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TEXTO BÍBLICO E “TRADUÇÃO”: A “VOZ DIVINA” NO PLANO HUMANO DA COENUNCIAÇÃO

BIBLICAL TEXT AND “TRANSLATION”: THE “DIVINE VOICE” AT THE HUMAN LEVEL OF COENUNCIATION

Resumo

Tendo em vista a especificidade do discurso bíblico e a multiplicidade de traduções bíblicas veiculadas na atualidade, que vão de extremos de literalidade a extremos de liberdade, o artigo fixa-se no processo de coenunciação para avaliar o modo como a organização discursivo-textual se configura nesses diferentes tipos de versões, com vista ao estabelecimento da relação com o público leitor pretendido. A análise comparativa entre versões representativas de cada um dos polos, conduzida por mais de um viés investigativo, mostra que tais relações vão desde efeitos de grande distanciamento entre produtor e receptor (versões literais, cujo discurso se reveste de força injuntiva que exige do fiel o cumprimento de requisitos), até efeitos de marcada aproximação (versões livres, cujo discurso busca estabelecer um pacto com o leitor, numa evidente relação de cooptação).

Palavras-chave
Coenunciação; Textos sensíveis; Tradução bíblica

Abstract

Currently, biblical text has a multiplicity of versions spread out. These versions go from one pole of literality to the other of liberty in translation. In sight of these facts and of the specificities of biblical text, this paper focuses on the process of coenunciation in order to evaluate how textual-discursive organization is configured in these different versions, aiming at establishing a relation with the intended audience for each of these versions. The comparative analysis between representative versions of each of the poles, having more than one direction of investigation, shows that such relations go from creating effects of great distancing between producer and receptor (typical of literal versions, whose discourse is clothed in injunctive force that demands from the believers the fulfillment of all that is required), to creating effects of a highly marked approximation (typical of free versions, whose discourse seeks to establish a pact with the reader, in an evident relation of cooptation).

Keywords
Coenunciation; Sensitive texts; Biblical translation

Introdução

Pensar o texto bíblico com foco no processo de coenunciação pode parecer impertinente, do ponto de vista da teoria linguística, e até herético, do ponto de vista religioso. A razão disso vem, obviamente, da consideração de qual seja o falante que pode ser destacado desse tipo de enunciado, visto que se trata de um texto que só está francamente disponível nas traduções, as mais diversas, às quais seguidamente tem sido submetido. Ora, o que se tem como fonte mais acessível e mais acessada do Novo Testamento é o texto grego, já uma “cópia”, como se explicitará adiante.

Em princípio, toda tradução tem um “falante” que não é o responsável pelo conteúdo inaugural – aquele sentido pretendido na origem e na motivação da mensagem –, o que, em princípio, o retiraria da posição de (co)enunciador pleno; com certeza, sua responsabilidade repousa na forma e no tom do discurso, e, até devido a isso, pode-se falar em uma organização discursiva e textual do tradutor. Se, para essa consideração particular, a fonte de exame é o texto-fonte bíblico de que se dispõe, o afastamento em relação àquilo que se entende como interação linguística é ainda mais efetivo, já que nem mesmo um novo “organizador” se capta na obra, e, aliás, não interessa nem cabe ao leitor buscar captá-lo.

Acresce o fato de que o “falante” (aspeando-se fortemente o termo) inaugural é nada convencional, já que está em caso a palavra sagrada (em princípio a palavra de verdade, portanto desvinculada de interesses pessoais), e já que a linguagem de que a ciência linguística trata é, em princípio, a palavra humana (a palavra da eficiência comunicativa, e, portanto, marcada por interesses do falante).

A palavra sagrada e a palavra profana

Com certeza, nada se distanciaria mais do que se possa entender como “palavra sagrada” do que caracterizá-la como dirigida por estratégias discursivas. No entanto, os estudos sobre a diversidade entre os textos de tradução bíblica facilmente concluem no sentido de que a direção das escolhas tradutórias é maiormente determinada pelo desejo de atingimento de determinado público leitor. Aqui se trazem diversas indicações sobre esse fato, particularmente as que se verificaram em estudos de que participaram as duas autoras deste trabalho (consubstanciados em: LOPES, 2008LOPES, M. M. M. A sensibilidade na tradução bíblica: aspectos linguísticos e socioculturais. São Paulo. Dissertação (Mestrado em Letras). Universidade Presbiteriana Mackenzie, 2008.; 2011______. A diversidade de versões do livro sagrado no jogo das vozes em interação. Tese (Doutorado em Letras). Universidade Presbiteriana Mackenzie, São Paulo, 2011.; 2014______. Tradução bíblica: um estudo sobre interação, sensibilidade e gênero - Coleção Saberes em Tese. São Paulo: Editora Mackenzie, 2014.; 2015______. Uma análise funcionalista das estratégias linguístico-discursivas em versões livres da Bíblia. Relatório inédito (Pós-Doutorado em Letras). Universidade Presbiteriana Mackenzie, São Paulo, 2015. 1 1 A dissertação de mestrado (LOPES, 2008) e a tese de doutorado (LOPES, 2011), transformada em livro (LOPES, 2014), foram orientadas pela primeira autora deste texto, que prefaciou o livro (NEVES, 2014) e que também supervisionou o pós-doutorado (LOPES, 2015). O tema deste artigo não foi tratado em nenhum desses trabalhos, entretanto a motivação do artigo resulta, de certo modo, da experiência adquirida nesse percurso de estudos. ; e em NEVES, 2014______. Prefácio. In: LOPES, M. M. M. Tradução bíblica: um estudo sobre interação, sensibilidade e gênero — Coleção Saberes em Tese. São Paulo: Editora Mackenzie, 2014, p. 11-19.).

Pode-se partir do princípio de que, por mais que se entenda e se defenda que o tradutor possa ser um “recriador” da obra que traduz (CAMPOS, 2010aCAMPOS, H. Metalinguagem e outras metas: ensaios de teoria e crítica literária. São Paulo: Perspectiva, 2010a.; 2010b______. A arte no horizonte do provável. São Paulo: Perspectiva, 2010b.; SANTAELLA, 2005SANTAELLA, L. Transcriar, transluzir, transluciferar. a teoria da tradução de Haroldo de Campos. In: MOTTA, L. T. Céu acima: para um tombeau de Haroldo de Campos. São Paulo: Perspectiva, 2005.), o que ele entrega ao público é, documentalmente, uma “versão” em outra língua de obra já produzida por um “autor”, em uma língua de origem, de tal modo que a “autoria” que se queira atribuir ao tradutor é, no mínimo, sui generis. Obviamente não se vai discutir, aqui, a teoria da tradução, mesmo porque ela perde muito de seu peso quando se trata da tradução bíblica, na qual se enredam motivações e injunções absolutamente peculiares, dada a natureza da obra, e dada, especialmente, a natureza daquele que se possa considerar o “autor” inaugural do texto.

São, pois, duas as entidades que entram, primordialmente, em consideração, quando a questão é a palavra sagrada, ou seja, a “voz divina” que há de estar no texto bíblico, e sem a qual ele deixaria de ser a “Bíblia Sagrada”. Entretanto, que textos são esses que, pelo menos a partir da invenção da imprensa, chegam às mãos dos homens como versões da palavra divina? Lembre-se, como ponto de partida, o que diz Frame (2013, p. 218)FRAME, J. M. A doutrina da palavra de Deus. Tradução de Meire Portes Santos e Márcio Santana Sobrinho. São Paulo: Cultura Cristã, 2013.: “não conhecemos a linguagem pela qual Pai, Filho e Espírito se comunicam eternamente, mas certamente não é um idioma que já tenhamos alguma vez ouvido na rua”; pelo contrário, diz o autor, a palavra de Deus, “em sua identidade com a natureza de Deus e com seu pensamento eterno, não é falada em uma linguagem humana”.

