Resumo
O final da Segunda Guerra Mundial marca um conjunto de grandes transformações no pensamento social brasileiro. As teorias raciais e eugênicas vão perdendo rapidamente força frente às interpretações de cunho cultural e econômico. Neste trabalho, conta-se parte dessas transformações a partir das interpretações sobre a imigração japonesa no Brasil em dois intelectuais de marcante atuação parlamentar: o psiquiatra-eugenista Pacheco e Silva e o sociólogo Gilberto Freyre. A imigração japonesa foi foco de intenso debate nas décadas de 1930 e 1940, merecendo até mesmo emendas restritivas ou proibitivas nas Constituintes de 1934 e 1946. Este estudo analisa a atuação parlamentar dos dois intelectuais nesse período, observando as influências de seus pensamentos sociais em sua atividade política. O artigo examina, ainda, as transformações que ocorrem na década de 1950, com mudanças no pensamento de Pacheco e Silva, maior influência do pensamento de Freyre e um redesenho do lugar da imigração japonesa no debate parlamentar.
Imigração japonesa; Pensamento social do Brasil; eugenia; Pacheco e Silva; Gilberto Freyre
Abstract
The end of World War II marks a set of major transformations in Brazilian social thought. Racial and eugenic theories rapidly lose ground to interpretations of cultural and economic nature. This article examines part of these transformations through the perspectives on Japanese immigration to Brazil by two intellectuals with important parliamentary roles: the psychiatrist-eugenicist Pacheco e Silva and the sociologist Gilberto Freyre. Japanese immigration was the subject of intense debate in the 1930s and 1940s, even prompting restrictive or prohibitive amendments in the 1934 and 1946 constitutions. This study analyzes the parliamentary activities of both intellectuals over this period and demonstrates the influence of their respective social thoughts on their political endeavors. This article also examines the transformations that took place in the 1950s, including shifts in Pacheco e Silva’s thinking, a greater influence of Freyre’s ideas, and a reconfiguration of the role of Japanese immigration in parliamentary discourse.
japanese immigration; Brazilian social thought; eugenics; Pacheco e Silva; Gilberto Freyre
Résumé
La fin de la Seconde Guerre mondiale marque un ensemble de grandes transformations dans la pensée sociale brésilienne. Les théories raciales et eugéniques perdent rapidement leur force face aux interprétations d’ordre culturel et économique. Dans ce travail, une partie de ces transformations est racontée à partir des interprétations sur l’immigration japonaise au Brésil de deux intellectuels ayant une influence marquante au Parlement : le psychiatre-eugéniste Pacheco e Silva et le sociologue Gilberto Freyre. L’immigration japonaise a été au centre d’un débat intense dans les années 1930 et 1940, suscitant même des amendements restrictifs ou prohibitifs dans les Constitutions de 1934 et 1946. Cette étude analyse l’activité parlementaire des deux intellectuels pendant cette période, observe les influences de leurs pensées sociales sur leur activité politique, examine également les transformations qui ont lieu dans les années 1950, avec des changements dans la pensée de Pacheco e Silva, une plus grande influence de la pensée de Freyre et une redéfinition de la place de l’immigration japonaise dans le débat parlementaire.
immigration japonaise; pensée sociale du Brésil; eugénisme; Pacheco e Silva; Gilberto Freyre
Resumen
El final de la Segunda Guerra Mundial marcó un conjunto de grandes transformaciones en el pensamiento social brasilero. Las teorías raciales y eugenésicas van perdiendo fuerza rápidamente frente a las interpretaciones de cuño cultural y económico. En este trabajo, se da cuenta de parte de esas transformaciones a partir de las interpretaciones sobre la inmigración japonesa en Brasil de dos intelectuales con un importante desempeño parlamentario: el psiquiatra-eugenista Pacheco e Silva y el sociólogo Gilberto Freyre. La inmigración japonesa fue foco de intenso debate en las décadas de 1930 y 1940, e incluso fue merecedora de enmiendas restrictivas o prohibitivas en las Constituyentes de 1934 y 1946. Este estudio, analiza la acción parlamentaria de los dos intelectuales en ese periodo, observando las influencias de sus pensamientos sociales en su actividad política y examinando, también, las transformaciones que ocurrieron en la década de 1950, con cambios en el pensamiento de Pacheco e Silva, principal influencia del pensamiento de Freyre, y el rediseño del lugar dado a la inmigración japonesa en el debate parlamentario.
inmigración japonesa; pensamiento social de Brasil; Eugenesia; Pacheco e Silva; Gilberto Freyre
Introdução
A imigração japonesa para o Brasil se inicia oficialmente em 1908 com a chegada do navio Kasato Maru ao porto de Santos no dia 18 de junho. As primeiras levas de imigrantes tiveram subsídio de cafeicultores paulistas e do governo estadual de São Paulo até 1922. A partir de então, essa imigração ganha vulto com um forte apoio agora do governo japonês, que estimulava suas empresas de colonização e emigração (Wakisaka et al., 1992Wakisaka, Katsunori et al. (1992), Uma epopeia moderna: 80 anos da imigração japonesa no Brasil. São Paulo, Hucitec.; Handa, 1987Handa, Tomoo. (1987), O imigrante japonês. São Paulo, Queiroz Editor.). É nesse período que a imigração japonesa passa a ter uma maior repercussão no debate público brasileiro. O deputado federal Fidélis Reis, por exemplo, apresenta na Câmara dos Deputados, em 1923, o Projeto de Lei nº 391, propondo a proibição da entrada no Brasil de imigrantes negros e a limitação da imigração amarela para o patamar de 5% dessa população já presente em cada Estado (Takeuchi, 2008Takeuchi, Márcia Yumi. (2008), O perigo amarelo: Imagens do mito, realidade do preconceito (1920-1945). São Paulo, Humanitas/Fapesp.). A proibição da imigração africana já aparecera em decreto-lei do governo provisório de marechal Deodoro (Decreto-Lei nº 528, de 28 de junho de 1890, revogado em 1907), mas ressurgia agora ampliada como proibição à imigração negra, possivelmente como reação legislativa federal a um projeto de colonização de negros norte-americanos no centro-oeste brasileiro, rapidamente barrado pelo governo do Mato Grosso em 1921 (Ramos, 1996Ramos, Jair de S. (1996), "Dos males que vem com o sangue", in M. Maio e R. Santos (eds.). Raça, ciência e sociedade. Rio de Janeiro, Editora Fiocruz/CCBB, p. 59-82.). Quanto à imigração asiática, essa também fora proibida no Decreto-Lei de 1890, mas, já em 1892, a Lei Federal nº 97 passava a permitir a imigração de chineses e japoneses. O projeto de Reis, estabelecendo cotas, foi, assim, um primeiro esforço legislativo de restrição desde a liberação e o início da imigração japonesa para o Brasil.
