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Avaliação da toxigênese de c. botulinum em mortadela e presunto

Evaluation of Clostridium botulinum toxin production in mortadella and ham

Resumos

Na presente pesquisa foi realizada uma avaliação do risco de transmissão de botulismo por consumo de mortadela e presunto. Numa primeira fase, 25 amostras de mortadela e presunto cozido, coletadas ao acaso no varejo do município de Campinas - SP, foram analisadas quanto ao pH, atividade de água (Aa), concentração de cloreto de sódio e de nitrito de sódio e umidade. Nesta fase, ainda foram determinados o tempo e a temperatura de estocagem na revenda. Considerando-se isoladamente os fatores que controlam o desenvolvimento do C. botulinum, apenas quatro (16%) amostras de mortadela coletadas no varejo apresentaram valores de atividade de água capazes de irnpedir a oxigênese, ou seja, inferiores a 0,94. Na segunda fase, mortadela e presunto foram preparados em usina experimental e artificialmente contaminados com 10(4) esporos de C botulinum tipos A e B por amostra. A seguir, foram submetidos à estocagem inadequada, à temperatura de 30°C. A formação de toxina botulínica foi observada nas amostras de presunto artificialmente contaminadas, após 12 dias de estocagem à temperatura de 30°C. Nas amostras de mortadela não foi detectada toxina ao fim de 28 dias de estocagem, à mesma temperatura.

Clostridium botulinum; toxigênese; mortadela; presunto


The risk of transmitting botulism via mortadella and cooked ham was evaluated in this research. In a first phase, samples of mortadella and cooked ham were acquired at random from shops in the region of Campinas - SP. Twenty five samples of each product were acquired and examined in duplicate to determine the pH, water activity (Aw), sodium chloride and sodium nitrite concentrations and water content. The storage times and temperatures at the distributers were also determined in this phase. Only four (16%) samples of mortadella acquired from shops given secure values of Aw to hinder the toxigenesis per si, i.e. below 0,94. In the second phase, mortadella and ham were produced in pilot plant and contamined with 10(4) C. botulinum types A and B spores per samples. These samples were evaluated to determine the possibility of toxin formation by the microorganism when the products were submitted to inadequate storage at a temperature of 30°C. The formation of botulinum toxin was observed after 12 days of storage at 30°C in the artificially contamined ham samples. After 28 days of storage at the same temperature, no toxin was detected in the samples of mortadella.

Clostridium botulinum; toxigenesis; mortadella; ham


Avaliação da toxigênese de c. botulinum em mortadela e presunto

Evaluation of Clostridium botulinum toxin production in mortadella and ham

Valéria Christina Junqueira AmstaldenI; Antônio de Melo Serrano II; Maria RaquelManhani II

I Instituto de Tecnologia de Alimentos - ITAL, Campinas - SP

II Faculdade de Engenharia de Alimentos - FEA - UNICAMP, Campinas - SP

RESUMO

Na presente pesquisa foi realizada uma avaliação do risco de transmissão de botulismo por consumo de mortadela e presunto. Numa primeira fase, 25 amostras de mortadela e presunto cozido, coletadas ao acaso no varejo do município de Campinas - SP, foram analisadas quanto ao pH, atividade de água (Aa), concentração de cloreto de sódio e de nitrito de sódio e umidade. Nesta fase, ainda foram determinados o tempo e a temperatura de estocagem na revenda. Considerando-se isoladamente os fatores que controlam o desenvolvimento do C. botulinum, apenas quatro (16%) amostras de mortadela coletadas no varejo apresentaram valores de atividade de água capazes de irnpedir a oxigênese, ou seja, inferiores a 0,94. Na segunda fase, mortadela e presunto foram preparados em usina experimental e artificialmente contaminados com 104 esporos de C botulinum tipos A e B por amostra. A seguir, foram submetidos à estocagem inadequada, à temperatura de 30°C. A formação de toxina botulínica foi observada nas amostras de presunto artificialmente contaminadas, após 12 dias de estocagem à temperatura de 30°C. Nas amostras de mortadela não foi detectada toxina ao fim de 28 dias de estocagem, à mesma temperatura.