Fica óbvio que, para uma lida consciente com os textos bíblicos que estão à disposição dos leitores, é necessário que as reflexões partam do texto de origem que está disponível como fonte das diversas traduções desde há séculos propostas, e para isso pode ser útil o diagrama que o mesmo Frame (2013, p. 18)FRAME, J. M. A doutrina da palavra de Deus. Tradução de Meire Portes Santos e Márcio Santana Sobrinho. São Paulo: Cultura Cristã, 2013. oferece como ilustração do processo de comunicação divina, na constituição da Bíblia:

Figura 1
Diagrama de Frame (2013, p. 18)FRAME, J. M. A doutrina da palavra de Deus. Tradução de Meire Portes Santos e Márcio Santana Sobrinho. São Paulo: Cultura Cristã, 2013.

Com certeza, cada leitor da Bíblia procura nela a “voz divina” que lhe dá sentido e razão de ser, no entanto o livro sagrado não teve corpo sensível à percepção, na sua chegada, a quem o recebeu de Deus, do mesmo modo que, na sua origem, não teve estatuto enunciativo sensivelmente definível dentro dos padrões daquela “linguagem” de que o próprio organismo humano dispõe. À recepção da Bíblia não há como ligar as propriedades biológicas de recepção da linguagem pelo homem (como capacidade auditiva ou processamento cerebral) e também não há como ligar as entidades físicas de trasmissão (como ondas sonoras), porque não há como conceber alguma matéria de produção: é certo que não há como existir à nossa disposição um texto que constitua a voz divina em si.

Mas – ensina-nos a doutrina – essa “palavra” divina, absolutamente inquestionável, foi dada aos apóstolos e aos profetas justamente para que o destinatário defejado por Deus – o homem –, na sua finitude que exige materialidade, pudesse recebê-la. Portanto, com a mesma autoridade da voz divina, essa palavra se fez linguagem transmissível aos homens, não, ainda , porém, com a materialidade (falível) daquela palavra que circula na comunicação entre eles, ou seja, daquela linguagem de intercomunicação humana. Essa palavra só chega, pois, ao homem, desprotegida da garantia que a “inspiração” de Deus conferia aos apóstolos e aos profetas.

A circulação entre os homens pelo acionamento de meios de produçãos e de recepção envolve os copiadores, já não “inspirados” por Deus: alguns são “iluminados” por ele, outros nem tanto, contudo são todos já falíveis. Isso significa que mesmo os textos do Antigo Testamento em hebraico e aramaico, bem como o texto do Novo Testamento em grego, que constituem os “originais” disponíveis para as traduções, não têm a garantia de uma correspondência exata à voz divina, dada em inspiração a seus primeiros destinatários.

É com traduções especificamente do texto grego do Novo Testamento – já uma cópia, um texto “autográfico”, como diz Frame (2013, p. 211)FRAME, J. M. A doutrina da palavra de Deus. Tradução de Meire Portes Santos e Márcio Santana Sobrinho. São Paulo: Cultura Cristã, 2013. 2 2 Para Frame (2013, p. 211), o texto “é o objeto linguístico que pode ser encontrado em qualquer meio linguístico”. O primeiro texto escrito seria o documento autográfico, que pode ter diversas cópias. Se essas cópias reproduzem exatamente o documento autográfico, o texto, então, como objeto linguístico, é preservado. Nos termos de Frame (2013, p. 211), “o mesmo se dá com a Escritura. Por inspiração divina, seu texto se encontra no autógrafo e, quando a cópia é perfeita, encontra-se também na cópia. Portanto, não importa se o “documento” autográfico foi preservado ou não, o que importa é que o ‘texto’ autográfico esteja disponível a nós, ainda que tal texto só possa ser encontrado nas cópias (apógrafos) do original”. – que este estudo3 3 O mesmo vale para os que o antecederam nos estudos, já citados, que envolveram as duas autoras deste artigo. trabalha, e o que se discutiu até aqui legitima os dois focos pelos quais se conduz a visão das coisas na sequência destas reflexões: em primeiro lugar, considerado o modo de produção das diferentes versões (especificamente as traduções), vai-se ao modo de conduzir a composição da mensagem divina (especificamente quanto ao estabelecimento de uma coenunciação, portanto, já no plano humano); em segundo lugar, vai-se à sensibilidade do homem na aceitação dos textos (traduzidos) com os quais ele interage comunicativamente para conhecer e viver a palavra de Deus, dada a reconhecida falibilidade que eles apresentam. Ou seja: vai-se à fonte humana da palavra multiplicadora do que seria a “voz divina”; e vai-se à recepção humana dessa palavra multiplicada, com a consciência de que tal é a meta que dirige as opções dos tradutores, já plenamente inseridos no plano humano da coenunciação.

A natureza “sensível” do texto bíblico e a constituição coenunciativa da palavra humana

Considerar essa tensão entre a “produção” (divina, mas “convertida” em humana) e a “recepção” do texto bíblico (já no plano exclusivamente humano) passa pela necessidade de considerar aquilo que se tem entendido como “coenunciação”, no estudo da linguagem.

Em primeiro lugar, cabe insistir no fato de que não se está falando de produção linguística pelo viés unilateral da enunciação, já que, colocada sob análise a Bíblia, justamente esse “texto sensível” – que envolve emocionalmente o receptor (SIMMS, 1997SIMMS, K. (Org.). Translating sensitive texts: linguistic aspects. Amsterdam, Atlanta: GA, 1997.) –, o que mais releva é o ponto de chegada: ele é, essencialmente, o homem, aquele que deve “tomar” a palavra de Deus, sendo essa “tomada” da palavra a meta de todo o processo. Efetivamente, a palavra divina se revela somente no homem que a toma, ou seja, naquele a quem Deus a destinou.

Entretanto, já por tal noção de “texto sensível” a palavra da Bíblia se coloca em relação com o plano humano, por via daquilo que, nesse contexto, cataloga-se como “emoção”. Já se está a um passo da visão humanamente (socio)linguística de coenunciação: sobreleva o enunciatário; sobrelevam as motivações; interferem as estratégias; em nome da transmissão da palavra divina, maximizam-se as relações humanas.

Os estudos linguísticos da coenunciação (BENVENISTE, 2005BENVENISTE, E. Problemas de linguística geral I. Tradução de Maria da Glória Novak e Maria Luisa Neri. São Paulo: Pontes, 2005. BÍBLIA SAGRADA. Almeida revista e atualizada. Barueri: Sociedade Bíblica do Brasil, 1993.; FIORIN, 1999FIORIN, J. L. As astúcias da enunciação: as categorias de pessoa, espaço e tempo. São Paulo: Ática, 1999.; 2002______. Introdução à linguística. São Paulo: Contexto, 2002.; MAINGUENEAU, 1996MAINGUENEAU, D. Pragmática para o discurso literário. Tradução de Marina Appenzeller. São Paulo: Martins Fontes, 1996.; HILGERT, 2011HILGERT, J. G. Variações interacionais na construção da compreensão na fala. In: PRETI, D. F. (Org.). Variação na fala e na escrita. São Paulo: Humanitas, 2011, v. 11, p. 219-247.), concentrados nos mecanismos de organização da linguagem em situações reais de uso, fixam-se particularmente na concepção do que vem a ser o sujeito do discurso, mas com a assunção de que “a consciência de si mesmo só é possível se experimentada por contraste” (BENVENISTE, 2005BENVENISTE, E. Problemas de linguística geral I. Tradução de Maria da Glória Novak e Maria Luisa Neri. São Paulo: Pontes, 2005. BÍBLIA SAGRADA. Almeida revista e atualizada. Barueri: Sociedade Bíblica do Brasil, 1993., p. 286). O autor propõe que todo texto é produto de um eu que, ao pronunciar-se, tem em vista um tu, um coparticipante na construção do discurso. Fica clara a proposta de que o tu “é também sujeito produtor do discurso”, aquele leitor-modelo de que fala Eco (1988)ECO, U. Lector in fabula. São Paulo: Perspectiva, 1988.. O que se define sempre, no uso da linguagem, é, portanto, uma coenunciação, já que “o enunciador, na construção do enunciado, é, em qualquer situação de uso da linguagem, determinado pelo enunciatário, o qual, por obra dessa determinação, torna-se coenunciador” (HILGERT, 2011HILGERT, J. G. Variações interacionais na construção da compreensão na fala. In: PRETI, D. F. (Org.). Variação na fala e na escrita. São Paulo: Humanitas, 2011, v. 11, p. 219-247., p. 247).