As cotas de imigração para amarelos não se concretizariam na década de 1920, mas ressurgiria em nova forma na Constituição de 1934. Nela, apesar dos esforços da representação diplomática japonesa no Brasil (Leão Neto, 1989), é aprovada uma cota ainda mais rigorosa que a de Fidélis Reis: não poderia “a corrente imigratória de cada país exceder, anualmente, o limite de 2% sobre o número total dos respectivos nacionais fixados no Brasil durante os últimos cinquenta anos” (art. 121, §6º, da Constituição Brasileira de 1934). Embora em fórmula geral, não direcionada abertamente a nenhum grupo específico, foi a imigração japonesa a mais afetada pela nova regra constitucional: a entrada de mais de 22 mil japoneses em 1934 cairia para menos de 6 mil em 1935 e reduziria ainda mais nos anos seguintes (Mita, 2018Mita, Chiyoko. (2018), 『ブラジル移民政策と日本移民』, in Jams [The Japanese Association for Migration Studies]. 「日本人と海外移住」. Tóquio, Akashi Shoten, p. 118-154..). As vozes que capitanearam a restrição da imigração japonesa na Assembleia Nacional Constituinte (ANC) foram principalmente de médicos e sanitaristas da escola eugênica como Miguel Couto, Xavier de Oliveira, Arthur Neiva e Antônio Carlos Pacheco e Silva (Takeuchi, 2008Takeuchi, Márcia Yumi. (2008), O perigo amarelo: Imagens do mito, realidade do preconceito (1920-1945). São Paulo, Humanitas/Fapesp.; Miki, 2015Miki, Bianca Sayuri. (2015), Os inassimiláveis: o antiniponismo na Assembleia Nacional Constituinte de 1933-4. Dissertação (Mestrado em História), Pontifícia Universitária Católica, Rio de Janeiro.). Embora, como revela Takeuchi (2008)Takeuchi, Márcia Yumi. (2008), O perigo amarelo: Imagens do mito, realidade do preconceito (1920-1945). São Paulo, Humanitas/Fapesp., nem todos os eugenistas fossem contrários à imigração japonesa, os médicos constituintes de 1934 ligados a essa escola eram abertamente antinipônicos.
Doze anos depois da Constituinte de 1934, a imigração japonesa é novamente tema da ANC de 1946. Na nova composição, os eugenistas ainda mantinham força, tendo à frente o médico Miguel Couto Filho, justamente o filho do autor das cotas de imigração de 1934. Em 28 de agosto de 1946, entra em votação a emenda 3.165 de José Augusto e Miguel Couto Filho, que propunha a inclusão na nova Constituição Federal da proibição expressa à imigração japonesa para o Brasil. Após a contagem dos votos, a decisão fica empatada em 99 a 99, somente sendo rejeitada graças ao voto de desempate do presidente da ANC, senador Melo Vianna (Hayashi, 2022Hayashi, Bruno. (2022), "Metamorfoses do amarelo: a imigração japonesa do 'perigo amarelo' à 'democracia racial'". Revista Brasileira de Ciências Sociais, v. 37, pp. 1-18.).
Apesar da rejeição à emenda proibitiva, a imigração japonesa para o Brasil só seria retomada em 1953, após a desocupação norte-americana do Japão e após a assinatura do Tratado de São Francisco, que selou a paz entre o país nipônico e as nações aliadas, inclusive o Brasil. Um novo acordo formal de imigração entre Brasil e Japão seria estabelecido somente em 1963 (Wakisaka et al., 1992Wakisaka, Katsunori et al. (1992), Uma epopeia moderna: 80 anos da imigração japonesa no Brasil. São Paulo, Hucitec.: 392). Todavia, a década de 1950, em particular, é de grandes transformações nas representações sobre a imigração japonesa no Brasil. Já em 1954, durante o IV Centenário da Cidade de São Paulo, e em 1958, durante o Cinquentenário da Imigração Japonesa, ficam visíveis não apenas a mudança para uma visão positiva dessa imigração, mas a consolidação de novas interpretações sobre a sua participação na formação social do Brasil. O presente artigo busca compreender em parte essa transformação entre as décadas de 1930 e 1950, tomando a perspectiva de dois importantes intelectuais brasileiros com direta atuação parlamentar no período: Antônio Carlos Pacheco e Silva e Gilberto Freyre.
Na primeira seção, o texto analisa discursos parlamentares e escritos no jornal O Estado de S. Paulo do psiquiatra e constituinte em 1934 Pacheco e Silva. Será mostrado como suas ideias, influenciadas pela eugenia, conduziram sua atuação parlamentar em defesa de restrições à imigração japonesa no Brasil. A partir de suas colunas de teor mais político será possível ainda observar as transformações da visão desse que é um dos principais intelectuais da eugenia nas décadas de 1930 e 1940, e um dos principais críticos da imigração japonesa para o Brasil.
A segunda seção, por sua vez, é dedicada ao estudo de um outro constituinte, agora de 1946: trata-se de Gilberto Freyre. Sua interpretação sociológica sobre o Brasil, que já tinha grande influência nos debates constituintes de 1946, torna-se dominante na década de 1950. Compreender a sua visão sobre a imigração japonesa é, pois, compreender muito da visão brasileira sobre ela nos primeiros anos pós-guerra, especialmente em meio à elite político-parlamentar do Brasil. Tal como em Pacheco e Silva, será nas colunas semanais de Freyre na revista O Cruzeiro que encontraremos interessantes sugestões sobre sua visão acerca da imigração em geral e da imigração japonesa em particular.
A última seção, por fim, apresenta as influências do pensamento social freyreano nos pronunciamentos parlamentares sobre os japoneses e seus descendentes no Brasil na década de 1950. Embora já afastado do Parlamento, seu ideário luso-tropicalista mostrava-se ainda influente seja nos discursos elogiosos da imigração japonesa seja nos discursos que continuavam a ver tal corrente migratória com desconfiança. Ao final, examina-se qual lugar a imigração japonesa ocupa no debate político sobre a formação racial e social do Brasil.
A passagem pelas diferentes visões permitirá reconstruir uma parte das transformações vividas pelos imigrantes japoneses e seus descendentes, assim como também pelo pensamento social brasileiro nos primeiros anos pós-guerra. As fontes primárias de análise foram principalmente: o acervo digital do jornal O Estado de S. Paulo, com a catalogação e leitura de todas as colunas encontradas de Antônio Carlos Pacheco e Silva entre 1946 e 1958; o arquivo digital da revista O Cruzeiro na Biblioteca Nacional, com registro de todas as colunas assinadas por Gilberto Freyre entre 1948 e 1959; os Anais das Constituintes de 1934 e 1946, com catalogação e análise das intervenções de Pacheco e Silva e de Gilberto Freyre; e os diários e anais do Congresso Nacional para a análises de debates e discursos parlamentares em fins da década de 1950. O tratamento das fontes buscou a reconstrução sistemática dos argumentos dos dois autores, suas consequências em termos de proposições político-parlamentares, as mudanças ao longo dos anos e possíveis contradições internas.
Transformações da eugenia no pós-guerra: as colunas de Pacheco e Silva
Antônio Carlos Pacheco e Silva foi um médico paulista, formado pela Faculdade de Medicina do Rio de Janeiro e com especialização em neurologia e psiquiatria pela Universidade de Paris. Em 1932, atuaria como professor contratado de psiquiatria forense na Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo e, em 1935, seria aprovado no concurso para a cadeira de clínica psiquiátrica da Faculdade de Medicina, chegando posteriormente também à posição de professor catedrático em psicopatologia na Faculdade de Direito. Nos conturbados anos que se seguiram à subida de Vargas ao poder em 1930, integraria o movimento MMDC e atuaria durante a Revolução Constitucionalista como superintendente dos serviços médicos e de assistência pública. Em julho de 1933, seria eleito deputado constituinte (FGV-CPDOC, 2009FGV-CPDOC. (2009), Verbete: SILVA, Antônio Carlos Pacheco e. FGV-CPDOC, Rio de Janeiro. Disponível em: http://www.fgv.br/cpdoc/acervo/dicionarios/verbete-biografico/silva-antonio-carlos-pacheco-e. Acesso: 7 set 2021.
http://www.fgv.br/cpdoc/acervo/dicionari...
). É nessa atuação parlamentar que ficaria explícita a sua visão contrária à imigração japonesa para o Brasil, acompanhando nesse tema a posição do médico Miguel Couto.
