RESUMO
O presente artigo objetiva discutir o papel político e sociológico do “terceiro” (incluído e excluído) na administração, gestão, tratamento e resolução dos conflitos, tomando como base, especialmente, as teorias de Carl Schmitt (papel político) e de Georg Simmel (papel sociológico). Posteriormente, a análise se voltará para a necessidade do “terceiro” na construção de um “pluriverso” político que fuja da dualidade universalista e binária na qual se encontram envolvidos os atuais conflitos sociais. Para cumprir o objetivo proposto utilizou-se do método de abordagem hermenêutico no qual se pretende partir da análise de categorias consideradas fundamentais para o desenvolvimento do tema (como o conflito social, e o desenvolvimento do papel do terceiro no tratamento de tais conflitos) para então enfrentar o problema propriamente dito. Como método de procedimento utilizou-se o comparativo e como técnica aplicou-se a pesquisa bibliográfica baseada em documentação indireta que serviu de base teórica para o desenvolvimento do estudo.
conflito; terceiro; papel político e sociológico; juiz; mediador
ABSTRACT
The present article aims to discuss the political and sociological role of the “third party” (included and excluded) in the administration, management, treatment and resolution of conflict, based on, especially, the theories of Carl Schmitt (political role) and Georg Simmel (sociological role). The analysis then turns to the need of the “third party” in the construction of a political “pluriverse” that escaped from the universalist and binary duality in which current social conflicts are involved. In order to fulfill this task the article employed the hermeneutical approach in which categories considered fundamental (such as social conflict and the development of the “third party” in the treatment of such conflicts) in order to just then tackle the problem itself. Comparison was employed as a procedural method and the technique employed was bibliographical research based on indirect documentation, which served as the theoretical foundation of the study.
conflict; third party; political and sociological role; judge; mediator
RÉSUMÉ
Le présent article veut débattre du rôle politique et sociologique du “tiers” (inclus et exclu) dans l’administration, la gestion, le traitement et la résolution des conflits, en se basant en particulier sur les théories de Carl Schmitt (rôle politique) et de Georg Simmel (rôle sociologique). Ultérieurement, l’analyse se consacrera à la nécessité du “tiers” dans la construction d’un “plurivers” politique qui échappe à la dualité universaliste dans laquelle sont empêtrés les conflits sociaux actuels. Pour remplir cet objectif, le présent texte fait usage de la méthode de l’approche herméneutique, en partant de l’analyse de catégories jugées fondamentales pour le développement de notre thème (telles que le conflit social et le rôle accru du tiers dans sa résolution) pour ensuite s’attaquer au problème proprement dit. Comme procédure, nous avons utilisé l’analyse comparative, et comme technique, la recherche bibliographique fondée sur la documentation indirecte, qui constituent ensemble la base théorique du développement de notre étude.
conflit; rôle politique/sociologique; juge; médiateur
RESUMEN
El presente artículo tiene como objetivo discutir el papel político y sociológico del “tercero” (incluido/excluido) en la administración, gestión, tratamiento y resolución de los conflictos, tomando como base, sobre todo, las teorías de Carl Schmitt (papel político) y de Georg Simmel (papel sociológico). Posteriormente, el análisis de dirigirá hacia la necesidad del “tercero” en la construcción de un “pluriverso” político que huya de la dualidad universalista y binaria en la cual se encuentran inmersos los conflictos sociales actuales. Para cumplir el objetivo propuesto se ha utilizado el método hermenéutico según el cual se parte del análisis de categorías fundamentales para el desarrollo del temas (como conflicto social y el desarrollo del papel del tercero en el tratamiento de dichos conflictos) para, sólo entonces, enfrentar el problema en un sentido estricto. Como método de procedimiento, se ha recorrido al recurso comparativo y como técnica se ha utilizado la investigación bibliográfica basada en documentación indirecta como base teórica para el desarrollo del estudio.
conflicto; tercero; papel político y sociológico; juez; mediador
INTRODUÇÃO
Na obra O Conceito do Político, Carl Schmitt (2002, 2009) já afirmava que o mundo político é um pluriverso, e não um universo1. Partindo dessa afirmativa, Schmitt (idem) definiu a política como a esfera de ações humanas que podem ser inscritas na dualidade amigo-inimigo. Porém, a teoria dos conflitos exposta por Simmel (1983) demonstra que, entre os indivíduos e os grupos dos quais eles fazem parte, também existem relações triádicas que vão além da dualidade amigo-inimigo apresentada por Carl Schmitt (2002, 2009). Nessas relações de caráter triádico encontra-se a figura do Terceiro, que pode ser “excluído” e “incluído”, ambos analisados por Julien Freund.
Sendo assim, este artigo tem como itinerário a figura do Terceiro – sob a ótica da política e da sociologia – e sua importância para o tratamento (gestão e administração) de conflitos. Posteriormente, a análise se voltará para a necessidade do Terceiro na construção de um “pluriverso” político que fuja da “dualidade” universalista e binária na qual se encontram envolvidos os atuais conflitos sociais.
Para fins de cumprir tal intento, busca-se um diálogo com Freund (1995a, 1995b), Bobbio (2009), Portinaro (1986) e Simmel (1968, 1983), cujo fio condutor é sempre o papel político/sociológico do Terceiro (incluído e excluído) no tratamento de conflitos.
O artigo tem início com a análise do conflito2 e com a necessidade de reconhecimento da importância do Terceiro no seu tratamento; adiante, segue com a distinção entre amigo-inimigo, segundo a teoria schmittiana, como critério de identificação do político. Em uma concepção dualística da política – considerando um mundo bipolar –, teríamos apenas a guerra ou a paz. Porém, a realidade aponta para a necessidade e a importância da intervenção de um Terceiro que surge como um catalisador da relação de hostilidade e como figura a quem se atribui a triangularização da relação, fazendo com que assuma um caráter triádico.
A necessidade de intervenção do Terceiro se dá especialmente porque a contraposição amigo-inimigo se define com base no grau de intensidade de uma associação (amigo) e de uma dissociação (inimigo). Tal situação exige a presença de um sujeito (ou instituição) a respeito do(a) qual os envolvidos se posicionam como amigo-inimigo. Nestes termos, a presença de um Terceiro dá origem à indagação: amigo-inimigo de quem? A resposta pressupõe a presença de pelo menos três partes: o conflitante A, o conflitante B e o Terceiro, com relação ao qual se interroga e se responde “amigo-inimigo de ...”.
Em seguida, o artigo aborda a figura do Terceiro, sequestrado pela política e pela sociologia para, ao final, debater sua intervenção no tratamento dos conflitos, considerando que o pluriverso político não é um “sistema a três”, e sim um sistema “com Terceiro”. As relações não são compostas, simplesmente e na maioria das vezes, por três atores, mas por uma pluralidade (de estados, cidadãos, instituições, organizações econômicas etc.) a respeito dos quais é preciso determinar quem desenvolve o papel de Terceiro3.
Neste contexto, investigou-se como acontece o papel político/sociológico do Terceiro incluído e excluído, institucionalizado ou não, no contexto conflitivo. Porém, importante ressaltar que o limite investigativo se dará no âmbito do Estado-juiz4 tratando de conflitos internos à soberania e não de conflitos entre países. Desse modo, inicialmente, a teoria schmittiana é apreendida como pano de fundo para uma discussão que tem como base os demais autores citados anteriormente e que pretende investigar como se dá o desenvolvimento do papel desempenhado pelo Terceiro, especialmente no que diz respeito aos problemas advindos das complexas relações sociais.
Para cumprir o objetivo proposto, o estudo utilizou-se do método hermenêutico de abordagem, no qual se pretende partir da investigação de categorias consideradas fundamentais para o desenvolvimento do tema – tais como o conflito social e o desenvolvimento do papel do Terceiro no tratamento dos conflitos – para então enfrentar o problema propriamente dito. Como método de procedimento utilizou-se o comparativo, uma vez que se pretendeu investigar as semelhanças e as diferenças das várias hipóteses de Terceiros (magistrado, mediador, conciliador e pelo árbitro). Como técnica aplicou-se a pesquisa bibliográfica baseada em documentação indireta que serviu de base teórica para o desenvolvimento do estudo.
O CONFLITO E O RECONHECIMENTO DO TERCEIRO
A sociedade é constituída de grupos sociais que se transformam. Essa mudança acontece para que esses grupos possam se adaptar às necessidades da vida cotidiana. Os grupos se transformam, e seus integrantes, também. Essa transformação “consiste em dobrar-se a fim de impedir que tudo se quebre, e essa flexibilidade se impõe todas as vezes que as formas sociais não são consolidadas com força suficiente para desafiar todas as forças destrutivas” (Simmel, 1983:54).
