passo que o valor da própria literatura é raramente abordado.

Há várias razões para isso: primeiro, após a fundação da República Popular da China em 1949, ocorreram mudanças tanto nas tendências ideológicas oficiais quanto nos mecanismos editoriais, o que tinha grande impacto na tradução e introdução da literatura estrangeira na China. Levando isso em consideração, alguns pesquisadores chegaram a afirmar que “a tradução literária na China durante este período dependia principalmente às relações políticas” (Zhu, 2009Zhu, Donglin. História Comparada da Literatura Chinesa e Literatura Estrangeira II (中外文学比较史1949-2000(下卷). Nanjing: Editora da Educação de Jiangsu, 2009., p. 174, minha tradução) e que o processo “colocou ênfase ilimitada na leitura e interpretação politizada de textos literários” (Wu, 2011Wu, Yun. “Leitura e Interpretação Politizada – Poesia Inglesa e Norte-Americana na China nos “Dezasete Anos” (1949-1966) ((1949-1966)(政治化的阅读与阐释——‘十七年’英美诗歌在中国)”. Tradução da China (中国翻译), 4, p. 25-30, 2011., p. 30, minha tradução). Ademais, muitas pessoas na China não conheciam as literaturas do Terceiro Mundo que foram abundantemente traduzidas durante este período, e julgavam as obras como carentes de valor literário simplesmente pela nacionalidade dos escritores. Um bom exemplo é quando Fang Chang’an (2003, p. 110)Chang’an, Fang. “As Características da Modernidade da Tradução da Literatura Estrangeira nos 17 Anos após a Fundação da República Popular da China (建国后17年译介外国文学的现代性特征)”. Estudos Acadêmicos (学术研究), 1, p. 109-113, 2003. declarou que “a maioria dos países da Ásia, África e América Latina (exceto a Índia) eram retardatários em termos literários, com poucas obras de destaque desde os tempos antigos até o presente” (minha tradução), a fim de argumentar que o principal objetivo de traduzir tais obras era puramente político. Por último, como o escritor brasileiro mais traduzido na China durante este período era Jorge Amado, militante comunista afamado e vencedor do Prêmio Stalin da Paz em 1952, é natural que muita gente associe o sucesso de Amado na China com sua posição comunista, assim como Zhang (2013, p. 23)Zhang, Jianbo. “A recepção das obras de Jorge Amado na China”. Cadernos de Literatura em Tradução, 14, p. 23-48, 2013. DOI: https://doi.org/10.11606/issn.2359-5388.i14p23-48
https://doi.org/10.11606/issn.2359-5388....
declarou que “a tradução das obras de Jorge Amado na China não foi determinada primeiramente por uma ótica literária, mas sim política e ideológica”.

Entretanto, uma leitura cuidadosa dos escritores brasileiros traduzidos na China nesta época torna difícil acreditar que os tradutores foram motivados essencialmente por intenções doutrinárias ou partidárias. De fato, apesar das mudanças políticas ocorridas na China em 1949, os intelectuais responsáveis pela promoção da tradução da literatura latino-americana no início da República Popular da China já haviam feito o mesmo trabalho durante o período da República da China (1912-1949), que era governada pelo Kuomintang (Partido Nacionalista). Além do objetivo político de “salvar o país e tentar sobreviver” após uma série de invasões estrangeiras e tratados injustos, a tradução antes e depois de 1949 também visava “iluminar” a nação para libertá-la o máximo possível da opressão imperialista, repercutindo assim o ideal do Movimento da Nova Cultura de 1915 e do Movimento de Quatro de Maio de 1919. Porém, a ligação cultural entre os dois períodos políticos tem sido ignorada há muito tempo pela comunidade acadêmica na China, bem como Cheng Wei (2020, p. 7, minha tradução)Wei, Cheng. “A Hora de Ilustração do ‘Sujeito de Estudo’ (研究主体的‘启蒙时刻’)”. Novas Perspectivas da Literatura Mundial (外国文学动态研究), 5, p. 5-18, 2020. aponta recentemente:

Os trabalhos sobre a história da disciplina e do estudo da literatura estrangeira assumem muitas vezes um ponto inicial no tempo: outubro de 1949. Mas o ritmo da história acadêmica não está necessariamente sincronizado com a história política [...]. Outubro de 1949 podia mudar alguns aspectos administrativos ou gerenciais visíveis da disciplina da literatura estrangeira (“o modelo soviético”), mas talvez não tocasse profundamente a velha genealogia intelectual dela [...] Em primeiro lugar, há uma continuidade de pessoal, no sentido de que os estudiosos da literatura estrangeira anteriores a outubro de 1949 continuaram a ser a força formadora ou líder da disciplina após essa data; em segundo lugar, há uma transmissão da genealogia do conhecimento, no sentido de que a tradição intelectual da disciplina da literatura estrangeira formada antes de outubro de 1949 continuou a ser a tradição intelectual no tempo posterior.

Na história da tradução da literatura brasileira na China a continuidade também é visível. Portanto, a fim de repensar o que a tradução da literatura brasileira significava para a recém-criada República Popular da China, o presente trabalho examinará como um todo a história da tradução entre o Movimento de Quatro de Maio de 1919 e a Revolução Cultural em 1966. Através de esclarecer quem eram os tradutores e os traduzidos, por que e como se faziam as traduções, propõe que, ao invés de servir à ideologia de um partido político, a tradução da literatura brasileira na China nas quatro décadas foi antes de tudo uma forma de construir uma identidade cultural e literária, pois uma república recém-nascida precisava dos exemplos e das experiências históricas dos outros países que viviam ou tinham vivido na situação semelhante.