As proposições e discursos contra a imigração japonesa na Constituinte de 1933-1934 não se limitaram a questões geopolíticas, de interesse nacional, de distância cultural ou de proteção de mercado aos trabalhadores nacionais. Pela própria origem médica das principais lideranças antinipônicas na Assembleia, é também na esfera biológica, “racial” e de hereditariedade que surgiriam resistências à entrada de japoneses no Brasil. Assim é que, em sessão de 20 de fevereiro de 1934, Pacheco e Silva dirá, por exemplo:
Desejo, apenas, dar o meu testemunho de diretor do serviço de assistência a psicopatas do maior centro imigratório do Brasil, que é o Estado de São Paulo, e que vem em apoio da tese já defendida pelos eminentes colegas que assinalaram os inconvenientes da imigração japonesa. A nossa observação demonstra serem os japoneses extremamente sujeitos a certos distúrbios mentais e que, quando alienados, manifestam acentuada tendência para a prática de crimes. Dado os seus sentimentos religiosos e o pouco valor que lhes merece a vida, não só revelam acentuada propensão ao suicídio, como são levados a executar delitos os mais bárbaros e atrozes, cujas vítimas são, não raro, membros da própria família (Brasil, 1934, Livro VIII: 224-225).
Os japoneses, portanto, teriam, para o psiquiatra paulista, propensões maiores a distúrbios mentais e à prática de crimes, sugerindo não serem elementos eugenicamente adequados ao país. Essa sugestão se confirma na sequência ao dizer que é “nosso dever contribuir para salvaguardar a formação da nacionalidade” (Brasil, 1934Brasil. (1934), Annaes da Assembléa Nacional Constituinte de 1934. 22 volumes. Rio de Janeiro, Imprensa Nacional. Disponível em: https://www.senado.leg.br/publicacoes/anais/asp/RP_AnaisRepublica_digitalizados.asp. Acesso em: 19 ago 2021.
https://www.senado.leg.br/publicacoes/an...
, Livro VIII: 225).
Além do apoio aos esforços de proibição/restrição à imigração japonesa capitaneados por Miguel Couto, o deputado Pacheco e Silva também apresenta a emenda nº 781 (Brasil, 1934Brasil. (1934), Annaes da Assembléa Nacional Constituinte de 1934. 22 volumes. Rio de Janeiro, Imprensa Nacional. Disponível em: https://www.senado.leg.br/publicacoes/anais/asp/RP_AnaisRepublica_digitalizados.asp. Acesso em: 19 ago 2021.
https://www.senado.leg.br/publicacoes/an...
, Livro IV: 175), prevendo uma série de medidas sanitárias à maternidade, juventude, proteção social, mas também visando “incentivar a saúde eugênica e sexual”, como forma a dar “a cada cidadão o sentimento da responsabilidade na formação da raça”. No parágrafo único da proposição, sugere ainda que “Todos os problemas relativos à saúde e à assistência pública serão estudados e coordenados por Conselhos Técnicos e pelos órgãos criados visando o aperfeiçoamento da raça” (Brasil, 1934Brasil. (1934), Annaes da Assembléa Nacional Constituinte de 1934. 22 volumes. Rio de Janeiro, Imprensa Nacional. Disponível em: https://www.senado.leg.br/publicacoes/anais/asp/RP_AnaisRepublica_digitalizados.asp. Acesso em: 19 ago 2021.
https://www.senado.leg.br/publicacoes/an...
, Livro IV: 175, destaque meu). Embora negue, na sessão de 20 de fevereiro, “qualquer prevenção contra essa ou aquela raça” (Brasil, 1934Brasil. (1934), Annaes da Assembléa Nacional Constituinte de 1934. 22 volumes. Rio de Janeiro, Imprensa Nacional. Disponível em: https://www.senado.leg.br/publicacoes/anais/asp/RP_AnaisRepublica_digitalizados.asp. Acesso em: 19 ago 2021.
https://www.senado.leg.br/publicacoes/an...
, Livro VIII: 225), mostra constante preocupação com o assunto, chegando a mencionar um estudo que, em suas palavras, “demonstrou em exaustivo trabalho a superioridade da raça ariana” (Brasil, 1934Brasil. (1934), Annaes da Assembléa Nacional Constituinte de 1934. 22 volumes. Rio de Janeiro, Imprensa Nacional. Disponível em: https://www.senado.leg.br/publicacoes/anais/asp/RP_AnaisRepublica_digitalizados.asp. Acesso em: 19 ago 2021.
https://www.senado.leg.br/publicacoes/an...
, Livro VIII: 224). Afirma ainda, na mesma sessão, a necessidade “de um exame atento, não só na escolha dos grupos raciais, como também na rigorosa seleção individual dos imigrantes, visando beneficiar a raça em formação” (Brasil, 1934Brasil. (1934), Annaes da Assembléa Nacional Constituinte de 1934. 22 volumes. Rio de Janeiro, Imprensa Nacional. Disponível em: https://www.senado.leg.br/publicacoes/anais/asp/RP_AnaisRepublica_digitalizados.asp. Acesso em: 19 ago 2021.
https://www.senado.leg.br/publicacoes/an...
, Livro VIII: 223).
O médico paulista se revela, na verdade, em seus discursos e proposições, um dos eugenistas na Constituinte mais alinhados com a tradição europeia e norte-americana da eugenia, algo que fica ainda mais patente em suas preocupações relativamente à hereditariedade. Acreditando na transmissão de doenças e mesmo de caracteres comportamentais aos descendentes, tem como principal bandeira (expressa em sua emenda nº 781) o exame pré-nupcial obrigatório e a instrução eugênica, como forma de evitar “a união de elementos tarados, cujos produtos serão fatalmente, entes prejudicados, nocivos ao meio social” (Brasil, 1934Brasil. (1934), Annaes da Assembléa Nacional Constituinte de 1934. 22 volumes. Rio de Janeiro, Imprensa Nacional. Disponível em: https://www.senado.leg.br/publicacoes/anais/asp/RP_AnaisRepublica_digitalizados.asp. Acesso em: 19 ago 2021.
https://www.senado.leg.br/publicacoes/an...
, Livro VIII: 226). O psiquiatra, na verdade, defende essas medidas, pois, para ele, “ainda subsistem preconceitos intransponíveis que não nos permitem propor medidas semelhantes às adotadas pela Alemanha e pelos E. Unidos, onde a esterilização de anormais e degenerados é corrente” (Brasil, 1934Brasil. (1934), Annaes da Assembléa Nacional Constituinte de 1934. 22 volumes. Rio de Janeiro, Imprensa Nacional. Disponível em: https://www.senado.leg.br/publicacoes/anais/asp/RP_AnaisRepublica_digitalizados.asp. Acesso em: 19 ago 2021.
https://www.senado.leg.br/publicacoes/an...
, Livro VIII: 226). Assim, para Pacheco e Silva, as propostas apresentadas de exame pré-nupcial e educação eugênica seriam até tímidas em vista das alternativas encontradas em outros países. A combinação desse seu projeto com a sua percepção de que japoneses seriam suscetíveis a distúrbios mentais e à prática de crimes revela potencialmente as graves consequências a que a população nipônica poderia estar sujeita, se a visão de Pacheco e Silva fosse dominante na Constituinte.
