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PIAZZA NAVONA E OUTROS CANTOS: HAROLDO DE CAMPOS E A TRANSBRASILIZZAZIONE INÉDITA DE LUCIO MARIANI

PIAZZA NAVONA AND OTHER CANTOS: HAROLDO DE CAMPOS AND THE UNPUBLISHED TRANSBRAZILIANIZATION OF LUCIO MARIANI

Resumo

Neste trabalho apresenta-se a correspondência inédita entre Haroldo de Campos e o poeta e tradutor italiano Lucio Mariani, com seis poemas de Mariani traduzidos por Haroldo em traduções também inéditas e em várias versões, acompanhadas pelas observações de Mariani. Discute-se rapidamente a questão da tradução de textos poéticos, assim como a teoria haroldiana da tradução, e o papel da correspondência para o estudo da criação do autor e da criação do tradutor. Na transcriação destes seis poemas constata-se a diversidade dos conceitos de tradução de Haroldo e de Mariani, que parece mais fiel à letra dos poemas.

Palabras-clave
Tradução; Poesia; Inéditos; Correspondência

Abstract

In this work, the unpublished correspondence between Haroldo de Campos and the Italian poet and translator Lucio Mariani is presented with six of Mariani’s poems translated by Campos in also unpublished translations and in multiple versions, together with Mariani’s observations. The question of the translation of poetic texts is quickly discussed, as well as Campos’s theory of translation, and the role of these letters in the study of the author’s and the translator’s creation. In the transcreation of these six poems, we can see the diversity of the concept of translation by Campos and Mariani, who apparently was more faithful to a more literal reading of his text.

Keywords
Translation; Poetry; Unpublished texts; Correspondence

Introdução

Em um trecho de A tarefa do tradutor (1921), Walter Benjamin separa nitidamente obra poética e tradução, esta que “não se vê como obra literária”, sendo que a tarefa do tradutor pode “ser diferenciada com precisão da do escritor” (Benjamin 112Benjamin, Walter. “A tarefa do tradutor”. Escritos sobre mito e linguagem (1915-1921), Organização, apresentação e notas de Jeanne Marie Gagnebin. Tradução de Susana Kampff Lages e Ernani Chaves. São Paulo: Duas Cidades/Editora 34, 2011. pp.101-119.). Isolei uma única frase de um ensaio denso e complexo, que Haroldo de Campos analisa em artigo de 1984 (Campos, “Para além do princípio de saudade: a teoria benjaminiana da tradução”) para introduzir o antigo, sempre atual, tema da tradução poética, aqui em sua releitura por Haroldo, que, no final do artigo, observa que “assim como as ‘monstruosas’ traduções holderlinianas […], a alegorese […] arruina a linearidade do sentido definitivo e permite […] compreender a historiografia como instância de ruptura e possibilidade de tradução transgressora” (CamposCampos, Haroldo de. “Luz: a escrita paradisíaca”. 6 cantos do Paraíso, Alighieri, Dante. Tradução de Haroldo de Campos. São Paulo: Fontana/Instituto Italiano de Cultura, 1976. pp.9-19., “Para além do princípio de saudade: a teoria benjaminiana da tradução”, 59). Tradução transgressora, então: veremos adiante um exemplo concreto de aproximações inteligentes e transgressoras de Haroldo ao texto de um poeta italiano contemporâneo.

Falando em Haroldo, entendemos a tradução como transgressora e criativa. T.S. Eliot observa cáustico, no ensaio “Eurípedes e o professor Murray”: “é porque o Prof. Murray [tradutor de Medeia] não tem instinto criativo que deixa Eurípedes sem vida” (EliotEliot, Thomas Stearns. The sacred wood: Essays on poetry and criticism. New York: Alfred A. Knopf, 1920., qtd in Campos, “Da tradução como criação e como crítica”, 17). Nas linhas imediatamente anteriores, Eliot escrevera: “Necessitamos de um olho capaz de ver o passado em seu lugar com suas definidas diferenças em relação ao presente e, no entanto, tão cheio de vida que deverá permanecer tão presente para nós como o próprio presente” (Eliot, qtd in Campos, “Da tradução como criação e como crítica”, 7). Aqui Eliot, portanto, aborda também a delicada questão do tempo, o tempo do texto original e o tempo do texto traduzido, diferentes também pela caducidade do texto em tradução, conforme Benjamin: “E enquanto a palavra do poeta perdura em sua língua materna, mesmo a maior tradução está fadada a desaparecer dentro da evolução de sua língua [...]” (Benjamin 108Benjamin, Walter. “A tarefa do tradutor”. Escritos sobre mito e linguagem (1915-1921), Organização, apresentação e notas de Jeanne Marie Gagnebin. Tradução de Susana Kampff Lages e Ernani Chaves. São Paulo: Duas Cidades/Editora 34, 2011. pp.101-119.). As duas observações, separadas por apenas um ano (The Sacred Wood é de 1920, A Tarefa do Tradutor de 1921), diferem bastante pela abordagem e pela impostação filosófica, mas coincidem na ideia de que a tradução vive, talvez morra, no tempo, enquanto o texto original vive, continua tendo voz em uma certa atemporalidade, ou “pervivência” (Benjamin 107Benjamin, Walter. “A tarefa do tradutor”. Escritos sobre mito e linguagem (1915-1921), Organização, apresentação e notas de Jeanne Marie Gagnebin. Tradução de Susana Kampff Lages e Ernani Chaves. São Paulo: Duas Cidades/Editora 34, 2011. pp.101-119.) que o modifica sem que ele emudeça (e assim diz mais, ou menos, ou outras coisas).