Ainda abstraindo qualquer intervenção do “sagrado” nesse processo, cabe passar a pensar a coenunciação no terreno da tradução, o que implica a avaliação de um esquema complexo, no qual dois textos, o texto-fonte (o texto “original”) e o texto-alvo (o texto traduzido) se relacionam, para a construção discursiva. Pode-se falar em duas instâncias de (co)enunciação, com certeza distintas, mas interligadas e complementares; basta pensar no fato de que o tradutor tem em mente a imagem de seu destinatário ao entrar no processo de coenunciação, mas o texto de que ele parte – seu texto-fonte – já é uma construção comandada por outra imagem de destinatário: trata-se, exatamente, dele próprio, que agora é o (co) enunciador destinador.

Como já se sugeriu aqui, essa interligação torna-se ainda mais complexa em se tratando de tradução dos textos sagrados, esses “textos sensíveis”, por sua própria natureza passíveis de suscitar objeções quanto à tradução (SIMMS, 1997SIMMS, K. (Org.). Translating sensitive texts: linguistic aspects. Amsterdam, Atlanta: GA, 1997.).

Também é peculiar ao universo das versões bíblicas a identificação dos tipos de leitores envolvidos, os quais podem ser tidos como os direcionadores dos enfoques tradutórios. E são pelo menos dois os tipos de leitores que o(s) tradutor(es) tem (têm) em vista ao construir as versões: o leitor religioso e o leitor leigo. O primeiro é um conhecedor da mensagem bíblica, que, inserido em uma comunidade de falantes que partilham conhecimentos bíblico-teológicos, busca encontrar no texto a linguagem que ele sente como própria dessa comunidade, ou seja, que ele tem presente em sua “consciência linguística” (CRYSTAL; DAVY, 1992CRYSTAL, D; DAVY, D. Investigating English style. London: Longman, 1992.). Sua motivação é sempre religiosa, por isso sua busca é a de encontrar na tradução uma reprodução fiel do texto-fonte, o que o faz exatamente aquele tipo de “leitor sensível” de que fala Simms (1997)SIMMS, K. (Org.). Translating sensitive texts: linguistic aspects. Amsterdam, Atlanta: GA, 1997.. Nessa instância de transmissão, o tradutor se coloca meramente na condição de um escriba, “que transcreve uma palavra mais original que lhe vem por inspiração” (SIMMS, 1997SIMMS, K. (Org.). Translating sensitive texts: linguistic aspects. Amsterdam, Atlanta: GA, 1997., p. 19), e cuidando sempre para que a tradução carregue em sua organização as marcas típicas da linguagem religiosa. O leitor leigo, por sua vez, é aquele que, não possuindo um conhecimento especializado no que diz respeito à religião, mesmo interessado pelo conteúdo bíblico tem dificuldade para compreendê-lo, dada a sua carência do saber linguístico-teológico, e dado o distanciamento da sua realidade de vida em relação ao discurso bíblico-religioso. Esse leitor, na maioria dos casos, também não tem o hábito da leitura, e dificilmente interpretaria (ou, mesmo, se interessaria por) uma tradução de estruturas linguísticas complexas ou de léxico mais distante do coloquial. É esse tipo de leitor que dá ao tradutor grande espaço para um tratamento pessoal do conteúdo do texto-fonte.

Com vista a dialogar com esses dois tipos de leitores (e com graus de diversificação interna, especialmente dentro do tipo dos leitores leigos), tradutores vêm produzindo versões que visam a atender às expectativas do grupo a que se destinam, fato que aqui se recolhe justamente para evidenciar a presença determinante do coenunciador já na própria motivação da produção do discurso tradutório.

A multiplicidade de traduções bíblicas: mais especificamente, a constituição coenunciativa da palavra humana

Atualmente, no Brasil, há diversas traduções bíblicas, que seguem diferentes enfoques tradutórios na produção do discurso. Levando-se em consideração a polarização entre literal e livre, observa-se que, no contexto religioso, há versões bíblicas em dois extremos de posição: (i) há as que se caracterizam pela priorização da forma original, conservando, por exemplo, jogos de palavras, rimas, paralelismos, conforme a estrutura encontrada no texto-fonte, preservado quanto à religiosidade; e (ii) há as que, mesmo sem deixar de priorizar o sentido do texto-fonte, entretanto o vertem para uma linguagem mais próxima da variedade usada pelo falante no dia a dia, variedade tradicionalmente descrita como próxima da língua falada, ou como da linguagem corrente.

Pode-se dizer que a existência desses dois tipos de organização discursivo-textual decorre, muito determinantemente, da própria motivação que rege a produção do discurso, exatamente a imagem que se constrói dos prováveis leitores, por exemplo, religiosos (especializados), ou leigos (genéricos). Está textualmente em Miller e Huber (2006)MILLER, S. M; HUBER, R. V. A Bíblia e sua história: o surgimento e o impacto da Bíblia. Tradução de Magda D. Z. Huf e Fernando H. Huf. Barueri: Sociedade Bíblica do Brasil, 2006., por exemplo, que é o público alvo que, em muitos casos, determina se uma tradução será literal ou livre. Os que defendem a literalidade na tradução bíblica, como os leitores religiosos, em geral alegam que “o princípio de tradução formal”, em que há uma maior preocupação em preservar a forma do texto-fonte, “protege o texto bíblico, impedindo que os tradutores insiram nele suas preferências teológicas” (MILLER; HUBER, 2006MILLER, S. M; HUBER, R. V. A Bíblia e sua história: o surgimento e o impacto da Bíblia. Tradução de Magda D. Z. Huf e Fernando H. Huf. Barueri: Sociedade Bíblica do Brasil, 2006., p. 228). Além disso, os leitores religiosos, em geral, buscam encontrar no texto traduzido marcas identitárias de sua comunidade religiosa expressas pela linguagem: “A Bíblia não transmite seu espírito por si só. A comunidade que ‘guarda’ (pratica) a fé quer guardar (conservar para praticar) o texto num sentido bem seu, e para perceber esse sentido é preciso comungar com o mundo significativo de cada comunidade” (KONINGS, 2009KONINGS, J. Tradução e traduções da Bíblia no Brasil. In: GOHN C. NASCI-MENTO, L. A Bíblia e suas traduções. São Paulo: Humanitas, 2009., p. 114). Por outro lado, os que defendem uma maior liberdade na tradução bíblica estão mais preocupados com “a comunicação da mensagem a seu público alvo”, a qual, em geral, não se restringe a leitores religiosos: “Se a tradução se destina a crianças, adultos que não ficaram muito tempo na escola ou que nunca antes leram a Bíblia, o resultado poderá ser bem diferente das traduções clássicas do tipo King James ou Almeida4 4 Tanto a King James como as versões de Almeida são consideradas versões literais da Bíblia e são tradicionalmente usadas por leitores religiosos. Essa é uma das razões por que se escolheu, neste artigo, analisar uma das versões de Almeida como modelo de tradução literal. ” (MILLER; HUBER, 2006MILLER, S. M; HUBER, R. V. A Bíblia e sua história: o surgimento e o impacto da Bíblia. Tradução de Magda D. Z. Huf e Fernando H. Huf. Barueri: Sociedade Bíblica do Brasil, 2006., p. 229).