As propostas mais radicais do médico paulista não tiveram sucesso e não ingressaram na nova Constituição de 1934 – mas, como vimos, as cotas de imigração de Miguel Couto foram aprovadas. Doze anos depois, em 1946, o psiquiatra paulista voltaria a defender as restrições à imigração japonesa e o exame pré-nupcial no contexto da nova Constituinte pós-guerra. Mas agora ele participava não mais como parlamentar, mas como formador de opinião d’O Estado de S. Paulo (ESP). Em sua coluna “Medicina e Higiene” de 16 de maio de 1946, sua visão é virtualmente a mesma de 1934. Cita para a nova geração “as palavras proféticas” de Miguel Couto sobre “os perigos da imigração amarela”. Para o psiquiatra paulista, “Foi graças aos esforços de Miguel Couto e do grupo por ele liderado que se estabeleceu a restrição da migração japonesa, tão necessária à garantia da integração étnica e capacidade física e civil do imigrante” (ESP, 16 maio 1946: 6). A nova política imigratória discutida na Constituinte precisaria, pois, para ele, levar em conta a experiência do passado “tendo em conta não só o fator raça, [...] mas também as condições físicas e mentais de cada imigrante” (ESP, 16 maio 1946: 6). Se, em 1946, os principais argumentos contra a imigração japonesa se relacionavam à Segunda Guerra Mundial ou aos atentados no seio da coletividade japonesa no Brasil de vitoristas (que se recusavam a crer na derrota do Japão) contra líderes derrotistas ou esclarecidos (que divulgavam a rendição incondicional do Imperador) (Cf. Wakisaka et al., 1992Wakisaka, Katsunori et al. (1992), Uma epopeia moderna: 80 anos da imigração japonesa no Brasil. São Paulo, Hucitec.; Motoyama, Okubaro, 2016), Pacheco e Silva mantinha o fundamental de sua argumentação antinipônica no elemento biológico, “racial”, referente à “capacidade física” do imigrante.
No mesmo artigo, o psiquiatra volta a defender também o exame pré-nupcial obrigatório, como uma “medida de grande alcance médico social capaz de contribuir eficazmente para melhorar a raça e assegurar o direito à saúde”, além de ser um direito dos filhos “exigir que os pais lhes transmitam perfeitas condições de vitalidade” (ESP, 16 maio 1946: 6). Em 1946, com a Segunda Guerra Mundial recentemente finda, a própria coluna de Pacheco e Silva revela que já eram conhecidas as atrocidades nazistas, inclusive com base em argumentos eugênicos. O psiquiatra paulista, porém, logo se adianta para ainda defender a doutrina eugênica e uma de suas medidas mais drásticas: a esterilização.
Verdade é que na Alemanha se verificou abuso criminoso e indevido desses métodos [eugênicos], ao lado de outros por todos os títulos condenáveis; isso, entretanto, não significa que, quando aplicados com o necessário critério, com um objetivo elevado como é a salvaguarda da raça, não se possa a ele recorrer. De vez que a esterilização não mutile o indivíduo, que não lhe prive do exercício de qualquer função, seria uma falsa compreensão da liberdade permitir que se perpetuassem estirpes degeneradas só porque alguns insistem em procriar a despeito da herança mórbida que certamente iriam transmitir aos seus descendentes (ESP, 16 maio 1946: 6).
Sua posição confrontava um destinatário certo e declarado: os “muitos que defendem a democracia humanística” e “insurgem contra as medidas eugênicas, alegando que sua aplicação fere direitos individuais” (ESP, 16 maio 1946: 6).
Não é possível precisar, a partir do material analisado, quando Pacheco e Silva abandona suas posições eugênicas. Se é que de fato as abandona, mas como revela Nancy Stepan (2005)Stepan, Nancy. (2005), A hora da eugenia. Rio de Janeiro, Fiocruz., o desenvolvimento da eugenia após a Segunda Guerra Mundial tem contribuições apenas marginais de autores latino-americanos, sugerindo forte ostracismo. Nas colunas do médico paulista no ESP, uma mudança de posição só se torna patente no artigo “Guerra e Psicologia” publicado em 1952. Até essa data, suas colunas traziam principalmente textos de divulgação científica sobre doenças, tratamentos e discussões em congressos científicos, sem entrar no mérito de discussões eugênicas, migratórias e raciais – quando muito, cita a “integração física, moral e mental da raça” como condição para o sucesso de um povo, em texto de apoio à candidatura de Antônio de Almeida Prado em 1947 (ESP, 3 jan. 1947: 10).
Em sua coluna de 1952, Pacheco e Silva alinha-se às propostas da Unesco (Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura) contra a discriminação e pela construção da paz e entendimento entre os povos. Nesse passo, no lugar da linguagem de “aperfeiçoamento da raça” e “formação da raça”, suas preocupações se dirigem a combater “preconceitos arraigados” e “um nacionalismo agressivo e perigoso”, bem como a “preservar a paz” e “estabelecer a maior justiça social possível”.
Grande esforço vem realizando nesse campo a Unesco, como se deduz dos inúmeros trabalhos e publicações divulgados periodicamente, com o propósito de aliviar a tensão internacional, neutralizar preconceitos arraigados e combater ideias errôneas, a que se devem as dificuldades em estabelecer uma perfeita compreensão internacional (ESP, 11 set. 1952: 7).
A partir da criação em 1947 do Departamento de Ciências Sociais da Unesco, uma série de projetos de pesquisa é lançada com vistas a investigar as causas dos conflitos que dificultavam a construção da paz no mundo. Esses projetos tinham como tema as mais variadas formas de tensões humanas, com base em religião, raça, nacionalidade etc., e eram realizados em diferentes regiões do mundo – inclusive no Brasil. Os projetos da Unesco seriam, na verdade, importantes vetores do desenvolvimento das ciências sociais brasileiras no pós-guerra, inclusive para as pesquisas sobre a imigração japonesa (Taniguti, 2018Taniguti, Gustavo (2018). "O imigrante segundo as Ciências Sociais brasileiras, 1940-1960". Sociologias, Porto Alegre, ano 20, n. 49, p. 142-196.; Maio, 1999Maio, Marcos C. (1999), "O projeto Unesco e a agenda das ciências sociais no Brasil dos anos 40 e 50". Revista Brasileira de Ciências Sociais, v. 14, n. 41, pp. 141-58.; Izumi, 1957Izumi, Seichi. (1957), 『移民—ブラジル移民の実態調査』 "Imin" - Burajiru Imin no Jittai Chosa. Tóquio: Kokon Shoin.). Como a citação acima demonstra, esses estudos influenciaram a visão política de Pacheco e Silva no início da década de 1950. Entre os trabalhos da Unesco citados pelo médico-psiquiatra, o destaque maior é dado a um estudo com participação de Gilberto Freyre – trabalho “notável sob todos os aspectos”, na visão do médico paulista. Esse estudo recomendaria uma atenção especial à educação (contra a “má-fé nacionalista”), aos meios de comunicação (como forma de conectar os povos) e às pesquisas sociais independentes e em escala internacional.
A nova postura do autor é influenciada também pela repercussão da ação nazista, já condenada em 1946, mas agora com mais veemência: “No regime nazista, como se sabe, não só lavrou a maior corrupção, como o povo se capacitou por tal forma de sua superioridade que menosprezava todos os demais grupos raciais” (ESP, 11 set. 1952: 7). Outro aspecto importante da coluna de 1952 é que Pacheco e Silva, embora sem citar especificamente a participação da medicina e da eugenia (apenas a ciência usada “para forjar as armas da guerra atômica ou biológica”), reconhece que certos resultados das pesquisas em ciências físicas e biológicas “não fizeram senão perturbar e agitar o mundo civilizado, ao invés de atenuar os conflitos” (ESP, 11 set. 1952: 7). Revela-se, portanto, em 1952 um autor muito menos otimista e confiante com as possibilidades civilizatórias e reformadoras das ciências. Suas teses eugênicas, como a própria proibição da imigração japonesa, desaparecem das colunas de teor mais político da década de 1950, mas uma mudança de posição nunca fica expressamente declarada. A nota dominante nesse período é o silêncio em relação às posições do passado. À luz do artigo “Guerra e Psicologia”, não parece mais possível no pensamento de Pacheco e Silva um horizonte de restrição ou mesmo proibição sumária de certo grupo migratório, como o japonês, com base em aspectos físicos e biológicos.
