Acessibilidade / Reportar erro

A construção de um material de ensino da tradução no par português-espanhol

The construction of a translation teaching material in the PortugueseSpanish pair

Resumo

Apesar dos avanços dos Estudos da Tradução, a partir da constituição de uma disciplina e da clara separação entre seus ramos puro e aplicado (Holmes, 2000), observa-se que determinadas pesquisas dentro da área, como é o caso das voltadas à formação de tradutores, são incipientes. Se tivermos em conta determinadas combinações linguísticas, como o português-espanhol (Bevilacqua, 2017; Cintrão, 2006; Malta, 2017), constataremos que as contribuições são ainda mais escassas. Com o objetivo de apresentar uma proposta de material de ensino de tradução do par português-espanhol, e assim contribuir com o campo em que se insere, bem como tratando de atender à necessidade, conforme sustenta Hurtado Albir (2001), de pesquisas que se dediquem à elaboração de materiais didáticos para o ensino da tradução, apresentamos neste artigo o percurso trilhado para a criação de um conjunto de unidades didáticas que aborda determinadas tendências do funcionamento contrastivo entre as línguas portuguesa e espanhola. Iniciamos o presente trabalho com a discussão teórica que o subjaz a partir das noções de ensino da tradução (Hurtado Albir, 1999), das teorias de ensino e aprendizagem relativas à formação de tradutores (Hurtado Albir, 1999, 2001, 2005, 2019; Kelly, 2005; Kiraly, 1995, 2000), do conceito de competência tradutória e sua aquisição (Hurtado Albir, 2005; PACTE, 2001, 2017), da perspectiva comparada do par português-espanhol (Fanjul & González, 2014) e da noção de problemas de tradução (Nord, 2005). De um ponto de vista metodológico, partimos de uma experiência real de tradução efetuada em um projeto de extensão para a seleção de conteúdos do material e, no que tange à sua elaboração, apoiamo-nos no chamado enfoque por tarefas. Finalmente, apresentamos a proposta geral de nosso material, e como tais concepções teórico-metodológicas se refletem em nossa práxis, por meio da exemplificação de uma das unidades elaboradas.

Palavras-chave
formação de tradutores; material didático; par português-espanhol; competência tradutória

Abstract

Despite the advances in Translation Studies, from the establishment of a discipline and the clear separation between its pure and applied branches (Holmes, 2000), it can be observed that certain research within this area, such as those related to translator training, are very incipient. If we consider certain language combinations, such as Portuguese-Spanish (Bevilacqua, 2017; Cintrão, 2006; Malta, 2017), we will find that contributions are still scarce. In order to present a teaching material proposal for the translation of Portuguese-Spanish pairs and contribute to this field, as well as addressing the need, as proposed by Hurtado Albir (2001), for research focused on the development of didactic materials for translation teaching, we present in this article the path taken in creating a set of didactic units that address certain tendencies in the contrastive functioning between the Portuguese and Spanish languages. The article begins with a theoretical discussion that underlies our work, based on notions of translation teaching (Hurtado Albir, 1999), teaching and learning theories aimed at translator training (Hurtado Albir, 1999, 2001, 2005, 2019; Kelly, 2005; Kiraly, 1995, 2000), concepts of translation competence and its acquisition (Hurtado Albir, 2005; PACTE, 2001, 2017), a comparative perspective of the Portuguese-Spanish pair (Fanjul & González, 2014) and the notion of translation problems (Nord, 2005). From a methodological point of view, we start from a real translation experience in an extension project for the selection of contents of the material, and in terms of its development, we rely on the so-called task-based approach. Finally, we present the overall proposal of our material, and how these theorical and methodological concepts are reflected in our practice, through the exemplification of one of the developed units.

Keywords
translator training; didactic material; Portuguese-Spanish pair; translation competence

1. Introdução

A consideração da tradução enquanto disciplina autônoma é um fato bem recente, remontando à década de setenta as primeiras tentativas de sua categorização. Nesse campo, tem destacado pioneirismo James Holmes (2000)Holmes, J. S. (2000). The name and nature of translation studies. In L. Venuti (Ed.), The Translation Studies Reader. (pp. 172–185). Routledge., pois não apenas buscou separar os Estudos da Tradução de outras áreas a que costumavam ser vinculados, como também esboçou de maneira mais nítida uma classificação de seus distintos ramos.

Para os efeitos deste trabalho, que tem como objetivo apresentar uma proposta de material de ensino de tradução do par português-espanhol, tal classificação nos interessa na medida em que propõe uma cisão entre os chamados estudos puros da tradução, voltados à teoria e às pesquisas de cunho mais descritivo (orientadas ao produto, ao processo ou à função da tradução), daqueles estudos de tipo aplicado que, como o nosso a seguir descrito, dedicam-se a investigar a formação, ou seja, os métodos empregados, as técnicas, o currículo e o planejamento do ensino.

Apesar de a constituição da disciplina ser um passo fundamental na consolidação de uma área de estudos, não garante per se a sua imediata independência e tampouco o desenvolvimento igualitário de todos os seus ramos, em todos os lugares onde estão presentes. O caso da formação de tradutores no contexto brasileiro é exemplo disso.

É comum ainda nos dias de hoje encontrarmos em nosso território a formação em tradução atrelada aos cursos de Letras1 1 Para se ter uma ideia, em consulta realizada na página do Ministério de Educação brasileiro em 2023 (Cadastro Nacional de Cursos e Instituições de Educação Superior - Cadastro e-MEC), aparecem 36 cursos que trazem a menção “tradução” ou “tradutor” como parte de seu nome, mas apenas 12 não se constituem como uma habilitação dos cursos de Letras. , o que poderia demonstrar, como bem assinala Cintrão (2012)Cintrão, H. P. (2012). Disciplinas de tradução português-espanhol num Bacharelado em Letras: Uma proposta para a Universidade de São Paulo. In O. Díaz Fouces (Ed.), Olhares & Miradas: Reflexiones sobre la traducción portugués-español y su didáctica (pp. 11–52). Atrio., uma visão estreita sobre as competências necessárias para ser tradutor/a. Por outro lado, poderia evidenciar um desconhecimento dos conteúdos trabalhados nos cursos de Letras, que já supõem determinadas especificidades inclusive dentro das próprias habilitações de bacharelados e de licenciaturas, e que, justamente por não terem a formação em tradução como objetivo, podem não contar em seu currículo com o olhar especializado que tal prática requer.

Do ponto de vista da pesquisa, e embora tenha havido um aumento no número de pós-graduações e de linhas específicas em Estudos da Tradução (PGET/UFSC desde 2003; POSTRAD/UnB e antigo TRADUSP, atual LETRA/USP, desde 2011; POET/UFCE, desde 2014, para citar alguns exemplos), os trabalhos sobre a formação não são exatamente os mais proeminentes (Rodrigues, 2012Rodrigues, C. C. (2012). Desafios ao ensino da tradução. Abehache, 3, 13–24.). Os dados obtidos por Malta e Paiva (2019)Malta, G., & Paiva, W. (2019). Mapa bibliométrico das pesquisas sobre formação de tradutores realizadas no Brasil entre 2008 e 2018. Caderno de Resumos do XIII Encontro Nacional de Tradutores e VII Encontro Internacional de Tradutores, 2(1), 156. em teses e dissertações produzidas entre 2008 e 2018 em distintos programas de pós-graduação brasileiros – não apenas em Estudos da Tradução, mas inclusive em Estudos Linguísticos, Letras e Linguística Aplicada –, por exemplo, demonstraram a existência de 36 trabalhos vinculados à tradução, mas poucos deles voltados à formação dos futuros profissionais que se dedicarão a esse ofício.

Para determinados pares linguísticos, como o português e o espanhol, as pesquisas voltadas à tradução e, especificamente, à formação de tradutores, são menos frequentes. No cenário nacional, recebem destaque trabalhos como os de Cintrão (2006)Cintrão, H. P. (2006). Colocar lupas, transcriar mapas: Iniciando o desenvolvimento da competência tradutória em nível básico de espanhol como língua estrangeira. [Tese de Doutorado]. Universidade de São Paulo. https://www.teses.usp.br/teses/disponiveis/8/8145/tde-08082007-145636/en.php
https://www.teses.usp.br/teses/disponive...
, a partir da proposta de treinamento em tradução dentro de um curso de Letras Português-Espanhol, com foco no desenvolvimento da competência tradutória; de Bevilacqua (2017)Bevilacqua, C. R. (2017). Revisão de Textos Traduzidos: uma experiência na formação de tradutores de português-espanhol. Caracol, (14), 82–102. https://doi.org/10.11606/issn.2317-9651.v0i14p82-103
https://doi.org/10.11606/issn.2317-9651....
, ao discutir a revisão na formação de tradutores; e de Malta (2017)Malta, G. (2017). Abordagem processual e ensino de tradução: uma proposta de unidade didática para o par espanhol-português baseada em dados de rastreamento ocular e registro de teclado e mouse. Caracol, (14), 42–80. https://doi.org/10.11606/issn.2317-9651.v0i14p42-81
https://doi.org/10.11606/issn.2317-9651....
, quem apresenta uma proposta de unidades didáticas com base no enfoque por tarefas e em dados empíricos de processo tradutório.