Tal se dá porque os grupos e os indivíduos que os integram não conseguem se conservar de outra maneira que não pela mudança. Essas alterações frequentes pelas quais esses grupos passam os imunizam, trazendo como consequência a secção de algumas de suas ideologias, crenças e até mesmo membros, mas “o nervo da vida” (ibidem:55) não resta atingido, o grupo se transforma, mas sua manutenção não corre perigo.
As sociedades têm interesse em que a paz e a guerra se alternem, seguindo uma espécie de ritmo. Esse ritmo é ditado também pelas relações conflitivas que organizam os períodos de paz e guerra e que são importantes para a transformação e a evolução social. Nesse sentido, Simmel (1983) resume a importância sociológica do conflito quando afirma que, assim como o universo precisa de “amor e ódio”, de forças de atração e de repulsão para que tenha uma forma qualquer, também a sociedade, para alcançar uma determinada configuração, precisa de quantidades proporcionais de harmonia e desarmonia, de associação e de competição, de tendências favoráveis e desfavoráveis. Sociedades definidas, verdadeiras, não resultam apenas da inexistência de fatores negativos que possam atrapalhar. A sociedade, tal como a conhecemos, é o resultado de ambas as categorias de interação (positivas e negativas), que se manifestam, desse modo, como inteiramente positivas.
As forças repulsivas ou a aversão são uma realidade constante na vida moderna, colocando cada pessoa ou grupo em contato com inumeráveis outros(as) todos os dias. Toda a organização interna da interação humana se baseia numa hierarquia extremamente complexa de simpatias, indiferenças e aversões, do tipo mais efêmero ao mais duradouro. A extensão e a combinação de antipatias/simpatias, o ritmo de sua aparição e desaparição, a par de elementos mais literalmente unificadores, produzem a forma de vida humana em sua totalidade insolúvel; e aquilo que à primeira vista parece “dissociação” (Simmel, 1983), é, na verdade, uma de suas formas elementares de socialização.
O antagonismo pode ser um elemento da Vergesellschaftung5 (idem), embora por si mesmo ele não a produza, é um elemento sociológico quase nunca ausente dela. Seu papel pode crescer indefinidamente, isto é, pode crescer a ponto de suprimir todos os elementos convergentes. Considerando fenômenos sociológicos, é possível encontrar uma hierarquia de relações que pode ser construída através do ponto de vista de categorias éticas. Certamente, existem conflitos que parecem excluir todos os outros elementos – entre o ladrão ou assassino e sua vítima, por exemplo. Se essa luta visa simplesmente a aniquilação, aproxima-se do caso marginal do assassinato, em que a mistura com elementos unificadores é quase zero. Se há, todavia, qualquer consideração, qualquer limite à violência, aí já existe um fator socializante, mesmo que somente enquanto qualificação da violência (idem).
O conflito transforma os indivíduos em grupos, seja em sua relação com o outro, ou na relação consigo mesmo, demonstrando que traz consequências desfiguradoras e purificadoras, enfraquecedoras ou fortalecedoras. Ainda, existem as condições para que o conflito aconteça, e as mudanças e adaptações interiores que geram consequências para os envolvidos indiretamente e, muitas vezes, para o próprio grupo.
Assim, o conflito promove a integração social. Resumindo as considerações de Coser (2006) e Simmel (1983) a respeito de tal afirmação, verifica-se que isso independe de ser interno ou externo ao grupo6. Considerando um conflito externo7, observa-se que: a) o conflito determina os confins do grupo e contribui para o nascimento de um sentimento de identidade8; b) traz uma centralização da estrutura interna do grupo; c) possibilita a definição de aliados, incluindo aqui a lista de outros países simpáticos às reivindicações de um daqueles que se encontram em guerra (Collins, 2006:150).
Os textos de Simmel (1968, 1983) e Coser (2006) não fazem referência expressa à possibilidade de utilização dos mesmos princípios para os conflitos internos ao grupo (aqueles existentes entre um grupo, de um lado, e alguns de seus membros, de outro, ou, especificamente, entre dois membros do grupo). No entanto, de modo tácito, fazem referência a análises que podem ser ajustadas ao primeiro dos princípios referidos anteriormente. Assim, parece correto afirmar, com base nesses dois autores, que “[...] os conflitos, sejam internos ou externos, contribuem para a manutenção dos confins do grupo e para a identidade social”9 (Collins, 2006:150). Todavia, os outros dois princípios não se aplicariam, uma vez que não parece correto afirmar que o conflito interno conduza necessariamente a uma centralização das organizações sociais. O mesmo pode-se dizer quanto à definição de aliados.
Nesses termos, o conflito externo une o grupo e o faz coeso, levando à concentração de uma unidade já existente, eliminando todos os elementos que possam obscurecer a clareza de seus limites com o inimigo, aproximando pessoas e grupos que, de outra maneira, não teriam qualquer relação entre si. O poderoso efeito do conflito a esse respeito surge de modo mais claro no fato de que a conexão entre a situação de conflito e a unificação é suficientemente forte para chegar a ser importante, mesmo no processo inverso. De modo semelhante, a unificação com o propósito de luta é um processo vivenciado tão frequentemente que, às vezes, o mero confronto de elementos, mesmo quando ocorre sem qualquer propósito de agressão ou de outra forma de conflito, aparece aos olhos dos outros como uma ameaça e um ato hostil (Simmel, 1983).
Não se pode ignorar, na análise atenta de Simmel (idem), o singular e aparente paradoxo “comunitário” do conflito entre dois litigantes. As diferenças que os separam, a ponto de justificar o litígio, é exatamente aquilo que os aproxima, no sentido de que eles compartilham o conflito e um intenso mundo de relações, normas, vínculos e símbolos que fazem parte daquele mecanismo. Portanto, a aposta em um jogo que separa e une corta nitidamente a possibilidade de comunicação e instaura outras estratégias comunicativas, sendo elas equivocadas e destrutivas (Resta, 2005b). Essa é a comunicação conflitiva que simultaneamente separa e une e que, não obstante ser equivocada, é uma via para a administração do conflito.
Assim, o conflito é inevitável e importante. Sua importância sociológica pode ser avistada na organização, manutenção e transformação das relações sociais. Sendo o conflito inerente aos indivíduos e aos grupos sociais, ele deixa de ser um evento patológico para se tornar um elemento fisiológico da estrutura humana. Porém, existem circunstâncias nas quais o conflito precisa de uma intervenção externa aos grupos ou aos indivíduos conflitantes. Tal intervenção acontece, na maioria das vezes, para evitar um desfecho trágico, como a explosão de uma luta armada. Essa intervenção é atribuída a uma Terceira parte, composta por um indivíduo ou grupo cujo papel é de triangularizar a relação, rompendo com a polaridade instituída e possibilitando aproximação e comunicação.
Partindo de tais considerações é possível demonstrar a importância do Terceiro nas relações sociais. Se uma comunidade estiver dividida unicamente em dois campos opostos sem nenhum intermediário, sem o “Terceiro”, a situação se tornaria explosiva e rapidamente se transformaria em conflito. Existindo já o conflito, seus limites fugiriam ao controle, e a situação se agravaria. Desse modo, o Terceiro é um fator capital para a “concórdia” interior, tanto na forma de associações como de instituições das quais participam os cidadãos de opiniões e de partidos contrários.
Por conseguinte, o relativo consenso indispensável às mudanças sociais tem por fundamento o Terceiro, cujo papel não consiste somente em ser um tampão que amorteça os choques, os antagonismos e as tensões, senão também em servir de intermediário para a comunicação entre os que pretendem ignorar-se ou dirigir-se uns contra os outros. Em uma sociedade que não reconhece o Terceiro, ou o conflito se tornaria permanente ou um dos campos submeteria o outro ao seu jugo a ponto de absorvê-lo, o que produziria uma fusão totalitária, como na maior parte das ditaduras revolucionárias modernas.
Enfim, o Terceiro é a configuração elementar da sociedade, pois condiciona o equilíbrio, possibilita as combinações sociais mais diversas e, ao mesmo tempo, é um fator de remissão dos conflitos internos. É notório que as sociedades totalitárias que não reconhecem o Terceiro se confundem na torpeza de uma unanimidade letárgica, devido à falta de canais de comunicação e de difusão de procura do Terceiro e à falta de criatividade crítica que inspira. O Terceiro é a condição de estabilidade das sociedades livres, porque somente é possível a aparição de uma maioria e de uma minoria em consequência de uma oposição política (Freund, 1995a:251-252).
Por conseguinte, é possível indagar acerca do papel do Terceiro na constituição do político tratando, especialmente, de duas categorias importantes para sua definição: o amigo e o inimigo.