Tradução como transgressora, criativa e ato de devoção: em seu torrencial romance 4321, Paul Auster proclama sobre a tradução de poesia: “Se você amava o poema que estava traduzindo, então desmontar aquele poema e montar tudo de novo no seu idioma era um ato de devoção” (Auster 484Auster, Paul. 4321. Tradução de Rubens Figueiredo. São Paulo: Companhia das Letras, 2018.), sem deixar de lembrar os conselhos de Ezra Pound aos jovens poetas, de por “a mão à prova na tradução” (Auster 484Auster, Paul. 4321. Tradução de Rubens Figueiredo. São Paulo: Companhia das Letras, 2018.). Pound nos remete a Haroldo, para quem Pound era “o exempo máximo de tradutor-recriador”, reivindicando a “categoria estética da tradução como criação” (CamposCampos, Haroldo de. “Transluciferação mefistofáustica”. Deus e o Diabo no Fausto de Goethe, Haroldo de Campos. São Paulo: Perspectiva, 1981. pp.179-209., “Da tradução como criação e como crítica”, 5).

Neste trabalho, abordaremos traduções inéditas de Haroldo procurando evidenciar seu viés de novas criações.

1. Haroldo de Campos e Lucio Mariani

Numerosos escritores são conhecidos mais, quando não exclusivamente, por seu epistolário: de Madame de Sévigné, por exemplo, conhece-se só a extensa correspondência. A interação e interrelação entre narrativa e escrita de correspondência, demonstrando também a vitalidade e da importância do gênero epistolar, deram vida aos primeiros romances modernos europeus – pensemos em Laclos e Richardson – com um sucesso que garantiu continuidade do gênero até os dias de hoje. Correspondência entre artistas é de grande importância para acompanhar os passos da criação, mas também, de uma forma mais geral, na reconstrução da troca entre dois ou mais interlocutores empenhados por vezes em criações dialógicas em que “a escrita circula entre a obra e a correspondência num movimento de vaivém […] A carta representa um passo dessa intensa vitalidade, ‘dínamo’ da criação” (Haroche-Bouzinac 173Haroche-Bouzinac, Geneviève. Escritas epistolares. Tradução de Lígia Fonseca Ferreira. São Paulo: Edusp, 2016.).

No sentido do intercâmbio e do diálogo criativo, os epistolários entre autor e tradutor(es) são acervos específicos e muito valiosos para os estudiosos de tradução. É conhecida a correspondência, preciosa pelas observações e reflexões tecidas sobre seu texto pelo autor irlandês, entre James Joyce e seu tradutor italiano, Carlo Linati (cf. WawrzyckaWawrzycka, Jolanta. “Translation”. James Joyce in Context, John McCourt (Ed). Cambridge: Cambridge UP, 2009. pp. 125-136. Disponível em https://www.academia.edu/10908299/Translation_James_Joyce_the_Translator_ Acesso em 07/06/2020.
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). Da mesma forma, entre os documentos mais valiosos para quem estude a obra de João Guimarães Rosa e a tradução literária, poética e não, está a copiosa correspondência do autor mineiro com seus tradutores (cf. ViottiViotti, Fernando Baião. Em busca do indeterminado: Guimarães Rosa e seus tradutores. Teresa. Revista de Literatura brasileira. USP, n 8/9. São Paulo: Ed. 34, (2008): 322-337.): com Eduardo Bizzarri (RosaRosa, Guimarães. Correspondencia com seu tradutor italiano Edoardo Bizzarri. 2a. ed. São Paulo: T.A.Queiroz/Instituto Cultural Ítalo-Brasileiro, 1981., Correspondencia com seu tradutor italiano Edoardo Bizzarri), tradutor para o italiano, com Curt Meyer-Clason, tradutor para o alemão (RosaRosa, João Guimaraes. Correspondência com seu tradutor alemão Curt Meyer-Clason (1958-1967). Ed. org. e notas Maria Apparecida Faria Marcondes Bussolotti. Tradução de Erlon José Paschoal. Rio de Janeiro/Belo Horizone: Nova Fronteira/Academia Brasileira de Letras - Ed.UFMG, 2003., Correspondência com seu tradutor alemão Curt Meyer-Clason (1958-1967)) e com a tradutora para o inglês, Harriet de Onís (VerlangieriVerlangieri, Iná Valéria Rodrigues. J. Guimarães Rosa: correspondência inédita com a tradutora norte- americana Harriet de Onis - parte 1. Dissertação de Mestrado orientada por Lenira Marques Covizzi e defendida na Unesp - Universidade Estadual de São Paulo, campus de Araraquara, novembro de 1993. Disponível em https://app.box.com/s/kdh0q87ovnx5olhsha4keayv2ysougzv.
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). Nestas cartas Guimarães Rosa explica como traduzir determinados termos ou trechos, e, principalmente, elucida sua pessoal teoria da criação, refletindo metacriticamente sobre o texto. Através destas correspondências pode-se compreender melhor a forma de composição de Guimarães Rosa, que frequentemente fornece detalhadas explicações ao tradutor, media e participa “Rosa’s interaction with his translators on linguistic issues is extraordinary”, (Armstrong 63Armstrong, Piers. “Guimarães Rosa in Translation: scrittore, editore, traduttore, traditore”. Luso-Brazilian Review. Vol. 38, Nº. 1, Summer, (2001): 63-87.). Assim, como no caso de Joyce, temos a possibilidade de reconstruir a trajetória da composição do texto e contemporaneamente acompanhar o processo de criação da tradução.