Nessa direção, e com vistas a atender à necessidade de pesquisas no campo da didática da tradução, como indica a pesquisadora catalã Hurtado Albir (2001)Hurtado Albir, A. (2001). Traducción y traductología. Cátedra., trazemos no presente artigo nossas reflexões e a experiência de elaboração de uma proposta de material de ensino de tradução no par português-espanhol.

Tal proposta se fundamenta nas noções de ensino da tradução (Hurtado Albir, 1999Hurtado Albir, A. (Dir.). (1999). Enseñar a traducir. Metodología en la formación de traductores e intérpretes. Edelsa.), nas teorias de ensino e aprendizagem concernentes à formação de tradutores (Hurtado Albir, 1999Hurtado Albir, A. (Dir.). (1999). Enseñar a traducir. Metodología en la formación de traductores e intérpretes. Edelsa., 2001Hurtado Albir, A. (2001). Traducción y traductología. Cátedra., 2005Hurtado Albir, A. (2005). A aquisição da competência tradutória: aspectos teóricos e didáticos. In A. Pagano, C. M. Magalhães, & F. Alves (Orgs.), Competência em tradução: cognição e discurso (pp. 19–57). EDUFMG., 2019Hurtado Albir, A. (2019). La investigación en didáctica de la traducción. Evolución, enfoques y perspectivas. MonTI, (11), 47–76. https://doi.org/10.6035/MonTI.2019.11.2
https://doi.org/10.6035/MonTI.2019.11.2...
; Kelly, 2005Kelly, D. (2005). A Handbook for Translator Trainers. St Jerome.; Kiraly, 1995Kiraly, D. (1995). Pathways to Translation: Pedagogy and Process. Kent State University Press., 2000Kiraly, D. (2000). A Social Constructivist Approach to Translator Education. St Jerome.), bem como nas noções de competência tradutória e sua aquisição (Hurtado Albir, 2005Hurtado Albir, A. (2005). A aquisição da competência tradutória: aspectos teóricos e didáticos. In A. Pagano, C. M. Magalhães, & F. Alves (Orgs.), Competência em tradução: cognição e discurso (pp. 19–57). EDUFMG.; PACTE, 2001PACTE. (2001). La competencia traductora y su adquisición. Quaderns Revista de Traducción, (6), 39–45., 2017). Parte ainda de uma perspectiva comparada do português brasileiro e do espanhol (Fanjul & González, 2014Fanjul, A., & González, N. M. (2014). Espanhol e português brasileiro: estudos comparados. Parábola.) e da compreensão de que determinados aspectos da comparação dessa combinação linguística constituem problemas de tradução (Nord, 2005Nord, C. (2005). Applications of the model in translation training. In C. Nord (Org.), Text Analysis in Translation: Theory, Methodology and Didactic Application of a Model for Translation-Oriented Text Analysis, 2. ed. (pp. 155–190). Rodopi.).

De um ponto de vista metodológico, selecionamos os itens objeto das unidades didáticas com base em um estudo de caso, a saber, uma experiência real de tradução produzida em um projeto de extensão universitário, levado a cabo na Universidade Federal da Integração Latino-Americana (Unila). Como eixo norteador na elaboração do material, adotamos o chamado “enfoque por tarefas”, por constituir-se como um arcabouço integrador que conjuga ao mesmo tempo objetivos, conteúdos, metodologia e avaliação.

2. A didática da tradução, os estudos sobre o ensino e aprendizagem e a aquisição da competência tradutória

O ensino da tradução, apesar de ser um campo em expansão, apresenta uma série de problemáticas, das quais a dependência do modelo linguístico e, nos termos de Hurtado Albir (1999)Hurtado Albir, A. (Dir.). (1999). Enseñar a traducir. Metodología en la formación de traductores e intérpretes. Edelsa., a sua não rara identificação com o ensino de línguas, é apenas uma delas.

A falta de um enfoque sistemático baseado em princípios e objetivos tanto pedagógicos quanto tradutológicos, uma concepção estrita ou equivocada de tradução, a ausência de critérios metodológicos, a não incorporação de contribuições de outras disciplinas e de modelos interpretativos e culturais, o foco no professor, a inexistência de aplicação dos resultados de pesquisas empíricas, a falta de distinção dos componentes que conformam a competência tradutória e de uma crítica quanto às práticas de ensino constituem alguns de seus principais dilemas (Hurtado Albir, 1999Hurtado Albir, A. (Dir.). (1999). Enseñar a traducir. Metodología en la formación de traductores e intérpretes. Edelsa.; Kiraly, 1995Kiraly, D. (1995). Pathways to Translation: Pedagogy and Process. Kent State University Press.).

Dentro dos Estudos da Tradução, cabe à didática o tratamento de tais questões, o que pode, de acordo com Hurtado Albir (2019, p. 54–63)Hurtado Albir, A. (2019). La investigación en didáctica de la traducción. Evolución, enfoques y perspectivas. MonTI, (11), 47–76. https://doi.org/10.6035/MonTI.2019.11.2
https://doi.org/10.6035/MonTI.2019.11.2...
, ser feito tanto a partir de uma orientação mais transmissionista e prescritivista, centrada no produto e, consequentemente, na figura docente, como a partir de uma orientação mais processual, centrada no aprendiz. No primeiro caso, como explica a estudiosa, teríamos uma didática tradicional, que se identificaria com o ensino de línguas e com os manuais de tradução; com os estudos contrastivos, sobretudo nos procedimentos de tradução e na comparação textual; e com os estudos fundamentalmente teóricos, dedicados aos tratados sobre a tradução. No segundo caso, o interesse estaria na forma como é desencadeado o processo tradutório; na formação baseada em metodologias ativas, pautadas por objetivos de aprendizagem; no enfoque por tarefas e projetos de tradução; em uma orientação de cunho socioconstrutivista; na formação por competências e na aprendizagem situada.

Na visão de Hurtado Albir (2005)Hurtado Albir, A. (2005). A aquisição da competência tradutória: aspectos teóricos e didáticos. In A. Pagano, C. M. Magalhães, & F. Alves (Orgs.), Competência em tradução: cognição e discurso (pp. 19–57). EDUFMG., independentemente da abordagem escolhida, tanto as teorias de ensino, isto é, aquelas pensadas por educadores e voltadas para o desenho curricular, seu planejamento e aplicação contextual, como as teorias de aprendizagem, baseadas em pesquisas desenvolvidas por psicólogos e dedicadas à observação dos comportamentos dos aprendizes e dos processos de construção do conhecimento, devem fundamentar a elaboração de quadros pedagógicos.

As teorias de ensino, indica a pesquisadora catalã (Hurtado Albir, 2005Hurtado Albir, A. (2005). A aquisição da competência tradutória: aspectos teóricos e didáticos. In A. Pagano, C. M. Magalhães, & F. Alves (Orgs.), Competência em tradução: cognição e discurso (pp. 19–57). EDUFMG.), voltam-se para o currículo, o que abarca os sujeitos e o contexto educacional objeto da formação (para quem e em que circunstâncias), os conteúdos (o que é ensinado), os objetivos (para quê), a metodologia (como), o sequenciamento (quando) e a avaliação (com quais resultados e critérios).

Já as teorias sobre a aprendizagem estariam divididas em dois tipos: as teorias comportamentais, que têm foco na aprendizagem como resultado e buscam observar as mudanças relacionadas ao ambiente que surtem efeitos no aprendiz; e as cognitivas, que tratam de verificar como ocorre a aquisição dos conhecimentos e que estruturas mentais são mobilizadas durante o processo de aquisição. Dentro desta última, destaca-se sobremaneira o construtivismo – fundado tanto na teoria cognitiva do estudioso suíço Jean Piaget (1968)Piaget, J. (1968). Psicología de la Inteligencia. (L. Fernandez Cancela, Trad.). Proteo., como na teoria sociocultural do psicólogo russo Vygotsky (1978)Vygotsky, L. S. (1978). Mind and Society: The Development of Higher Psychological Processes. (M. Cole, V. John-Steiner, S. Scribner, & E. Souberman, Orgs. & Trads.). Harvard University Press. e na aprendizagem significativa proposta pelo psicológico estadunidense Ausubel (1983)Ausubel, D. P., Novak, J. D., & Hanesian, H. (1983). Psicología Educativa: Un punto de vista cognoscitivo (2ª ed.). Trillas México. –, que se constitui como uma “perspectiva psicológica e filosófica que sustenta que as pessoas formam ou constroem grande parte do que aprendem e compreendem” (Schunk, 2012Schunk, D. H. (2012). Teorías del aprendizaje: una perspectiva educativa. 6. ed. (L. E. Pineda Ayala, & M. E. Ortiz Salinas, Trads.). Pearson Educación., p. 229, tradução nossa).