A literatura brasileira na história da tradução das “nações desfavorecidas”1 1 A noção de “nações desfavorecidas” (ou “nações oprimidas”, “nações fracas”) surgiu na China no início do século XX, em contraste aos “poderes ocidentais”, “países imperialistas”. Para os intelectuais chineses naquela época, as nações desfavorecidas se referem principalmente aos países colonizados ou semi-colonizados.

A tradução e introdução da literatura brasileira na China começaram nos anos 1920 e faziam parte da tradução da literatura das “nações desfavorecidas”. No final da dinastia Qing (1636-1912), devido à invasão das potências ocidentais e da ascensão do pensamento nacionalista na China moderna, os literatos chineses sentiram a humilhação e o dilema de um país abatido, por isso, a tradução literária foi vista como uma maneira poderosa de construir e fortalecer a nação. Os irmãos Lu Xun2 2 Lu Xun (鲁迅), peseudônimo de Zhou Shuren, é escritor e tradutor importante na China e um dos fundadores da literatura moderna chinesa. (1881-1936) e Zhou Zuoren3 3 Zhou Zuoren (周作人), irmão mais novo de Lu Xun, é escritor e tradutor chinês. (1886-1967) foram os pioneiros a promoverem e traduzirem conscientemente a literatura das nações desfavorecidas (Song, 2007Song, Binghui. A Literatura das Nações Desfavorecidas na China (弱势民族文学在中国). Nanjing: Editora da Universidade de Nanjing, 2007., p. 34-35), focalizando particularmente na raiva e na luta dos povos sofridos. Em Coletânea de Contos Estrangeiros (《域外小说集》,1909), organizada e traduzida pelos dois escritores acima mencionados, incluem-se as obras do polonês Henryk Senkievicz (1846-1916), do finlandês Juhani Aho (1861-1921) e da bósnia Milena Mrazović (1863-1927). Lu Xun e Zhou Zuoren também exerceram influências à Sociedade de Estudos Literários (文学研究社), o grupo mais ativo na tradução da literatura das nações desfavorecidas naquela época.

A Sociedade de Estudos Literários foi fundada por doze escritores de influência, incluindo Zhou Zuoren, Zheng Zhenduo4 4 Zheng Zhenduo (郑振铎), escritor chinês e historiador da literatura chinesa. (1898-1958) e Shen Yanbing5 5 Shen Yanbing (沈雁冰), mais conhecido pelo peseodônimo Mao Dun (茅盾), é escritor e crítico literário chinês e um dos pioneiros do Movimento de Quatro de Maio. (1896-1981, mais conhecido pelo pseudônimo Mao Dun), em 4 de janeiro de 19216 6 No mesmo ano, Mao Dun publicou o famoso artigo “Sobre os métodos da tradução de livros literários”, promovendo a teorização da tradução literária na China (Mao Dun, 2019). . No estatuto é claramente previsto que o objetivo da Sociedade é “estudar e introduzir a literatura mundial, organizar a literatura chinesa antiga e criar nova literatura” (“Estatuto da Sociedade de Estudos Literários”, 1921, p. 1), ou seja, considerar a tradução da literatura estrangeira fundametal para a criação da nova literatura. A mais importante publicação da Sociedade de Estudos Literários, a Prosa Mensal (《小说月报》,da qual Mao Dun assumiu redator-chefe a partir de 1921), foi também o núcleo da tradução da literatura das nações desfavorecidas. Na edição n. 2 de 1921, Mao Dun publicou uma introdução ao livro Cannã de Graça Aranha. No final do mesmo ano, a Prosa Mensal lançou um dossiê especial da “Literatura das nações danadas”. No início da introdução desse dossiê, explicou-se por que a literatura dos povos esmagados deveria ser estudada.

Todos os povos da Terra são igualmente filhos da Mãe Terra, nenhum deles deve ser particularmente forte, nenhum deles merece se chamar de “filho mimado”, portanto, os frutos espirituais de todos os povos devem ser tratados como tesouros, como tesouros comuns para toda a humanidade, sem esquecer que no mundo da arte não existe inferioridade ou superioridade!

O clamor por justiça de uma nação danada é verdadeiramente justo. A humanidade que foi espremida na moenda é a humanidade verdadeira e preciosa, sem mancha dos poderosos. As almas dos danificados que se deslocam para baixo nos comovem, porque nós mesmos estamos tristes, somos também vítimas de idéias e sistemas tradicionais injustas; as almas daqueles danificados que sobem para cima nos comovem ainda mais, porque nos convencem de que há ouro no cascalho da humanidade e que há luz por trás da escuridão no futuro

(Jizhe, 1921Jizhe. “Introdução (引言)”. Prosa Mensal (小说月报), 12(10), p. 2-7, 1921., p. 2-3, minha tradução).