O TERCEIRO E O JOGO POLÍTICO DO AMIGO X INIMIGO
O jogo de antônimos amigo/inimigo é, segundo a concepção de Carl Schmitt (2009), uma das formas de definição do político. Segundo o autor, a definição do conceito do político só pode ser obtida pela identificação e verificação de categorias especificamente políticas, como é o caso dos antônimos anteriormente referidos.
Debatendo a teoria de Carl Schmitt, Chantal Mouffe afirma que:
chamando nossa atenção para o papel central da relação amigo/inimigo em política, Schmitt leva-nos a tomar consciência da dimensão do político que está ligada à existência de um elemento de hostilidade entre os seres humanos (1996:13).
Esse elemento de hostilidade assume várias formas e se manifesta de muitos e diferentes modos. Por isto a diferenciação entre amigo e inimigo tem o propósito de caracterizar o
grau extremo de intensidade de uma união ou de uma separação, de uma associação ou desassociação, podendo existir na teoria e na prática sem que simultaneamente tenham que ser empregadas todas aquelas diferenciações morais, estéticas, econômicas e outras (Schmitt, 2009:28).
Justamente por isto a teoria de Schmitt afirma que o inimigo político não é necessariamente mau ou feio, e também não se apresenta, sempre, como um concorrente econômico. O inimigo é precisamente o outro10, o desconhecido, o diferente, de tal modo que seja possível conflitar com ele. Acontecendo o conflito, este não poderá ser decidido por uma normalização geral nem através da sentença de um Terceiro “não envolvido” e destarte “imparcial”11. A única hipótese de resolução é aquela nascida dos próprios conflitantes12.
Assim, é preciso que haja possibilidade de conflito real para que se manifeste a lógica última da configuração política que opõe o amigo/inimigo13. É na perspectiva desta possibilidade extrema que a vida dos homens se enriquece com a sua tensão especificamente política. Schmitt salienta que a guerra está tão atrelada ao conceito de político e às categorias de amigo/inimigo a ponto de “o político estar mais bem treinado para o combate que o soldado, pois o político combate sua vida toda enquanto que o soldado só o faz excepcionalmente” (2009:36).
Por conseguinte, um mundo em que a possibilidade de luta tivesse sido inteiramente afastada e banida, um planeta definitivamente pacificado, seria um mundo sem discriminação do amigo/inimigo e, consequentemente, um mundo sem política. Isso significa aceitar a “necessidade do político e a impossibilidade de um mundo sem antagonismos” (Mouffe, 1996:15). Não seria possível apreender o fenômeno político abstraindo essa possibilidade real de agrupamento em amigos e inimigos, quaisquer que sejam as consequências para a avaliação do político de um ponto de vista religioso, moral, estético ou econômico.
Essa relação entre o amigo/inimigo funda e representa, como apontado anteriormente, o político. Porém, isso não significa que a guerra seja o seu objeto e a sua finalidade. Ela é, antes de tudo, “o pressuposto sempre existente como real possibilidade, o qual determina de forma singular a ação e o pensamento humanos, provocando, assim, um comportamento especificamente político” (Schmitt, 2009:36).
Se a guerra não é a regra, percebe-se que a gênese da amizade também não o é. Por isso, a comunidade de apoio já perdeu o sentido universalista e se confinou às relações numericamente mensuráveis de uma amizade definida, consequentemente, “somos amigos porque existem inimigos, somos amigos porque nos escolhemos para nos contrapormos a outras formas de relações impostas ou involuntárias” (Derrida, 2003:31). Essas relações determinam um caráter de inclusão/exclusão à amizade, incluindo o amigo e excluindo o inimigo e tornando-se uma improbabilidade normal.
Em todos esses contextos e conectado a toda e qualquer relação humana, é chamado de político o grupamento que se orienta pelo conflito crítico, extremo. Assim, o fenômeno do político só pode ser compreendido por meio da referência à “possiblidade real do grupamento do tipo amigo-inimigo, não importando o que daí resulta para o juízo de valor religioso, moral, estético e econômico” (Schmitt, 2009:38).
Em resumo, percebe-se que uma das características mais importantes do conflito14 é a dualidade amigo-inimigo15 ou a bipolaridade que se instaura, o que significa uma completa dissociação do Terceiro. Sob esse aspecto, o conflito pode ser definido como a “relação social marcada pela exclusão do Terceiro”16. Da mesma forma, a contraposição amigo/inimigo é base fundadora do político. Porém, ela só existe se pudermos divisar a presença de um Terceiro diante da pergunta: “amigo/inimigo com relação a quem?” A interrogação imediata que se faz é: como o Terceiro é tratado pela política e qual a importância que lhe é atribuída nesse contexto?
O TERCEIRO SEQUESTRADO PELA POLÍTICA
Abordando o Terceiro como detentor de poder, Max Weber (1999) formula sua teoria sobre o conflito dando ênfase à distinção entre poder legítimo e ilegítimo. O primeiro diz respeito à detenção de autoridade por parte de algumas pessoas que têm o “direito” de serem obedecidas. Nestes termos, fala-se da autoridade de uma pessoa, de uma instituição, de uma mensagem, para significar que confiamos nelas, que acolhemos sua opinião, sua sugestão ou sua ordem, com respeito, consideração, sem hostilidade nem resistência, e que estamos dispostos a submeter-nos a ela. A autoridade é, portanto, uma relação que deve ser analisada do ponto de vista daquele (pessoa ou instituição) que emite a mensagem ou o comando e do ponto de vista de quem os recebe (Boudon e Bourricaud, 1993).
Nesta análise, Weber (1999) distingue três17 tipos de autoridade/legitimidade de poder: a) a carismática, que tem por base a qualidade pessoal do líder, de modo que os governados se submetem à extraordinária capacidade de uma pessoa cuja autoridade se legitima pela crença em seus poderes mágicos, em suas revelações, sendo cultuada como um herói; b) a tradicional, cuja base de aceitação está enraizada no passado, como é, por exemplo, a autoridade de um rei ou do chefe de uma tribo que se faz respeitar muitas vezes pelo costume. Também serve como exemplo de autoridade tradicional as relações patriarcais nas quais o pai ou o marido se faz respeitar muito mais pelo hábito do que por suas próprias qualidades pessoais; c) por fim, a legitimidade legal/racional é aquela na qual o respeito se funda sobre regras formais. Os burocratas modernos obedecem ao que as regras codificadas determinam, uma vez que a sociedade aceita a lei estatutária como fonte última de autoridade. Segundo Weber, a legitimação de um núcleo de regras vem centrada num processo de racionalização da sociedade moderna.
Considerando a teoria de Schmitt (2009:19) que afirma: “o conceito de Estado pressupõe o conceito do político” e considerando a instituição estatal enquanto Terceiro detentor de poder/autoridade18 política, fundado em regras formais/racionais, o Estado monopoliza não só a força, mas sobretudo a força legítima. Assim, a legitimidade é causada por condições sociais e existe ou não de acordo com as transformações desenvolvidas no decorrer da história. Não se pode perder de vista que o Estado se tornou legítimo também devido à construção de coalizões de combate às guerras. O combate ao inimigo tornou-se, então, o elemento crucial de legitimidade estatal (Collins, 2006).
Por conseguinte, a teoria weberiana da política define o Estado como uma organização que reivindica o monopólio sobre o uso legítimo da força dentro de um determinado território, sendo que sua legitimidade também sofre influências do prestígio internacional que possui.
Nesse sentido, Bobbio (2009) já referia que, para que o Estado possa desempenhar seu papel administrando, resolvendo conflitos e assim conferindo a “pacificação social” (que nada mais é do que uma trégua), é preciso que se considerem três elementos: a) o pacto de não agressão (hobbesianamente falando); b) o pacto que permite transformar o estado polêmico (de conflituosidade violenta) em estado agonístico (de conflituosidade não violenta)19; e, c) a última condição, é a existência de um poder comum acima das partes, que requeira a presença de um Terceiro e que pressupõe, portanto, a passagem de uma situação de Terceiro excluído para uma situação de Terceiro incluído.
As figuras do Terceiro, ainda segundo Bobbio (2009), são várias: a) a primeira é a do mediador que se limita a colocar em contato duas partes que estão em conflito sem intervir na sua solução; b) a segunda é a do árbitro que não apenas coloca em contato as partes, mas dá razão a uma ou outra, tendo elas se declarado desde o início dispostas a submeter-se à decisão que for tomada por ele; c) a terceira é aquela do juiz, autorizado a intervir para a solução do conflito e portanto com pleno título de Terceiro super partes; d) enfim, a quarta é a do soberano no sentido clássico da palavra, que não apenas tem o poder de julgar, mas tem também o poder de obrigar pela força o cumprimento da decisão (o jus gladii).