Vimos a relevância da correspondência entre os dois autores e seus tradutores: troca de ideias e impressões, com o estabelecimento de um diálogo fundamental para a tradução em si e, para nós, precioso para a reconstruir a criação e a poética dos autores. Mutatis mutandis, o foco deste estudo é um pequeno mas precioso acervo inédito de cartas trocadas em 2001 entre Haroldo de Campos e o poeta italiano Lucio Mariani (Roma, 1936-2016)Machado, Cassiano Elek. Diário arquivado. Piauí 3, dez 2006. Disponível em https://piaui.folha.uol.com.br/materia/diario-arquivado/. Acesso em 10/03/2020.
https://piaui.folha.uol.com.br/materia/d...
, cartas que incluem alguns poemas de Mariani traduzidos por Haroldo e a revisão das traduções feita pelo poeta romano. Sem deixar de apontar aspectos interessantes, e merecedores de maior atenção em espaço mais amplo, nos poemas de Mariani, o foco aqui – diferentemente dos casos mencionados acima – será não o autor traduzido, mas o autor tradutor, sua tradução como crítica e como criação dos textos dos autor italiano. As cartas são manuscritas e mostram já à primeira vista dois intelectuais e criadores bastante diferentes até em sua relação com o espaço físico do papel. As de Haroldo são quase rizomáticas em sua distribuição de acréscimos, anotações, letras de tamanhos diferentes, lembrando caligramas ou poemas dos concretistas, com um certo horror vacui. As de Mariani parecem impressas, tal a regularidade, numa distribuição espacial extremamente arrumada e legível; a revisão que o escritor italiano fez dos textos traduzidos por Haroldo é digitada e impressa.

As correspondências – duas cartas de cada autor, além das traduções e revisões – iluminam com toques rápidos e preciosos a forma de traduzir de Haroldo, suas idéias e seu usus vertendi na gênese da transcriação haroldiana (cf. LessmannLessmann, Stefan. “Fiar a fala: A correspondência inédita de Haroldo e Ernst Jardl”. Circuladô. Revista de Estética e Literatura do Centro de Refência Haroldo de Campos – Casa das Rosas. São Paulo, VII, nº.10, dez. (2019): 80-87. Disponível em https://www.casadasrosas.org.br/centro-de-referencia-haroldo-de-campos/revista-circulado. Acesso em: 12/03/2020.
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) (sobre a correspondência entre Haroldo e o poeta austríaco Ernst Jardl, cujos textos Haroldo traduziu).

No artigo “Da transcrição: poética e semiótica da operação tradutora”, de 1985, Haroldo explicita assim sua definição de transcriação:

Essa cadeia de neologismos [transcriação, reimaginação, transtextualização, transparadização e transluciferação] exprimia uma insatisfação com a ideia ‘naturalizada’ de tradução, ligada aos pressupostos ideológicos de restituição da verdade (fidelidade) e liberalidade (subserviência da tradução um presumido ‘significado transcendental’ do original) - ideia que subjaz a definições usuais, mais ‘neutras’ (tradução ‘literal’), ou mais pejorativas (tradução ‘servil’), da operação tradutora

(CamposCampos, Haroldo de. Galaxias. São Paulo: Ex Libris, 1984, “Da transcrição: poética e semiótica da operação tradutora”, 79).

Alguns anos depois, em entrevista à revista Cult, em 1998, Haroldo assim definia a transcriação: “O que eu chamo de transcriação não é uma tradução despreocupada com o original, uma livre tradução paralela ao original. Eu considero a transcriação superfiel ao original, porque não é fiel apenas ao conteúdo do original, mas ao travamento formal microestrutural desse conteúdo, a tudo o que está semantizado” (CamposCampos, Haroldo de. “Da transcriação à reimaginação”. Cult 13, (1998): 25., “Da transcriação à reimaginação”, 25).

Os textos de Lucio Mariani estão entre os últimos em uma serie de traduções/transcriações haroldianas a partir da língua italiana que inclui Dante Alighieri, alguns stilnovisti, Ungaretti; justamente no prefácio ao Seis cantos do Paraíso, Haroldo define a sua “operação tradutora”:

Tudo isso o tradutor tem que transcriar, excedendo os limites de sua língua, estranhando-lhe o léxico, recompensando a perda aqui com uma intromissão inventiva acolá, a infratradução forçada com a hipertradução venturosa, até [...] aquela última Húbris […] que é transformar o original na tradução de sua tradução

(Campos, “Luz: a escrita paradisíaca”, 19).

E ainda:

Estes SEIS CANTOS DO PARAÍSO DE DANTE integram-me no meu projeto de tradução criativa - transcriação - de poesia […]. Trata-se de um modo de traduzir que se preocupa eminentemente com a reconstituição da informação estética do original em português, não lhe sendo portanto pertinente o simples escopo didático de servir de auxiliar de leitura desse original. Sua mira é produzir um texto isomórfico em relação à matriz dantesca, um texto que, por seu turno, ambicione afirmar-se como um original autônomo, par droit de conquête. Fiz [...] um percursos exploratório, ‘topografando’ o original, com vistas a assediá-lo programaticamente em alguns de seus passos mais inçados de dificuldades […].