No que se refere à formação de tradutores, estudiosos como o canadense Jean Delisle e o estadunidense Donald Kiraly demonstraram pioneirismo no campo ao integrarem em suas práticas, cada um à sua maneira, tais teorias.

Com base nas teorias de ensino, a partir de uma metodologia ativa, Delisle (1980)Delisle, J. (1980). L’Analyse du discours comme méthode de traduction. Cahiers de Traductologie, (2). objetiva a compreensão da dinâmica envolvida no ato tradutório, com a descoberta dos princípios que devem ser seguidos para se aprender a traduzir (Hurtado Albir, 2001Hurtado Albir, A. (2001). Traducción y traductología. Cátedra., p. 166). Kiraly (1995Kiraly, D. (1995). Pathways to Translation: Pedagogy and Process. Kent State University Press., 2000)Kiraly, D. (2000). A Social Constructivist Approach to Translator Education. St Jerome., por sua vez, e com fulcro especialmente nas teorias de aprendizagem, opta por uma abordagem socioconstrutivista do ensino da tradução, na qual a colaboração ao realizar as atividades tem um papel central.

Nessa esteira, destacam-se ainda a já mencionada pesquisadora da Universidade Autônoma de Barcelona, Amparo Hurtado Albir (1999Hurtado Albir, A. (Dir.). (1999). Enseñar a traducir. Metodología en la formación de traductores e intérpretes. Edelsa., 2005)Hurtado Albir, A. (2005). A aquisição da competência tradutória: aspectos teóricos e didáticos. In A. Pagano, C. M. Magalhães, & F. Alves (Orgs.), Competência em tradução: cognição e discurso (pp. 19–57). EDUFMG., e a estudiosa da Universidade do Arizona, Sonia Colina (2015)Colina, S. (2015). Ensino de tradução: da pesquisa à sala de aula. Diretrizes para professores. (M. Esqueda et al., Trad.). EDUFU., cujos trabalhos conjugam as teorias de ensino e aprendizagem, especialmente na adoção do chamado “enfoque” ou “abordagem por tarefas”, entendido como um quadro metodológico e de desenho curricular de caráter global, que busca dar protagonismo ao estudante em seu processo de aquisição da competência tradutória (CT).

Convém neste ponto delinear com mais precisão o que vem a ser a CT. Conforme o grupo PACTE (2001, p. 41)PACTE. (2001). La competencia traductora y su adquisición. Quaderns Revista de Traducción, (6), 39–45., a competência tradutória pode ser entendida como: i) um sistema subjacente de conhecimentos, habilidades e aptidões necessárias para traduzir; ii) qualitativamente diferente da competência bilíngue; iii) conhecimento especializado que tem componentes declarativos (isto é, um “saber o quê”, no qual o indivíduo é capaz de verbalizar o conhecimento de determinada natureza, e que é adquirido de uma só vez, por meio da exposição, seja através de cursos, palestras etc.) e operacionais ou procedimentais (ou seja, um “saber como”, que torna o indivíduo capaz de agir, mas não de falar sobre um conhecimento adquirido, em linhas gerais, por meio da prática), sendo, portanto, bastante operacional; iv) formada por um conjunto de subcompetências, entre as quais existem relações, hierarquias e variações. Tais subcompetências se dividiriam em:

Subcompetência bilíngue: conhecimentos predominantemente procedimentais necessários para se comunicar em duas línguas; inclui a habilidade específica de controlar a interferência quando da passagem de uma língua a outra e compreende os conhecimentos pragmáticos, sociolinguísticos, textuais, gramaticais e lexicais. Conhecimento pragmático é o conhecimento das convenções pragmáticas necessárias para a realização de atos linguísticos que são aceitáveis em um dado contexto; eles tornam possível o uso da linguagem para expressar e entender as funções linguísticas e os atos de fala. O conhecimento sociolinguístico é o conhecimento das convenções sociolinguísticas necessárias para a realização de atos linguísticos que são aceitáveis em um dado contexto; isso inclui o conhecimento relativo ao registro (variações de acordo com o campo, a modalidade e relações) e o conhecimento dialetal (variações segundo os dialetos geográficos, sociais e temporais). O conhecimento textual é aquele relativo à tessitura do texto (mecanismos de coerência e coesão) e de diferentes gêneros com as suas respectivas convenções (tanto no nível estrutural como das características da linguagem etc.). O conhecimento léxico-gramatical é aquele que concerne ao vocabulário, à morfologia, à sintaxe e à fonologia/grafologia.

Subcompetência extralinguística: conhecimentos predominantemente declarativos, tanto implícitos como explícitos, sobre o mundo em geral e sobre áreas específicas; compreende: (1) conhecimentos biculturais (sobre a cultura-fonte e a cultura-alvo), (2) conhecimentos enciclopédicos (sobre o mundo em geral), (3) conhecimentos temáticos (sobre campos específicos).

Subcompetência de conhecimentos sobre tradução: conhecimentos predominantemente declarativos, tanto implícitos como explícitos, sobre o que é a tradução e sobre aspectos relativos à profissão; compreende: (1) conhecimentos sobre como a tradução funciona: unidades de tradução, processos necessários, métodos e procedimentos usados (estratégias e técnicas) e tipos de problemas; (2) conhecimentos referentes à prática profissional da tradução: o mercado de trabalho, tipos de encomendas de trabalho, público-alvo etc. (Outros aspectos também intervêm, como o conhecimento sobre as associações de tradutores, tarifas, impostos etc.)

Subcompetência instrumental: conhecimentos predominantemente procedimentais relativos ao uso de fontes de documentação, tecnologias de informação e comunicação aplicadas à tradução: dicionários, enciclopédias, gramáticas, manuais de estilo, textos paralelos, corpora eletrônicos, buscadores etc.

Subcompetência estratégica: conhecimentos procedimentais para garantir a eficácia do processo de tradução e a solução de problemas encontrados; trata-se de uma subcompetência essencial que afeta todas as demais, uma vez que faz com que interajam umas com as outras, em razão do seu controle do processo tradutório. Suas funções são: (1) planejar o processo tradutório e realizar o projeto de tradução (selecionando o método mais adequado); (2) avaliar o processo e os resultados parciais obtidos tendo em vista o seu propósito final; (3) ativar as diferentes subcompetências e compensar possíveis falhas; (4) identificar problemas de tradução e aplicar procedimentos para solucioná-los.

Componentes psicofisiológicos: diferentes tipos de componentes cognitivos e atitudinais e de mecanismos psicomotores; incluem (1) componentes cognitivos tais como memória, percepção, atenção e emoção; (2) aspectos atitudinais como curiosidade intelectual, perseverança, rigor, espírito crítico, conhecimento sobre e confiança nas próprias capacidades, capacidade para medir as próprias capacidades, motivação etc.; (3) capacidades como criatividade, raciocínio lógico, análise, síntese etc.

(PACTE, 2017PACTE. (2017). PACTE Translation Competence Model: a holistic, dynamic model of Translation Competence. In A. Hurtado Albir (Org.), Researching translation competence by PACTE Group (pp. 35–41). John Benjamins Publishing Company., p. 39-41, tradução nossa).

A aquisição da competência tradutória, consequentemente, seria compreendida como “um processo de reconstrução e desenvolvimento das subcompetências da competência tradutória e dos componentes psicofisiológicos”, ou seja, “um processo de reestruturação e desenvolvimento de um conhecimento novato (competência pré-tradutória) em um conhecimento especializado (competência tradutória)” (Hurtado Albir, 2005Hurtado Albir, A. (2005). A aquisição da competência tradutória: aspectos teóricos e didáticos. In A. Pagano, C. M. Magalhães, & F. Alves (Orgs.), Competência em tradução: cognição e discurso (pp. 19–57). EDUFMG., p. 30).

Retomando a questão da formação de tradutores, agora em âmbito local, Gonçalves e Machado (2006)Gonçalves, J. L. V. R., & Machado, I. T. N. (2006). Um panorama do ensino de tradução e a busca da competência do tradutor. Cadernos de Tradução, 1(17), 45–69. apontavam uma problemática separação didático-metodológica no contexto brasileiro, já que determinadas proposições estariam pautadas mais por uma reflexão teórica, enquanto outras estariam voltadas a um treinamento de tipo mais prático. Felizmente, encontramos exemplos que se descolam dessas práxis. Para citar dois deles, referimo-nos ao trabalho de Mello (2019)Mello, G. C. C. (2019). O ensino da Tradução por meio de uma prática reflexiva. Caderno de Resumos do XIII Encontro Nacional de Tradutores e VII Encontro Internacional de Tradutores, 2(1), 169–170., que discute a experiência desenvolvida por meio de disciplinas no bacharelado em tradução na Universidade Federal Fluminense; e às propostas didáticas desenvolvidas por pesquisadores das universidades públicas de Minas Gerais, reunidas no volume Ensino de Tradução: proposições didáticas à luz da competência tradutória (Esqueda, 2020Esqueda, M. D. (Org.). (2020). Ensino de Tradução: proposições didáticas à luz da competência tradutória. EDUFU.), que também discutem, a partir do viés da formação em tradução, o desenvolvimento da competência tradutória. Nossa proposta, apresentada neste trabalho, pretende somar-se a tais iniciativas.