Assim, analisando do ponto de vista do médico paulista, o destino no pós-guerra da eugenia e das posições dessa escola de pensamento contra a imigração japonesa parece ser o esquecimento. Nas palavras de Stepan (2005Stepan, Nancy. (2005), A hora da eugenia. Rio de Janeiro, Fiocruz.: 209), o “que finalmente ocorreu foi um conveniente desmentido de que os latino-americanos jamais houvessem abraçado os princípios eugênicos”. Embora a eugenia tenha persistido em certas convicções e práticas médicas, “a própria palavra ‘eugenia’ tornou-se um tabu” (Stepan, 2005Stepan, Nancy. (2005), A hora da eugenia. Rio de Janeiro, Fiocruz.: 209). No seu lugar, surge, no caso de Pacheco e Silva, uma rápida filiação às proposições da Unesco, que tiveram como um de seus contribuintes o sociólogo Gilberto Freyre. A próxima seção é dedicada a esse pensamento social freyreano e à sua relação com a imigração japonesa. Do que vimos nesta seção, já é possível notar sua influência internacional na Unesco e nacional até sobre eugenistas como Pacheco e Silva.
A imigração japonesa e a ‘democracia racial’: as colunas de Gilberto Freyre
A obra sociológica de Freyre não conta com um exame sistemático acerca da imigração japonesa para o Brasil. Em parte, isso se deve ao recorte temporal de suas principais obras que adentram pouco no período de grande imigração japonesa, isto é, o século XX, especialmente as décadas de 1920 e 1930. Essas décadas coincidem, na verdade, com a fase de escrita e publicação de duas de suas principais obras: Casa-grande e senzala (1933) e Sobrados e mucambos (1936). A isso se soma o fato de não haver propriamente uma sociologia da imigração na obra de Freyre, como mostra Márcio de Oliveira (2017)Oliveira, Márcio. (2017), "Em torno da civilização luso-tropical: a contribuição da sociologia de Gilberto Freyre à sociologia da imigração no Brasil". Caderno CRH, v. 30, n. 81, pp. 561-578., levando a um interesse apenas marginal à presença japonesa no Brasil. No entanto, como mostra também Oliveira, é possível, a partir de sua sociologia mais ampla, particularmente sua concepção de luso-tropicalismo, entender o lugar da imigração no pensamento freyreano. Essa será a estratégia adotada nesta seção. A partir de sua concepção de civilização luso-tropical, especialmente como ela apareceu nos debates parlamentares em 1946 (em que Freyre participou como deputado constituinte) e em suas colunas à revista O Cruzeiro, será mostrado como a imigração japonesa para o Brasil pode ser interpretada dentro da sociologia freyreana e como o sociólogo pernambucano caracterizou essa imigração nas raras vezes em que tratou do tema.
Como já indicado na introdução, dentre os temas debatidos na ANC de 1946 esteve a proibição da imigração japonesa. Os anais da Constituinte não registram nominalmente os votos de cada parlamentar, não sendo possível precisar o voto de Freyre em relação à emenda 3.165, proibitiva da entrada de japoneses. Além disso, nenhum dos discursos parlamentares do sociólogo pernambucano toca no tema específico da imigração japonesa. Entretanto, o destaque para a aprovação da emenda 3.165, com 199 assinaturas, não contava com o nome de Freyre. E seu discurso de 17 de junho, comentando dentre outros temas a política de imigração e de nacionalidade, revela uma posição abertamente contrária às posições migratórias restritivistas. A problemática central que o preocupa nesse discurso aparece sintetizado na seguinte fórmula: “sou dos que consideram o problema de unidade e, ao mesmo tempo, pluralidade de cultura, um dos mais sérios que o Brasil terá de enfrentar na época a que se destina a nova carta constitucional” (Brasil, 1946, Livro 13: 198).
Considerando a questão sob esse prisma de unidade e pluralidade, podemos interpretar que os parlamentares restritivistas mantinham uma forte preocupação com o polo da unidade, tomando a pluralidade como ameaçadora da segurança nacional – particularmente pelo caráter pretensamente inassimilável de alguns grupos, nomeadamente os japoneses. Já os imigracionistas não desejavam exatamente fomentar a pluralidade, mas suas preocupações econômicas (necessidade de “braços”) e demográficas (ocupação dos vazios geográficos) levavam inelutavelmente a esse desafio de receber uma pluralidade de correntes migratórias. Alguns constituintes, como Munhoz da Rocha, acabaram resolvendo a equação introduzindo o critério da facilidade de assimilação, o que atenuava os riscos do pluralismo cultural, mas que, na prática, sucumbia ao restritivismo em relação, por exemplo, à imigração japonesa. Gilberto Freyre, com apoio entusiasmado de Aureliano Leite1 1 . Prova disso é o seguinte aparte de Leite durante o discurso de Freyre: “V. Ex.ª está fazendo um discurso memorável” (Brasil, 1946, Livro 13:199). – parlamentar que é o único a fazer passageiramente uma apreciação positiva dos imigrantes japoneses em toda a ANC de 19462 2 . Vale ressaltar, porém, que a oposição à imigração japonesa era tão forte em agosto de 1946, que mesmo Aureliano Leite, embora rejeitando a emenda 3.165, mostra-se contrário à imigração japonesa durante o encaminhamento da votação da emenda: “Não sou favorável à imigração japonesa; ao contrário, sou contra ela, no momento. Acho, porém, iníquo incluir esse dispositivo no texto constitucional” (Brasil, 1946, Livro 23: 73). –, seguirá uma outra e original estratégia.
Freyre defenderá longa e insistentemente a pluralidade. Critica e sugere a supressão de parágrafos que restringiam a atuação profissional de imigrantes, como o que negava o reconhecimento de diplomas estrangeiros de não brasileiros natos. Considera o pós-guerra como a “época de crescente interdependência, de crescente interpenetração de influências, de crescente reciprocidade de valores de cultura.” (Brasil, 1946, Livro 13: 195). Cita a contribuição de estrangeiros para o Brasil na medicina, na geologia, na engenharia, nas ciências. Cita a generosidade de outros países que receberam os brasileiros refugiados, inclusive constituintes como Luiz Carlos Prestes que esteve na Bolívia, Jorge Amado, na Argentina e o próprio Freyre, nos EUA. Cita ainda os benefícios colhidos por muitos países em sua postura de abertura, como pela recepção de Albert Einstein e Thomas Mann nos EUA. Critica, enfim, o preconceito contra os negros, mas também contra os estrangeiros – ou “neobrasileiros” como prefere Gilberto Freyre. É nesse ponto que o sociólogo pernambucano desenvolve então detalhes de sua visão sobre a imigração e a nacionalidade, a pluralidade e a unidade.
Entre esses preconceitos está o do brasileiro nato, ou mais antigo, que se considera real ou simbolicamente “caboclo” contra os brasileiros novos ou naturalizados, às vezes chamados “gringos” ou “galegos” e aos quais alguns dos antigos pretendem fechar tantas posições, tantas atividades, tantas oportunidades de participação de vida comum do Brasil (Brasil, 1946, Livro 13: 198).
Freyre desenvolve aqui uma curiosa imagem em que o “caboclo” aparece simbolicamente na posição de dominante, capaz de erguer muros contra novos habitantes. Dirige nesse passo uma crítica aos restritivistas à moda de constituintes, como Dário Cardoso e Leopoldo Peres, que fazem grande elogio ao “caboclo brasileiro” ao mesmo tempo em que são profundamente preconceituosos com certos grupos imigrantes. Denomina essa tendência de caboclismo, nativismo ou melanismo exagerados.
Há no Brasil, uma espécie de preconceito de brasileiros já amorenados pelo clima ou pelo cruzamento contra os que não adquiriram ainda uma espécie de cor local. Preconceito que se manifesta numa excessiva falta de confiança na brasilidade dos adventícios ou novos (Brasil, 1946, Livro 13: 199).