A partir da leitura de Bobbio (idem) e de sua classificação percebe-se que, quanto maior é a intervenção do Terceiro no conflito e na sua gestão, mais distante é o contato deste com os conflitantes e menor o nível democrático atribuído a essa relação. Portanto, o mediador é aquele cuja tarefa se limita a facilitar a comunicação e, por isso, seu papel é o de um Terceiro “entre as partes”, sem qualquer poder de decisão ou coação; o árbitro é um Terceiro que, estando entre as partes, promove a aproximação, mas também decide por elas, atribuindo razão a uma ou outra e, por isso, possui o poder de pôr fim ao litígio; o juiz é o Terceiro essencialmente super partes, que decide impondo sua decisão. A ele não cabe promover a aproximação e o consenso20, e somente se pede que busque a conciliação formal quando e se possível; já o soberano é aquele que paira etéreo sobre todos e possui um poder de decisão que foge aos limites dos conflitos jurídicos, tomando decisões políticas que vão além dos conflitos estatais internos.
No entanto, conforme a concepção de Bobbio (2009), um sistema político duradouro e estavelmente pacífico é aquele no qual ocorreu a passagem do Terceiro entre as partes para o Terceiro acima delas21. Essa passagem ainda não ocorreu, ou ocorreu de forma imperfeita, no sistema internacional. Para ser eficaz em dirimir os conflitos entre as partes, o Terceiro deve dispor de um poder superior ao delas. Mas, ao mesmo tempo, um Terceiro superior às partes que seja eficaz sem ser opressivo precisa ter um poder democrático, ou seja, fundado sobre o consenso e sobre o controle das mesmas partes das quais deve dirimir os conflitos. Em outras palavras, não pode ser despótico. As duas grandes dicotomias do pensamento político, paz-guerra, democracia-despotismo, confluem-se uma na outra e permitem traçar um quadro dentro do qual possam ser designadas em grandes linhas as diversas eventuais perspectivas da história futura. Enquanto o despotismo pode ser considerado a continuação da guerra no interior do Estado, a democracia no sistema internacional pode ser considerada o modo de expandir e de tornar mais segura a paz fora dos conflitos dos Estados individuais.
Quando a atuação do Terceiro se faz insuficiente ou inexistente, ressurge o velho sistema do equilíbrio hobbesiano no qual a paz é garantida exclusivamente pelo medo recíproco. Quando isso acontece, todos chegam à conclusão de que é preciso fazer alguma coisa. A dificuldade é saber com exatidão o quê. Existem alguns que depositam suas esperanças nos movimentos pela paz, e outros que confiam unicamente na continuação dos tratados diplomáticos, ou seja, nas soluções de cúpula.
O que não é possível perder de vista é que, uma vez eclodido, todo conflito termine com a vitória de um dos dois rivais ou com a intervenção de um Terceiro, com posição intermediária ou acima dos conflitantes. Em outras palavras, se um conflito deve ser solucionado por meio da força, um dos dois conflitantes perde. Para uma solução pacífica, é preciso que surja um Terceiro no qual as partes confiem ou ao qual se submetam. Costuma-se dizer: “duas únicas pessoas não constituem uma sociedade”. Mereceria passar à história outro ditado: “duas únicas pessoas não estabelecem um acordo duradouro” (Bobbio, 2009:280).
Conforme escreveu Simmel (1968), existem relações entre indivíduos e entre grupos triádicas e diádicas. As primeiras são aquelas que comportam e reconhecem a figura do Terceiro, enquanto as últimas, por outro lado, dizem respeito às relações que envolvem duas pessoas ou grupos sem a intermediação de uma terceira parte. Seguindo essa linha de raciocínio, Freund (1995a) introduziu a distinção entre duas situações ideais típicas: a do “Terceiro excluído”, que denomina “estado polêmico”, e a do “Terceiro incluído”, à qual deu o nome de “estado agonístico/agonal”.
Utilizando a conceituação de Freund (idem) sobre essas duas situações ideais típicas, Bobbio afirma que “a sociedade interestatal está ainda hoje essencialmente no estado polêmico, a sociedade intraestatal já está estavelmente, salvo crises revolucionárias, no estado agonístico” (2009:288). Assim, na primeira sociedade, os conflitos são solucionados em última instância com a vitória de uma parte sobre a outra. Já na segunda, a presença de um Terceiro acima das partes, que detém o monopólio da força legítima, permite soluções pactuadas e pacíficas dos principais conflitos internos, que, não solucionados, fariam o estado agonístico cair novamente no estado polêmico. Entretanto, o autor alerta para o fato de que, enquanto o estado agonístico pode se transformar, em casos graves de crise de legitimidade, em estado polêmico – local de nascimento das guerras civis – o estado polêmico, lá onde ainda existe (como na sociedade internacional), não se tornou um estado agonístico, e as tentativas feitas até agora nessa direção falharam miseravelmente.
Porém, a contraposição entre situação diádica e situação triádica é simplista. Entre a ausência total do Terceiro e a presença do único Terceiro superior, há posições intermediárias que apontam as várias figuras que o Terceiro pode assumir. Consequentemente, existem diferenças entre a hipótese hobbesiana do estado polêmico originário, ou seja, da guerra de todos contra todos, e o estado agonístico final, não menos hipotético, da sociedade anárquica, sem Estado. A primeira figura do Terceiro no estado polêmico é aquela do Aliado que, aliás, se revela um Terceiro Aparente, porque o aliado é aquele que se enfileira ao lado de um ou outro dos contendores. Aparente porque, enquanto não existirem outros Terceiros além dos aliados, a situação continua diádica. De outro modo, um verdadeiro Terceiro é o Neutro (o juiz, por exemplo), que, não se enfileirando nem de um nem de outro lado, representa a passagem para um estado que, embora continuando a ser polêmico, não é mais apenas diádico, “...mas é um Terceiro passivo, um Terceiro real, mas frágil” (Bobbio, 2009:288-289).
É nesse momento que se percebe que a passagem do estado agonístico tem início com a primeira das várias formas de Terceiro ativo: o mediador. O mediador é aquele que se coloca entre as partes, não acima delas, para ajudá-las a se comunicar entre si, permitindo que ambas decidam sobre o conflito de modo autônomo. A segunda figura é o árbitro, ao qual as partes delegam a decisão, comprometendo-se a submeter-se a ele, e que, como tal, está, a um só tempo, entre e acima. Por fim, conclui-se com o juiz, que está autorizado a intervir para solucionar o conflito, a partir de uma instância superior e é, portanto, a pleno direito, um Terceiro acima (Bobbio, 2009).
Em suma, a presença política do Terceiro é importante porque delimita a existência de um estado polêmico ou agonístico/agonal e, consequentemente, o papel que desempenhará e o modo como o conflito será tratado. Porém, as dúvidas que se instalam são: o Terceiro sociológico também possui essa importância? Que papel ele desenvolve no tratamento dos conflitos?
O TERCEIRO SEQUESTRADO PELA SOCIOLOGIA
No contexto sociológico, Freund (1995a:241) afirma que, ou o Terceiro se desagrega com a aparição do conflito por uma espécie de implosão acontecida no interior das relações sociais, ou ele se coloca no lado de fora do circuito e deixa que os protagonistas conflitem entre si.
Porém, se nos fixamos unicamente no conflito, torna-se perceptível a impossibilidade de ignorar o Terceiro, posto que, em virtude da polaridade, este o elimina no começo e depois o recupera durante o desenlace, sem contar que ele pode romper com a dualidade conflitiva (ibidem:242).
Na obra Soziologie, Simmel (1968:75-94), ao debater a composição social, traça a tipologia do Terceiro em relação ao conflito. Posteriormente, Freund (1995a:242 ss.) reproduz o debate trazendo novas luzes a essa classificação, atrelando à mesma as indagações que dizem respeito a sua pertinência nos tempos modernos, bem como ao papel desenvolvido por esse Terceiro segundo a situação conflitiva experienciada. Por conseguinte, o Terceiro pode ser:
a) O imparcial, ou seja, aquele que não está implicado diretamente no conflito mas é solicitado para julgá-lo ou para dar-lhe um fim. Esse Terceiro poderá ser visualizado na figura de um árbitro, juiz ou de um mediador, porém é importante não confundir as atribuições e os papéis desempenhados por tais figuras que são completamente diferentes.
O mediador é aquele que, com o acordo dos conflitantes, possui o encargo de facilitar a aproximação e a comunicação entre eles. O mediador não sugere e nem propõe soluções, essas devem ser criadas pelos envolvidos no conflito, que também se tornam responsáveis pelo que acordam ou não.