3. Estudos comparados do par português-espanhol e problemas de tradução

Embora não sejam exatamente uma novidade, estudos comparados que se debruçam sobre o par português-espanhol têm nos trabalhos de Neide Maia González (1994)González, N. M. (1994). Cadê o pronome? O gato comeu: Os pronomes pessoais na aquisição/aprendizagem do espanhol por brasileiros adultos. [Tese de Doutorado]. Universidade de São Paulo. – que tratou em profundidade a questão dos pronomes na aquisição do espanhol por brasileiros – e de Silvana Serrani (1994)Serrani, S. (1994). Análise de ressonâncias discursivas em micro-cenas para estudo da identidade linguístico-cultural. Trabalhos em Linguística Aplicada, (24), 79–90. – quem analisou regularidades discursivas em microcenas produzidas por brasileiros e argentinos – importantes precursores. Ambos se constituem como exemplos-chave de uma mudança de perspectiva, posto que se caracterizam como estudos que já não se concentram em uma análise no nível da superfície, da palavra, mas que se voltam para as línguas em seu funcionamento, isto é, que as consideram como artefatos complexos, para as quais muitos elementos (não apenas os lexicais, mas também os sintáticos, os pragmáticos, os históricos, os sociais etc.) confluem na produção de sentidos.

Em outras palavras, esses estudos abrem caminho para diversos outros que têm na comparação minuciosa do funcionamento do português e do espanhol o seu fulcro. O volume Espanhol e português brasileiro: estudos comparados, organizado por Fanjul e González (2014)Fanjul, A., & González, N. M. (2014). Espanhol e português brasileiro: estudos comparados. Parábola., apresenta alguns pontos de interesse dessa complexa relação. A fim de recuperá-los e ampliar essa lista, podemos elencar os seguintes exemplos:

  1. a distribuição e situações de uso de itens lexicais supostamente sinônimos nas duas línguas (como no caso de doença/dolencia e enfermidade/enfermedad);

  2. a determinação (Brasileiro é assim mesmo. / Los uruguayos somos así.);

  3. a série de demonstrativos (Esse mês faço aniversário. / Este mes es mi cumpleaños.);

  4. as formas de tratamento e as relações de proximidade/familiaridade e distância/hierarquia (por exemplo, no emprego de tú/vos ou ustedes, em espanhol).

  5. assimetrias nos usos e distribuição de pronomes, especialmente de sujeito e de complemento (“ Você viu o Pedro? Eu vi. / Eu vi ele. / Eu o vi. / Vi.”; “– ¿Viste a Pedro? – Lo vi”)

  6. as construções oblíquas em cada uma das línguas (como no caso de preocupar, molestar, encantar, incomodar, cansar, tirar do sério etc.);

  7. o uso de reflexivos (a sua ausência/diminuição de emprego em contextos coloquiais em português, como em “A gente sentou na primeira fila.” e “Nos sentamos en la primera fila.”);

  8. a expressão da posse e o uso ou não de possessivos (“Voy a peinarem.” e “Vou pentear (os) meus cabelos.”);

  9. a ordem dos elementos nas orações (alteração da ordem canônica sujeito-verbo-predicado e suas implicações para a compreensão, em exemplos como “La escuela argentina fue y es la sede de esa ética de la responsabilidad educativa y de la convicción, del estilo productivo que tienen los saberes.” vs “... que os saberes têm.”);

  10. o uso e correspondência em relação aos pretéritos (por exemplo, no caso do pretérito perfeito composto do espanhol, como em “He desayunado temprano hoy.” e “Tomei café cedo hoje.”);

  11. as construções condicionais (com “se” e “si”, e as combinações com tempos/modos em cada uma das línguas, por exemplo, com o emprego de futuro do subjuntivo em português (se for), em desuso na linguagem cotidiana em espanhol);

  12. o uso e distribuição de infinitivos e subjuntivos nas orações subordinadas (com as temporais “quando/cuando” e “até/hasta” e finais “para/para”, segundo a coocorrência ou não de sujeito da oração principal na subordinada);

  13. o uso de impessoais e das passivas (neste último caso, com preferência pelas analíticas em português “Como é para ser feito?” e pelas sintéticas em espanhol “¿Cómo se hace?”);

  14. o uso de dativos (em exemplos como “Os óculos dela quebraram.” versusSe le han roto los anteojos.”)

É importante, de acordo com Celada (2008)Celada, M. T. (2008). Versiones de Babel: memoria de la otra lengua en la propia. SIGNOS ELE, (1–2)., que os estudos comparados do português e do espanhol observem:

Séries e recortes linguístico-discursivos nos quais seja possível detectar limiares de sistemáticas diferenciadas e delimitar tendências que apontem deslocamentos, transformações e direções no plano de uma relação de descontinuidade, cujos efeitos configuram limite(s) e traçam fronteira(s)

(Foucault, 1985Foucault, M. (1985). La arqueología del saber. 11. ed. (A. Garzón del Camino, Trad.). Siglo Veintiuno.) (Celada, 2008Celada, M. T. (2008). Versiones de Babel: memoria de la otra lengua en la propia. SIGNOS ELE, (1–2)., p. 1–2, tradução nossa).

Para Celada (2008, p. 2)Celada, M. T. (2008). Versiones de Babel: memoria de la otra lengua en la propia. SIGNOS ELE, (1–2)., o conceito de descontinuidade, tomado de Foucault e compreendido como designador de um lugar que opera a diferença, deveria se vincular ao conceito de memória, como “reguladora do funcionamento estrutural da língua”. A autora aponta que “o processo de separação entre o espanhol e o português […] tem justamente a ver com a repetição: com uma memória comum que se mantém na relação entre ambas” (Celada, 2008Celada, M. T. (2008). Versiones de Babel: memoria de la otra lengua en la propia. SIGNOS ELE, (1–2)., p. 2, tradução nossa).

De nossa perspectiva, tal consideração demanda um trabalho que vá além das listas baseadas em falsos cognatos ou erros, e procure atender e entender as necessidades dos aprendizes que buscam inscrever-se em uma língua (e tudo o que ela contempla cultural, histórica e socialmente) que lhes é outra. González e Kulikowski (1999)González, N. M., & Kulikowski, M. Z. (1999). Español para brasileños: Sobre por dónde determinar la justa medida de una cercanía. Anuario Brasileño de Estudios Hispánicos, 9, 11–19. compreendem, acerca da aprendizagem do espanhol por brasileiros, que:

Estudar outra língua é entrar em contato com uma nova sistematicidade, com uma nova ordem de regularidades, com um “já dito”, um interdiscurso que não é nosso e que possibilita a construção de sentidos que são próprios dela. E, embora a aquisição dessa ordem de regularidades no caso do espanhol seja possível pelo estudo sistemático, este não é suficiente, pois sempre existe um espaço para a criação – substituição, paráfrase, metonímia, metáfora, ou simplesmente silêncio – que nos surpreende com uma multiplicidade de formas e sentidos, razão pela qual esse aprender a língua do outro é sempre um processo inacabado, não começa nem termina em um dicionário ou em uma fórmula de saudação.

(González & Kulikowski, 1999González, N. M., & Kulikowski, M. Z. (1999). Español para brasileños: Sobre por dónde determinar la justa medida de una cercanía. Anuario Brasileño de Estudios Hispánicos, 9, 11–19., p. 15, tradução nossa).

Essa afiliação a uma “nova ordem de regularidades” se conecta a toda uma série de aspectos que configuram o que estamos chamando de funcionamento das línguas portuguesa e espanhola, cruciais para quem está imergindo nesse universo outro, seja do ponto de vista do ensino-aprendizagem de línguas, seja o de tradução. Por essa razão é que compreendemos que esses lugares de fricção e de distanciamento entre as formas de dizer próprias de cada uma dessas línguas, que evidenciam o modo como os falantes as vivem, experienciam e descrevem o (seu lugar no) mundo, podem ser considerados como “problemas de tradução”, nos termos a seguir expostos.