Em decorrência dessa forte presença da imagem do público leitor na produção das traduções bíblicas, pode-se, então, identificar, pelo menos, três grupos de versões: (i) as versões literais, que preservam as estruturas do texto-fonte e a linguagem religiosa usada pela comunidade cristã (Nova versão internacional; Bíblia de Jerusalém, bem como as versões de Almeida, entre outras que constituem a maioria das versões bíblicas); (ii) as versões livres que não seguem a tradição linguística da comunidade religiosa, embora preservem as características espaçotemporais do texto-fonte (Nova tradução na linguagem de hoje; Nova Bíblia Viva); e (iii) as versões livres que, além de não seguirem essa tradição e não conservarem as características espaçotemporais do texto-fonte, apresentam um tratamento pessoal do tradutor em relação ao conteúdo original, que vem adaptado à vivência do público alvo contemporâneo (A mensagem)5 5 Para os estudiosos da tradução bíblica, o segundo grupo seria composto de traduções que seguem o princípio da equivalência funcional, ou dinâmica, proposto por Nida (1964) e Nida e Taber (1982) (autores que discutiram a teoria da tradução tomando como base de análise a tradução bíblica), e o terceiro grupo seria composto de traduções que, por se “distanciarem” significativamente do texto-fonte, são chamadas de paráfrases, o que, indiretamente, constitui uma forma de desconsiderar que tal tipo de versão seja, de fato, uma tradução. Como afirma Scholz (2014, p. 41): “No contexto das traduções bíblicas [...], paráfrase tende a ter um sentido pejorativo, pois é um termo usado, por vezes, para diminuir esta ou aquela tradução”. A versão livre A mensagem, aqui analisada, é considerada por muitos estudiosos da Bíblia como uma paráfrase. .

A seguinte amostra, que traz o texto de Mateus 6.2 traduzido em cada um desses três tipos de versão, pode ilustrar significativamente diferenças de tradução entre os três diferentes grupos:

Quando, pois, deres esmola, não toques trombeta diante de ti, como fazem os hipócritas, nas sinagogas e nas ruas, para serem glorificados pelos homens. Em verdade vos digo que eles já receberam a recompensa (Almeida revista e atualizada, primeiro grupo).

Quando você der alguma coisa a uma pessoa necessitada, não fique contando o que fez, como os hipócritas fazem nas sinagogas e nas ruas. Eles fazem isso para serem elogiados pelos outros. Eu afirmo a vocês que isto é verdade: eles já receberam a sua recompensa (Nova tradução na linguagem de hoje, segundo grupo).

“Quando for ajudar alguém, não chame atenção para você mesmo. Você já viu gente assim em ação, tenho certeza — eu os chamo ‘atores’. Eles vão orar nas esquinas, como se elas fossem palcos, atuando para o público, interpretando para as multidões. Eles recebem aplausos, sim, mas é tudo que conseguirão (A mensagem, terceiro grupo).

Na versão literal de Almeida, observam-se claramente marcas da linguagem religiosa, por exemplo o uso do pronome vós (vejase: hipócritas, em verdade vos digo) e de palavras e expressões comumente registradas no domínio religioso. Nas versões consideradas “livres”, que são as duas seguintes, verifica-se uma linguagem menos marcada de religiosidade, mais cotidiana, por exemplo, a que se constrói dentro da marca de tratamento pelo pronome você. Dentro desse segundo conjunto de obras, entretanto, observam-se diferenças significativas, já que, na Nova tradução na linguagem de hoje, a menção às sinagogas representa a manutenção das características espaçotemporais do texto-fonte, o que não ocorre em A mensagem, que constrói a situação discursiva sem essa menção, e que coloca o termo atores no lugar de hipócritas. No segundo grupo, a tradução ainda demonstra alguma preocupação com a expectativa do leitor religioso quanto à conservação do texto-fonte. No terceiro grupo, por outro lado, o quase estabelecimento de um diálogo com o leitor revela que a preocupação maior é fazer que o conteúdo bíblico seja relevante para o leitor leigo, marcadamente tratado como inserido na contemporaneidade.

Fato é que, seja qual for o tipo de versão, é determinante a presença do coenunciador na produção do discurso tradutório. De alguma forma, ela motiva a escolha da própria natureza da tradução: ou como literal, ou como (mais, ou menos) livre.

E não se pode deixar de ressaltar que a própria natureza do livro sagrado é determinante nesse processo. Afinal, a Bíblia é tanto marcada por sua historicidade como por sua atemporalidade. Para seus leitores, ela tanto é um discurso circunscrito em tempo e espaço, e específico, como é um conjunto de verdades atemporais e relevantes para o homem, independentemente de época ou de lugar. A partir daí, pode-se concluir que traduções que preservam historicidade tendem a ser mais literais, e traduções que preservam atemporalidade tendem a ser mais livres e a destacar, sobretudo, a relevância eterna do discurso religioso.

Duas versões em análise contrastiva: literalidade e liberdade na organização discursiva

Para esta análise, propõe-se contrastar uma versão bíblica que pertence ao primeiro grupo e outra que pertence ao terceiro grupo, sob a visão de que elas podem representar os dois polos, nesse tipo de contraste. Busca-se, especialmente, no cotejo, avaliar como se diferencia coenunciativamente o discurso das traduções, levados em conta os propósitos que as governam e dirigem.

A avaliação da versão Almeida revista e atualizada6 6 A Versão Almeida revista e atualizada (1993) é uma das versões literais mais aceitas e mais usadas pelo público protestante no Brasil e é resultado de mais de uma década de revisão e atualização teológica e linguística da tradução de João Ferreira de Almeida, produzida no século XVII. Em termos gerais, pode-se dizer que é uma versão destinada ao público leitor religioso, haja vista que tem como princípio preservar o aspecto formal do texto-fonte e conservar a linguagem comumente usada no ambiente religioso. (1993) e de A mensagem7 7 A mensagem, por outro lado, é uma versão livre da Bíblia que se diferencia significativamente de todas as traduções bíblicas com as quais o leitor religioso está habituado, não só por causa das diferenças linguísticas que podem ser facilmente identificadas, mas também por causa da atualização do discurso bíblico-religioso para o contexto contemporâneo. Ela foi produzida originariamente em inglês, em 2002, por Eugene Peterson. A versão em português baseou-se no texto em inglês, embora os consultores da tradução no Brasil ressaltem que o trabalho de Peterson foi revisado por eruditos da Bíblia, com vista a preservar a coerência e a fidelidade da tradução às línguas originais. (2011), duas versões que aqui ilustram os dois extremos entre literal e livre, respectivamente, evidencia que cada um dos textos tem, determinantemente, um leitor em vista, e, pelo que isso significa em linguagem, evidencia que cada um deles tem uma proposta tradutória, na qual o coenunciador terá diferentes participações, quanto à organização discursivo-textual. Na Versão Almeida, as escolhas linguístico-discursivas revelam uma proposta de atingir como público o leitor religioso, aquele que espera receber a palavra divina preservada numa forma maximamente fiel ao texto-fonte, e marcada com o tom da linguagem comumente usada no ambiente religioso. Em A mensagem, por outro lado, a proposta não privilegia um leitor religioso/especializado, mesmo porque a versão foi produzida por um pastor, Eugene Peterson, que, após trinta anos de ministério, em que conviveu com desinteresse do público pela leitura bíblica, declaradamente se propôs fazer uma tradução que fosse relevante para o leitor contemporâneo. Logo na contracapa da versão está esta declaração: “A Mensagem é uma tradução contemporânea da Bíblia com base nas línguas originais que procura preservar na linguagem do dia a dia seus eventos e ideias” (A mensagem, 2011).