Já o juiz e o árbitro são Terceiros – o primeiro determinado pelo Judiciário e o segundo eleito pelos conflitantes – para solucionar as divergências. Ao contrário do mediador, o juiz e o árbitro possuem poder de decisão. O cumprimento dessa decisão é obrigatório, podendo ser alvo de execução. O árbitro, especificamente, deve ser um técnico ou um especialista no assunto em discussão para dar um parecer e decidir a controvérsia. A ele se atribui o poder do juiz, e sua decisão é soberana.
b) O Terceiro em discórdia, chamado por Simmel (1968) de tertius gaudens. Este está implicado diretamente no conflito, tirando, inclusive, proveito do mesmo. Nesse caso, é possível verificar: 1) aquele que tira proveito para si, apesar da situação conflitiva, pelo fato de que os conflitantes, ocupados em seus enfrentamentos, deixam o campo livre para tal; 2) Terceiro favorecido por um dos conflitantes que objetiva colocar em dificuldade o seu oponente.
c) Por fim, existe o Terceiro que divide e impera, ou, conforme Freund (1995a:243), aquele que divide et impera. Trata-se daquele que intervém por si mesmo no conflito porque lhe interessa ou porque pensa que pode assumir uma postura dominante. Para atingir tal objetivo, pode inclusive suscitar o enfrentamento para debilitar um ou outro conflitante.
Sobre essa última figura, Freund (idem) questiona se ele, enquanto é Terceiro, pode ser instigador de um conflito e manter-se assim durante todo o desenrolar conflitivo. Tal questionamento se dá com a afirmação primeira do autor: o conflito só acontece na bipolaridade/dualidade. Desse modo, quando o Terceiro deixa de ser Terceiro, porque passa a fazer parte do conflito, a triangulação existente em face de sua figura desaparece e a dualidade se instaura. Desaparece assim a figura do Terceiro e passamos a trabalhar com a lógica da dualidade, porque o primeiro se associou a uma das partes envolvidas. O próprio autor coloca sua opinião afirmando que não concorda com o papel do Terceiro enquanto instigador do conflito, uma vez que isso significaria que ele tomou parte e se atrelou a um dos lados, dualizando a relação antes terceirizada.
Nesse viés, é possível observar a composição de alianças e o fato de que nelas encontramos o único caso no qual o Terceiro intervém diretamente no conflito no sentido de sua configuração propriamente dita, ou seja, quanto à bipolaridade. Porém, o aliado não é de fato um Terceiro no conflito enquanto constituir um Terceiro campo, mas é o Terceiro em um ou outro dos campos que conflitam (ibidem:245).
Retomando o papel do Terceiro imparcial, aquele caracterizado como “parte não interessada”, definido anteriormente como alguém que não está implicado pessoalmente no conflito, é possível encontrar a figura de um moderador que se esforça em solucionar o problema. Esse espaço pode ser atribuído ao mediador22, considerando que os resultados positivos ocorrerão desde que ele seja reconhecido como tal por ambos os conflitantes.
Mas, nesse caso, como se daria a neutralidade no sentido político-social do termo, conforme concepção de Freund (1995b:149)? O autor reforça que é neutro quem se mantém fora das hostilidades em curso ou daquelas que vierem a acontecer, o que significa que a neutralidade só tem significação na relação com o conflito e não em si mesma. Desse modo, ser neutro não significa uma atitude puramente passiva de indiferença ou de imparcialidade23. Nesse caso, é preciso diferenciar a neutralidade permanente a respeito de todo o conflito possível e a neutralidade conjuntural por ocasião de um conflito determinado.
Essa última neutralidade é que faz do Terceiro um Terceiro propriamente dito e não um aliado de uma ou outra parte, evitando que o conflito torne-se novamente bipolar e mantendo sua característica de terzietà24 como afirma Resta (2005b:88-89).
Desse modo, o mediador é neutro, porém, a imparcialidade25 é uma característica desse Terceiro que deve ser olhada com cuidado. Não é possível esquecer que seu papel é estar no meio, compartilhar, e até mesmo sporcarsi le mani26 na promoção da aproximação entre os conflitantes e na busca pela reconstituição dos canais comunicativos que porventura estejam rompidos.
Até o presente momento foi possível verificar que o Terceiro possui importância no tratamento e resolução de conflitos, encontrando-se incluído em várias ordens tais como a política e a sociologia. Porém, é importante questionar o modo pelo qual esses terceiros (sociológico e político) desempenham seus papéis no tratamento dos conflitos.
O TERCEIRO NO TRATAMENTO DOS CONFLITOS
Para fins de relacionar a teoria sociológica e a teoria política ao papel desempenhado pelo Terceiro no tratamento dos conflitos é preciso apontar para as diferenças entre o papel exercido pelo Terceiro mediador e pelo Terceiro magistrado.
Para cumprir com esse fim importa dizer que, na mediação, é possível reconhecer um “sistema a três”. Nesse sistema, a figura do Terceiro (mediador) é aquela que usa a mesma linguagem dos conflitantes, tornando-se o coágulo entre um e outro. Por outro lado, a jurisdição é um “sistema com Terceiro”, porém um Terceiro que não se mistura com os conflitantes. É onde encontramos a metalinguagem, a linguagem da lei.
Pier Paolo Portinaro (1986:14), ao definir e diferenciar o “sistema a três” e o “sistema com terceiro”, já ressalta que “[...] o pluriverso político não é uma junção de três, e sim uma junção com Terceiro”27. Explicando a afirmativa, aduz que ele não é composto simplesmente por três atores e sim por uma pluralidade de estados, acerca dos quais não é indiferente determinar quem desenvolve, e de que modo, a função de Terceiro.
Nesses termos, evidenciando o “sistema a três”, a palavra mediação evoca o significado de centro, de meio, de equilíbrio, compondo a ideia de um Terceiro elemento que se encontra entre as duas partes, não sobre, mas entre elas. Por isso, a mediação é vista como um processo em virtude do qual um Terceiro (o mediador) ajuda os participantes em uma situação conflitiva a tratá-la, o que se expressa em uma solução aceitável e estruturada de maneira que permita ser possível a continuidade das relações entre as pessoas envolvidas no conflito (Haynes, 1993). Trata-se de uma “gestão ativa de conflitos pela catálise de um Terceiro” (Six, 2001:191)28.
Justamente por isso, a mediação surge como espaço democrático, uma vez que trabalha com a figura do mediador que, ao invés de se posicionar em local superior às partes, se encontra no meio delas, partilhando de um espaço comum e participativo, voltado para a construção do consenso num pertencer comum. Isso se dá porque a mediação não é uma ciência, mas uma arte na qual o mediador não pode se preocupar em intervir no conflito, oferecendo às partes liberdade para tratá-lo. Porém, a mediação suscita um paradoxo composto pelo fato de dizer ao juiz que não desenvolva o papel que disseram ser o seu, isto é, deixar de decidir e adjudicar para propô-la. Consequentemente, o que se pede é que pacifique sem decidir, quando o seu papel é tradicionalmente o de decidir sem, necessariamente, pacificar (Resta, 2005a).
Se comparada à decisão judicial e à composição consensuada entre as partes, percebe-se que a primeira tem por base uma linguagem terceira normativamente regulada. Ao contrário, a mediação desmancha a lide, decompõe-na nos seus conteúdos conflituosos, avizinhando os conflitantes que, portanto, perdem as suas identidades construídas antagonicamente.
Contextualmente, enquanto em juízo tudo se movimenta em torno do magistrado (autoridade que tem o poder de decidir e de dizer quem ganha e quem perde o processo), na mediação, os conflitantes tomam em suas mãos o tratamento do litígio. A figura do mediador não possui papel central; via de regra, possui papel secundário, poder de decisão limitado ou não oficial; e é impedido de unilateralmente obrigar os conflitantes a resolverem a contenda ou impor decisão. Deve mediá-los ou reconciliar os interesses conflitivos, conduzindo para que concluam com o seu impulso a melhor solução.
Outra grande diferença entre o “sistema a três” encontrado na mediação e o “sistema com Terceiro” previsto para a jurisdição é o fato de que enquanto o juiz é pensado, nos sistemas modernos, como o “nec utrum, nem um, nem outro, nem isto nem aquilo”, justamente neutro, o mediador deve ser “isto e aquilo”, podendo perder a neutralidade e perdê-la até o fim29 (Resta, 2005a:90). Enquanto as partes litigam e só veem seu próprio ponto de vista, o mediador pode ver as diferenças comuns aos conflitantes e recomeçar daqui, atuando com o objetivo das partes retomarem a comunicação, exatamente o múnus comum a ambas. O mediador torna-se meio para a pacificação, remédio para o conflito, graças ao estar entre os conflitantes, nem mais acima, nem mais abaixo, mas no seu meio.