A noção de problema foi discutida por distintos autores nos Estudos da Tradução, entre os quais estão Mounin (1963)Mounin, G. (1963). Les Problèmes théoriques de la traduction. Gallimard., Krings (1986Krings, H. P. (1986). Translation problems and translation strategies of advanced German learners of French (L2). In J. House & S. Blum-Kulka (Orgs.), Interlingual and intercultural communication: Discourse and cognition in translation and second language acquisition studies (pp. 263–276). Gunter Narr., 1987)Krings, H. P. (1987). The use of introspective data in translation. In C. Færch, & G. Kasper (Orgs.), Introspection in Second Language Research (pp. 159–176). Multilingual Matters. e Nord (2005)Nord, C. (2005). Applications of the model in translation training. In C. Nord (Org.), Text Analysis in Translation: Theory, Methodology and Didactic Application of a Model for Translation-Oriented Text Analysis, 2. ed. (pp. 155–190). Rodopi.. O primeiro acreditava que toda operação de tradução tem um cunho linguístico e, portanto, deveria ser também a Linguística a responsável por solucionar todos os problemas derivados do ato tradutório. Já o segundo, relacionava a noção de problema às estratégias empregadas na sua resolução (Krings, 1986Krings, H. P. (1986). Translation problems and translation strategies of advanced German learners of French (L2). In J. House & S. Blum-Kulka (Orgs.), Interlingual and intercultural communication: Discourse and cognition in translation and second language acquisition studies (pp. 263–276). Gunter Narr.); e posteriormente propôs uma classificação entre problemas típicos, relacionados a todo/a tradutor/a, e idiossincráticos, específicos de um determinado indivíduo (Krings, 1987Krings, H. P. (1987). The use of introspective data in translation. In C. Færch, & G. Kasper (Orgs.), Introspection in Second Language Research (pp. 159–176). Multilingual Matters.). Já a terceira autora, discute a questão do problema atrelando-a à formação de tradutores (Nord, 2005Nord, C. (2005). Applications of the model in translation training. In C. Nord (Org.), Text Analysis in Translation: Theory, Methodology and Didactic Application of a Model for Translation-Oriented Text Analysis, 2. ed. (pp. 155–190). Rodopi.).

Segundo a proposta de Nord, seria possível distinguir os “problemas” das “dificuldades” de tradução. Conforme explica, os problemas consistiriam em “uma tarefa de transferência objetiva que todo/a tradutor/a (independentemente do seu nível de competência e das condições técnicas de trabalho) deve resolver durante um determinado processo de tradução” (Nord, 2005Nord, C. (2005). Applications of the model in translation training. In C. Nord (Org.), Text Analysis in Translation: Theory, Methodology and Didactic Application of a Model for Translation-Oriented Text Analysis, 2. ed. (pp. 155–190). Rodopi., p. 166, tradução nossa), e poderiam classificar-se em quatro tipos: os pragmáticos, os culturais, os linguísticos e os específicos. Na visão da pesquisadora alemã (Nord, 2009Nord, C. (2009). El funcionalismo en la enseñanza de traducción. Mutatis Mutandis, 2(2), 209–243., p. 233, tradução nossa), os problemas de tradução “são intersubjetivos, gerais, e devem ser solucionados mediante procedimentos translativos que fazem parte da competência tradutória”, por isso, para ela, um problema de tradução será sempre um problema, seja para um/a tradutor/a novato/a, seja para o/a tradutor/a experiente, não dependendo, portanto, da competência do sujeito, diferentemente do que sustentava Krings (1987)Krings, H. P. (1987). The use of introspective data in translation. In C. Færch, & G. Kasper (Orgs.), Introspection in Second Language Research (pp. 159–176). Multilingual Matters.. Já as dificuldades “são subjetivas, individuais, e interrompem o processo até que sejam superadas mediante as ferramentas adequadas” (Nord, 2009Nord, C. (2009). El funcionalismo en la enseñanza de traducción. Mutatis Mutandis, 2(2), 209–243., p. 233, tradução nossa), e apresentam quatro tipos: relacionadas ao grau de compreensibilidade do texto-fonte, as que dependem do indivíduo que traduz, as profissionais e as técnicas.

A definição de problema de tradução encontrada em Krings (1986)Krings, H. P. (1986). Translation problems and translation strategies of advanced German learners of French (L2). In J. House & S. Blum-Kulka (Orgs.), Interlingual and intercultural communication: Discourse and cognition in translation and second language acquisition studies (pp. 263–276). Gunter Narr., assim, estaria mais próxima do que Nord entende como dificuldade. A existência de um problema, da ótica da referida estudiosa, não se relacionaria à percepção individual do aprendiz e tampouco às estratégias utilizadas em sua solução. Entretanto, um dado problema poderia deixar de ser também uma dificuldade para um/a tradutor/a, se a experiência o/a tivesse ensinado a superá-la. Nessa linha é que sustentamos que determinados aspectos do funcionamento do português e do espanhol, ainda que não se constituam (sempre) como dificuldades, poderiam ser considerados problemas de tradução, precisamente por operarem em um espaço nem sempre simétrico, em todos os níveis (linguístico, pragmático, discursivo etc.), entre as duas línguas.

Para Silva e Alves (2019, p. 187)Silva, I. A. L., & Alves, F. (2019). Desenvolvendo a subcompetência estratégica: convergência entre os componentes da competência tradutória. In M. D. Esqueda (Org.), Ensino de tradução: proposições didáticas à luz da competência tradutória (pp. 183–222). EDUFU., “a maior dificuldade que se coloca ao aluno está em realmente identificar problemas, que podem estar nas restrições impostas pelo texto-fonte, pela língua-alvo e/ou pelas limitações cognitivas do próprio tradutor em formação”. A contribuição de nossa proposta de material de ensino, deste modo, seria visibilizar as formas próprias do funcionamento (ou, dito de outra forma, os problemas) de cada uma de nossas línguas na relação tradutória. Como afirma Waquil (2019)Waquil, M. L. (2019). A noção de problema nos Estudos da Tradução: um novo olhar teórico com exemplos do par linguístico espanhol/português. Belas Infiéis, 8(4), 13–34. https://doi.org/10.26512/belasinfieis.v8.n4.2019.23024
https://doi.org/10.26512/belasinfieis.v8...
, o problema possibilita e produz conhecimento, daí que entendamos tal noção em nossa pesquisa e prática pedagógica como um espaço de potencialidades.

4. Da seleção dos temas e do desenho da proposta

Para desenvolver nossa proposta, foi necessário não apenas levar em conta as teorias de ensino e de aprendizagem aplicadas à tradução, mas também selecionar, dentro da enorme gama de aspectos importantes da comparação de nossas línguas, aqueles que considerávamos mais relevantes a serem trabalhados no conjunto do material.

Nesse sentido, tivemos como ponto de partida um projeto tradutório que estava sendo desenvolvido na ação de extensão denominada Laboratório de Tradução da Unila, na direção espanhol > português, de uma obra que reúne uma série de gêneros e que tratam de apresentar a vida e luta do ativista peruano Hugo Blanco Galdos. A partir da observação das traduções realizadas pelo coletivo de estudantes que conformou a equipe de tradutores, e do relato realizado após cada sessão de revisão coletiva, processado no Wordsmith Tools (Scott, 1996Scott, M. (1996). WordSmith Tools. Oxford University Press. ), foi possível observarmos a recorrência de determinadas problemáticas relativas ao funcionamento das línguas, mais especificamente referentes à categoria pronominal, que resultava muitas vezes em textos decalcados ou com erros de tradução, nem sempre identificados como tal pelos discentes. Essa constatação, e o conhecimento dos aspectos contrastivos importantes descritos em estudos comparados do português brasileiro e do espanhol no campo do ensino/aprendizagem, nos permitiu proceder a um recorte de temas que seriam operacionalizados no material.

Como explicitado, em nossa proposta temos como guia o enfoque por tarefas, que incorpora, como defende Hurtado Albir (2005)Hurtado Albir, A. (2005). A aquisição da competência tradutória: aspectos teóricos e didáticos. In A. Pagano, C. M. Magalhães, & F. Alves (Orgs.), Competência em tradução: cognição e discurso (pp. 19–57). EDUFMG., contribuições tanto das teorias de ensino como das de aprendizagem, com vistas a integrar os objetivos, os conteúdos, a metodologia e a avaliação por meio de distintas tarefas, ao mesmo tempo em que coloca o aprendiz no centro do processo de formação, como sujeito ativo de sua aprendizagem.

De maneira complementar, apoiamo-nos em Kelly (2005)Kelly, D. (2005). A Handbook for Translator Trainers. St Jerome., estudiosa que acredita que é preciso discutir em qualquer proposta de ensino a identificação das necessidades sociais, o que significa considerar o contexto e em que tipo de formação se dará a prática pedagógica, assim como a formulação dos objetivos de ensino e os resultados esperados. Outros aspectos entendidos como fundamentais por essa autora são o papel de todos os participantes no desenho curricular, a identificação/aquisição de recursos, os diferentes tipos de atividades e formas como estas se desenvolvem, a necessidade de um sequenciamento e progressão de conteúdos e a importância de uma avaliação crítica e formativa.

Em nosso caso, podemos dizer que a identificação das necessidades sociais está dada pela própria inexistência de um material que aborde as especificidades do par português-espanhol, numa perspectiva comparada de seu funcionamento, voltado para futuros tradutores. Para pensar o perfil e as necessidades dos destinatários, consideramos aqui como público-alvo em especial graduandos brasileiros com conhecimento, pelo menos, intermediário, da língua espanhola. Vinculado a tais aspectos, o desenho curricular se projeta para um curso introdutório, no formato de extensão universitária.