Das citações acima, já se nota a escolha de vocabulário muito particular em Freyre ao se referir aos imigrantes. Prefere, em vez de “estrangeiros” ou “alienígenas”, chamá-los de “adventícios”, “brasileiros novos ou naturalizados” ou “neobrasileiros”. Com isso, o autor expressa e sintetiza duas preocupações suas em relação à imigração: a preocupação com a hospitalidade (tratá-los como brasileiros) e com a assimilação (torná-los brasileiros). Após a crítica aos preconceitos presentes na ANC, Freyre apresenta então sua solução:
Os adventícios precisam, entretanto, da confiança, da cordialidade, da hospitalidade dos brasileiros mais antigos para que, animados por esses sentimentos, se tornem aqui tão bons colaboradores do desenvolvimento nacional quanto tem sido nos EUA tantos americanos naturalizados (Brasil, 1946, Livro 13: 199).
O lado problemático e conflituoso da pluralidade se resolve, assim, em parte, pela “hospitalidade dos brasileiros mais antigos” para com os “brasileiros mais novos”. E essa postura não seria apenas adequada de um ponto de vista humano, mas, como se vê na citação, também traria vantagens do ponto de vista do “desenvolvimento nacional”.
Outra solução aos conflitos da pluralidade residiria na assimilação. O pluralismo defendido por Freyre, a sua abertura às mais diversas influências culturais para que contribuam na formação do Brasil, tem uma direção: a matriz luso-brasileira ou luso-tropical. Nesse sentido, a simples pluralidade cultural em si teria, para o constituinte pernambucano, até mesmo um componente ameaçador, capaz de desfazer a unidade da nacionalidade brasileira.
O Brasil deve preparar-se para receber, em número considerável, nos próximos anos, imigrantes de várias procedências, sem que o lastro de cultura tradicional e comum, que é de origem, predominantemente, lusitana sofra depressão excessiva ou perigosa. Ao contrário: no interesse da nacionalização e da cultura brasileira, é que tudo deve ser feito para que este lastro se avigore, através da maior aproximação de nosso povo com o português e do reconhecimento da situação especial do português em nosso meio (Brasil, 1946, Livro 13: 196).
É por essa razão que Freyre apoia a emenda 285 de Aureliano Leite, visando facilitar a naturalização de imigrantes portugueses.3
3
. Com Freyre como segundo signatário, a emenda seria aprovada e passaria a constar no artigo 129, inciso IV, da Constituição de 1946. Até mesmo hoje, na Constituição de 1988 em vigor, sobrevive o espírito da proposta de Leite e Freyre, ampliada para originários de países lusófonos (ver art. 12, II, a, CF/1988 – Brasil, 1988).
Em certo sentido, sustentando uma ideia de assimilação garantida antecipadamente para os portugueses, Freyre reafirma a ideia de Leite: “os portugueses não são estrangeiros: são portugueses” (Brasil, 1946Brasil. (1946), Anais da Assembleia Constituinte de 1946. 26 volumes. Rio de Janeiro, Imprensa Nacional. Disponível em: https://www.senado.leg.br/publicacoes/anais/asp/RP_AnaisRepublica_ digitalizados.asp. Acesso em: 1 set 2021.
https://www.senado.leg.br/publicacoes/an...
, Livro 13: 196). E o Brasil estaria inserido nessa comunidade “supranacionalmente portuguesa” contando, além de Brasil e Portugal, com “as comunidades neoportuguesas da África, da Ásia e das Ilhas” (Brasil, 1946, Livro 13: 196). Faz ressoar assim suas ideias publicadas no livro de 1940, O mundo que o português criou.
A síntese de seu pensamento aparece enfim no seguinte trecho de seu discurso:
Esperando-se do imigrante português essa função de colaborador do brasileiro na obra de assimilação à nossa cultura básica, dos adventícios de outras origens, não se defende nem se promove um estreito nacionalismo cultural, muito menos étnico, cuja mística seria a da lusitanidade. O que se quer defender, resguardar, desenvolver é a cultura brasileira principalmente de origem portuguesa, não como cultura única e exclusiva desta parte da América, mas como cultura básica do Brasil, como o lastro comum de nossa cultura nacional – necessariamente plural ou pluralista – aceita por todos os participantes e colaboradores dessa cultura plural[,] a língua portuguesa como a língua comum ou geral e evitando-se, assim, para uma população étnica e culturalmente heterogênea como a brasileira de hoje e, principalmente, do futuro próximo, o destino confuso de habitantes de “casa de pensão poliglota” (Brasil, 1946, Livro 13: 197-198, destaque meu).
A concepção de Freyre é pluralista, porque aberta para os adventícios de outras origens; é assimilacionista porque a cultura de origem portuguesa cumpre o papel de cultura básica do Brasil, a unidade, o lastro comum de comunicação das demais culturas plurais que venham a integrar a nacionalidade brasileira. É, assim, controlando o pluralismo pela base cultural luso-brasileira, mas, ainda assim, fomentando a vinda de diversos povos, que Freyre tenta resolver a equação unidade-pluralidade. Na citação acima, há ainda duas precisões importantes feitas pelo sociólogo pernambucano que nos ajudam a entender mais profundamente seu pensamento. A supranacionalidade portuguesa não deveria ser confundida com o nacionalismo lusitano, com a “lusitanidade”: aqui o deputado mostra rejeição a uma posição, por assim dizer, “identitária” ou nativista, reafirmando a importância da mistura em seu luso-tropicalismo. No entanto, para Freyre seria preciso evitar também o destino de os brasileiros se tornarem habitantes de “casa de pensão poliglota”: com isso ele rejeita uma ideia de simples convivência multicultural, traçando como limite ao pluralismo a manutenção do lastro cultural luso-brasileiro. Há, pois, a rejeição tanto a uma excessiva lusitanidade como a um excessivo, por assim dizer, multiculturalismo.
Essas linhas mestras de sua concepção de nacionalidade e imigração apresentada na Constituinte de 1946 se mantêm coerentemente nas suas colunas semanais à revista O Cruzeiro, mas com a vantagem agora de o autor aplicar frequentemente essas teses a casos concretos, como a imigração japonesa. Pesquisando suas colunas, sob a rubrica “Pessoas, coisas e animais”, da primeira aparição na edição de 18 de setembro de 1948 até a edição de 25 de outubro de 1958, quando sua coluna é interrompida por um ano, há apenas um texto tratando especificamente da imigração japonesa. Outros textos a citam passageiramente a título exemplificativo de um argumento mais amplo, mas já nos ajudam a entender como a presença japonesa no Brasil se insere no pensamento freyreano.
É no artigo “Nem antissírio, nem antijaponês” [grafia atualizada] da edição de 21 de novembro de 1953, que temos a apreciação mais longa sobre os japoneses nas páginas de Freyre em O Cruzeiro. Após tratar dos imigrantes sírios, responde carta enviada, nas palavras dele, por um “inteligente brasileiro de origem japonesa que me escreve de São Paulo perguntando-me se considero indesejável para a nação brasileira a imigração japonesa” (Cruzeiro, 21 nov. 1953: 48). A resposta de Freyre é bastante direita: “De modo algum: considero-a sob vários aspectos valiosíssima para o desenvolvimento nacional” (Cruzeiro, 21 nov. 1953: 48). Aqui já se nota uma intersecção com o seu discurso na Constituinte de 1946, quando ele já afirmava a importância da recepção de uma pluralidade de imigrantes, não apenas por um interesse humanitário, mas também em vista do desenvolvimento nacional.