Esta passagem implica dois objetivos da tradução da literatura das nações desfavorecidas na China. O primeiro é afirmar a igualdade entre todos os povos, a fim de quebrar a noção predominante de dividir os povos em civilizados/selvagens, avançados/atrasados, etc.; o segundo é buscar os valores universais, tais como a justiça e a humanidade, através da solidariedade entre os povos oprimidos. Entretanto, isto não significa de forma alguma a ignorância da identidade particular de cada nação. Ao contrário, o texto deixou claro que as literaturas nacionais são intrinsecamente associadas aos elementos naturais, sociais e culturais de cada país, portanto, embora falem a mesma língua, as diferentes nações produzem literaturas diversas, assim como mostra o trecho seguinte:

No Brasil, por exemplo, fala-se a língua portuguesa, mas as obras dos romancistas brasileiros como Graça Aranha, Afonso Peixoto, Coelho Neto, Machado de Assis etc. são diferentes das de Eça de Queiroz, Sebastião de Magalhães Lima, Fialho de Almeida, entre outros. Isto prova que a literatura nacional não se caracteriza pela língua

(Jizhe, 1921Jizhe. “Introdução (引言)”. Prosa Mensal (小说月报), 12(10), p. 2-7, 1921., p. 7, minha tradução) .

Com um interesse genuíno em entender e apresentar a literatura brasileira, Mao Dun publicou em Prosa Mensal a tradução de “Tendências Recentes da Literatura Brasileira”de Issac Goldberg em 1922, e do conto “Último Lance” de Aluísio Azevedo em 1923. Após a tradução do “Último Lance”, Mao Dun escreveu uma breve nota sobre a vida e a obra de Azevedo, enfatizando que o conto traduzido talvez não seja o melhor do autor, mas consegue com poucas palavras “descrever o ar do casino e o sentimento de um jovem rico que perdeu tudo no jogo”, por isso ele gostou e traduziu (Shen, 1923Shen, Yanbing. Prosa Mensal (小说月报), 14(5), p. 4, 1923., p. 4, minha tradução). Considerando que em Meia Noite (《子夜》, 1931), a obra-prima de Mao Dun, o protagonista também perdeu tudo nas especulações financeiras, é visível a ligação entre seu interesse literário e seu trabalho de tradução.

Vale notar que Mao Dun e Prosa Mensal não estavam sozinhos em introduzir a literatura brasileira na China. Em 1931 a revista Revisões da Literatura Moderna (《现代文学评论》) publicou “Panorama da Literatura Brasileira”, escrito por Zhou Yang7 7 Zhou Yang (周扬), cujo nome de cortesia é Zhou Qiying, é escritor, tradutor e teórico literário chinês. (1908-1989, assinado como Zhou Qiying). Baseado nas idéias de Sílvio Romero, o ensaio dividiu a literatura brasileira em quatro períodos: a formação,o desenvolvimento autonômico, a transformação romântica e a reação crítica. Os quatro períodos são descritos em um total de 16 páginas e o ensaio pode ser considerado como uma versão abreviada da história geral da literatura brasileira. E em 1935, o Semanário de Suor e Sangue (《汗血周刊》) também publicou um pequeno artigo intitulado “O Estabelecimento da Literatura Nacional no Brasil”. Este artigo precisa de menção especial, principalmente porque Semanário de Suor e Sangue não era um periódico esquerdista, mas uma plataforma importante do Kuomintang no movimento artístico nacionalista (民族主义文艺运动). O conteúdo principal do artigo é extraído dos artigos de Goldberg e Zhou Yang, mas o foco muda-se para a construção de uma literatura “nacional” no Brasil, especialmente a tendência nacionalista contra os franceses após a Primeira Guerra Mundial e o zelo patriótico de Monteiro Lobato.

Posto isto, é possível afirmar que, durante este período, tanto os esquerdistas como os direitistas chineses se interessavam pela literatura brasileira, e esse interesse era gerado pelas semelhanças entre as duas nações em construção e desenvolvimento. Por isso, os intelectuais chineses se esfoçavam a compreender a literatura brasileira de forma panorâmica e optaram por traduzir os escritores mais representativos. Ao mesmo tempo, como o principal meio de divulgação da literatura das nações desfavorecidas eram os periódicos, o gênero mais traduzido nesta época era o conto. Assim se pode explicar por que José de Alencar, embora bem reconhecido pelos intelectuais chineses, não foi traduzido neste período. Além do “Último Lance”, já mencionado acima, outras obras brasileiras traduzidas em chinês antes de 1949 são “Mão Pelada” de Afonso Arinos (em Literatura (《文学》》), 1934), “O Crime” de Olavo Bilac (em Literatura Chinesa (《中国文学》), 1944), “O Enfermeiro” de Machado de Assis (em Onda Literária (《文潮》), 1948) e o ensaio “Viajando no Arquipélago da Literatura Brasileira” de Viana Moog (em Semanário de Wenhui (《文汇周报》), 1944).