Atualmente, porém, o cidadão vê com descrédito o “sistema a três” de tratamento dos conflitos e atribui ao sistema “com Terceiro” a confiança na resolução dos mesmos. Por conseguinte, a sociedade atual permanece inerte enquanto suas contendas são decididas pelo juiz30. Da mesma forma, como o cidadão de outrora que esperava pelo Leviatã para que ele fizesse a guerra em busca da paz, resolvesse os litígios e trouxesse segurança ao encerrar a luta de todos contra todos, atualmente vemos o tratamento e a regulação dos litígios serem transferidos ao Judiciário, esquecidos de que o conflito é um mecanismo complexo que deriva da multiplicidade dos fatores, que nem sempre estão definidos na sua regulamentação; portanto, não é só normatividade e decisão (Resta, 2005a).
Unidos pelo conflito, os litigantes esperam por um Terceiro que o “solucione”. Espera-se pelo Judiciário para que diga quem tem mais direitos, mais razão ou quem é o vencedor da contenda. Trata-se de uma transferência de prerrogativas que, ao criar “muros normativos”, engessa a solução da lide em prol da segurança, ignorando que a reinvenção cotidiana e a abertura de novos caminhos são inerentes a um tratamento democrático.
Essa transferência de responsabilidades quanto à gestão do conflito se direciona ao juiz, que o traduz na sua linguagem. Desse modo, partindo do processo de racionalização weberiana, o Estado, ao deter a forma de poder legal, detém, também, o monopólio legítimo da decisão vinculante. Assim, as atenções continuam centradas na figura do juiz, do qual se espera a última palavra, “não importa qual, mas a última”. O lugar do juiz entre os conflitantes é uma questão complicada, uma vez que ele não se deixa encerrar na fácil fórmula da lei que assegura “distância de segurança” das razões de um e do outro. Ele vive no conflito e do conflito que ele decide, pronunciando a última palavra (Resta, 2005a).
Assim, na busca de tratamento da grande maioria dos conflitos, ocorre a demanda processual, na qual os dois lados na batalha poderão vencer ou perder, mas não podem e/ou não querem desistir do confronto. É por isso que quem frequenta as salas dos tribunais reconhecerá, muitas vezes, no rosto neutro das partes, verdadeiros e próprios duelantes que estão ali a demonstrar com a sua presença e com seu comportamento processual – do qual muitas vezes também outros são cúmplices – que a verdadeira razão do conflito judiciário não é um direito controverso, mas simplesmente a “contraparte”, como se diz na linguagem do processo. Cada motivo é supérfluo: as causas em matéria de separação e divórcio – que não terminam nunca, mesmo quando são concluídas –, são seu emblema mais evidente, tanto que, melancolicamente, a teoria sugere que somos adultos quando “litigamos bem” (idem).
Todavia, tratar o conflito judicialmente significa recorrer ao magistrado e atribuir a ele o poder de dizer quem ganha e quem perde a demanda. É nesse sentido a afirmativa de que “quando se vai ao juiz se perde a face”31, uma vez que, imbuído do poder contratual que todos os cidadãos atribuem ao Estado, sendo por ele empossado, o magistrado regula os conflitos graças à monopolização legítima da força.
Paralelamente ao “sistema com Terceiro” (formas jurisdicionais tradicionais), existem outras possibilidades de tratamento de conflitos, nas quais se atribui legalidade à voz de um mediador (“sistema a três”), que auxilia os conflitantes a compor o litígio. Não se quer aqui negar o valor do Poder Judiciário, o que se pretende é discutir outra maneira de tratamento dos conflitos, buscando uma nova racionalidade de composição dos mesmos, convencionada entre as partes litigantes.
Esse novo modelo de composição dos conflitos possui base na busca da “face” perdida dos litigantes numa relação de cooperação pactuada e convencionada, definindo uma “justiça de proximidade e, sobretudo, uma filosofia de justiça do tipo restaurativo que envolve modelos de composição e gestão do conflito menos autoritariamente decisórios” (Resta, 2005a:83; ênfase no original, tradução livre).
Dito isso, embora ambos os sistemas cumpram com seus papéis e apresentem importância no tratamento dos conflitos sociais atuais, diferenciá-los e aplicá-los no contexto adequado pode significar um tratamento mais humano e eficaz. A diferenciação e a aplicação adequada dos sistemas referidos começam a se dar a partir da compreensão clara da importância e do papel sociológico e político desenvolvido pelo Terceiro.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
O presente artigo demonstrou que a compreensão do papel político/sociológico do Terceiro no tratamento dos conflitos sociais depende, dentre outras coisas, da distinção entre situação polêmica e estado agonal. Na primeira, diz-se que o Terceiro encontra-se excluído da relação, e ela se reflete na violência aberta e direta. É uma situação conflitiva ou que corre o risco de chegar a sê-lo, pouco importando o grau de violência. A característica essencial da situação polêmica é que os opositores se enfrentam como inimigos32, o que quer dizer que se dão, mutuamente, o direito de se suprimir fisicamente.
Já no estado agonal, no qual o Terceiro se encontra incluído, verifica-se aquela situação que logrou desativar os conflitos e substituí-los por outra forma de rivalidade, conhecida pelo nome de competição ou de concurso. Nesses termos, se assemelha ao jogo. A característica essencial é que os rivais não se comportam como inimigos, e sim como adversários, o que quer dizer que, de antemão, a violência e a intenção hostil estão excluídas, ainda que permaneça a possibilidade de vencer ou de cair ante o outro competidor. No estado agonal, os meios de jogar são definidos de antemão, sendo que ambos os competidores renunciam ao ataque da integridade física recíproca. Os meios de definir tais regras circulam desde o estabelecimento de instituições até a criação do direito. Nesses termos, o estado agonal objetiva a submissão da vida à regulamentação e ao direito. É conhecido como o “estado dos juízes”, pois busca no procedimento judicial a solução de rivalidades e de divergências políticas.
Em resumo, tem-se que o estado polêmico trabalha com a dualidade amigo-inimigo e exclui a figura do Terceiro. Já o estado agonal lida com uma relação de caráter triádico na qual a figura do Terceiro encontra-se incluída.
Seguindo essa linha de raciocínio, a dupla amigo-inimigo equivale a pôr um primeiro ator no centro de referência do conflito, determinando um segundo como inimigo e um Terceiro como amigo do primeiro. Porém, não necessariamente o Terceiro aparece na cena política como amigo ou aliado de um dos envolvidos. Enquanto aliado de um dos conflitantes, o Terceiro, aqui chamado de “aparente”, se dissolve no dualismo do front. É aquele que se posiciona a favor de um ou outro conflitante, perdendo sua qualidade de Terceiro em função da dinâmica de polarização que desenvolve.
Já o Terceiro considerado “neutro” não se deixa absorver por essa polarização entre amigo-inimigo. O neutro não está a favor de nenhuma das partes, e sua assistência torna possível a formação de uma estrutura tripolar relacional. Porém, o Terceiro neutro é o polo mais frágil da relação, o que lhe rende o rótulo de “fraco”. A exceção a essa regra, conforme Portinaro (1986), é o mediatore di pace que, tratando-se de um Terceiro, autônomo com relação aos envolvidos no conflito, é chamado de “real” e cuja força vem de sua autoridade reconhecida, qualificando-se, devido a ela, como Terceiro forte. Essa força é, de fato, pressuposto da sua capacidade de intervenção enquanto sujeito pacificador.
Diante de tais fatos é possível observar diferenças e similitudes entre as figuras do Terceiro expostas por Freund: o aliado (aparente), o neutro (fraco) e o mediador de paz (Terceiro forte). O primeiro se apresenta como uma figura parcial, que se posiciona entre as partes, já os dois últimos são considerados imparciais. A imparcialidade se apresenta, assim, como um requisito de prudência necessário a quem deseja se aproximar dos conflitantes, na procura de uma estratégia que permita buscar o acordo ou pronunciar um juízo de decisão sobre o conflito. Nas três figuras do Terceiro relacionadas por Freund podemos perceber o Terceiro exposto sempre como o sujeito “incluído” numa relação pertencente ao estado agonal.
Nesse contexto, o pluriverso político não é um “sistema a três” e sim um sistema “com Terceiro”. As relações não são compostas, simplesmente e na maioria das vezes, por três atores, mas por uma pluralidade (de estados, cidadãos, instituições, organizações econômicas etc.) a respeito da qual é preciso determinar quem desenvolve o papel de Terceiro33.
Por conseguinte, sobre qualquer uma das três figuras de Terceiro (aliado, neutro e mediador de paz) e sobre qualquer um dos sistemas (sistema “a três” e sistema “com Terceiro”), a concepção do político como forma de convivência humana é vista de modo diferenciado. Tal se dá porque, quando o Terceiro é considerado somente como aliado (atual ou potencial), a política é vista como manifestação irredutível da contraposição e do conflito. Porém, quando o Terceiro é aquele que possui como papel a mediação, a política é considerada em outra dimensão: da composição do conflito. Por fim, quando o Terceiro é considerado neutro, nos deparamos com um movimento que reconhece a impossibilidade de imaginar o fim da política tal como concebida (com relação ao conflito) atualmente: antagonista, centrada na noção da violência como monopólio legítimo do Estado, possuindo o conflito como seu fundador e propulsor.