Na sequência, porém, o sociólogo traz uma importante ressalva, demonstrando ainda uma grande insegurança em relação à brasilidade desses imigrantes. “O que me repugna em certos grupos japoneses é a tendência para se constituírem entre nós em minorias irredutíveis de raça e cultura, criando problemas ao Brasil que devem ser evitados a tempo” (Cruzeiro, 21 nov. 1953: 48). Aqui Freyre ecoa uma crítica essencial da campanha antiniponista tanto em 1934 como em 1946: a tese do enquistamento dos japoneses no Brasil. Embora o autor pernambucano não chegue aos extremos da tese da inassimilabilidade (defendida dentre outros por Miguel Couto Filho4 4 . Couto Filho afirma, por exemplo, em relação à pretensa incapacidade de japoneses se assimilarem: “os seus filhos serão sempre brasileiros de alma amarela, com os quais a Pátria jamais poderá contar” (Brasil, 1946, Livro 20: 186-187). ) nem generalize essa tendência a todos os japoneses (especifica como sendo “certos grupos”) sugere, ainda assim, a necessidade de medidas para que os problemas oriundos dessa tendência sejam “evitados a tempo”. Essa posição é coerente com o que já vimos de seus discursos parlamentares, em que ele defende uma assimilação em favor do lastro de cultura luso-brasileira e rejeita a situação de “casa de pensão poliglota”. Na mesma coluna, ressalta o caráter “fusionista” da nacionalidade brasileira: “O que me inquieta é a tendência para alguns desses subgrupos permanecerem – como outrora certos subgrupos alemães em Santa Catarina – inteiramente japoneses numa terra cujo sistema nacional de organização e de cultura está baseado no mais franco fusionismo” (Cruzeiro, 21 nov. 1953: 48).
Em síntese, para Gilberto Freyre, a imigração japonesa é “valiosíssima ao desenvolvimento nacional”, mas, culturalmente, os imigrantes precisariam se integrar mais ao caráter fusionista da formação nacional brasileira, abandonando a tendência de certos grupos restarem como “minorias irredutíveis”. Com isso o autor não quer defender o apagamento da cultura japonesa e uma assimilação stricto sensu à brasilidade. Novamente coerente com 1946, o que ele advoga é uma assimilação de caráter pluralista, fundindo-se os elementos da cultura japonesa ao lastro cultural luso-brasileiro: “Sou dos que deseja ver a cultura brasileira fecundada pela japonesa. A gente brasileira, colorida pelo contato com o japonês, vigorosa e eugênica” (Cruzeiro, 21 nov. 1953: 48). É esse, pois, o sentido do fusionismo defendido por Freyre: rejeita tanto o extremo da manutenção de uma cultura brasileira intocada quanto o extremo de uma “minoria irredutível” isolada, preservando sua cultura.
Uma exposição semelhante aparece em 1956, mas agora delimitando melhor a contribuição específica de diferentes influências, entre elas a japonesa, para a nacionalidade brasileira. Em comentário a ensaio do crítico literário paranaense Wilson Martins, Freyre rejeita a ideia “de que há um Brasil teuto-brasileiro em pé de igualdade com um Brasil luso-brasileiro” (Cruzeiro, 21 abr. 1956: 42h). Distinguindo a influência portuguesa de outras influências, observa que, enquanto os alemães e outros grupos levariam de fato à formação de “sub-Brasis regionais”, o elemento português seria transregional, constituinte de um “trans-Brasil”. Os sub-Brasis regionais poderiam ser “o de população e cultura predominantemente alemãs ou o de população e cultura predominantemente italianas ou o de população e cultura predominantemente japonesas”, mas a língua seria “do Norte ao Sul do País, a portuguesa” e, “se o Brasil é um só, como Nação, o elemento que lhe dá unidade à cultura é o elemento lusitano” (Cruzeiro, 21 abr. 1956: 42h). A população de ascendência japonesa – assim como a alemã e italiana – representaria, assim, uma influência regional formadora de sub-Brasis – “subcultura, dentro da cultura nacional brasileira”, como dirá em outro texto (Cruzeiro, 30 ago. 1958: 40) –, mas a unificação como nação brasileira seria operada pela influência portuguesa. Esse é o lugar que Freyre reserva aos japoneses (e a outros grupos imigrantes) na formação social do Brasil.
Que essa interpretação não é apenas uma constatação da preponderância portuguesa, mas contém também um sentido programático, demonstra-o uma coluna de 1958. Nela considera “interessantíssimo” o plano de organizar um congresso teuto-brasileiro a fim de conhecer as influências alemãs na formação do Brasil – recomenda até que se seguissem outros congressos: “ítalo-brasileiro e nipo-brasileiro, por exemplo” (Cruzeiro, 30 ago. 1958: 40).5 5 . Nota-se, em diferentes momentos da década de 1950, a constante referência conjunta a esses três grupos imigrantes, o que sugere que Freyre entenda essas imigrações dentro de um mesmo processo de influência para a formação nacional brasileira, embora reconheça frequentemente a maior proximidade da vertente italiana à luso-brasileira. Para ele, esses congressos poderiam contribuir para o estudo da “transculturação em que, do encontro de valores germânicos com brasileiros, vêm surgindo novos valores” (Cruzeiro, 30 ago. 1958: 40). Mas novamente afasta o paralelismo entre o teuto-brasileiro e o luso-brasileiro, sublinhando agora o sentido político dessa distinção: “a ideia de se fazer do teuto-brasileiro – ou do ítalo-brasileiro ou do nipo-brasileiro – equivalente do luso-brasileiro é ideia que repugna a todo bom brasileiro aceitar, como politicamente sã ou sociologicamente válida” (Cruzeiro, 30 ago. 1958: 40). Freyre, assim, não apenas constata uma influência maior e mais sistemática da cultura portuguesa na sociedade brasileira, mas revela aqui uma preferência por essa influência.
Embora o autor rejeite, como vimos, os extremos da assimilação ou da permanência como “minoria irredutível”, há um notável viés para o polo assimilacionista. O pensamento de Freyre aparenta conceber a nacionalidade brasileira como a síntese do encontro de diferentes povos, mas, na verdade, ele busca principalmente salientar o lastro cultural português como sendo a base para o caráter plural, mestiço e miscigenado da nacionalidade brasileira. É como se ele dissesse que o Brasil é plural porque é de origem lusitana. Até mesmo o preconceito racial existente no país seria, para Freyre, algo estrangeiro à tradição luso-brasileira. Ele admite em diversas colunas a existência desses preconceitos no país – e já o fazia inclusive em 1946, defendendo a criminalização do racismo – mas sinaliza em alguns momentos que isso viria “da parte de brasileiros brancos ou quase-brancos ainda mal integrados na tradição luso-brasileira de democracia racial” (Cruzeiro, 26 abr. 1952: 10, destaque meu).
Dentro desse objetivo de valorização das raízes lusitanas, são constantes as comparações da colonização portuguesa com outras formas de colonização. Afirma, por exemplo, que o sistema nacional de cultura brasileira “é lusitano e como lusitano é que se distingue dos demais sistemas de europeização da América: o espanhol, o inglês, o francês.” (Cruzeiro, 5 mar. 1955: 36). Essas comparações têm pelo menos dois objetivos. Por um lado, visam enaltecer como de raiz portuguesa a pretensa “solução brasileira”6 6 . Para Freyre, o Brasil assumiria “cada dia maior importância como experiência e, talvez, como exemplo” (Cruzeiro, 27 out. 1951: 10). dos conflitos étnicos e raciais, algo particularmente prestigiado após o trauma nazifascista e em relação aos sistemas de segregação racial ainda existentes e sob crescente crítica na década de 1950. Por outro lado, visam auxiliar ideologicamente o governo de Oliveira Salazar no esforço de manutenção das possessões coloniais portuguesas do além-mar, avaliando positivamente a colonização portuguesa. É nesse segundo sentido que ele afirma, por exemplo, que:
a cultura lusíada ou a gente lusitana, já misturada fraternalmente a povos e culturas da Índia, do Oriente, da África, da América, se dá mostras no Oriente e na África de uma vitalidade que falta à holandesa ou à inglesa nas mesmas áreas, é por ter se tornado uma cultura híbrida: luso-tropical. [...] O português como extra-europeizando-se desde os começos de sua expansão nos trópicos, há já longo tempo adota uma atitude antes “portuguesa” que europeia para com as populações de cor, com as quais vem confraternizando. Com elas e com as suas culturas (Cruzeiro, 12 dez. 1953: 44).