Após a fundação da República Popular da China, a tradução da literatura das nações desfavorecidas mantinha-se e desenvolvia-se, uma vez que os antigos tradutores da esquerda assumiram cargos importantes no novo governo. Por exemplo, Mao Dun era o ministro da cultura (1949-1965) e foi eleito presidente da União dos Escritores Chineses enquanto Zhou Yang era vice-ministro da cultura e diretor do Bureau da Arte. Em 1953, Mao Dun fundou a revista Tradução (《译文》), que passou a ser chamado Literatura Mundial (《世界文学》) a partir de 1959, a fim de divulgar a literatura estrangeira de forma prática e organizada. No n. 1 de 1960, Literatura Mundial publicou dois contos brasileiros, que são “Pai contra Mãe” de Machado de Assis e “Pedro Barqueiro” de Afonso Arinos – ambos os autores já tinham sido publicados antes de 1949. E em 1964, a mesma revista publicou “O Homem que Falava Javanês” de Lima Barreto. Outro escritor brasileiro que teve um conto traduzido neste período era Graciliano Ramos, pois o capítulo “Cadeia” de Vidas Secas foi incluído na Coletânea dos Contos Latino-Americanos Modernos, publicada em 1959.

Jorge Amado: um caso que vale ser revisto

Se a tradução da literatura brasileira na China antes de 1949 foi essencialmente esporádica, é após a fundação da República Popular da China que surgiu pela primeira vez uma figura central: Jorge Amado. Embora não neguemos a importância da sua postura de esquerda e sua amizade com os intelectuais chineses, dois equívocos precisam ser esclarecidos. O primeiro é imaginar que todas as obras de Amado traduzidas nesta época contenham propaganda partidária, e o segundo é supor que a tradução de Amado na China tenha sido impulsionada por forças políticas.

Quanto ao primeiro equívoco, convém dizer que, nos anos 50, quatro livros de Amado foram traduzidos em chinês: Terras do Sem-Fim, São Jorge dos Ilhéus, Seara Vermelha e O Cavaleiro de Esperança. Entre eles, Terras do Sem-Fim é o primeiro livro traduzido na China e ao mesmo tempo um dos romances mais importantes de Jorge Amado. Logo que saiu em 1943, o livro recebeu numerosos elogios “pelo satisfatório domínio de técnicas literárias essenciais e pelo não-sectarismo político” (Almeida, 1979Almeida, Alfredo Wagner Berno de. Jorge Amado: política e literatura, Rio de Janeiro: Campus, 1979., p. 175). Dois anos depois, Terras do Sem-Fim foi publicado nos Estados Unidos e foi através da edição inglesa que se fez a tradução chinesa. Em contraponto, apesar de que um extrato de Subterrâneos da Liberdade, uma das obras mais politizadas de Jorge Amado, fosse publicado na revista Literatura do Povo em 1952, a trilogia nunca foi traduzida integralmente na China. Em vista disso, é possível dizer que a postura política não é o fator primordial na escolha entre obras amadianas.

Para esclarecer o segundo equívoco, é preciso traçar a linha do tempo da tradução de Terras do Sem-Fim na China. Como Jorge Amado foi o vencedor do Prêmio Stalin da Paz em 1951, visitou a China pela intervenção de Emi Siao8 8 Emi Siao (萧三), poeta e tradutor chinês, primeiro biógrafo de Mao Zedong. (1896-1983) em 1952, e Terras do Sem-Fim só foi publicado em 1953, é natural supor que a tradução dele fosse motivada pelos fatores oficiais e políticos. Entretanto, na primeira edição chinesa de Terras do Sem-Fim, o tradutor Wu Lao9 9 Wu Lao (吴劳), tradutor chinês, mais conhecido por traduzir O Velho e o Mar de Ernest Hemingway. (1923-2013) já disse claramente que a tradução tinha sido por sua própria iniciativa e tinha começado antes da premiação de Jorge Amado. No posfácio escrito em 1952, Wu (1953, p. 465)Wu, Lao. “Posfácio (后记)”. In: Amado, Jorge. Tradução de Wu Lao. Terras do Sem-Fim (无边的土地), Shanghai: Editora do Trabalho Cultural, 1953, p. 465-471. declarou: “No outono passado, o tradutor leu a tradução inglesa do romance de Amado; no inverno, quando a tradução estava quase completa, ouviu a notícia de que Amado havia recebido o Prêmio Stalin da Paz Internacional” (minha tradução), e concluiu agradecendo a Shi Zhecun10 10 Shi Zhecun (施蛰存), escritor, poeta e tradutor chinês. (1905-2003) por rever a tradução e recomendá-la para a publicação.

A tradução dos outros dois romances amadianos também foi motivada pelos interesses individuais. Porém, dessa vez, não foi o tradutor que submeteu o trabalho a uma editora, mas a editora que queria publicar livros de Jorge Amado procurou tradutores competentes. Essa editora se chamava Pingming, e era uma editora privada fundada por Ba Jin11 11 Ba Jin (巴金), peseudônimo de Li Yaotang, é escritor e tradutor muito importante e famoso na China. (1904-2005), um dos escritores mais renomados na história da literatura chinesa moderna. Foi a convite de Li Caichen, irmão de Ba Jin, que Zheng Yonghui12 12 Zheng Yonghui (郑永慧), tradutor chinês, mais conhecido por traduzir as obras de Victor Hugo, Honoré de Balzac e Émile Zola. (1918-2012) começou a traduzir São Jorge dos Ilhéus e Seara Vermelha (Zheng, 2004Zheng, Ruolin. “Em Nome do Humanismo...—Meu Pai Zheng Yonghui e Noventa e Três (以人道主义的名义……——我的父亲郑永慧与《九三年》)”. 30/04/2004. Semanário de Leitura de Wenhui (文汇读书周报).). Esta foi publicada em 1954 pela Editora Pingming, e aquela foi lançada em 1956, quando a Editora Pingming tinha sido incorporada à Editora dos Escritores via parceria entre o público e o privado.