Para a análise que aqui se propõe foram extraídos excertos do célebre Sermão do monte ou Sermão da montanha, proferido por Cristo e registrado em Mateus 5-7. Releva o fato de que esse sermão é um dos textos-símbolo do cristianismo, não só por ter sido proferido por Cristo, a própria encarnação da divindade, mas também por tratar temas relevantes para a conduta de um cristão em qualquer época ou lugar. Como afirma Hendriksen (2010, p. 322)HENDRIKSEN, W. Mateus. Tradução de Valter Graciano Martins. São Paulo: Cultura Cristã, 2010, v.1., o sermão “aborda os princípios fundamentais de conduta que, segundo o seu próprio testemunho, permanecem os mesmos em todas as épocas”.

O Sermão da montanha se abre com as conhecidas “bem-aventuranças” ou “beatitudes”, que seguem o padrão de um gênero denominado “macarismo”, termo usado pelos gregos para “descrever a condição dos deuses e daqueles que compartilham da existência feliz deles” (COENEN; BROWN, 2000COENEN, L.; BROWN, C. Dicionário internacional de Teologia do Novo Testamento. Tradução de Gordon Chown. São Paulo: Vida Nova, 2000., p. 217)8 8 O termo macarismo era comumente usado no Antigo Testamento, em geral, com a finalidade de elogiar um determinado comportamento humano (ZEILINGER, 2008, p. 41): [...] bem-aventurado o homem que nele confia (Salmo 65.4); Bemaventurado aquele a quem tu escolhes (Salmo 34.8); Bem-aventurado o homem cuja força está em ti, em cujo coração estão os caminhos aplanados (Salmo 84.5). Apenas raramente se usava a segunda pessoa: Bem-aventurado tu, ó Israel! (Deuteronômio 33.29). . Esse é um ponto extremamente relevante para o exame desse tipo de construção linguística, haja vista que a fórmula tradicional desse tipo de construção era constituída do termo “bem-aventurado” predicado a uma terceira pessoa (Bem-aventurado aquele que...), estrutura presente tanto no texto-fonte quanto na Versão Almeida (que é amostra de versão literal), mas não em A mensagem (que é amostra de versão livre).

Explicite-se que, nos termos de Hendriksen (2010, p. 327)HENDRIKSEN, W. Mateus. Tradução de Valter Graciano Martins. São Paulo: Cultura Cristã, 2010, v.1., as beatitudes de Mateus 5-7 se constituem basicamente de três partes:

a. uma atribuição de bem-aventurança (“bem-aventurados”); b. uma descrição da pessoa a quem se aplica a atribuição, ou seja, de seu caráter ou condição (“os pobres em espírito”, “os que choram”, etc.); c. uma declaração da razão dessa bem-aventurança (“porque deles é o reino do céu”, “porque serão consolados...”).

Para o desenvolvimento das reflexões aqui propostas, a parte que interessa diretamente é a descrição da pessoa a que se aplica a bem-aventurança, exatamente aquela que representa a imagem do destinatário da mensagem (em termos religiosos), configurando, pois, a imagem do interlocutor desejado. Nessa diferença entre os planos de interlocução determinantes em cada uma das duas versões analisadas está a chave-mestra para avaliação do papel do coenunciador nos dois textos, e, mais que isso, da natureza que lhe é dada, o que implica a força de sua presença em um e em outro caso.

Percorram-se as duas apresentações textuais das bem-aventuranças a partir da versão literal.

O primeiro fato a observar na Versão Almeida é que ela não só preserva a terceira pessoa típica da fórmula do macarismo como também conserva a estrutura tripartida identificada no texto-fonte, como se pode ver nesta esquematização:

Quadro 1
Beatitudes - Versão Almeida revista e atualizada

O fato de a referência ao “bem-aventurado” ser feita na terceira pessoa gramatical implica, nos termos de Neves ______. Referenciação: identificação e descrição de referentes. Inédito.(inédito), a possibilidade de uso de termos ou estruturas com grande força descritiva / caracterizadora, no preenchimento das casas nominais: ou elas são nucleadas por um termo substantivo / substantivado, como no caso de os mansos, ou elas são nucleadas por pronome-substantivo seguido de oração adjetivadora, como no caso de os que choram9 9 É interessante observar que o que aqui se traduz com o pronome demonstrativo os seguido de uma oração adjetiva corresponde, no texto-fonte grego, a um particípio presente do verbo, ou seja, a uma forma nominal do verbo, forma que tem natureza verbal, mas que participa da natureza do nome. . Ao construir o discurso nesse modo de estruturação, o enunciador estabelece algumas classes de pessoas que se enquadram na condição de bem-aventurados (os humildes de espírito, os que choram, os mansos, os que têm fome e sede de justiça, os misericordiosos, os limpos de coração, os pacificadores e os perseguidos por causa da justiça) e, assim sendo, cada uma dessas estruturas de natureza substantiva descreve um requisito para alguém ser pertencente a tal categoria. E, assim, a preservação da terceira pessoa não apenas ressalta a literalidade na tradução como também marca o distanciamento típico do discurso religioso, no que diz respeito ao que representa a virtude desejada daqueles que seguem a palavra divina.

A passagem que se fará, agora, ao mesmo trecho bíblico no texto de A mensagem vai mostrar que, nessa versão, que se entende como “livre”, o que se encontra é mais do que uma mensagem a todos os homens, no sentido de perfilar quais deles são objeto das bem-aventuranças, pelo mérito de sua própria caracterização (substantiva) de virtude. Em primeiro lugar, cada um dos potenciais leitores é instaurado fortemente como coenunciador no discurso: a referência à terceira pessoa (aquela representação substantiva que se vê na fórmula tradicional do macarismo e na Versão Almeida) dá lugar a um endereçamento à segunda pessoa gramatical (vocês) que é conclamada a participar do discurso, em visível processo de derivação para um gênero de linguagem interativo:

Quadro 2
Beatitudes - A mensagem

Como se pode observar, neste caso as bem-aventuranças são atribuídas diretamente ao coenunciador, e, mais que isso, em um tratamento bem coloquial – Abençoados são vocês –, ficando abolido aquele preenchimento mais distanciado que vai às categorias nominais colocadas como de “abençoados. A bênção é direcionada, pois, diretamente aos leitores-interlocutores, sem demanda de que seja preenchido por eles algum requisito. O coenunciador já é tido como “abençoado”, justamente por já vir contemplado com as atribuições (adjetivas) necessárias: [vocês] que nada mais têm para oferecer, que sofrem por terem perdido o que mais amavam, que se contentam com o que são — nem mais, nem menos, etc. Assim, o coenunciador que está em vista já não precisa ser, como na versão literal, o leitor que vive a religião em busca do cumprimento de seus deveres religiosos. Agora ele é instituído como um leitor convidado a partilhar da Palavra divina sem deixar de ser quem já é: nada mais do que um indivíduo tranquilamente instalado na sua própria humanidade. A transposição para a segunda pessoa, por si, cria um efeito de aproximação no discurso, uma espécie de estabelecimento de pacto no ato discursivo, o que, de um lado, marca a existência de uma voz divina que eleva o coenunciador humano, e, de outro lado, constrói a natureza dos homens pretendidos como coenunciadores.

Ora, também configurações “conversacionais” podem ser encontradas no Sermão do Monte da Versão Almeida, mas especificamente para criar injunções por meio das quais se transmitam os mandamentos e se doutrinem os interlocutores. Leia-se o trecho de Mateus 6.5-8:

5 E, quando orardes, não sereis como os hipócritas; porque gostam de orar em pé nas sinagogas e nos cantos das praças, para serem vistos dos homens. Em verdade vos digo que eles já receberam a recompensa.

6 Tu, porém, quando orares, entra no teu quarto e, fechada a porta, orarás a teu Pai, que está em secreto; e teu Pai, que vê em secreto, te recompensará.