(CamposCampos, Haroldo de. Bere’shith: a cena da origem:(e outros estudos de poética bíblica). São Paulo: Perspectiva, 1993., “Luz: a escrita paradisíaca”, p.7).

Lucio Mariani começou a publicar em 1972 e foi autor de oito volumes de poesia, entre os quais Il torto della preda (1995) e Qualche notizia del tempo (2001); também tradutor, verteu ao italiano os Carmina Priapea, Tristan Corbière, César Vallejo, Yves Bonnefoy e outros autores; seus livros foram traduzidos para numerosos idiomas. Seus poemas trazem/ interrogações filosóficas, atravessadas pelo amor pela história e pela cidade de Roma, pela antiguidade clássica, por Leopardi e pelo heterônimo pessoano Bernardo Soares; são poemas marcados por lampejos de erudição, na constante tensão e na dialética violenta entre silêncio e sentido (cf. PucciPucci, Pietro. “Ridurre a cosa umana il silenzio”. Parola estrema, Mariani, Lucio. Milano: Crocetti, 2007, pp.113-130.). Como escreveu seu tradutor para o espanhol, “además de los cultismos, dialectalismos, neologismos, puras y divertidas invenciones, hay que añadir la compleja estatura de su composición verbal (pienso en los numerosos encabalgamientos semânticos)” (Gómez-Oliver 180Gómez-Oliver, Valentí. “Postfacio”. Búsqueda de la sombra, Lucio Mariani Mariani. Madrid: Huerga y Fierro Editores, 2008, pp.179-181.). Mariani foi definido “Più che classicista, […] un autore classico: perché i riferimenti, nella sua poesia frequenti, al luminoso repertorio del pensiero e delle lettere dell’Antico sono sì orchestrati con la sicurezza nonchalante del cultore non occasionale ma altresì offerti [...] con un senso di evidente, stringente necessità” (Cortellessa 44Cortellessa, Andrea. “Lucio Mariani: l’accia del gomitolo”. Poesia 222, (2007): 44-45. Disponível em <http://luciomariani.it/su-di-me/laccia-del-gomitolo>. Acesso em:12/06/2012
http://luciomariani.it/su-di-me/laccia-d...
).

Em março de 2001 Haroldo e Mariani foram convidados pela UNESCO ao World Poetry Day em Athenas e Delphos, onde se conheceram. Começou então a correspondência curta – além do mais, Haroldo morreria em 2003 – mas intensa, na qual lemos as traduções que Haroldo fez das poesias de Mariani, e, na última carta, as sugestões do poeta romano. Na primeira carta, de 04/04/2001 Haroldo escreve:

[…] ancora sotto l’effetto del tuo bel libro QUALCHE NOTIZIA DEL TEMPO – tante belle cose – non ho potuto lasciare di cercare di trans-crearle nel mio brasilirico portocalido – almeno queste due – come dei ‘campioni’ di un possibile lavoro in cantiere.

Haroldo traduziu seis poemas, todos do volume Qualche notizia del tempo (Mariani, 2001Mariani. Qualche notizia del tempo. Milano: Crocetti, 2001.): “Piazza Navona”, “Sulla lingua”, “Avventure di poeta”, “Cadenze”, “Memorabilità”, “Di poesia hai bisogno”. Os seis textos são, com exceção de “Piazza Navona”, muito curtos, dois em uma única estrofe de 4 versos (“Avventure di poeta” e “Di poesia hai bisogno”), um de seis (“Cadenze”), um de sete (“Sulla lingua”). “Piazza Navona” foi o único poema que teve três versões, em 04/04/2001, 05/04/2001 e em 24/06/2001.

Nas traduções podemos observar, por exemplo em “Aventuras de poeta”, aquilo que Haroldo, falando de suas transcrições em Bere’sShit definiu como “‘reorquestração’ ou ‘reconfiguração’ – em termos de ‘trans-criação’ – das articulações fonossemanticas e sintático-prosódicas do texto de partida (Campos, qtd inSelingmann-Silva, 2005Selingmann-Silva, Márcio. “Haroldo de Campos: tradução como formação e ‘abandono’ da identidade”. O local da diferença. Ensaios sobre memória, arte, literatura e tradução, Marcio Selingmann-Silva (Org). São Paulo: Editora 34, 2005. pp. 189-204., p.199): isso é visível lá onde há diferentes versões, mesmo quando tão. A meta de Haroldo é a transluciferação (CamposCampos, Haroldo de. “Da tradução como criação e como crítica”. Transcriação. Marcelo Tápia & Thelma Médici Nóbrega (Orgs). São Paulo: Perspectiva, 2015. pp.1-18., “Transluciferação mefistofáustica”, 209) que critique, recrie e finalmente oblitere o original.