Entre os quatro livros amadianos traduzidos nesta época, O Cavaleiro da Esperança é o único não-ficcional e foi lançado pela Editora do Povo em 1953. Pouco se sabe sobre quem propôs primeiramente a publicar este livro na China, mas pode-se ver como o tradutor se dedicou a este trabalho. No prefácio do tradutor, Wang Yizhu (1925-2019) mencionou que havia três edições estrangeiras do livro: a espanhola, a francesa e a russa. Ele havia planejado traduzir do francês, que é mais parecido com o português, mas como a tradução francesa não estava disponível, ele teve que escolher a tradução russa. Além de lamentar a grande distância entre o português e o russo e que a edição russa fosse uma versão resumida, ele demonstrou esforços para preservar as características do livro original.

Quando fazia a tradução, eu encontrei o texto original em português de alguns dos termos, mas ainda havia muitos que não consegui encontrar. [...] Outra dificuldade era que eu não estava familiarizado com o Brasil. Apesar dos meus melhores esforços, receio que ainda existam muitas falhas e erros na representação da obra original. Espero sinceramente que os leitores me corrijam

(Wang, 1953Wang, Yizhu. “Prefácio do Tradutor Chinês (中译者前记)”. In: Amado, Jorge. Tradução de Wang Yizhu. Cavaleiro da Esperança (希望的骑士), Beijing: Editora do Povo, 1953, p. 1-6., p. 6, minha tradução).

De fato, isto reflete os princípios de tradução que Wang Yizhu sempre seguiu. Em uma edição de 1951 da revista Correspondências de Tradução (《翻译通讯》), ele enfatizou a necessidade de o tradutor transmitir o encanto do texto original, mostrando sua ambição artística na tradução (Wang, 1951Wang, Yizhu. “Sobre o Encanto (论神韵)”. Correspondências de Tradução (翻译通讯), 3 (5), p. 49-50, 1951.). Graças a isso, as descrições pitorescas e os ritmos líricos de Amado foram bem preservados nesta biografia do líder comunista brasileiro.

É melhor ressaltar que, embora São Jorge dos Ilhéus e Seara Vermelha contenham referências à militância comunista, não dá para tirar a conclusão de que a tradução de Jorge Amado na China era cada vez mais politizada nos anos 50. Em primeiro lugar, O Cavaleiro da Esperança e Terras do Sem-Fim foram publicados no mesmo ano. Ademais, como os três romances amadianos traduzidos neste período eram considerados uma trilogia do tema rural, era previsível que fossem publicados os dois seguintes após o sucesso do primeiro. Por fim, parece-se que os paratextos das traduções comprovavam o contrário.

Se compararmos os textos introdutórios escritos por Wu Lao para as diferentes edições de Terras do Sem-Fim, observaremos um fenômeno peculiar: o posfácio da primeira edição de 1953 é a mais politicada, tanto em termos de linguagem quanto de conteúdo, enquanto no prefácio da nova edição de 1958, Wu Lao não apenas corrigiu alguns erros de informação (por exemplo, substituindo “Amado trabalhou em uma plantação de cacau” (Wu, 1953Wu, Lao. “Posfácio (后记)”. In: Amado, Jorge. Tradução de Wu Lao. Terras do Sem-Fim (无边的土地), Shanghai: Editora do Trabalho Cultural, 1953, p. 465-471., p. 466, minha tradução) por “o pai de Amado tinha uma plantação de cacau” (Wu, 1958Wu, Lao. “Amado e sua Trilogia (亚马多和他的三部曲)”. In: Amado, Jorge. Tradução de Wu Lao. Terras do Sem-Fim (无边的土地), Beijing: Editora dos Escritores, 1958, p. 1-16., p. 1, minha tradução)), mas também fez uma melhor avaliação do conjunto das obras amadianas, com enfoque nas suas características literárias. Depois de indicar que “a trilogia também é rica em poesia lírica”, “Amado gostava das formas tradicionais do folclore latino-americano” e “fazia bom uso de lendas, especialmente lendas dos negros”, Wu (1958, p. 13-16)Wu, Lao. “Amado e sua Trilogia (亚马多和他的三部曲)”. In: Amado, Jorge. Tradução de Wu Lao. Terras do Sem-Fim (无边的土地), Beijing: Editora dos Escritores, 1958, p. 1-16. chegou a categorizar estas obras como “uma série de romances épicos” (minha tradução).

Apesar de que Wu Lao não esquecesse o aspecto político de Amado como escritor comunista, o prefácio de 1958 discerniu os elementos “documentário”, “lírico” e “histórico” da obra amadiana, e ecoou o que Antonio Candido afirmou no famoso ensaio “Poesia, Documento e História” sobre o mesmo livro. Da tradução à interpretação, os esforços de Wu Lao não foram em vão, uma vez que Terras do Sem-Fim ganhou novas edições chinesas em 1992 e 2016 e é até hoje a obra amadiana mais reeditada na China.