7 E, orando, não useis de vãs repetições, como os gentios; porque presumem que pelo seu muito falar serão ouvidos.

8 Não vos assemelheis, pois, a eles; porque Deus, o vosso Pai, sabe o de que tendes necessidade, antes que lho peçais.

É uma série de declarações injuntivas absolutamente mandatórias, que esperam que o leitor, recebendo a ordenança, simplesmente a cumpra. A forma verbal de futuro que abre a série (E, quando orardes, não sereis como os hipócritas), por exemplo, recobra a estrutura linguística tradicionalmente usada na apresentação dos Dez Mandamentos (exemplifique-se: Não matarás). Trata-se de um uso linguístico típico do domínio religioso, em que a injunção vem no sentido de estabelecer a conduta que cabe ao fiel cumprir. Além do mais, esse futuro também reforça o tom profético do discurso, indicando que o comportamento requerido do leitor é nada mais do que aquilo que já se espera, como decorrência dos mandamentos. E as demais ocorrências de injunção, em forma verbal imperativa (Tu, porém, quando orares, entra no teu quarto; E, orando, não useis de vãs repetições; Não vos assemelheis, pois, a eles), também são claramente mandatórias, não sugerindo nenhuma negociação com o fiel leitor, nem tentativa de convencê-lo quanto ao que se espera dele.

Para esse mesmo trecho bíblico, a versão A mensagem também faz uso de recursos linguísticos que expressam a injunção, por exemplo as próprias formas verbais imperativas, mas elas mais soam como recomendações e conselhos que se lançam a alguém que é chamado a coparticipar do discurso:

5 “E, quando forem à presença de Deus, também não façam disso uma produção teatral. Essa gente que faz da oração um show está buscando o estrelato! Vocês acham que Deus está no camarote, apreciando o espetáculo? 6 “É assim que eu quero que vocês façam: encontrem um local tranquilo e isolado, de modo que não sejam tentados a interpretar diante de Deus. Apenas fiquem lá, tão simples e honestamente quanto conseguirem. Desse modo, o centro da atenção será Deus, não vocês, e vocês começarão a perceber sua graça. 7-8 O mundo está cheio de pessoas que se julgam guerreiros de oração, mas que nem sabem o que é orar. Utilizamse de fórmulas, programas, conselhos e técnicas de vendas para conseguir o que querem de Deus. Não façam essa asneira. Vocês estão diante do Pai! E ele sabe de que estão precisando, melhor que vocês mesmos.

No modo como se constrói o texto, cria-se um novo cenário, em que, além de não se encontrarem as marcas espaçotemporais do discurso bíblico, como as menções a sinagogas e gentios, estabelece-se um enunciador comprometido em tentar convencer o interlocutor a aceitar a sua recomendação / mandamento como o caminho a ser seguido. Isso pode ser visto claramente no tom conversacional da pergunta feita pelo locutor após lançar sua prescrição: E, quando forem à presença de Deus, também não façam disso uma produção teatral. [....] Vocês acham que Deus está no camarote, apreciando o espetáculo?. Com ela, o enunciador persuade o leitor a concordar com a instrução dada, a de que não se deve transformar um momento de relacionamento com Deus em uma produção que visa a público espectador, como uma produção teatral: E, quando forem à presença de Deus, também não façam disso uma produção teatral. Essa gente que faz da oração um show está buscando o estrelato! O que se afirma é, simplesmente, a vontade de Deus, um querer firme, um desejo forte que espera do homem condescendência, não é uma ordem cabal que exige cumprimento; semelhantemente, a declaração Desse modo, o centro da atenção será Deus, não vocês, e vocês começarão a perceber sua graça constitui tentativa de convencimento do leitor e de estabelecimento de pacto. Trata-se, afinal, de um texto mais humanizado, no sentido de que o leitor fica instruído como coparticipativo na produção discursiva.

Outro fato linguístico a ser notado especificamente em A mensagem é a presença marcada de emissões linguísticas que estão completamente ausentes no conteúdo do texto-fonte, como é o caso da pergunta Vocês acham que Deus está no camarote, apreciando o espetáculo? e é o caso da recomendação Apenas fiquem lá, tão simples e honestamente quanto conseguirem. Muitas intromissões linguísticas breves se notam, e particularmente marcadas como parentéticas, ou seja, como operadoras de relevo discursivo. Como mostra Neves (2012, p. 85)NEVES, M. H. M. As estratégias discursivas e suas implicações na relação entre oralidade e escrita: um estudo do parêntese na crônica. Linguística [online]. Madri, ALFAL, vol. 27, n.1, p. 77-97, 2012.,

O parêntese é uma das estratégias de discursivização e de textualização de maior relevância, pelo que traz de representação de hierarquias: (i) em todos os níveis de constituição do enunciado (tanto na sintaxe, ou seja, no sintagma, na oração e na frase, como além dela, nas porções maiores); (ii) em todos os planos de funcionamento lingüístico (tanto na comunicação de conteúdos como na troca interpessoal); (iii) na própria construção do texto (aquela zona que fica no domínio da “função textual”, tal como proposta em Halliday, 1994).

Na fala, tal estratégia é vista, em geral, como decorrência do baixo grau de planejamento dessa modalidade de linguagem, enquanto, como indica Neves (2012, p. 85)NEVES, M. H. M. As estratégias discursivas e suas implicações na relação entre oralidade e escrita: um estudo do parêntese na crônica. Linguística [online]. Madri, ALFAL, vol. 27, n.1, p. 77-97, 2012., na escrita, “ela parece ligar-se muito fortemente a uma construção de planos de visão e uma forte marcação de relevos (e, portanto, se liga a cuidado de elaboração)”. E é por aí que se pode avaliar o papel relevante dessa estratégia discursiva em textos bíblicos de doutrinação, bem como o papel particular que se pode atribuir a esses casos, em dependência das diferentes propostas das diferentes traduções.

Obviamente, a própria natureza da palavra sagrada não parece oportunizar recursos tão marcados de estabelecimento de relevo discursivo, já que a transmissão da palavra sagrada está longe de poder ser considerada um processo aberto à pressão argumentativa. Entretanto, no exame da versão livre A mensagem a que aqui se procedeu foram encontrados treze casos de parentetizações, entre as quais diversas trazem, exatamente, trechos não constantes do texto-fonte, e, portanto, merecem atenção particular.

Para uma análise funcional desses usos, cumpre, basicamente, verificar quais as funções textual-interativas que esse tipo de segmento desempenha nas ocorrências encontradas, visto que, para os parênteses discursivos, têm sido verificados, no geral, quatro espécies de funções, pautadas nos tipos de foco que são estabelecidos no processo de parentetização (JUBRAN, 1999JUBRAN, C. C. A. S. Funções textuais-interativas dos parênteses. In: NEVES, M. H. M. (org.). Gramática do Português Falado. Campinas: UNICAMP, v. 7, 1999, p. 131- 158.; 2006______. Parentetização. In: JUBRAN, C. C. A. S.; KOCH, I. G. V. Gramática do português culto falado no Brasil. V. 1. Campinas: UNICAMP, 2006.): (i) foco na elaboração tópica do texto, função mais ligada ao conteúdo e à organização formal; (ii) foco no locutor, função mais ligada à posição assumida pelo locutor na situação de enunciação; (iii) foco no interlocutor, função mais ligada ao envolvimento dos interlocutores com o ato de fala que executam; (iv) foco no ato comunicativo, função mais ligada à situação de discurso.

A maioria das parentetizações encontradas (nove) são do tipo que visa a especificar ou esclarecer o conteúdo (JUBRAN, 2006______. Parentetização. In: JUBRAN, C. C. A. S.; KOCH, I. G. V. Gramática do português culto falado no Brasil. V. 1. Campinas: UNICAMP, 2006., p. 328), um fato que merece observação dentro das nossas reflexões, já que ele sinaliza uma outra tendência das versões livres, que é exemplificar e/ou esclarecer informações, evitando má interpretação da palavra sagrada, já que o texto original, por sua complexidade, por vezes pode ser considerado de difícil compreensão pelos leitores leigos. As seguintes são cinco ocorrências de parênteses que visam a tornar mais preciso o sentido de palavras ou expressões, facilitando a interpretação do conteúdo:

Abençoados são vocês, que se contentam com o que são — nem mais, nem menos. Assim, vocês se verão como os orgulhosos donos de tudo que não pode ser comprado. (Mateus 5.5).