No dia 27 de junho de 2001 Haroldo ministrou em Roma uma palestra sobre a poesia brasileira, apresentando vários textos de poetas brasileiros traduzidos para o italiano: Gregório de Matos, Botelho de Oliveira, os árcades, Alencar e muitos outros autores, em traduções dele ou alheias (dois sonetos de Gregório foram traduzidos por mim). Na segunda carta enviada a Lucio Mariani, Haroldo, estando em Milão, convidou o poeta romano para assistir à palestra, mas, confiado nos correios italianos, enviou a correspondência em 24/06/01 e a carta foi recebida por Mariani só em 02/07, impedindo o reencontro dos poetas.

2. Poemas de Lucio Mariani e traduções de Haroldo de Campos

A seguir, os textos de Mariani em italiano, as traduções de Haroldo, a eventual revisão de Mariani e observações. Por falta de espaço, não pude transcrever integralmente o conteúdo das correspondências. Estou anexando a reprodução das três versões da transcriação de Piazza Navona.

“Piazza Navona”

In memoria di Gino Bonichi (in arte, Scipione), ultimo pittore di Roma barocca, morto di tisi nel 1933 all’età di 29 anni, come aveva predetto un monaco spagnolo.

Quella sera la tua pazienza mistica
gettò il guanto alla cruda primavera
e abbandonò i pennelli dolci e biondi.
Il petto sputò tutto il sangue caldo
in faccia al cielo di Piazza Navona
che prese fuoco
e di quel fuoco avvolse fondi e chiese
guglie, fontane e case.
Lasciò illese di biacca
le code dei tritoni e le conchiglie
perché le trombe dell’apocalisse
tuonassero più forte.
Tutto era stato detto a Collepardo
dal presagio spagnolo della morte.
E tu incendiasti Roma.
E Roma ricordando, ancora brucia.

Gino Bonichi foi um pintor romano, morto precocemente em 1933. Em 1929 passou uma temporada na aldeia de Collepardo, no interior do Lácio. Sobre o pintor, veja-se Marchiori, 1971Marchiori, Giuseppe. “Gino Bonichi”. Dizionario Biografico degli Italiani Treccani. Vol. 12, 1971. Disponível em http://www.treccani.it/enciclopedia/gino-bonichi_(Dizionario-Biografico)/. Acesso em 12/02/2020.
http://www.treccani.it/enciclopedia/gino...
. Piazza Navona é uma obra de Bonichi, na qual a praça romana aparece em tons de vermelho-sangue. Cf: https://www.alamy.com/stock-photo-navona-square-piazza-navona-scipione-aka-gino-bonichi-95200842.html.

Primeira versão de Haroldo, em 04/04/2001:

…O peito esputou todo o sangue cálido
na cara do céu da Piazza Navona
que pegou fogo // e no fogo envolveu igrejas, <↓> fundos,
agulhas, fontes, casas.
Deixou ilesas de carvão
As caudas dos tritões e as conchas
para que as trompas do apocalipse
troassem mais forte.
Tudo já fora dito em Montepardo / pelo áugure espanhol da morte <↓>préssago
E tu incendiaste Roma. E Roma, em tua memória, queima ainda

Nesta primeira página, Haroldo mistura carta, dedicatória e traduções de parte de “quella Barocca Piazza Navona”, de Cadências e Aventuras de Poeta no “brasilirico portocalido”.

Figura 1
Haroldo, 04/04/2001

Segunda versão de Haroldo, em 05/04/2001:

Piazza NavonaAquela tarde tua paciência mística
lançou a luva à crua primavera
e largou pincéis doce-alourados
O peito esputou todo o sangue cálido
na cara do céu da Praça Navona
que pegou fogo
e o fogo envolveu igrejas e pedras
angulares agulhas, fontes, casas.
Deixou ilesas de carvão
as caudas de tritões e as conchas
para que as trompas do apocalipse
troassem mais forte.
Tudo já – fora dito em Montepardo
por um áugure espanhol <↓> pressagioso de morte.
E incendiaste Roma,
E Roma, em tua memória, queima ainda.
Lucio Mariani Transbrasilizazione [sic]: Haroldo de Campos San Paolo del Brasile 05/04/2001

A segunda versão surge apenas um dia depois da primeira. Note-se o acréscimo posterior do nome do autor e do tradutor, bem como de local e data.

Figura 2
Haroldo, 05/04/2001.

Terceira versão de Haroldo:

[...] Per Piazza Navona, la versione finale è la seguente:
Naquela tarde tua paciência mística
lançou a luva à primavera crua
e largou os pincéis doce-aloirados
O peito cuspiu todo o sangue cálido
na cara do céu à Piazza Navona
que pegou fogo
e no fogo envolveu igrejas, pedras
angulares, agulhas, fontes e <↑>xxxxxx<↑>casas.
Deixou ilesas de carvão
as caudas dos tritões e as conchas
para que as trompas do apocalipse
tocassem mais forte.
Tudo já fora dito em {<↑>Collepardo ?<↑>Montepardo?, préssago,
por um augúrio espanhol de morte.
E incendiaste Roma,
E Roma, em tua memória, queima ainda
24.06.2001

Esta versão foi enviada na última carta de Haroldo, já de Milão. Haroldo promete mostrar a Mariani “parecchie” traduções de seus poemas no encontro que não aconteceu.

Figura 3
Haroldo, 26/06/2001.

Curiosamente, nas três versões Haroldo muda Collepardo, lugar real apesar do nome de alguma forma pitoresco, para Montepardo, o que só na terceira versão gera uma dúvida não resolvida (<↑>Collepardo ?<↓>Montepardo?). Esta seria “la versione finale”.