Com base em nosso objetivo de ensino, isto é, a sensibilização dos estudantes para os contrastes relacionados ao funcionamento linguístico-discursivo de nosso par de línguas, foi definido um objetivo geral de aprendizagem, qual seja, a apropriação por parte dos aprendizes de conteúdos que são, por um lado, de ordem contrastiva e, por outro, de ordem tradutológica, mas que perpassam todas as subcompetências que constituem a competência tradutória.

A metodologia e o desenho das tarefas se concretizam não apenas nos diversos tipos de atividades e práticas sugeridas, mas também na variada forma de sua execução, e nos distintos gêneros textuais contemplados, como se vislumbrará na unidade apresentada; além disso, aparecem em uma organização sequencial que contempla a progressão e a revisão de conteúdos trabalhados.

Adotamos diferentes formas de avaliação ao longo do material para buscar o engajamento estudantil e o seu protagonismo no processo. Defendemos que a avaliação seja crítica, dialógica e inclusiva, e que se refira não apenas a um olhar para si dentro do percurso formativo, mas que diga respeito igualmente a uma apreciação do próprio material e da formação oferecida.

Quanto aos resultados, espera-se que a proposta possa contribuir de modo especial com o aperfeiçoamento da subcompetência bilíngue dos educandos, no sentido de que determinadas questões contrastivas possam se tornar mais acessíveis (automáticas/operacionais) para os aprendizes. De maneira consequente, já que as subcompetências não atuam isoladamente, buscamos favorecer o desenvolvimento das demais subcompetências e de competência tradutória como um todo.

Desse percurso reflexivo originou-se a elaboração de cinco unidades didáticas encabeçadas por um programa de ensino que contempla a descrição das motivações para a criação da proposta, seus fundamentos teórico-metodológicos e objetivos de ensino e aprendizagem perseguidos.

As unidades estão organizadas a partir de distintas atividades que compõem uma ou mais tarefas intermediárias e que, ao término de cada duas unidades, há uma tarefa integralizadora (Hurtado Albir, 2005Hurtado Albir, A. (2005). A aquisição da competência tradutória: aspectos teóricos e didáticos. In A. Pagano, C. M. Magalhães, & F. Alves (Orgs.), Competência em tradução: cognição e discurso (pp. 19–57). EDUFMG.). A cada uma dessas unidades, coadunam-se temas da comparação (nas seções por nós intituladas “Funcionamentos em Contraste”) com discussões importantes dos Estudos da Tradução (presentes sempre na seção criada sob o título “Tema Tradutológico”) e propõem-se o estudo, a análise, a tradução, a versão e a revisão de textos de diferentes gêneros.

Afiliando-nos a uma perspectiva socioconstrutivista do ensino e da aprendizagem, esclarecemos que as explicações teóricas e a elaboração de determinados exercícios encontrados ao longo das unidades são fruto de uma elaboração coletiva, na medida em que se inspiraram ou contaram muitas vezes com a colaboração direta ou indireta de colegas ao longo da sua construção. De maneira análoga, buscamos propiciar, por meio de distintas práticas como a dedução e a inferência, a construção do conhecimento pelos próprios aprendizes, a partir da confirmação ou não de hipóteses, da reafirmação ou da revisão de saberes prévios que podem, com base em um trabalho conjunto, levar a uma experiência pedagógica bastante significativa.

Assim, na Unidade 1 propõe-se a realização de um diagnóstico do grupo, com a obtenção de informações sobre o perfil dos estudantes, por um lado, e a autorreflexão sobre o seu interesse na tradução e sobre o próprio percurso (extra)linguístico.

A Unidade 2 supõe um trabalho, do ponto de vista comparativo, do uso dos pronomes pessoais de sujeito em cada uma das línguas e, da perspectiva tradutológica, a discussão sobre a categoria de gênero, a naturalidade em tradução, as fontes de consulta e de referência. Centra-se não apenas na subcompetência bilíngue (no trabalho em torno da presença/ausência de pronomes de sujeito), mas também na subcompetência extralinguística (sobretudo no que diz respeito à noção de gênero e de naturalidade, já que esta subcompetência se refere aos conhecimentos declarativos sobre o mundo e sobre áreas específicas), na subcompetência estratégica (no que tange à resolução de problemas) e na subcompetência instrumental (conhecimentos operacionais relacionados ao uso de fontes, documentação, tecnologias etc., com o uso crítico de obras de referência, por exemplo). A unidade tem um total de três tarefas.

Na Unidade 3, destrinchada na próxima seção, almejamos discutir a expressão da posse em cada uma das línguas (subcompetência bilíngue). Ao trabalhar as noções de problema e dificuldade, bem como os parâmetros e princípios de revisão em tradução, mobilizam-se também as subcompetências extralinguística, estratégica e de conhecimentos sobre a tradução (conhecimentos declarativos referentes aos aspectos da própria profissão, como os procedimentos e métodos empregados, por exemplo). Está organizada em torno de duas tarefas intermediárias e uma tarefa final integralizadora.

A Unidade 4 tem na identificação do uso e distribuição de complementos verbais e a expressão da involuntariedade o seu objetivo geral de aprendizagem. Interseccionalmente, trazemos a noção de tradução subordinada e os procedimentos técnicos da tradução. As subcompetências operacionalizadas em um total de seis tarefas são a bilíngue (com respeito aos pronomes de complemento direto e indireto), a extralinguística (a partir dos gêneros), a de conhecimentos sobre tradução (a tradução subordinada, os procedimentos adotados para traduzir, e as estratégias para a solução de problemas).

Na Unidade 5 tratamos, da perspectiva contrastiva, a expressão da impessoalidade e da voz passiva. Já nos temas dos Estudos da Tradução, trazemos à baila a discussão sobre o uso de corpora, a teoria funcionalista e a naturalidade em tradução. Todas as cinco subcompetências (bilíngue, extralinguística, de conhecimentos sobre a tradução, instrumental e estratégica) são invocadas ao longo do trabalho. A unidade se encerra com a tarefa final integralizadora.

5. A teoria na prática: exemplo de unidade didática

A fim de que seja possível visualizar de maneira mais detalhada o trajeto que buscamos seguir no desenvolvimento de nossa proposta de criação do material, que tem como base principal em sua estruturação os modelos de Hurtado (2005)Hurtado Albir, A. (2005). A aquisição da competência tradutória: aspectos teóricos e didáticos. In A. Pagano, C. M. Magalhães, & F. Alves (Orgs.), Competência em tradução: cognição e discurso (pp. 19–57). EDUFMG. e Kelly (2005)Kelly, D. (2005). A Handbook for Translator Trainers. St Jerome. antes aludidos, apresentamos como exemplo a terceira unidade.

Cada uma das unidades aparece introduzida por uma espécie de guia para o/a aplicador/a. Nele estão dispostos os objetivos gerais de aprendizagem. No caso da Unidade 3, como já anunciávamos, trata-se de identificar as formas de expressão da posse em cada uma das línguas (tema contrastivo), bem como de conhecer as noções de problemas e dificuldade e os princípios e parâmetros de revisão em tradução (temas vinculados aos Estudos da Tradução). Além disso, explicitam-se os objetivos específicos de cada uma das atividades, os materiais a serem utilizados, qual a forma de trabalho e o seu desenvolvimento, para cada uma das tarefas que a constituem. Para o caso em questão, foram pensadas duas tarefas parciais/intermediárias e uma tarefa final integralizadora (Hurtado Albir, 2005Hurtado Albir, A. (2005). A aquisição da competência tradutória: aspectos teóricos e didáticos. In A. Pagano, C. M. Magalhães, & F. Alves (Orgs.), Competência em tradução: cognição e discurso (pp. 19–57). EDUFMG.).

Figura 1
Guia parcial para aplicação da unidade didática 3

Com a primeira tarefa, Figura 2, busca-se entrar na discussão sobre a expressão da posse. Na Atividade 1, individual, pretende-se a identificação de tais formas (item a), tanto no texto-fonte como na versão a ser realizada pelo aprendiz (item b), uma atividade complexa que requer o emprego adequado de estruturas em um contexto de produção em língua estrangeira. Fomenta-se ainda, em um segundo momento (item c), a comparação da tradução própria de determinados fragmentos em que a posse se manifesta com uma tradução profissional, publicada. Utilizamos como material um trecho de uma conhecida história em quadrinhos brasileira e sua tradução aparecida na Argentina, como se vê a seguir.

Figura 2
Tarefa 1

Por meio da seção Funcionamentos em Contraste, Figura 3, trazemos sempre a sistematização dos conteúdos trabalhados de maneira dedutiva nas atividades prévias. No caso da unidade em tela, apresentam-se inicialmente os quadros de possessivos que, de entrada, já evidenciam um comportamento distinto nas duas línguas, dado que o português não tem formas que diferenciam os possessivos átonos (adjetivos) dos tônicos (pronomes). Também se chama a atenção, a partir de Fanjul (2005Fanjul, A. (2005). Gramática y práctica de español para brasileños. Moderna., 2014)Fanjul, A. (2014). Conhecendo assimetrias: a ocorrência de pronomes pessoais. In A. Fanjul & N. M. González, Espanhol e português brasileiro: estudos comparados (pp. 29–50). Parábola., para o fato de as terceiras pessoas possibilitarem a ocorrência de ambiguidades em alguns casos, o que exigiria pensar formas de solucionar tal problemática. Para ilustrar isso, apresentamos um fragmento extraído de Nosotrxs lxs indios (2003), obra de Hugo Blanco GaldosGaldos, H. B. (2003). Nosotrxs lxs indixs. Lucha indígena., em que não há dúvida em espanhol a respeito dos referentes e da relação de posse (él - su), enquanto em português o uso de possessivos átonos de terceira pessoa (ele - seu/sua) poderia ter como resultado a ambiguidade quanto ao interlocutor (você).