Palavras-chave: Clostridium botulinum, toxigênese, mortadela, presunto.

SUMMARY

The risk of transmitting botulism via mortadella and cooked ham was evaluated in this research. In a first phase, samples of mortadella and cooked ham were acquired at random from shops in the region of Campinas - SP. Twenty five samples of each product were acquired and examined in duplicate to determine the pH, water activity (Aw), sodium chloride and sodium nitrite concentrations and water content. The storage times and temperatures at the distributers were also determined in this phase. Only four (16%) samples of mortadella acquired from shops given secure values of Aw to hinder the toxigenesis per si, i.e. below 0,94. In the second phase, mortadella and ham were produced in pilot plant and contamined with 104C. botulinum types A and B spores per samples. These samples were evaluated to determine the possibility of toxin formation by the microorganism when the products were submitted to inadequate storage at a temperature of 30°C. The formation of botulinum toxin was observed after 12 days of storage at 30°C in the artificially contamined ham samples. After 28 days of storage at the same temperature, no toxin was detected in the samples of mortadella.

Key words: Clostridium botulinum, toxigenesis, mortadella, ham.

1 — INTRODUÇÃO

O desenvolvimento do Clostridium botulinum em alimentos é condicionado por vários fatores de natureza física e/ou química aos quais chamamos de barreiras. O controle da atividade de água - Aa (limitando o teor de água disponível no alimento), a acidez, a utilização de temperaturas elevadas de processamento, a estocagem em baixa temperatura, o uso de cloreto de sódio e de nitritos ou outros conservadores são algumas das barreiras mais comumente utilizadas. Algumas destas barreiras que controlam isoladamente o desenvolvimento de C. botulinum, podem ser vistas na Tabela 1, a partir de dados citados por HAUSCHILD (10) e LEISTNER (15).

Geralmente o C. botulinum é inibido por uma combinação de diversos fatores, podendo também haver uma interação de uma série deles. Já em algumas conservas de alimentos, como em alimentos enlatados de baixa acidez (pH 4,6), o C. botulinum é controlado por um único fator, ou seja, o tratamento térmico de esterilização. BAIRD PARKER & FREAME (2) estudaram o efeito combinado da Aa, pH e temperatura no crescimento de C. botulinum tipo B e demonstraram que a Aa para crescimento da bactéria aumenta com a redução do pH; não foi observado crescimento com Aa = 0,95 e pH = 7,0 ou Aa = 0,99 e pH = 5,5.

Em produtos cárneos, numerosas pesquisas têm comprovado que a prevenção do crescimento do C. botulinum é uma conseqüência da combinação dos vários fatores (9, 11, 17, 19, 20 e 22).

A quantidade de nitrito inicialmente adicionada é a principal responsável pela segurança dos produtos cárneos durante a estocagem. O grau de inibição é maior com níveis iniciais mais elevados de nitrito (4, 21). A queda do nível de nitrito em produtos cárneos tem início logo após sua adição ao produto e é contínua, dependendo de fatores tais como: composição do produto, pH, processamento e temperatura de estocagem. O nitrito residual também exerce algum efeito na inibição do C. botulinum (16).

O mecanismo de ação inibitória do nitrito sobre os vários microrganismos não é bem conhecido, mas sabe-se que é a forma não-dissociada do ácido nitroso (HNO2), que é o composto ativo (16). Foi demonstrado, que no C. botulinum o nitrito reage nas ligações ferro-enxofre de algumas proteínas, por exemplo, ferrodoxina, para formar complexos ferro-óxido nitrosos, inibindo o sistema fosforoclástico, o qual envolve a conversão do piruvato a acetil-fosfato, transferência de elétrons e síntese de ATP (18, 24).

PIVNICK et al. (17), trabalhando com carne de porco curada, inoculada com esporos de C. botulinum tipos A e B, na concentração de 106 esporos/g de carne, concluíram que na ausência de nitrito, concentrações de cloreto de sódio acima de 6,1 % são necessárias para prevenir a produção de toxina botulínica, enquanto níveis de cloreto de sódio de 5,8 a 6,1 % na fase aquosa do produto, com 75mg de nitrito de sódio/kg (ou 4,9% de sal com 150mg de nitrito/kg) são necessários para prevenir a formação de toxina.