Há algumas diferenças entre as três versões. A mais relevante é a falta dos primeiros quatro versos na primeira versão, que começa diretamente com “o peito esputou…”

Na primeira e na segunda versão, “o peito esputou o sangue” e na terceira “o peito cuspiu”.

Na primeira e na segunda versão, “na cara do céu da Piazza Navona” e na terceira “à Piazza Navona”.

Na primeira versão “e no fogo envolveu igrejas, <?> fundos, / agulhas, fontes, casas.” e na segunda e na terceira “e no fogo envolveu igrejas, pedras / angulares, agulhas, fontes e casas”.

Na primeira e na segunda versão, “troassem mais forte” e na terceira “tocassem”.

Na primeira versão, “pelo áugure espanhol da morte, préssago”.

Na segunda versão, “por um áugure espanhol, pressagioso de morte”.

Na terceira versão, “em Collepardo-Montepardo, préssago / por um augúrio espanhol de morte”.

Em todas as versões, Haroldo omitiu a dedicatória a Gino Bonichi e a contextualização do poema consagrado ao jovem pintor: assim, aquilo que era homenagem a um personagem real assume um tom quase que expressionista na explosão de cores e sons em uma paisagem à la Dali, em que a ausência de referencial torna mais fortes e abstratas as imagens, em si já poderosas, de Mariani. Aliás, veremos mais adiante que, de uma forma geral, as transcriações de Haroldo tendem a uma decapagem, à depuração de imagens e sons de suas referências imediatas, por vezes biográficas (ainda que mediados poeticamente), tornando os versos – já breves e ricos de concisão – ainda mais explosivos em suas iluminações e epifanias.

Versão revisada por Mariani, enviada em 04/07/2001:

“PIAZZA NAVONA”Naquela tarde tua paciência mística
lançou a luva à primavera crua
e pegou os pincéis doce-alourados.
O peito cuspiu todo o sangue cálido
na cara do céu a Piazza Navona
que pegou fogo
e o fogo envolveu igrejas pedras
angulares, fontes e casas.
Deixou alvaiadadas (*)
as caudas dos tritóes e as conchas
para que as trompas do apocalipse
tronassem mais forte.
Tudo já fora dito em Collepardo
por um presságio espanhol de morte.
E incendiaste Roma.
E Roma, em tua memória, queima ainda.
(*) Non so se la mia soluzione funzioni. Ma “illese di bianchi” pretende di dire “illese [dal rosso] grazie ai bianchi”.
(*) Carvào non va. Vuol dire carbone. Io intendo riferirmi alla biacca, carbonato di calcio, uno dei bianchi in pittura.

Observamos aqui que Mariani entende como erro, e corrige, a escolha de Haroldo por carvão; prefere troassem (que escreve como tronassem, por assonância com o italiano) a tocassem, opção preferida por Haroldo na terceira versão; rejeita a escolha do adjetivo préssago preferindo um presságio que segue o seu original; rejeita a opção Montepardo no lugar de Collepardo (novamente vemos como Haroldo subtrai a conotação real, que não lhe interessa, em favor de uma sonoridade que possivelmente lhe pareça mais adequada). De uma forma geral, portanto, o poeta romano opta pelo respeito pela letra de seu texto, descartando invariavelmente as propostas e inovações de Haroldo.

Na carta de 04/07/2001, além de lamentar o desencontro, Mariani escreve: “[...] talvolta ho avuto l’audacia di intervenire [nas traduções], come noterai dai dattiloscritti. Fra l’altro, ora ‘Piazza Navona’ è perfetta”.

B) Sulla linguaFemmine e spezie, a spalmarle sulla lingua,
tieni conto dei differenti porti di partenza
con quale inclinazione le colpirono raggi di sole
e bali della luna, quante arti le han confuse
e quante mani per renderle migliori ad incontrarti,
in che modo l’uso o l’abuso loro ti saprà conservare
nel sorriso.

“Bali”, a confirmar o gosto de Mariani por uma língua rebuscada e inventiva, parece um ousado neologismo, criado por analogia de “bagliori” e “baluginii”.

Única versão de Haroldo, em 26/06/2001

Sobre a línguaMulher e espiciarias [sic] espalmando
na língua, que se atente para os portos
diversos de partida: o sol radiante
os tocam tendo qual inclinação?
||(e os palores da lua? de quantas artes
lua? de artes confusas,
confusas
quantas? e quantas mãos, para encontrar-te
a melhoraram? o uso e ab
>>o uso e abuso delas
>>como e quanto te saberá conservar
>>no<↑> teu <↓> ? sorriso

Não há revisão de Mariani, que escreve: “(Il testo mi è stato incomprensibile in moltissimi punti. Scusami!)”.

Relevante aqui a escolha de Haroldo de diminuir o número de sílabas de cada verso (em italiano 12, 16 17, 15, 16, 18, 4), desdobrando assim em nove os sete versos de Mariani: de um andamento dialógico quase sem fôlego, corrido, passa-se assim a um ritmo mais quebrado e com frequentes interrogações diretas, ausentes em italiano, que substituem à plácida sabedoria amorosa da voz do poeta – quase um mentor erótico dirigindo-se a um jovem discípulo – a incerteza trépida do texto brasileiro.