Por outro lado, era graças à sinceridade “documental” que Jorge Amado fez sucesso na China. A luta de terra nos livros amadianos constituía-se um tema familiar e interessante para os leitores chineses, que enfrentava o mesmo problema naquela época. No posfácio de São Jorge dos Ilhéus, o tradutor Zheng (1956, p. 423-434)Zheng, Yonghui. “Posfácio da Tradução (译后记)”. In: Amado, Jorge. São Jorge dos Ilhéus (黄金果的土地). Tradução de Zheng Yonghui. Beijing: Editora dos Escritores, 1956, p. 423-424. apresentou a trilogia dos romances amadianos desta forma: Terras do Sem-Fim conta como os “donos de terra” no Brasil tomaram brutalmente a terra dos outros no início do século XX; São Jorge dos Ilhéus retrata a conspiração de “agentes imperialistas americanos e alemães” para confiscar a terra dos donos de terra nos anos 30; e a história de Seara Vermelha ocorreu depois que a terra tinha sido “transferida dos donos de terra feudais para os capitalistas” e refletiu a vida miserável de “pequenos camponeses falidos e trabalhadores contratados desempregados” (minha tradução). Aqui as expressões como “donos de terras feudais”, “capitalistas” e “pequenos camponeses” eram termos mais ressoados na China daquela época, e facilitavam bastante a leitura e a compreensão.

Como resultado, logo após a publicação de São Jorge dos Ilhéus, alguns leitores o listaram como “um dos meus livros favoritos” (Muzi, 1957Muzi. “Gosto de São Jorge dos Ilhéus (我喜欢‘黄金果的土地’)”. 23/02/1957. Jornal da Juventude Chinesa (中国青年报)., p. 3, minha tradução) e naturalmente associaram o diálogo dos protagonistas brasileiros com a realidade chinesa. Nos anos 80, escritores da escola “Lagoa de Lotus” (荷花淀派), nomeadamente Cong Weixi13 13 Cong Weixi (从维熙), escritor chinês. (1933-2019) e Liu Shaotang14 14 Liu Shaotang (刘绍棠), escritor chinês. (1936-1997), também prestaram homenagem a Amado nas obras literárias ou entrevistas, confirmando a importância das traduções amadianas nos anos 50 (Cong, 1983Cong, Weixi. A Vela Branca para Longe (远去的白帆). Chengdu: Editora do Povo de Sichuan, 1983.; Liu, 1988Liu, Shaotang. “Eu não Sou ‘Líder do Levante dos Boxers’(我不是‘义和团大师兄’)”. Revisão da Literatura Estrangeira (外国文学评论), 1, p. 120-122, 1988.). Diante de tudo o que exposto acima, o valor literário de Amado e a sua influência na China não pode ser apagado por uma simples etiqueta de “escritor ideológico”.

Após 1956: tradução sistemática da literatura brasileira na China

Tomando 1956 como o divisor da água, a tradução da literatura brasileira entre 1949 e 1966 pode ser dividida em duas fases. Na primeira fase, a parceria público-privada no setor editorial chinesa ainda não foi completada, então a tradução era conduzida principalmente por tradutores e editoras privadas. Os quatro livros de Amado foram introduzidos na China nesta fase. A partir de 1957, a tradução de literatura estrangeira não mais dependia dos interesses pessoais do editor ou tradutor, mas fazia parte do planejamento geral do Estado. Contudo, “planejar” não aponta necessariamente para a propaganda ideológica, mas antes de tudo uma possibilidade da introdução sistemática das obras literárias do Terceiro Mundo, seguindo a tradição da tradução da literatura das nações desfavorecidas há algumas décadas.

Em um artigo de 1960, Wang Yangle detalhou a publicação da literatura latino-americana na China daquela época, explicando o propósito e o plano geral da tradução. Sua ênfase no “caráter nacional” da literatura latino-americana revela uma resistência mais forte à hegemonia cultural ocidental:

A literatura latino-americana nunca foi levada a sério pelos imperialistas ocidentais, que a consideram como uma parte subordinada da literatura espanhola e portuguesa ou a consideram como uma mera imitação da literatura francesa. Mais recentemente, os imperialistas americanos tentaram asfixiar as literaturas nacionais latino-americanas despejando a cultura do chamado “modo de vida norte-americano” na América Latina

(Wang, 1960Wang, Yangle. “Literatura Latino-americana na China (拉丁美洲文学在中国)”. 22/03/1960. Diário do Povo (人民日报)., p. 7, minha tradução).

Lamentavelmente, estes preconceitos contra a literatura dos países do Terceiro Mundo ainda existem entre alguns pesquisadores literários. Entretanto, assim como Wang (1960, p. 7)Wang, Yangle. “Literatura Latino-americana na China (拉丁美洲文学在中国)”. 22/03/1960. Diário do Povo (人民日报). afirmou que “a literatura nacional latino-americana cresceu nas guerras de independência, nas lutas dos movimentos de libertação nacional, e tem suas próprias tradições e forte combatividade” (minha tradução), também não falta aos escritores brasileiros senso de resistência e de crítica, que é incorporado nas tradições literárias do país.

Em vista disso, quase todos os grandes escritores brasileiros produziram obras que descrevem a realidade do país e refletem sobre os problemas da sociedade. Mesmo os escritores chamados intimistas podem produzir obras com preocupação social, enquanto as elites da classe alta podem propor iniciativas progressistas. Por isso, quando os literatos chineses selecionavam obras brasileiras a ser traduzidas, quase todos os escritores canônicos atendiam aos critérios. Ademais, graças à importância atribuída à crítica social e à tradição nacional, excluíram-se consequentemente as obras que imitam cegamente a literatura ocidental, o que possibilita a tradução das obras literárias mais valiosas.