HUSTAD et al. (11) estudaram o efeito do nitrito e do nitrato de sódio na formação de toxina botulínica, em salsichas inoculadas com 620 esporos de C. botulinum tipos A e B por grama, incubadas a 27°C durante 56 dias. Seis diferentes concentrações de nitrito de sódio (0,50, 100, 150, 200 e 300mg/kg) e quatro níveis de nitrato de sódio (0,50, 150 e 450mg/kg) foram utilizados na formulação das salsichas. Quando não foi adicionado nitrito, amostras tóxicas foram detectadas após 14 dias a 27°C. No nível mais baixo de nitrito (50mg/kg) e sem adição de nitrato, foi encontrada uma amostra tóxica após 56 dias de incubação; níveis mais elevados de nitrito adicionados com ou sem nitrato, inibiram completamente a produção de toxina durante o período de 56 dias de incubação a 27°C. Estes autores relataram que, após a adição do nitrito à carne, a concentração inicial deste sal diminui em média 16%, ocorrendo, ainda, uma redução adicional de aproximadamente 51% durante o processamento, restando, ao final do processamento, em média, 33% da quantidade inicialmente adicionada. Ainda que o nível de nitrito residual tenha diminuído para 3mg/kg durante a estocagem, não foi detectada, durante aquele período, toxina botulínica em amostras inicialmente formuladas com 100mg de nitrito/kg. O nitrato de sódio adicionado isoladamente até concentração de 450mg/kg mostrou-se pouco eficiente na prevenção da toxigênese.

HAUSCHILD et al. (9) inocularam 104 esporos de C. botulinum tipos A e B em pasta de fígado embutida em filmes de poliéster, formulada com 0,50, 100 e 150mg de nitrito de sódio/kg e armazenaram o produto a 27°C. Verificaram que as amostras ficaram tóxicas ao fim de uma semana, quando os níveis de nitrito eram de 0,50 e 100mg/kg; as amostras contendo 150mg de nitrito/kg somente ficaram tóxicas ao final de duas semanas de armazenamento àquela temperatura.

Estas diferenças nos períodos de aparecimento de toxina, verificadas nas pesquisas realizadas por HUSTAD et al. (11) e HAUSCHILD et al. (9) podem ser compreendidas levando-se em consideração o que preconizou ROBERTS & GIBSON (20): os fatores conhecidos a combinar para controle de C. botulinum em produtos cárneos incluem pH, atividade de água, concentração de sal, quantidade de nitrito inicialmente adicionado ao produto e concentração residual, severidade do tratamento térmico aplicado no processamento, temperatura de estocagem, número de esporos presentes, natureza da microbiota competitiva, quantidade de ferro disponível no produto (exemplo: diferentes tipos de carnes) e outros aditivos, como ascorbato, fosfato e nitrato.

Dentre os produtos industrializados derivados de carne, a mortadela e o presunto são geralmente ingeridos sem aquecimento prévio. Portanto a presente pesquisa foi conduzida com o objetivo de verificar a existência de barreiras para o desenvolvimento de C. botulinum nestes produtos. Também foi avaliado o tempo necessário para haver toxigênese de C. botulinum em mortadela e presunto inoculados com esporos e estocados em temperatura inadequada.

2 — MATERIAIS E MÉTODOS

2.1 - Amostragem no comércio

Foram coletadas, no varejo do município de Campinas - SP, 25 amostras de mortadelas embutidas em bexigas de bovino ou em filmes plásticos e 25 amostras de presuntos cozidos embalados em filmes plásticos do tipo "cook in". As amostras de mortadela pertenceram a 10 marcas comerciais diferentes e as de presunto a 8 marcas. As marcas estudadas foram determinadas ao acaso, através de sorteio durante a coleta das amostras. A temperatura interna dos produtos foi determinada, no momento da coleta, com o auxílio de termômetro de mercúrio. As amostras foram imediatamente transportadas ao laboratório em caixa de isopor com gel congelado e submetidas às análises físico-químicas.