C) Avventure di poetaNon c’è avventura
che faccia paura
purché possa esaurirsi
in pochi versi

Primeira versão de Haroldo, em 04/04/2001:

Aventuras de poeta
Aventura não há
que cause tremura
sempre que se exaura
em poesia parca

Segunda versão de Haroldo, em 24/06/2001:

aventuras de poeta
aventura não há
que cause tremura
ainda quando se exaura
em poesia parca

Entre a primeira e a segunda versão, observam-se pequenas mas significativas diferenças: além da escolha de não utilizar maiúsculas, vemos que Haroldo na segunda versão grifa o título e sobretudo as rimas e a assonância. No verso 3, há a substituição de “sempre que” por “ainda quando”, nenhuma das duas traduções literais de “purché”, mas a segunda versão vai um pouco além: “purché” tem valor condicional, longinquamente mantido com “sempre que”, mas “ainda quando” introduz uma noção concessiva.

Podemos observar que Haroldo, além de manter a rimalmezzo “AUR”, dos versos italianos 3-4, introduz uma outra rimalmezzo nos versos 1-2; também foi acrescentada a assonância entre o penúltimo e o último verso (AURA-ARCA). Isto se perdeu na revisão de Lucio Mariani, que perseguiu maior literalidade na tradução.

A versão/revisão de Mariani:

AVENTURAS DE POETAAventura não ha
que cause tremura
com quanto que se exaura
em versinhos

No verso 4, Mariani traduz corretamente “purché” com “conquanto que”, voltando à ideia de condição e rejeitando a concessão, mais hesitante, mais expressão de uma dúvida quase trépida, de Haroldo. “Versinhos é correto, mas desperdiça a assonância transcriada por Haroldo”.

D) CadenzeMastico lento una composta noia
preso dai giochi del cane circense
che mi costuma alla dimessa gioia
di cadenze del tempo meno dense.
Nel risparmio di zuccheri e passione
s’attana il ragno della mia pensione

Neste texto encontramos evidências do gosto de Mariani por termos obscuros e pouco comuns – o que, constatamos mais uma vez, certamente deve ter motivado e instigado Haroldo – como “attana”, do verbo attanare que pode ser criação do poeta e que, de qualquer forma, pode ser interpretado como sinônimo de “rintana”, significando “ stare nella tana” e, portanto, “ficar na toca”.

Primeira versão de Haroldo, em 04/04/2001:

CadênciasMastigo lento uma composta <↓>nausea
proximo de onde <↓>folgam cães <↓> circenses
que me acostuma a alegria <↓>agora exausta
de cadências de tempo <↓> menos densas
-x-
Na poupança de açúcar <↓> e paixões
se entranha a aranha de <↓> minha pensão

Segunda versão de Haroldo, em 24/06/2001:

Cadênciasp.53 Mastigo lento uma composta náusea
perto de onde cães circenses brincam <↓>folgam cães circenses (OK!)
que me acostuma à alegria ora exausta
de cadências do tempo menos densas.
Na poupança de açúcar e paixão
se entranha a aranha da minha pensão
[s’attana il ragno

Aqui talvez haja uma lembrança de João Cabral, não por acaso citado em “Da tradução com criação e como crítica”:

A aranha passa a vida
tecendo cortinados
com o fio que fia
de seu cuspe privado
(Cabral, qtd inCampos, 2017, p.2-3Campos, Haroldo de. “Para além do princípio de saudade: a teoria benjaminiana da tradução”. Transcriação, Marcelo Tápia & Thelma Médici Nóbrega (Orgs). São Paulo: Perspectiva, 2015. pp.47-59),

assim como suas rimas ressoam um eco da letra de qualquer coisa de Caetano Veloso, com suas numerosas rimas em –anha (manha/aranha/sanha/arranha/Espanha/tamanha/manhã). Lembre-se, aliás, a relação criativa entre Caetano e os irmãos Campos: em 1979 o artista baiano cantou, musicada por Péricles Cavalcanti, a tradução que Augusto de Campos fez da Elegia XIX, de John Donne (Veloso, 1979Veloso. Cinema Transcendental. Holanda: Philips, 1979.) e em 1991 gravou o poema “Circuladô de fulô”, de Haroldo (Galaxias), no album homônimo (Veloso, 1991Veloso, Caetano. Circuladô de fulô. Holanda: Phonogram/Philips, 1991.).

Admirável a introdução da rima interna “se entranha a aranha de minha pensão”. Observe-se que Haroldo substituiu “noia”, tédio, por náusea: noia é termo tradicionalmente associado à situação do aposentado, que é o tema motivador do texto de Mariani. O que Haroldo introduz transgressivamente aqui, com um dislocamento semântico ousado e quase que metafísico, é o movimento que vai do tédio à náusea no sentido sartreano. Outra alteração transforma um cachorro que brinca (circense neste sentido) em vários cachorros, modificando portanto o contexto para uma visão quase surreal de um espaço sufocante e de devastadora melancolia com a presença oximórica e angustiante de cães saltitantes e barulhentos.

Entre a primeira e a segunda versão, há pequenas diferenças:

v.2: próximo de onde / perto de onde

v.2: “folgam cães circenses” / inicialmente mudado para “cães circenses bricam”, mais literal e sucessivamente rejeitado;

v.3 “alegria agora exausta”/ “alegria ora exausta”, com pequena alteração de ritmo;

v.5: “paixões” / “paixão”, mais literal, mas principalmente mantendo a rima e sobretudo a noção não de vagas paixões mas da paixão em si, do afã vital sugado pela idade e pela aposentadoria.