De fato, quanto à tradução da literatura latino-americana (especialmente da brasileira), os intelectuais chineses estavam menos preocupados com a propaganda partidária do que com a construção nacional de cada país. Segundo Wang Yangle, com exceção da literatura dos povos indígenas e do período colonial, que ainda não havia sido traduzida, até início de 1960 a literatura publicada na China já refletia toda a história da construção das nações latino-americanas: o período romântico de luta pela independência nacional, o período realista crítico de exposição de males sociais e o período da literatura de luta contra o imperialismo e a colonização. Na Coleção da Literatura Latino-Americana, publicada no final dos anos 50 e início dos anos 60, incluíram-se apenas três livros brasileiros, Antologia Poética de Castro Alves, Os Sertões de Euclides da Cunha e A Hora Próxima de Alina Paim, mas cobriam perfeitamente os três períodos.

Em abril de 1960, a Coleção da Literatura Latino-americana publicou outro escritor brasileiro: Afonso Schmidt, que foi considerado pelos editores como um representante precursor da literatura latino-americana. Em certo sentido, isto pode ser uma alusão às ideias anarquista de Schmidt, cuja preocupação com os direitos da classe inferior pode ser vista como pioneira para os comunistas brasileiros. Vale notar, porém, que nem todas as obras brasileiras contemporâneas traduzidas na China nesta época abordava lutas revolucionárias, sendo um bom exemplo A Raposa e as Uvas de Guilherme Figueiredo, que foi publicada pela Editora Chinesa do Teatro em 1959 e foi bem recebida pelo público chinês.

Além da seleção de títulos, os textos introdutórios sobre as obras traduzidas também são abrangentes e confiáveis, com exceção de alguns desvios em detalhes. Não obstante a inserção de certos discursos políticos, o essencial dos textos era constituído pela análise do conteúdo histórico da literatura e do estilo de escrita, enquanto os elementos não-condizentes com ideologia comunista, tais como a religião, a sensualidade e a vontade pessoal, também eram bem preservados.

Pode-se tomar Antologia Poética de Castro Alves como um bom exemplo. O que o tradutor Chen Yongyi15 15 Chen Yongyi (陈用仪), um dos mais importantes tradutores e dicionaristas chineses de português. (1931-, assinado pelo pseudônimo Yi Qian) disse no início do livro – “Quando as pessoas mencionam o nome de Castro Alves, elas pensam em ‘liberdade’, ‘verdade’, ‘justiça’, ‘amor’ e poesia” (Yi, 1959Yi, Qian. “Prefácio (前言)”. In: Alves, Castro. Tradução de Yi Qian. Antologia Poética de Castro Alves (卡斯特罗·阿尔维斯诗选), Beijing: Editora da Literatura do Povo, 1959, p. 1-6., p. 1, minha tradução) – indica claramente a universalidade desta obra. De todas as obras brasileiras publicadas neste período, a Antologia é a única tradução feita diretamente do português, então o tradutor teve a liberdade de escolher entre Obras Completas de Castro Alves. Dos 22 poemas traduzidos, cinco são poemas de amor,16 16 São “Hebréia”“O Gondoleiro do Amor”“Boa noite”“A Uma Estrangeira” e “O hóspede”, todos de Espumas Flutuantes. e a imagem cristã está espalhada por todo o livro. Tal espírito religioso foi enfatizado no prefácio do tradutor:

No poema “O Vidente”, ele descreve a fraternidade humana, o trabalho agradável e a vida feliz por imagens gloriosamente românticas, representando os ideais de “liberdade, igualdade e fraternidade” da revolução democrática burguesa. Na sua opinião, Deus cristão e Jesus redentor são encarnação da justiça e da verdade

(Yi, 1959Yi, Qian. “Prefácio (前言)”. In: Alves, Castro. Tradução de Yi Qian. Antologia Poética de Castro Alves (卡斯特罗·阿尔维斯诗选), Beijing: Editora da Literatura do Povo, 1959, p. 1-6., p. 35, minha tradução).

Outro prefácio importante é o de Os Sertões. Publicado em 1959, Os Sertões é uma tradução coletiva, mas seu prefácio foi escrito somente por Wang Shoupeng (ou Wang Yangle, que é seu pseudônimo). Neste texto de 22 páginas, Wang Shoupeng se concentra na construção da “nação” brasileira, destacando a importância histórica e o valor literário deste livro. Depois de afirmar claramente que Os Sertões é “um importante ponto de inflexão na literatura brasileira” (Wang, 1959Wang, Shoupeng. “Prefácio (前言)”. In: da Cunha, Euclides. Tradução de Bei Jin. Os Sertões (腹地), Beijing: Editora da Literatura do Povo, 1959, p. 1-22., p. 1, minha tradução), Wang Shoupeng apresentou a vida de Euclides da Cunha, descreveu o desenvolvimento da literatura brasileira e explicou como Os Sertões marcou a transição do romantismo para o realismo. Ele também discutiu o valor artístico do livro, levantando cinco características da escrita euclidiana e concluiu que esta era “uma obra excepcional que desafia a categorização [de gêneros literários]” (minha tradução, Wang, 1959Wang, Shoupeng. “Prefácio (前言)”. In: da Cunha, Euclides. Tradução de Bei Jin. Os Sertões (腹地), Beijing: Editora da Literatura do Povo, 1959, p. 1-22., p. 15). No texto de Wang Shoupeng, a política e a tradição literária andam de mãos dadas, ambas enraizadas na história de um povo. Assim, apesar de algumas informações imprecisas, o prefácio de Os Sertões é uma valiosa resenha literária, comprovando que a preocupação com a construção do país não apaga necessariamente a atenção ao valor literário.