Abençoados são vocês, que sentem fome de Deus. Ele é comida e bebida — é alimento incomparável. (Mateus 5.6)

E isso não é tudo. Considerem-se abençoados sempre que forem agredidos, expulsos ou caluniados para me desacreditar. Isso significa que a verdade está perto de vocês o suficiente para os consolar — consolo que os outros não têm. (Mateus 5.11)

“Se Deus dá tanta atenção à aparência das flores do campo — e muitas delas nem mesmo são vistas —, não acham que ele irá cuidar de vocês, ter prazer em vocês e fazer o melhor por vocês? (Mateus 6.30)

O caminho para a vida — para Deus! — é difícil e requer dedicação total. (Mateus 7.14)

Para esses casos, o uso de inserções parentéticas, pautado pela primeira função discursivo-textual desses segmentos proposta e definida por Jubran (2006)______. Parentetização. In: JUBRAN, C. C. A. S.; KOCH, I. G. V. Gramática do português culto falado no Brasil. V. 1. Campinas: UNICAMP, 2006., mostrou-se eficiente quanto à consideração das características de uma versão livre, portanto bastante engajada com a fácil compreensão do leitor. Entretanto, com outras ocorrências, chegou-se ao fato de que, diferentemente do que ocorre nos textos que serviram de base para a classificação em Jubran (2006)______. Parentetização. In: JUBRAN, C. C. A. S.; KOCH, I. G. V. Gramática do português culto falado no Brasil. V. 1. Campinas: UNICAMP, 2006., que são de conversação oral, nos textos deste estudo, que são traduções, o conteúdo tem de ser observado em dois planos: o do texto-fonte e o do texto vertido em outra língua. Ora, a consideração de que existe entre esses dois planos uma relação particular permitiu verificar uma subfunção parentética ainda não contemplada nas classificações disponíveis: há parênteses com foco na elaboração tópica que têm a finalidade de retomar um conteúdo do texto-fonte que ficou perdido na construção mais livre da tradução. É fácil hipotetizar que, quanto mais uma tradução se distancia do texto-fonte no modo como é construída, mais ela tem necessidade de recuperar sua origem, para resgatar mais fielmente a palavra original. O quadro comparativo das duas versões aqui contrastadas que se apresenta a seguir permite visualizar esse fato:

Quadro 3
Parentetizações nas duas versões

Vão comentadas, a seguir, tais parentetizações de A mensagem:

  • No primeiro caso (Não pensem, nem por um instante, que eu vim anular as Escrituras — a Lei de Deus ou os Profetas), essa expressão parentetizada, central no texto-fonte, é resgatada como uma explicação posposta a “Escrituras”, termo que, sendo mais amplo e mais conhecido pelos leitores em geral, é o escolhido para figurar em primeiro lugar, e como núcleo. Um leitor leigo teria dificuldade para captar por si a metonímia que leva desse termo às Escrituras Sagradas.

  • No segundo caso (o Sol que aquece e a chuva que traz vida), além de criar-se uma relação metonímica com sol e chuva (termos presentes no texto-fonte), especifica-se, por meio das orações adjetivas, o grande significado daquele benefício divino de fazer nascer o sol sobre maus e bons, e de fazer vir chuva sobre justos e injustos.

  • No terceiro caso, releva o fato de que a invocação a Deus (Senhor, Senhor!), que tem o peso de ser asenha correta, entretanto não é suficiente para a salvação.

  • No quarto caso, a ressalva “exceto em caso de relações sexuais ilícitas”, que vinha em Almeida como parte integrante de uma afirmação categórica, entra, em A mensagem, com o mesmo teor, mas reformulada (a não ser que ela já o seja por ter se tornado promíscua), e parentetizada, dentro de uma hipótese: “Se você se divorciar da sua esposa….; Se você se casar com uma adúltera divorciada.....”. Isso pode mudar o direcionamento do julgamento, e, de fato, esse trecho tem sido considerado por muitos como argumento favorável ao divórcio. Entretanto o próprio cuidado em reduzir a ressalva ao nível parentético deixa claro que o que se registra é a possibilidade da existência prévia de um comportamento “promíscuo”, e, portanto, não ligada ao que está em julgamento. A parte final do versículo marca claramente o cuidado em ressaltar que, na exceção que a Bíblia registra e a versão A mensagem traduz, não há nenhuma apologia ao divórcio: “Você não pode usar a cobertura da lei para mascarar uma falha moral.

As outras quatro inserções parentéticas encontradas em A mensagem têm foco na interlocução em si, duas no locutor (as duas primeiras que se registram a seguir) e duas no interlocutor, ou seja, no leitor do texto (as duas últimas que se registram a seguir):

Quando for ajudar alguém, não chame atenção para você mesmo. Você já viu gente assim em ação, tenho certeza — eu os chamo ‘atores’. (Mateus 6.2)

Não acumulem neste mundo tesouros que podem ser devorados por traças, corroídos pela ferrugem ou — pior! — roubados. (Mateus 6.19)

Quando você ajudar alguém, não pense na impressão que vai causar. Apenas ajude — com simplicidade e discrição. É assim que Deus, que o criou com todo amor, faz. Ele age nos bastidores para ajudar você. (Mateus 6.3)

Dá um jeito neste mundo. Faz o que é melhor — tanto aí em cima quanto aqui embaixo. (Mateus 6.10)

Verifica-se que, nas duas parentetizações com foco no locutor, o enunciador interrompe o discurso para dirigir-se, marcadamente, ao coenunciador como em diálogo. Além disso, no primeiro trecho, o parêntese eu os chamo atores reforça a criação de um cenário de pura representação, o do teatro, em que as pessoas agem chamando a atenção para si próprias, até nos momentos em que a prática do bem é que deveria envolvê-las. No segundo trecho, insere-se claramente uma “manifestação atitudinal do locutor em relação ao tópico” (JUBRAN, 2006______. Parentetização. In: JUBRAN, C. C. A. S.; KOCH, I. G. V. Gramática do português culto falado no Brasil. V. 1. Campinas: UNICAMP, 2006., p. 343): ao exclamar pior! ele manifesta seu julgamento e traz seu alerta ao leitor, criando uma escala ascendente em que coloca os diferentes perigos a que estão sujeitos os que acumulam riquezas. Quanto às duas parentetizações com foco no interlocutor, o enunciador também obtém um efeito de aproximação entre ambos os participantes do ato discursivo, burilando com explicitações os conselhos ou recomendações que dá: Apenas ajude —com simplicidade e discrição; Faz o que é melhor — tanto aí em cima quanto aqui embaixo.

Tanto o esclarecimento e a especificação de termos como a retomada de um conteúdo do texto-fonte que teria ficado perdido, do mesmo modo que o estabelecimento de diálogo que cria uma aproximação do locutor com o interlocutor, apontam para um traço forte no discurso das versões livres, que é o convite para o estabelecimento de um pacto com o leitor.

Afinal, a palavra sagrada “traduzida”

Na reflexão que aqui se apresentou, buscou-se avaliar a constituição da coenunciação em traduções da Bíblia, pondo sob consideração o esquema complexo que se estabelece no modo como tais versões organizam o discurso religioso. E o que se pôde basicamente depreender das incursões aqui propostas é que, no que concerne à organização discursiva, as diferenças entre versões bíblicas literais e versões livres tocam, especialmente:

  • o modo particular de marcação da presença do enunciador (autor);

  • a representação particular da entidade pretendida como coenunciador (leitor);

  • a montagem do nível de injunção que o enunciador pretende estabelecer com o coenunciador: (i) de transmissão de mandamento, no sentido doutrinário; (ii) de recomendação, no sentido humano; (iii) de conselho, no sentido marcadamente coparticipativo.