A revisão de Mariani:

Mastigo lento um composto tédio<?>enfado
caturado nos jogos do cão circense
que me acostuma à humilde e exausto gaudio
de cadéncias do tempo menos densas.
Na poupança de açucar e paixao
se entranha a aranha da minha pensão

As mudanças introduzidas por Haroldo são rejeitadas por Mariani, que novamente busca uma tradução mais literal de seus textos, provocando um ritmo mais pausado.

E) MemorabilitàDatemi
ancora
una storia da cantare
oppure riprendetevi
il sole, il cielo, il mare

Versão de Haroldo, em 24/06/2001

Dá-me agora
agora
algo para cantarolar
ou então retoma
o sol o céu o mar

Aqui deve ser observada a rimalmezzo invertida. Observemos que Haroldo muda a pessoa do interlocutor da voz poética (da segunda plural para a segunda singular), introduz a urgência de “agora” no lugar do mais previsível “ainda”, mantendo assim a sonoridade do original, elimina “una storia” preferindo “algo”, numa sinfonia de A e O pouco interrompida por outras vogais. Interessante também a eliminação das vírgulas do v.5, com o resultado de uma sequência novamente marcada pela urgência.

Revisão de Mariani:

Da-me
agora
algo para cantarolar
ou então retome
o sal, o céu, o mar

MarianiMariani. Parola estrema. Milano: Crocetti, 2007. acata quase integralmente as sugestões de Haroldo, com exceção do v.4 (“retome” por “retoma”) e a reintrodução das vírgulas no v.5. “Sal” possivelmente seja erro de digitação.

F) Di poesia hai bisognoper giovare
oh mia bella ragione
nera come una femmina pantesca

Novo exemplo do gosto de Mariani por palavras raras: pantesca, feminino do adjetivo pantesco, “da ilha de Pantelleria”.

Única versão de Haroldo, em 24/06/2001:

De poesia carece
para brincar,
ò minha bela razão
(negra
(da pretidão de uma mulher pantesca

Aqui Haroldo opta pelo significado mais incomum de giovare, “dilettare, piacere, essere gradito”. A opção por “da pretidão”, preferida a “negra”, pode ser devida à intenção de manter a medida do endecassílabo italiano.

Revisão de Mariani:

De poesia carecei
para brincar,
o minha bela razão
negra como <↓> da pretidão (?) de uma mulher pantesca
(?) Trovo solo il verbo “pretejar”(nereggiare) [Nota de Mariani]

Conclusões

A correspondência foi interrompida depois do desencontro romano dos dois poetas; é precioso o testemunho dos poemas trocados pelos dois autores, e aqui deve ser ressaltada a escolha do tradutor por textos muito breves, à exceção de “Piazza Navona”, quase ao gosto de certa poesia japonesa e como illuminations rápidas e surpreendentes, pequenas epifanias instantâneas que escondem em sua brevidade o cinzel meticuloso do autor. Emudecidos os autores, nos resta o lampejo do labor cuidadoso, intenso e rápido do transcriador Haroldo, certamente estimulado também pelas asperezas e dificuldades dos poemas herméticos e “pietrosi” de Mariani. Como Benjamin, Haroldo escolhia textos “difíceis”, no quais o corpo a corpo permitisse uma maior tensão re/trans-criativa: “quanto mais inçado de dificuldades esse texto, mais recriável, mais sedutor enquanto possibilidade aberta de recriação” (CamposCampos, Haroldo de. “Luz: a escrita paradisíaca”. 6 cantos do Paraíso, Alighieri, Dante. Tradução de Haroldo de Campos. São Paulo: Fontana/Instituto Italiano de Cultura, 1976. pp.9-19., “Da tradução como criação e como crítica”, 5). Os versos densos e ásperos, luminosos e eruditos de Mariani tornam-se pedras de toque para transformar a intraduzibilidade da função poética jakobsoniana na transcriação generosa e rebelde de Haroldo, na transbrasilização e aliás na haroldização dos textos de Mariani, num rebuliço poético-caótico primordial, vortex poundiano que, fiel ao Make it new!, faz dos textos do poeta romano – sem arrancá-los definitivamente de seu autor – novas páginas haroldianas, numa “dessacralização pela leitura ao revés” (CamposCampos, Haroldo de. “Da transcriação: poética e semiótica da operação tradutora”. Transcriação, Marcelo Tápia & Thelma Médici Nóbrega (Orgs). São Paulo: Perspectiva, 2015. pp.77-104., Transluciferação mefistofáustica, 208). Assim, aqui temos o privilégio de observar a metodologia de trabalho de Haroldo, suas escolhas, suas dúvidas e revisões incessantes, que traduzem o work in progress infinito de um criador inesgotável e generoso.

Referências

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    » https://www.academia.edu/10908299/Translation_James_Joyce_the_Translator_

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    23 Abr 2021
  • Data do Fascículo
    Jan-Apr 2021

Histórico

  • Recebido
    27 Set 2020
  • Aceito
    01 Dez 2020
  • Publicado
    Jan 2021
Universidade Federal de Santa Catarina Campus da Universidade Federal de Santa Catarina/Centro de Comunicação e Expressão/Prédio B/Sala 301 - Florianópolis - SC - Brazil
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