2.2 - Análises físico-químicas dos produtos coletados no comércio

As amostras coletadas foram analisadas, em duplicata, para determinação de:

• pH, através de potenciômetro elétrico, marca "Micronal", modelo B-374;

• Atividade de água através de higrômetro elétrico, marca "Novasina", modelo EEJA 3/Bag, com câmara modelo 4-TEBO;

• Concentração de cloreto de sódio, segundo WILLIAMS (23).

• Umidade, de acordo com o Instituto Adolfo Lutz - IAL (12).

• Concentração de nitrito de sódio, de acordo com LARA et al. (14).

2.3 - Avaliação da possibilidade de produção de toxina de Clostridium botulinum

2.3.1- Preparação das suspensões de esporos e contagem

Para preparação das suspensões de esporos foram seguidos os procedimentos descritos por HAUSCHILD et al. (7), utilizando os microrganismos C. botulinum tipo A, ATCC 25763 e tipo B proteolítico, ATCC 7949, fornecidos pelo "Center for Disease Control - CDC" e C. botulinum tipo B proteolítico, isolado de mortadela (13). A contagem dos esporos nas suspensões foi realizada de acordo com HAUSCHILD & HILSHEIMER (8), com incubação anaeróbia em atmosfera de hidrogênio, conforme descrito em FUTTER & RICHARDSON (5).

2.3.2 - Preparação de presunto cozido e de mortadela contaminados artificialmente com esporos

a) Mortadela e presunto foram preparados em usina piloto de carnes, de acordo com formulação e técnica de fabricação industrial mais comum. Para a formulação da mortadela foram utilizados os seguintes ingredientes: paleta bovina (49,73%); paleta suína (8,00%); toucinho (14%); gelo (20%); sal (1,6%); nitrito de sódio (0,02%); eritorbato de sódio (0,05%); mistura comercial de fosfato (0,5%); especiarias (0,7%); alho "in natura" (0,4%) e amido de milho (5,0%). Na formulação do presunto foram utilizados: pernil suíno (82,03%); água gelada (15%); sal (1,6%); nitrito de sódio (0,02%); eritorbato de sódio (0,05%).; mistura comercial de fosfatos para presunto (0,5%); especiarias (0,5%) e açúcar (0,3%).

b) A massa de mortadela foi embutida em tripa artificial, incolor, sem impregnação interna, com diâmetro de 80mm ("Hoechst"), resultando em 20 unidades de aproximadamente 700 g cada uma. O presunto foi acondicionado em 10 fôrmas de aço inoxidável revestidas internamente de filme de polietileno de alta densidade, em porções de 700 g, aproximadamente.

c) Após o embutimento da mortadela e antecedendo a fase de fechamento das fôrmas de presunto, cada produto foi injetado na região central e no sentido longitudinal, com 1 ml de suspensão dos três tipos de C. botulinum utilizados, misturados em partes iguais, perfazendo 104 esporos/ml, aproximadamente. A injeção foi realizada com o auxílio de seringa descartável de 10ml e agulha de 25 cm de comprimento, sendo o volume inoculado distribuído ao longo das peças.

d) A seguir, os produtos foram submetidos a cozimento, em vapor fluente. No caso do presunto, o cozimento foi escalonado iniciando-se com vapor a 60°C e aumentando 5°C de 30 em 30 minutos, até atingir temperatura de 80°C. Esta temperatura foi mantida até se obter uma temperatura interna de 72°C. Para a mortadela foi realizada secagem até uma temperatura interna de 50°C ± 3°C, seguida de cozimento escalonado em vapor fluente da seguinte maneira: 60-70°C/15 minutos; 75°C/15 minutos e 80-85°C até atingir temperatura interna de 72°C. Após cozimento, os produtos foram refrigerados, primeiro em água gelada e a seguir sob refrigeração a 4°C.

2.3.3 - Análises físico-químicas dos produtos preparados

Amostras de mortadela e presunto preparados de acordo com o item "2.3.2" e não contaminadas artificialmente, foram submetidas às análises físico-químicas descritas para produtos coletados no comércio.