Sempre com assento na ideia de que o autor da versão é o depositário da palavra – num ou em outro nível de confiança –, pode-se dizer que essas diferenças tocam, afinal, a própria interpretação dos atos humanos que a “palavra sagrada” vem exigir de / solicitar de / pactuar com seu recebedor (o leitor / o fiel). Veja-se, por um lado, Almeida, que, seguindo padrões de textos marcadamente doutrinários, organiza o discurso religioso sem nenhuma tentativa de aproximação com o leitor: a interação se rege pela conservação da tradição, mantida ao longo da história, de um discurso religioso marcado, sobretudo, pelo distanciamento. Em A mensagem, por outro lado, a interação entre os dois coenunciadores, do modo como é discursivizada, ou seja, com um enunciador que mansamente oferece as bem-aventuranças, concedendo as bênçãos sem afirmar a exigência de uma contraparte para a sua obtenção, configura o estabelecimento de relações de cooptação por parte de quem oferece as bem-aventuranças. Em suma, a definição final da relação que existe entre ambos é resolvida em pacto.

  • 1
    A dissertação de mestrado (LOPES, 2008LOPES, M. M. M. A sensibilidade na tradução bíblica: aspectos linguísticos e socioculturais. São Paulo. Dissertação (Mestrado em Letras). Universidade Presbiteriana Mackenzie, 2008.) e a tese de doutorado (LOPES, 2011______. A diversidade de versões do livro sagrado no jogo das vozes em interação. Tese (Doutorado em Letras). Universidade Presbiteriana Mackenzie, São Paulo, 2011.), transformada em livro (LOPES, 2014______. Tradução bíblica: um estudo sobre interação, sensibilidade e gênero - Coleção Saberes em Tese. São Paulo: Editora Mackenzie, 2014.), foram orientadas pela primeira autora deste texto, que prefaciou o livro (NEVES, 2014______. Prefácio. In: LOPES, M. M. M. Tradução bíblica: um estudo sobre interação, sensibilidade e gênero — Coleção Saberes em Tese. São Paulo: Editora Mackenzie, 2014, p. 11-19.) e que também supervisionou o pós-doutorado (LOPES, 2015______. Uma análise funcionalista das estratégias linguístico-discursivas em versões livres da Bíblia. Relatório inédito (Pós-Doutorado em Letras). Universidade Presbiteriana Mackenzie, São Paulo, 2015.). O tema deste artigo não foi tratado em nenhum desses trabalhos, entretanto a motivação do artigo resulta, de certo modo, da experiência adquirida nesse percurso de estudos.
  • 2
    Para Frame (2013, p. 211)FRAME, J. M. A doutrina da palavra de Deus. Tradução de Meire Portes Santos e Márcio Santana Sobrinho. São Paulo: Cultura Cristã, 2013., o texto “é o objeto linguístico que pode ser encontrado em qualquer meio linguístico”. O primeiro texto escrito seria o documento autográfico, que pode ter diversas cópias. Se essas cópias reproduzem exatamente o documento autográfico, o texto, então, como objeto linguístico, é preservado. Nos termos de Frame (2013, p. 211)FRAME, J. M. A doutrina da palavra de Deus. Tradução de Meire Portes Santos e Márcio Santana Sobrinho. São Paulo: Cultura Cristã, 2013., “o mesmo se dá com a Escritura. Por inspiração divina, seu texto se encontra no autógrafo e, quando a cópia é perfeita, encontra-se também na cópia. Portanto, não importa se o “documento” autográfico foi preservado ou não, o que importa é que o ‘texto’ autográfico esteja disponível a nós, ainda que tal texto só possa ser encontrado nas cópias (apógrafos) do original”.
  • 3
    O mesmo vale para os que o antecederam nos estudos, já citados, que envolveram as duas autoras deste artigo.
  • 4
    Tanto a King James como as versões de Almeida são consideradas versões literais da Bíblia e são tradicionalmente usadas por leitores religiosos. Essa é uma das razões por que se escolheu, neste artigo, analisar uma das versões de Almeida como modelo de tradução literal.
  • 5
    Para os estudiosos da tradução bíblica, o segundo grupo seria composto de traduções que seguem o princípio da equivalência funcional, ou dinâmica, proposto por Nida (1964)NIDA, E. A. Toward a science of translating: with special reference to principles and procedures involved in Bible translating. Leiden: E. J. Brill, 1964. e Nida e Taber (1982)______; TABER, C. R. The theory and practice of translation. Leiden: Brill, 1982. (autores que discutiram a teoria da tradução tomando como base de análise a tradução bíblica), e o terceiro grupo seria composto de traduções que, por se “distanciarem” significativamente do texto-fonte, são chamadas de paráfrases, o que, indiretamente, constitui uma forma de desconsiderar que tal tipo de versão seja, de fato, uma tradução. Como afirma Scholz (2014, p. 41)SCHOLZ, V. 40 anos de Bíblia na Linguagem de Hoje. Barueri: Sociedade Bíblica do Brasil, 2014.: “No contexto das traduções bíblicas [...], paráfrase tende a ter um sentido pejorativo, pois é um termo usado, por vezes, para diminuir esta ou aquela tradução”. A versão livre A mensagem, aqui analisada, é considerada por muitos estudiosos da Bíblia como uma paráfrase.
  • 6
    A Versão Almeida revista e atualizada (1993) é uma das versões literais mais aceitas e mais usadas pelo público protestante no Brasil e é resultado de mais de uma década de revisão e atualização teológica e linguística da tradução de João Ferreira de Almeida, produzida no século XVII. Em termos gerais, pode-se dizer que é uma versão destinada ao público leitor religioso, haja vista que tem como princípio preservar o aspecto formal do texto-fonte e conservar a linguagem comumente usada no ambiente religioso.
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    A mensagem, por outro lado, é uma versão livre da Bíblia que se diferencia significativamente de todas as traduções bíblicas com as quais o leitor religioso está habituado, não só por causa das diferenças linguísticas que podem ser facilmente identificadas, mas também por causa da atualização do discurso bíblico-religioso para o contexto contemporâneo. Ela foi produzida originariamente em inglês, em 2002, por Eugene Peterson. A versão em português baseou-se no texto em inglês, embora os consultores da tradução no Brasil ressaltem que o trabalho de Peterson foi revisado por eruditos da Bíblia, com vista a preservar a coerência e a fidelidade da tradução às línguas originais.
  • 8
    O termo macarismo era comumente usado no Antigo Testamento, em geral, com a finalidade de elogiar um determinado comportamento humano (ZEILINGER, 2008ZEILINGER, F. Entre o céu e a terra: comentário ao sermão da montanha (Mt 5-7). Tradução de Paulo F. Valério. São Paulo: Paulinas, 2008., p. 41): [...] bem-aventurado o homem que nele confia (Salmo 65.4); Bemaventurado aquele a quem tu escolhes (Salmo 34.8); Bem-aventurado o homem cuja força está em ti, em cujo coração estão os caminhos aplanados (Salmo 84.5). Apenas raramente se usava a segunda pessoa: Bem-aventurado tu, ó Israel! (Deuteronômio 33.29).
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    É interessante observar que o que aqui se traduz com o pronome demonstrativo os seguido de uma oração adjetiva corresponde, no texto-fonte grego, a um particípio presente do verbo, ou seja, a uma forma nominal do verbo, forma que tem natureza verbal, mas que participa da natureza do nome.

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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    May-Aug 2016

Histórico

  • Recebido
    18 Dez 2015
  • Aceito
    02 Fev 2016
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