Na sequência, demonstram-se algumas tendências observadas em cada uma das línguas, com a análise de uma tira do artista argentino Max Aguirre. Pretende-se introduzir outras formas de indicar a posse em língua espanhola, sobretudo relacionadas à posse inalienável, quando há uma preferência em espanhol por construções com dativos possessivos, o que não ocorre em português.

Figura 3
Seção “Funcionamentos em contraste”

Com a Atividade 2, Figura 4 abaixo, buscamos operacionalizar a discussão teórica antes realizada, a partir da proposição da tradução para o português de algumas tiras em espanhol (dos cartunistas La Lexada e El Sendra), e a identificação de como se expressa a posse em cada uma delas. Tais traduções, de acordo com a proposta de atividade, deveriam ser ainda revisadas por pares. Nesse ponto, introduz-se o tópico denominado Tema Tradutológico e que, nesta parte da unidade, refere-se à revisão em tradução, com os parâmetros e os princípios indicados por Parra Galiano (2007)Parra, G. S. (2007). Propuesta metodológica para la revisión de traducciones: principios generales y parámetros. TRANS. Revista de Traductología, (11), 197–214. https://doi.org/10.24310/TRANS.2007.v0i11.3108
https://doi.org/10.24310/TRANS.2007.v0i1...
.

Figura 4
Seção “Tema tradutológico”

Na segunda tarefa, Figura 5, o foco é dado aos problemas e dificuldades em tradução. Na Atividade 1, propõe-se a leitura de um relato de Aílton Krenak e a predição de possíveis problemas para a sua tradução, para então, na Atividade 2, realizar-se a tradução propriamente, tendo como finalidade a sua publicação por uma ONG chilena, e a comprovação (ou não) dos problemas previstos. Somente depois desse percurso é que se detalha, no segundo Tema Tradutológico da unidade, a diferenciação entre tipos de problemas e de dificuldades, a partir de Nord (2005Nord, C. (2005). Applications of the model in translation training. In C. Nord (Org.), Text Analysis in Translation: Theory, Methodology and Didactic Application of a Model for Translation-Oriented Text Analysis, 2. ed. (pp. 155–190). Rodopi., 2009)Nord, C. (2009). El funcionalismo en la enseñanza de traducción. Mutatis Mutandis, 2(2), 209–243.. Na Atividade 3 seguinte, sugere-se a análise da tradução efetuada, e a classificação dos problemas e dificuldades encontrados, em um trabalho entre pares.

Figura 5
Tarefa 2

A Tarefa Integralizadora, Figura 6, como antes dissemos e com base em Hurtado Albir (2005)Hurtado Albir, A. (2005). A aquisição da competência tradutória: aspectos teóricos e didáticos. In A. Pagano, C. M. Magalhães, & F. Alves (Orgs.), Competência em tradução: cognição e discurso (pp. 19–57). EDUFMG., busca reunir o conjunto de discussões efetuadas ao longo do percurso, tanto do ponto de vista comparativo das línguas como do ponto de vista dos temas dos Estudos da Tradução. Em nosso caso, optamos por fazê-lo sempre retomando duas unidades. Na Unidade 3 concretamente, a sugestão para esta tarefa final é a elaboração de uma proposta de tradução a ser apresentada a uma editora. Discorre-se sobre esse tipo de proposição, os contextos em que ela costuma se dar e os fatores que devem ser considerados na sua formulação, bem como apresentam-se sugestões de etapas a serem seguidas (seleção do texto, identificação do público, divisão das tarefas internamente etc.). Nesse sentido, são colocados em prática não só o trabalho colaborativo, mas também a discussão sobre o gênero e suas particularidades (recuperando atividades e debates ocorridos na unidade prévia, a de número dois), e ainda a análise da viabilidade da proposta de tradução criada (a partir da tradução e revisão de um fragmento do texto escolhido, discussões presentes na unidade três) e a autogestão do trabalho (com a divisão de tarefas).

Figura 6
Tarefa Integralizadora

A unidade se encerra com a Autoavaliação, Figura 7, que igualmente busca recuperar o trabalho desenvolvido na presente unidade (3) e na unidade anterior (2), e corresponde às subcompetências que foram mobilizadas ao longo do processo. A importância do instrumento reside não apenas no acompanhamento do progresso individual do próprio discente, a partir de perguntas de análise do percurso e da apropriação das discussões levadas a termo, mas também na possibilidade de aperfeiçoar a própria formação oferecida, o que demonstra um forte alinhamento com o sustentado por Kelly (2005)Kelly, D. (2005). A Handbook for Translator Trainers. St Jerome. em seu trabalho.

Figura 7
Autoavaliação

6. À modo de conclusão

Considerando o objetivo do presente artigo, que era apresentar uma proposta de material de ensino de tradução do par português-espanhol, revisitamos e reforçamos alguns pontos importantes dessa empreitada.

A partir do levantamento de problemas de tradução relativos ao funcionamento das línguas portuguesa e espanhola, observados em uma experiência real que teve lugar em um projeto de extensão, selecionaram-se os temas que foram levados às unidades do material de ensino.

Em cada uma das unidades didáticas, estruturadas por meio de tarefas e conformadas por sua vez por um conjunto de atividades, trata-se de promover o estudo, a análise, a realização e a revisão de traduções e versões em distintos gêneros. Estas tarefas conjugam, como se observa pela unidade apresentada, teoria e prática, não apenas de um ponto de vista da comparação de nossas línguas, mas também a partir de uma aproximação a questões importantes dos Estudos da Tradução, com vistas ao desenvolvimento da subcompetência bilíngue dos sujeitos, em primeiro lugar, mas das demais subcompetências e da competência tradutória de maneira geral.

Estamos cientes de que a proposta de material aqui trazida apenas toca em algumas das questões que a comparação português-espanhol pode acarretar e cujo conhecimento é de suma relevância para a formação dos tradutores d/nessas línguas. Disso tivemos mostra em sua aplicação-piloto, levada a cabo em 2022, mas cujos resultados não puderam, pelo próprio escopo do presente texto, ser aqui abordados. Evidentemente, é preciso um trabalho mais amplo, que possa contemplar outros temas igualmente problemáticos nessa relação tão peculiar, como é o caso das orações finais e temporais e sua correlação com tempos verbais; do pretérito simples composto do espanhol; das orações condicionais, para citar alguns desses exemplos que dificultam ou podem dificultar, muitas vezes, a afiliação, nos termos de González e Kulikowski antes vistos, a essa língua outra.

Entretanto, acreditamos que se trata de um passo importante na direção à sensibilização dos aprendizes com relação ao funcionamento do par português-espanhol na tradução, ao serem línguas que às vezes se aproximam, se atravessam e em tantas outras circunstâncias se afastam, e uma contribuição para um campo ainda tão carente, como é o da elaboração de materiais voltados à formação de tradutores de nossa combinação linguística.

  • 1
    Para se ter uma ideia, em consulta realizada na página do Ministério de Educação brasileiro em 2023 (Cadastro Nacional de Cursos e Instituições de Educação Superior - Cadastro e-MEC), aparecem 36 cursos que trazem a menção “tradução” ou “tradutor” como parte de seu nome, mas apenas 12 não se constituem como uma habilitação dos cursos de Letras.

Agradecimentos

À minha orientadora durante todo o processo formativo até a conclusão do doutorado, Heloísa Pezza Cintrão (USP), e aos amigos Larissa Locoselli (Unifesp), Bruna Otani e Mario Torres (Unila), pelas valiosas sugestões e contribuições na construção do material aqui apresentado.

  • Autorização de tradução

    O material apresentado no presente artigo é parte da pesquisa de doutorado desenvolvida na Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo.
  • Conjunto de dados de pesquisa

    Não se aplica.
  • Financiamento

    Não se aplica.
  • Publisher

    Cadernos de Tradução é uma publicação do Programa de Pós-Graduação em Estudos da Tradução, da Universidade Federal de Santa Catarina. A revista Cadernos de Tradução é hospedada pelo Portal de Periódicos UFSC. As ideias expressadas neste artigo são de responsabilidade de seus autores, não representando, necessariamente, a opinião dos editores ou da universidade.
  • Revisão de normas técnicas

    Alice S. Rezende – Ingrid Bignardi – João G. P. Silveira – Kamila Oliveira

Declaração de disponibilidade dos dados da pesquisa

Não se aplica.