2.2.4 - Produção e detecção de toxina botulínica

Após resfriamento, os produtos inoculados com esporos foram estocados à temperatura de 30°C. Foram coletadas três mortadelas e de cada uma foram retiradas duas amostras de aproximadamente 50g, da parte central, abrangendo a região inoculada, após 5, 8, 12, 15, 21 e 28 dias de estocagem. Para presunto, três amostras de aproximadamente 50g de três peças diferentes envolvendo a região inoculada, foram retiradas aos 2, 5, 8, 12 e 15 dias de estocagem. Todas as amostras foram examinadas quanto à presença de toxina botulínica, de acordo com a técnica preconizada pelo CDC (3).

3 — RESULTADOS E DISCUSSÃO

Nas Tabelas 2 e 3 são apresentados os resultados obtidos nas análises físico-químicas realizadas nas 25 amostras de mortadela e presunto coletadas no comércio. A temperatura dos produtos e o tempo de estocagem até o momento da coleta também podem ser observados nas mesmas tabelas.

No que se refere à temperatura de estocagem de mortadela, as empresas produtoras, para satisfazerem à resolução CISA no 10 de 31 de julho de 1984 (1), indicam, no rótulo, que o "produto mantém suas melhores características se conservado até 22°C, em ambiente seco". Dentre as amostras coletadas no comércio para análise, pode-se observar, na Tabela 2, que quatro (16%) se encontravam expostas à venda em temperatura acima do limite de conservação indicado (M.9, M.15, M.19 e M.22), sendo que a maior temperatura de comercialização verificada durante a coleta das amostras foi de 30°C. Não foi possível determinar o tempo durante o qual estes produtos permaneceram estocados nas respectivas temperaturas. A partir da data de produção, verificamos a idade das amostras coletadas (tempo de estocagem na Tabela 2) e observamos que duas amostras de mortadela (8%) se encontravam à venda fora do prazo de validade de 30 dias, estabelecido pelas empresas produtoras (M.2 e M.12).

Para o presunto cozido, as empresas produtoras recomendam que seja mantido resfriado à temperatura de 8-10°C, sendo nestas condições válido por dois meses. Na Tabela 3, verifica-se que, das amostras coletadas, sete (28%) se encontravam à venda em temperatura acima do limite recomendado (P.I, P.3, P.10, P.14, P.15, P.17 e P.23) e duas amostras (8%) haviam ultrapassado o prazo de validade indicado pelos produtores (P.2 e P. 15).

Geralmente mortadela e presunto são vendidos fatiados no estabelecimento comercial, não possibilitando, desta forma, ao consumidor saber se está adquirindo um produto dentro do prazo de validade. Estes valores elevados de temperatura e tempo de estocagem precisam ser vistos com preocupação. A correta preservação do produto e a inibição da produção de toxina botulínica pelo microrganismo eventualmente presente dependem, em grande parte, do controle da temperatura e do tempo de estocagem, que devem obedecer às recomendações dadas pelo fabricante e que constam do rótulo do produto. Falhas neste sentido, como as constatadas no presente trabalho, demonstram o desconhecimento dos comerciantes da importância destes fatores (especialmente da temperatura) no controle do desenvolvimento microbiano e/ou produção de toxinas, que podem pôr em risco a saúde do consumidor.