Considerações Finais

Ao discutirem a tradução da literatura latino-americana na China nos anos 50 e 60, os pesquisadores quase sempre enfatizaram o aspecto “político”, como se todos os trabalhos fossem motivados e censurados pela ideologia, enquanto a própria “literatura” era ignorada e oculta. A base dessa afirmação está principalmente no clima político e cultural no início da República Popular da China, especialmente após a nacionalização do setor editorial, quando a tradução da literatura estrangeira não era mais guiada pelo interesse pessoal, mas sim pela necessidade de servir à construção cultural da sociedade. Entretanto, seria tendencioso afirmar que o trabalho de tradução daquela época não tinha nada a ver com a “literatura” e era uma atividade puramente política e ideológica.

Através deste estudo da tradução da literatura brasileira na China entre 1919 e 1966, fica claro o esforço dos literatos chineses para introduzir os melhores escritores brasileiros bem como as experiências históricas e qualidades artísitcas contidas nas obras deles. Diante das traduções de Castro Alves, Machado de Assis, Euclides da Cunha, Aluísio Azevedo, Lima Barreto, Jorge Amado e Graciliano Ramos, quem duvidaria a preocupação literária dos tradutores e editores, afora aqueles que não conheçam a literatura brasileira? E é necessário ressaltar que, embora a literatura das nações desfavorecidas (ou do Terceiro Mundo) estivesse em desvantagem em relação a literatura dos países mais poderosos, esta desvantagem estava ligada à hierarquia cultural no mundo. Em certo sentido, a escolha da tradução da literatura asiática, africana e latino-ameircana foi exatamente uma tentativa de quebrar essa hierarquia.

  • 1
    A noção de “nações desfavorecidas” (ou “nações oprimidas”, “nações fracas”) surgiu na China no início do século XX, em contraste aos “poderes ocidentais”, “países imperialistas”. Para os intelectuais chineses naquela época, as nações desfavorecidas se referem principalmente aos países colonizados ou semi-colonizados.
  • 2
    Lu Xun (鲁迅), peseudônimo de Zhou Shuren, é escritor e tradutor importante na China e um dos fundadores da literatura moderna chinesa.
  • 3
    Zhou Zuoren (周作人), irmão mais novo de Lu Xun, é escritor e tradutor chinês.
  • 4
    Zheng Zhenduo (郑振铎), escritor chinês e historiador da literatura chinesa.
  • 5
    Shen Yanbing (沈雁冰), mais conhecido pelo peseodônimo Mao Dun (茅盾), é escritor e crítico literário chinês e um dos pioneiros do Movimento de Quatro de Maio.
  • 6
    No mesmo ano, Mao Dun publicou o famoso artigo “Sobre os métodos da tradução de livros literários”, promovendo a teorização da tradução literária na China (Mao Dun, 2019Mao Dun. “Sobre os métodos da tradução de livros literários”. Tradução de Ye Li. Cadernos de Tradução, 39(2), p. 379-388, 2019. DOI: https://doi.org/10.5007/2175-7968.2019v39n2p379
    https://doi.org/10.5007/2175-7968.2019v3...
    ).
  • 7
    Zhou Yang (周扬), cujo nome de cortesia é Zhou Qiying, é escritor, tradutor e teórico literário chinês.
  • 8
    Emi Siao (萧三), poeta e tradutor chinês, primeiro biógrafo de Mao Zedong.
  • 9
    Wu Lao (吴劳), tradutor chinês, mais conhecido por traduzir O Velho e o Mar de Ernest Hemingway.
  • 10
    Shi Zhecun (施蛰存), escritor, poeta e tradutor chinês.
  • 11
    Ba Jin (巴金), peseudônimo de Li Yaotang, é escritor e tradutor muito importante e famoso na China.
  • 12
    Zheng Yonghui (郑永慧), tradutor chinês, mais conhecido por traduzir as obras de Victor Hugo, Honoré de Balzac e Émile Zola.
  • 13
    Cong Weixi (从维熙), escritor chinês.
  • 14
    Liu Shaotang (刘绍棠), escritor chinês.
  • 15
    Chen Yongyi (陈用仪), um dos mais importantes tradutores e dicionaristas chineses de português.
  • 16
    São “Hebréia”“O Gondoleiro do Amor”“Boa noite”“A Uma Estrangeira” e “O hóspede”, todos de Espumas Flutuantes.

Agradecimentos

Este trabalho foi apoiado pelo projeto de pesquisa “Escritores Brasileiros de Esquerda da Geração de 30” (The National Social Science Fund of China: 19CWW018).

Referências

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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    17 Maio 2024
  • Data do Fascículo
    2023

Histórico

  • Recebido
    06 Nov 2023
  • Aceito
    29 Nov 2023
  • Publicado
    Dez 2023
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