Diante de tais fatos, constata-se que o Terceiro possui o papel fundamental de triangularizar a relação e promover o tratamento do conflito de maneira adequada, objetivando a restauração da convivência e a harmonização social. A adequação e a pertinência de sua ação apontam para o nível de evolução cultural, social e econômica dos envolvidos no conflito. Por isso, não obstante desenvolver um papel único e diferenciado a cada situação, a presença sociológica/política do Terceiro reflete a sua absoluta necessidade na identificação e no tratamento dos conflitos sociais. Assim, citando Portinaro (1986:8) pode-se concluir afirmando que: “A sorte do três / não é obra do diabo. /Um é a solidão / o dois a Guerra / e o três salva a cabra / e os repolhos”34.
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O presente artigo foi produzido a partir da pesquisa desenvolvida no projeto Entre a jurisdição e a mediação: o papel político/sociológico do terceiro no tratamento dos conflitos, coordenado pela autora e financiado pelo Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq), chamada 43/2013 – Ciências Humanas, Sociais e Sociais Aplicadas, no do processo 408582/2013.
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Para conceituar o político é importante referir que, para Schmitt, o “conceito do Estado pressupõe o conceito do Político. [...] Estado é o status político de um povo organizado dentro de uma unidade territorial” ou seja, “no geral, ‘político’ é equiparado de alguma forma a ‘estatal’ ou, pelo menos, relacionado ao Estado. O Estado aparece então como algo político, mas o político como algo estatal – pelo visto um círculo vicioso nada satisfatório” (2009:19-21).
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2
Necessário salientar que o conceito de conflito aqui utilizado pertence à sociologia e aos autores que a representam no texto trabalhado. Desse modo, devido aos limites de espaço e de tempo, este artigo não abordará o conceito de conflito em Carl Schmitt. Por conseguinte, o conceito espacial de conflito em Schmitt assim como a “circunscrição da guerra”, não serão analisados.
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Especula-se que o Terceiro pode ser traduzido em organizações econômicas ou sindicais, partidos políticos, organizações religiosas ou intelectuais, em um grupo de interesses ou simplesmente na figura do juiz, do negociador e do mediador, e esse é também um dos pontos de investigação da proposta.
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Ao debater o papel do Terceiro, não se pretende propor com o presente artigo a exclusão ou o descarte do Estado, aqui representado pelo Judiciário, como figura importante na administração/tratamento/solução de conflitos. O que se pretende é debater o Terceiro mediador como Terceiro possível no desempenho desse papel, atuando de modo complementar ao Judiciário mas não substituindo-o.
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Interessante considerar que a expressão citada é utilizada por Simmel em sua obra Soziologie (1968), e que foi traduzida no Brasil, por Carlos Alberto Pavanelli e outros como “sociação” (1983). Essa tradução nem sempre é considerada satisfatória, uma vez que a palavra, em alemão, tem como sentido um “processo de socialização”. Nestes termos, “socialização” poderia ser uma tradução mais adequada.
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Nesse mesmo sentido são as indagações de Ross: “¿Qué relación guarda el conflicto dentro de los grupos con el que ocurre entre ellos? Esta relación puede describirse teóricamente de dos maneras. Una de ellas, que tiene que ver con el principio psicológico de la generalización, pone de relieve cómo los individuos o grupos propensos a la violencia o al comportamiento contencioso de un determinado ámbito de sus vidas (o con un conjunto dado de actores), se comportan de forma similar en otras esferas. El segundo modelo se basa principalmente en factores estratégicos, señalando que os actores no pueden entrar a la vez en conflicto con otras mucha facciones” (Ross, 1995:40).
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Os efeitos do conflito intergrupal (externo) sobre um determinado grupo são assim resumidos por Simmel: “em condição de paz, o grupo pode permitir que membros antagônicos convivam em seu interior numa situação indeterminada, porque cada um deles pode seguir seu próprio caminho e evitar colisões. Uma condição de conflito, todavia, aproxima os membros tão estreitamente e os sujeita a um impulso tão uniforme que eles precisam concordar ou se repelir completamente. Esta é a razão pela qual a guerra com o exterior é, algumas vezes, a última chance para um estado dominado por antagonismos internos superar estes antagonismos, ou então dissolver-se definitivamente” (1983:154).
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“La identificación con el propio grupo es un proceso cognitivo de adaptación social que hace posible relaciones pro sociales tales como la cohesión social, la cooperación e la influencia. Los grupos constituyen el mecanismo central que la identidad a las personas; en vez de sostener que estas ‘sacrifican’ una porción de su identidad cuando forman parte de un grupo, la perspectiva que aquí se adopta sólo ve posible la identidad positiva del individuo dentro del contexto de una segura afiliación al grupo” (Ross, 1995:42).
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No original: “[...] il conflitto, sia interno che esterno, contribuisce al mantenimento dei confini di gruppo e all’identità sociale” (Collins, 2006:150).
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Nesse sentido, Mouffe (1996:13) afirma que, com a “determinação de um ‘outro’ que desempenhará o papel de ‘elemento externo constitutivo’, torna-se possível compreender a forma como surgem os antagonismos”.
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Aqui, conforme a interpretação de Freund (1995a), temos a desnecessidade da presença de um Terceiro, nesse caso, chamado de “excluído”.
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Nesse contexto, o mediador pode assumir a tarefa de Terceiro, facilitando a comunicação e auxiliando os conflitantes a estabelecerem, de modo autônomo, o melhor caminho para tratar seu conflito.
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“A guerra decorre da inimizade, pois esta é a negação ôntica de um outro ser. A guerra é apenas a realização extrema da inimizade” (Schmitt, 2009:35).
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É importante salientar que “a noção de conflito não é unânime. Nascido do antigo latim, a palavra conflito tem como raiz etimológica a ideia de choque, ou a ação de chocar, de contrapor ideias, palavras, ideologias, valores ou armas. Por isso, para que haja conflito é preciso, em primeiro lugar, que as forças confrontantes sejam dinâmicas, contendo em si próprias o sentido da ação, reagindo umas sobre as outras” (Spengler, 2010:242).
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Conforme Derrida, “Os conceitos de amigo e de inimigo devem ser entendidos no seu sentido concreto, existencial, e nunca como metáforas ou símbolos; não se deve atenuá-los misturando-lhes representações econômicas, morais ou outras, nem sobretudo interpretá-los psicologicamente num sentido privado-individualista, como se eles exprimissem sentimentos e tendências privadas. Esses conceitos não são nem oposições normativas e nem oposições espirituais” (2003:250).
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De fato, ao apontar a importância do papel desempenhado pelo Terceiro, Freund afirma em outros estudos que: “quase tutte le guerre tra Stati sono de natura bipolare, secondo il classico rapporto dell’amico e del nemico. I due campi avverso riducono all’ostilità fra due Stati ovvero allo scontro tra due gruppi di alleati. Per dirla diversamente le guerre assumono l’apestto di un duello” (1995a:221; ênfase no original). Tradução livre: Quase todas as guerras entre estados são de natureza bipolar, de acordo com a relação clássica do amigo e inimigo. Os dois campos adversários reduzem a hostilidade entre dois estados ou choque entre dois grupos de aliados. Para colocar de forma diferente, as guerras assumem a aparência de um duelo.
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No entanto, alguns sociólogos contemporâneos acrescentam um quarto tipo de autoridade: aquela baseada no conhecimento especializado (conhecida também como autoridade profissional). A autoridade dos médicos é um exemplo. Até certo ponto tradicional, está se tornando cada vez mais racional-legal à medida que corpos legislativos assumem de forma crescente a regulamentação legal de decisões médicas que variam do aborto à retirada de aparelhagem mantenedora da vida. Além disso, contudo, tornando-se a prática da medicina cada vez mais complexa e longe da compreensão de muitos pacientes, a posse de conhecimentos especializados torna-se, por mérito próprio, uma base para a autoridade (Johnson, 1997:24).