Por comparação entre os dois produtos cárneos estudados, observamos, nas Tabelas 2 e 3 que, quanto ao pH, as amostras de mortadela e presunto encontram-se na faixa de 6,1 - 6,6. Valores inferiores a 6,1 foram observados somente na mortadela, em três amostras com pH 6,0 (M.12, M.18 e M.19) e em duas amostras com pH 5,5 e 5,2 (M.7 e M.17, respectivamente). O pH limite para crescimento de Clostridium botulinum tipos A e B é de 4,6, no mínimo, o que mostra que aqueles valores acima do pH limite não constituem barreira para o desenvolvimento do C. botulinum, se considerado isoladamente. Os dados obtidos estão de acordo com o relatado por PIERSON & SMOOT (16) que mencionam uma média de pH em pesquisas com produtos cárneos curados na faixa de 5,5 a 6,6. Quanto mais baixo o pH, mais efetiva se torna a inibição do C. botulinum pelo nitrito de sódio (16).Com relação à atividade de água (Aa) e à concentração de cloreto de sódio, as amostras de mortadela apresentam valores de Aa ligeiramente menores e de concentração salina ligeiramente maiores que os obtidos em presunto. Considerando o fator Aa isoladamente, apenas quatro amostras de mortadela (M.7, M.10, M.12 e M.15) apresentam valores seguros para o controle do desenvolvimento de C. botulinum e produção de toxina. A maior diferença entre os dois produtos aparece no teor de umidade: na mortadela varia de 45,95% a 64,4% (M.15 e M.21, respectivamente) e no presunto de 66,85% a 77,33% (P. 13 e P. 1, respectivamente).

De acordo com a legislação brasileira de alimentos, a adição do nitrito de sódio ou de potássio em carnes curadas só pode ser feita em quantidade tal que, no produto pronto para o consumo, o teor em nitrito não ultrapasse 200mg/kg (1). Desse modo, é comum o emprego de 200mg/kg de nitrito de sódio durante a formulação dos produtos cárneos curados, resultando em concentrações residuais geralmente abaixo de 200mg/kg nos produtos prontos para o consumo. A queda da concentração de nitrito tem início imediatamente após sua adição à carne e é contínua, sendo afetada pela composição do produto, processamento, pH e temperatura de estocagem (11, 16).

Entre os dois produtos analisados, podemos observar que as mortadelas, em geral, apresentaram valores residuais de nitrito de sódio menores que os presuntos, provavelmente devido às diferenças de composição, processamento térmico e temperatura de estocagem durante a distribuição e a comercialização. Entre amostras dos mesmos produtos, as concentrações de nitrito foram bastante variáveis. Por exemplo, na Tabela 2, a amostra de mortadela M.21, coletada com temperatura de 17°C e quatro dias de estocagem apresentou concentração residual de nitrito de sódio de 73mg/kg, ao passo que nas mesmas condições de tempo e temperatura de estocagem, a amostra M.6 apresentou tão somente 16,3mg/kg de nitrito de sódio, sugerindo que o aditivo não está sendo usado de maneira uniforme. Da mesma forma, a amostra de mortadela M.9 com apenas um dia de estocagem a 25,5°C (temperatura superior à recomendada, de 22°C) apresentou 17,5mg/kg de nitrito de sódio residual, também sugerindo uso de pouco nitrito de sódio na sua formulação.

Na Tabela 3 destacamos as amostras de presunto P.17 e P.23, que foram coletadas com 11 e 6 dias de estocagem, à temperatura inadequada de 11°C e 19°C e apresentaram concentrações residuais de nitrito de sódio de 129,7mg/kg e 129,0mg/kg, respectivamente.

Em ambas as amostras de presunto, os valores de nitrito de sódio apresentam-se notoriamente acima das demais amostras deste produto, sugerindo excesso de nitrito em suas formulações.

Estes resultados levam-nos a admitir que as indústrias usam quantidades bem diferentes de nitrito de sódio nas suas formulações. Como preconizaram GIBSON et al. (6), a monitoração do nitrito em um produto cárneo durante a distribuição ou comercialização, sem conhecimento da técnica de fabricação e histórico prévio desse produto, fornece-nos pequena informação da quantidade usada pelo produtor.

Os resultados obtidos na avaliação da possibilidade de haver toxigênese em mortadela e presunto, contaminados artificialmente com 104 esporos de Clostridium botulinum tipos A e B / unidade, estão reunidos na Tabela 4.

Como pode ser observado na Tabela 4, não foi evidenciada toxina botulínica nas amostras de mortadela, mesmo após 28 dias à temperatura de 30°C. No presunto, após 12 dias de estocagem a 30°C, foi detectada presença de toxina botulínica em uma amostra de um grupo de três utilizadas no ensaio, porém, a amostra já apresentava sinais evidentes de deterioração: textura, cor e odor alterados. HUSTAD et al. (11), em salsichas inicialmente formuladas com 100mg de nitrito de sódio/kg e inoculadas com 620 esporos/g de C.botulinum tipos A e B, não encontraram amostras tóxicas ao fim de 56 dias de estocagem à temperatura de 27°C.