Referências

  • Ausubel, D. P., Novak, J. D., & Hanesian, H. (1983). Psicología Educativa: Un punto de vista cognoscitivo (2ª ed.). Trillas México.
  • Bevilacqua, C. R. (2017). Revisão de Textos Traduzidos: uma experiência na formação de tradutores de português-espanhol. Caracol, (14), 82–102. https://doi.org/10.11606/issn.2317-9651.v0i14p82-103
    » https://doi.org/10.11606/issn.2317-9651.v0i14p82-103
  • Celada, M. T. (2008). Versiones de Babel: memoria de la otra lengua en la propia. SIGNOS ELE, (1–2).
  • Cintrão, H. P. (2006). Colocar lupas, transcriar mapas: Iniciando o desenvolvimento da competência tradutória em nível básico de espanhol como língua estrangeira. [Tese de Doutorado]. Universidade de São Paulo. https://www.teses.usp.br/teses/disponiveis/8/8145/tde-08082007-145636/en.php
    » https://www.teses.usp.br/teses/disponiveis/8/8145/tde-08082007-145636/en.php
  • Cintrão, H. P. (2012). Disciplinas de tradução português-espanhol num Bacharelado em Letras: Uma proposta para a Universidade de São Paulo. In O. Díaz Fouces (Ed.), Olhares & Miradas: Reflexiones sobre la traducción portugués-español y su didáctica (pp. 11–52). Atrio.
  • Colina, S. (2015). Ensino de tradução: da pesquisa à sala de aula Diretrizes para professores. (M. Esqueda et al., Trad.). EDUFU.
  • Delisle, J. (1980). L’Analyse du discours comme méthode de traduction. Cahiers de Traductologie, (2).
  • Esqueda, M. D. (Org.). (2020). Ensino de Tradução: proposições didáticas à luz da competência tradutória. EDUFU.
  • Fanjul, A. (2005). Gramática y práctica de español para brasileños. Moderna.
  • Fanjul, A. (2014). Conhecendo assimetrias: a ocorrência de pronomes pessoais. In A. Fanjul & N. M. González, Espanhol e português brasileiro: estudos comparados (pp. 29–50). Parábola.
  • Fanjul, A., & González, N. M. (2014). Espanhol e português brasileiro: estudos comparados. Parábola.
  • Foucault, M. (1985). La arqueología del saber. 11. ed. (A. Garzón del Camino, Trad.). Siglo Veintiuno.
  • Galdos, H. B. (2003). Nosotrxs lxs indixs. Lucha indígena.
  • Gonçalves, J. L. V. R., & Machado, I. T. N. (2006). Um panorama do ensino de tradução e a busca da competência do tradutor. Cadernos de Tradução, 1(17), 45–69.
  • González, N. M. (1994). Cadê o pronome? O gato comeu: Os pronomes pessoais na aquisição/aprendizagem do espanhol por brasileiros adultos. [Tese de Doutorado]. Universidade de São Paulo.
  • González, N. M., & Kulikowski, M. Z. (1999). Español para brasileños: Sobre por dónde determinar la justa medida de una cercanía. Anuario Brasileño de Estudios Hispánicos, 9, 11–19.
  • Holmes, J. S. (2000). The name and nature of translation studies. In L. Venuti (Ed.), The Translation Studies Reader. (pp. 172–185). Routledge.
  • Hurtado Albir, A. (Dir.). (1999). Enseñar a traducir. Metodología en la formación de traductores e intérpretes. Edelsa.
  • Hurtado Albir, A. (2001). Traducción y traductología. Cátedra.
  • Hurtado Albir, A. (2005). A aquisição da competência tradutória: aspectos teóricos e didáticos. In A. Pagano, C. M. Magalhães, & F. Alves (Orgs.), Competência em tradução: cognição e discurso (pp. 19–57). EDUFMG.
  • Hurtado Albir, A. (2019). La investigación en didáctica de la traducción. Evolución, enfoques y perspectivas. MonTI, (11), 47–76. https://doi.org/10.6035/MonTI.2019.11.2
    » https://doi.org/10.6035/MonTI.2019.11.2
  • Kelly, D. (2005). A Handbook for Translator Trainers. St Jerome.
  • Kiraly, D. (1995). Pathways to Translation: Pedagogy and Process. Kent State University Press.
  • Kiraly, D. (2000). A Social Constructivist Approach to Translator Education. St Jerome.
  • Krings, H. P. (1986). Translation problems and translation strategies of advanced German learners of French (L2). In J. House & S. Blum-Kulka (Orgs.), Interlingual and intercultural communication: Discourse and cognition in translation and second language acquisition studies (pp. 263–276). Gunter Narr.
  • Krings, H. P. (1987). The use of introspective data in translation. In C. Færch, & G. Kasper (Orgs.), Introspection in Second Language Research (pp. 159–176). Multilingual Matters.
  • Malta, G. (2017). Abordagem processual e ensino de tradução: uma proposta de unidade didática para o par espanhol-português baseada em dados de rastreamento ocular e registro de teclado e mouse. Caracol, (14), 42–80. https://doi.org/10.11606/issn.2317-9651.v0i14p42-81
    » https://doi.org/10.11606/issn.2317-9651.v0i14p42-81
  • Malta, G., & Paiva, W. (2019). Mapa bibliométrico das pesquisas sobre formação de tradutores realizadas no Brasil entre 2008 e 2018. Caderno de Resumos do XIII Encontro Nacional de Tradutores e VII Encontro Internacional de Tradutores, 2(1), 156.
  • Mello, G. C. C. (2019). O ensino da Tradução por meio de uma prática reflexiva. Caderno de Resumos do XIII Encontro Nacional de Tradutores e VII Encontro Internacional de Tradutores, 2(1), 169–170.
  • Mounin, G. (1963). Les Problèmes théoriques de la traduction. Gallimard.
  • Nord, C. (2005). Applications of the model in translation training. In C. Nord (Org.), Text Analysis in Translation: Theory, Methodology and Didactic Application of a Model for Translation-Oriented Text Analysis, 2. ed. (pp. 155–190). Rodopi.
  • Nord, C. (2009). El funcionalismo en la enseñanza de traducción. Mutatis Mutandis, 2(2), 209–243.
  • PACTE. (2001). La competencia traductora y su adquisición. Quaderns Revista de Traducción, (6), 39–45.
  • PACTE. (2017). PACTE Translation Competence Model: a holistic, dynamic model of Translation Competence. In A. Hurtado Albir (Org.), Researching translation competence by PACTE Group (pp. 35–41). John Benjamins Publishing Company.
  • Parra, G. S. (2007). Propuesta metodológica para la revisión de traducciones: principios generales y parámetros. TRANS. Revista de Traductología, (11), 197–214. https://doi.org/10.24310/TRANS.2007.v0i11.3108
    » https://doi.org/10.24310/TRANS.2007.v0i11.3108
  • Piaget, J. (1968). Psicología de la Inteligencia. (L. Fernandez Cancela, Trad.). Proteo.
  • Rodrigues, C. C. (2012). Desafios ao ensino da tradução. Abehache, 3, 13–24.
  • Schunk, D. H. (2012). Teorías del aprendizaje: una perspectiva educativa. 6. ed. (L. E. Pineda Ayala, & M. E. Ortiz Salinas, Trads.). Pearson Educación.
  • Scott, M. (1996). WordSmith Tools. Oxford University Press.
  • Serrani, S. (1994). Análise de ressonâncias discursivas em micro-cenas para estudo da identidade linguístico-cultural. Trabalhos em Linguística Aplicada, (24), 79–90.
  • Silva, I. A. L., & Alves, F. (2019). Desenvolvendo a subcompetência estratégica: convergência entre os componentes da competência tradutória. In M. D. Esqueda (Org.), Ensino de tradução: proposições didáticas à luz da competência tradutória (pp. 183–222). EDUFU.
  • Vygotsky, L. S. (1978). Mind and Society: The Development of Higher Psychological Processes. (M. Cole, V. John-Steiner, S. Scribner, & E. Souberman, Orgs. & Trads.). Harvard University Press.
  • Waquil, M. L. (2019). A noção de problema nos Estudos da Tradução: um novo olhar teórico com exemplos do par linguístico espanhol/português. Belas Infiéis, 8(4), 13–34. https://doi.org/10.26512/belasinfieis.v8.n4.2019.23024
    » https://doi.org/10.26512/belasinfieis.v8.n4.2019.23024

Editado por

Editores de seção

Andréia Guerini – Willian Moura

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    21 Jun 2024
  • Data do Fascículo
    2024

Histórico

  • Recebido
    14 Jul 2023
  • Aceito
    17 Fev 2024
  • Revisado
    09 Abr 2024
  • Publicado
    Abr 2024
Universidade Federal de Santa Catarina Campus da Universidade Federal de Santa Catarina/Centro de Comunicação e Expressão/Prédio B/Sala 301 - Florianópolis - SC - Brazil
E-mail: suporte.cadernostraducao@contato.ufsc.br