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“L’auctoritas derivante dalle convenzioni politiche costituisce nello stesso tempo la fonte e l’effetto della legalità, a essa subordinata e contemporaneamente sovra ordinata; modello alto di autoregolazione, la legalità moderna (sistema di ‘astratta e generale statuizione’) rimette ogni possibile controversia che la legge non abbia già indirizzato a un’ultima decisione del giudice ‘terzo’, affinché non ci sia spazio per violenze, ma soltanto violenze, private. Ed è terzo per definizione il giudice perché trova l’imparzialità della sua decisione legislativa – o almeno così dovrebbe essere – sulla base di un’aspettativa normativa che la legge stessa costituisce, salvo, cognitivamente, a vedere se si realizzi imparzialità nel caso concreto. E tuttavia si potrà dire che il giudice sarà imparziale quando, cognitivamente, lo sarà stato” (Resta, 2005b:39). Tradução livre: “A autoridade que deriva de convenções políticas é ao mesmo tempo a fonte e o efeito da lei, sujeita a ela e ao mesmo tempo superordenada; modelo de autorregulação, a legalidade moderna (sistema de poder ‘abstrato e geral dominante’) pode trazer qualquer disputa que a lei não tenha já endereçado a uma decisão final do juiz ‘terceiro’, até que não haja lugar para a violência, mas somente violências, privadas. E é terceiro, por definição, o juiz porque encontra a imparcialidade da sua decisão legislativa – ou ao menos assim deveria ser – com base em uma expectativa legislativa que a lei mesma constitui, a menos que, cognitivamente, verifique se se realizam imparcialidades no caso concreto. E, no entanto, pode-se dizer que o juiz será imparcial quando, cognitivamente, já foi”.
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Aqui é importante referir que os conceitos de “estado polêmico” e de “estado agonístico/agonal” foram cunhados por Freund (1995a), sendo expressos pelo autor do seguinte modo: o primeiro é refletido na violência aberta e direta. É uma situação conflitiva ou que corre o risco de chegar a sê-lo, pouco importando o grau de violência. A característica essencial da situação polêmica é que os opositores se enfrentam como inimigos, o que quer dizer que se dão, mutuamente, o direito de se suprimir fisicamente. Já o estado agonal consiste naquela situação que logrou desativar os conflitos e substituí-los por outra forma de rivalidade, conhecida pelo nome de competição, de competência ou de concurso. Nesses termos, se assimila ao jogo. A característica essencial é que os rivais não se comportam como inimigos, e sim como adversários, o que quer dizer que, de antemão, a violência e a intenção hostil estão excluídas, ainda que permaneça a possibilidade de vencer ou de cair frente ao outro competidor. No estado agonal, os meios de jogar são definidos de antemão, sendo que ambos os competidores renunciam ao ataque da integridade física recíproca. Os meios de definir tais regras circulam desde o estabelecimento de instituições até a criação do direito. Tais regras servem para impor condutas e proibições aos rivais, bem como determinar as condições de vitória. Em resumo, o estado agonal é o fundador de uma ordem reconhecida por todos, que não está na vontade discricionária do vencedor, como ocorre ao acabar um conflito violento. No entanto, a estabilidade do estado agonal é precária, podendo sofrer abalos. Na tentativa de manter a ordem a qualquer custo, muitas vezes se lança mão do uso abusivo da coerção, fazendo da mesma um instrumento de opressão. Nesses termos, o estado agonal objetiva a submissão da vida à regulamentação e ao direito. É conhecido como o “estado dos juízes”, pois busca no procedimento judicial a solução de rivalidades e de divergências políticas. Contudo, as dúvidas nascem da incerteza de que a instauração do estado agonal seja sempre desejável, temendo que ele possa determinar um conservadorismo social ao impor regras de flexibilidade e plasticidade rígidas que não atendam à complexidade social na qual estão inseridas.
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A imprecisão do termo consenso é apontada por Horowitz, que demonstrou seu uso pelos defensores da teoria sociológica em vários sentidos diferentes, entre os quais: a) ajustamento da dissensão social; b) acordo entre o papel de um comportamento e o papel dele esperado; c) crenças comuns, que ultrapassam as fronteiras dos grupos; e d) uma visão comum concernente à identidade ou congruência de desinteresses (Horowitz, 1962). Para a construção deste artigo, interessa mais a concepção de consenso enquanto meio de ajustamento da dissensão social, não obstante os demais aspectos serem mencionados.
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Ou seja, é aquele sistema político no qual temos o juiz e o soberano substituindo a figura do mediador.
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Importa aqui pensar no mediador com uma amplitude que vai além da pessoa física. Nesse caso, o mediador poderia ser um Estado ou a Organização das Nações Unidas (ONU), se pensarmos num conflito entre nações, por exemplo.
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Por isso, a “neutralidade” atribuída à figura do mediador deve ser vista como uma característica que envolve especialmente a inexistência de poder, levando em consideração, porém, que “il mediatore non può essere assolutamente asettico, in quanto la sua presenza non è passiva, ma egli svolge um ruolo attivo dando il proprio aiuto affinché le parti giungano al riconoscimento di obiettivi comuni” (Pellegrini, 2005:93). Tradução livre: “O mediador não pode ser absolutamente estéril, porque sua presença não é passiva, mas ele desenvolve um papel ativo ajudando as partes a alcançarem o reconhecimento de objetivos comuns”.
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Em italiano, terzietà significa a qualidade de ser o Terceiro, isto é, imparcial.
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Nesse sentido, o mediador não possui poderes discricionários nem poder de decisão, pois “o requisito da imparcialidade se dissolve no reconhecimento de uma autoridade discricional, se non di un vero e proprio arbitrio” (Bouchard e Mierolo, 2005:213). Tradução livre: se não de um verdadeiro e próprio arbítrio.
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Em português, “sujar as mãos”. Eligio Resta não admite a atribuição de uma postura neutra e imparcial ao mediador que o coloque na mesma posição do magistrado, reiterando que, para mediar, é preciso estar no “meio do conflito” e não “sobre ele”, “sujando as mãos” (Resta, 2005a:89 ss.).
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No original: “[...] il pluriverso politico non è un insieme a tre, ma un insieme com terzo” (Portinaro, 1986:14).
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Nessa mesma linha, Suares (1997); Gottheil e Schiffrin (1996).
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“Ancora una volta la distanza tra il mediatore e il giudice sta tutta nella differenza che intercorre tra la separazione e il legame. Il giudice separa mentre il mediatore fallisce il giudice ricupera appieno – di fronte alla persistenza del conflitto – la sua funzione di risolutore delle controversie. I questa prospettiva, il giudice no pregiudica i diritti e gli interessi con una preposizione ma è destinato a pregiudicare almeno quelli accampati da una delle parti. Il mediatore soccorre il legame, riequilibra il rapporto che vive sullo sfondo del conflitto ma non pregiudica né pregiudica, né interessi né diritti” (Bouchard e Mierolo, 2005:214). Tradução livre: “mais uma vez, a distância entre o mediador e o juiz está toda na diferença entre a separação e a ligação. O juiz separa, quando o mediador falha, o juiz recupera totalmente – em frente à persistência do conflito – a sua função de solucionador de controvérsias. E, nessa perspectiva, o juiz não prejudica os direitos e interesses com uma preposição, mas é suscetível de afetar, pelo menos, aqueles exibidos por uma das partes. O mediador ajuda o vínculo, equilibra a relação que vive no fundo do conflito, mas não prejudica e nem pré-conceitua, nem os interesses nem os direitos”.
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Nesse sentido é preciso referir que o mediador não decide os conflitos, mas auxilia os mediados a dialogar a respeito. Agindo desse modo, o mediador atende a um dos princípios básicos da mediação: responsabilizar os conflitantes pelo conflito comum e pelo modo como vão tratá-lo/administrá-lo/resolvê-lo, fomentando a autonomia de cada um na tomada de uma decisão consciente.
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É nesse contexto que Eligio Resta recorda o estudioso norueguês Eckhoff (1966), que, no ensaio “The Mediator, the Judge and the Administrator in Conflict Resolution”, avançava a hipótese de que, nas culturas religiosas de tipo conciliatório, como o confucionismo, havia escassa propensão privada e baixa atenção pública à lide judiciária. Não é que ali não houvesse litígios, mas existe uma forte ligação entre a desvalorização do litígio e a interiorização dos preceitos religiosos. Diz que, para a religião confuciana, “quando se vai ao juiz se perde a face”, litigar é quase pecado. Isto não ocorre nas culturas católicas nas quais, não obstante a ética do perdão e a proibição do ressentimento, recorre-se cada vez mais frequentemente ao juiz (Resta, 2005a:80).
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Na mais perfeita dualidade de amigo-inimigo proposta por Schmitt (2009).
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Especula-se que o Terceiro pode ser traduzido em organizações econômicas ou sindicais, partidos políticos, organizações religiosas ou intelectuais, em um grupo de interesses ou simplesmente na figura do juiz, do negociador e do mediador, e esse é também um dos pontos de investigação da proposta.
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No original: “La fortuna del 3 / non è opera del diavolo. / L’ uno à la solitudine / il due la guerra / e il 3 / salva la capra / e i cavoli”.
Datas de Publicação
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Publicação nesta coleção
Apr-Jun 2016
Histórico
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Recebido
Mar 2014 -
Revisado
Nov 2014 -
Aceito
Jun 2015