HAUSCHILD et al. (9), trabalhando com pasta de fígado embutida em filme de poliéster, inoculada com 104 esporos de C. botulinum tipos A e B por unidade (de até l04g) e armazenada a 27°C, observaram toxigênese após uma semana, quando os níveis de nitrito de sódio na formulação eram 50 e 100mg/kg, e após duas semanas, quando a concentração inicial deste sal era de 150mg/kg; nestes casos, a presença de toxina sempre foi acompanhada de aparecimento de odor pútrido. Como pode ser observado, as possibilidades de ocorrer produção de toxina botulínica são diferentes entre os produtos citados, o que era de se esperar, já que a interação entre as barreiras existentes nos produtos também são diferentes. Estes fatos sugerem que sempre que haja fabricação de um novo produto, ou sua modificação, torna-se necessário avaliar o risco de desenvolvimento de toxina e, conforme os casos, reproduzir-se em laboratório os possíveis abusos que poderão ocorrer durante a produção, o transporte e o armazenamento.

Na Tabela 5 estão reunidos os resultados das determinações físico-químicas realizadas nas amostras de mortadela e presunto, imediatamente após o preparo. Na formulação desses produtos foram utilizados 200mg de nitrito de sódio por kg. Na mortadela, verificamos (Tabela 5) que a concentração deste sal diminuiu para 87,6mg/kg (ou seja, 43,8% da quantidade inicialmente adicionada) e após a estocagem durante 28 dias a 30°C (Tabela 6) para 1,6mg/kg (0,8% da quantidade inicialmente adicionada). No presunto, a concentração de nitrito de sódio diminuiu imediatamente após preparo para 94,2mg/kg (47,1%) e ao fim de 15 dias de estocagem (após o aparecimento da toxina) não foi mais detectada a presença de nitrito de sódio.

HUSTAD et al. (11), ainda que em produtos diferentes daqueles que elaboramos, também relataram uma diminuição substancial do nitrito: em salsichas inicialmente formuladas com 100mg de nitrito de sódio/kg, estes autores verificaram, após o processamento, redução em aproximadamente 33% da quantidade adicionada na formulação. Após estocagem à temperatura de 27°C durante 36 dias, o nível residual de nitrito de sódio era de 3mg/kg de salsicha.

A quantidade de nitrito inicialmente adicionada na formulação é a principal responsável pelo controle do C. botulinum (11, 16). A redução do teor deste sal é esperada após a fabricação do produto e durante a estocagem, em virtude do processamento, da composição química do alimento e da temperatura em que vem sendo mantido, como dissemos.

4 — CONCLUSÕES

Com base nos resultados obtidos podemos concluir que:

– Encontram-se sob revenda produtos em condições inadequadas de temperatura e prazo de validade, que podem pôr em risco a segurança de tais produtos. Quatro (16%) amostras de mortadela e sete (28%) amostras de presunto, das 25 amostras coletadas no comércio, estavam à venda em temperatura acima do limite recomendado; duas (8%) amostras de cada um dos produtos coletados estavam fora do prazo de validade.

– Considerando-se isoladamente os fatores que controlam o desenvolvimento do C. botulinum, apenas quatro (16%) amostras de mortadela apresentaram valores seguros de Aa (inferior a 0,94) para impedir a toxigênese.

– Observa-se que os produtores usam quantidades bem diferentes de nitrito de sódio nas suas formulações, o que leva a concluir que se faz necessária uma fiscalização mais acurada nas indústrias.

– Nas condições de formulação, processamento e estocagem utilizados nesta pesquisa, foi constatada presença de toxina botulínica somente no presunto e mesmo assim, quando as condições organolépticas do produto já eram inaceitáveis.

5 - REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

Recebido para publicação em 28/12/95

Aceito para publicação em 23/06/97

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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    04 Out 2012
  • Data do Fascículo
    Ago 1997
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