Esses dois objetivos são identificados também por Guimarães (2019Guimarães, Antonio. (2019), "A democracia racial revisitada". Afro-Ásia, n. 60, pp. 9-44.: 41), em seu estudo acerca da expressão “democracia racial”, que, “no contexto da Guerra Fria, serviu à permanência do colonialismo português na África, ao mesmo tempo que era usada, no Brasil, para contrastar as práticas racistas nos Estados Unidos ou na África do Sul com as relações raciais brasileiras”.
Iria além dos objetivos deste texto explorar em detalhes todas as consequências dessa faceta do pensamento freyreano, mas há um aspecto fundamental que se conecta diretamente ao nosso tema: trata-se de sua restrição em relação a certos grupos migratórios para o Brasil por serem pretensamente incompatíveis, justamente, com a tendência fusionista, “cordial” e “democrática” que ele interpreta existir na sociedade brasileira com sua cultura luso-tropical. Essas restrições se dirigem a imigrantes negros norte-americanos e a holandeses mestiços da Ásia, além de certos grupos de imigrantes japoneses.
Em coluna de 1953, relata um questionamento recebido durante uma palestra nos EUA no final da década de 1940. Um intelectual negro norte-americano pergunta a opinião de Freyre a respeito da entrada de imigrantes negros no Brasil. Em sua resposta, sublinha o caráter aberto do Brasil para todos aqueles indivíduos, de diferentes raças e credos, que “fossem dignos [...] de concorrerem para o desenvolvimento nacional”, mas logo depois traz uma sugestiva ressalva:
Sendo o Brasil uma sociedade ainda em formação, precisava estar atento a elementos que, mesmo involuntariamente, pudessem perturbar o sentido não só democrático como cordial dessa formação. Os norte-americanos de cor poderiam, se admitidos no Brasil, tornar-se elementos perturbadores do sentido cordial de convivência humana, característico do Brasil (Cruzeiro, 10 mar. 1953: 18).
Assim, embora valorize a contribuição plural de diferentes povos para o desenvolvimento do país, questiona e mostra preocupação com o encaixe de certos grupos ao “sentido democrático” e “cordial” que ele interpreta existir na formação social do Brasil. Trata-se de um argumento semelhante ao dirigido aos japoneses, que seriam “valiosíssimos” ao desenvolvimento nacional, mas por vezes avessos, em sua visão, ao fusionismo brasileiro. Uma diferença importante na apreciação de Freyre da imigração japonesa, por um lado, e da imigração de negros norte-americanos, por outro, é que, no caso daquela, Freyre “repugna” a tendência de alguns restarem como “minorias irredutíveis”, enquanto, no caso desta, ele considera possível tornarem-se esses imigrantes “elementos perturbadores” do status quo supostamente “cordial” e “democrático” do Brasil. Ao primeiro, “repugnaria” a tendência de não se misturar; ao segundo, preocuparia a possibilidade de “perturbar” a formação brasileira.
Essa mesma preocupação, o sociólogo tem em relação à imigração de holandeses mestiços da Indonésia. No mesmo artigo citado acima, considera que, devido ao “desdém sistemático” do holandês branco, “a não ser por exceção, o mestiço de holandês e oriental é um ressentido e até um revoltado contra o pai ou antepassado branco”, podendo “ser portadores de atitudes e ressentimentos que não convêm ao Brasil”. Com isso, porém, Freyre não defende a proibição da entrada de holandeses mestiços ou de “mestiços de anglo-saxões e africanos vindos dos Estados Unidos”, mas defende que seja uma imigração restrita, “em pequeno número e considerados, em cada caso, os antecedentes do indivíduo desejoso de integrar-se na comunidade brasileira” (Cruzeiro, 10 mar. 1953: 18).
Em outro artigo de 1954, voltando ao tema dos holandeses da Indonésia, deixa ainda mais clara sua posição. Conviria a entrada apenas de “pequenos grupos de técnicos ou peritos em assuntos de agricultura ou economia tropical”, podendo “ser valiosíssimos para o Brasil” (Cruzeiro, 16 jan. 1954: 44). Mas, em grupos maciços, essa imigração poderia tornar-se “uma perturbação para a democracia étnica que aqui se desenvolve graças à preponderância do elemento hispânico, completado pelo italiano,7 7 . Aqui fica clara a posição particular da imigração italiana no pensamento freyreano. na formação nacional do Brasil” (Cruzeiro, 16 jan. 1954: 44). Em conclusão, defende que é necessário “reforçar o lastro hispânico – especialmente o lusitano e o galego”, sugerindo inclusive que o “suprimento de víveres frescos” poderia ser feito por “horticultores madeirenses”, da possessão portuguesa da Ilha da Madeira, considerados por ele “ideais nesse gênero de lavoura” (Cruzeiro, 16 jan. 1954: 44).
Freyre não esconde, assim, sua preferência por certas correntes migratórias que reforcem o lastro hispânico, luso-tropical, e sua restrição em relação a outras, que não se mostrariam muito compatíveis ao chamado “fusionismo” brasileiro. Se Pacheco e Silva buscara na biologia, na hereditariedade e na formação da “raça” os fundamentos de suas preferências e oposições a esse ou aquele grupo migrante, Freyre a buscou na sociologia, na miscigenação e na formação da civilização luso-tropical. Conquanto exista, na passagem de um para outro autor, o fim de uma visão determinista sobre o destino e o impacto da imigração japonesa na sociedade brasileira, a análise dos trabalhos do sociólogo pernambucano na Constituinte e na revista O Cruzeiro revela, porém, uma complexa configuração conceitual para ainda se privilegiar certas imigrações e não outras.
O destino das representações da imigração japonesa no debate político da década de 1950: à guisa de conclusão
Embora no campo intelectual surjam novas interpretações, buscando superar essas análises mais ensaísticas sobre a imigração japonesa – com destaque para os estudos de campo iniciados por Emílio Willems ainda na década de 1940 (Cf. Baldus, Willems, 1941; Willems, Saito, 1947; Willems, 1948Willems, Emílio. (1948), "Aspectos da aculturação dos japoneses no Estado de São Paulo". Antropologia, n. 3, Boletim 82. São Paulo.) –, a influência de Freyre nos debates políticos e parlamentares sobre a presença japonesa no Brasil é notável ao longo de toda a década de 1950, ainda que seu mandato tivesse durado apenas uma legislatura (1946-1950). Durante a comemoração do Cinquentenário da Imigração Japonesa no Brasil, em 1958, muitos discursos no Congresso Nacional traziam aspectos da interpretação freyreana em suas homenagens. Esse é o caso, por exemplo, do deputado paulista Yukishigue Tamura – o primeiro descendente de japoneses no Congresso Nacional, eleito em 1954. Durante a visita de parlamentares japoneses ao Rio de Janeiro, como parte dos festejos, Tamura dirige longo discurso ressaltando as qualidades do Brasil para com os imigrantes:
Vossas Exas. visitam pela primeira vez o Brasil, que deu demonstração segura e inigualável de ser um dos países mais democráticos do globo, ao receber em seu seio correntes migratórias de todas as partes do mundo e ao permitir se sentissem os imigrantes tão bem aqui quanto em sua terra (Câmara, 1958Câmara. (1958), Diário do Congresso Nacional - Câmara dos Deputados. Rio de Janeiro, Imprensa Nacional. Disponível em: http://imagem.camara.gov.br/pesquisa_diario_basica.asp. Acesso em: 5 fev 2020.
http://imagem.camara.gov.br/pesquisa_dia... , Diário 97: 4465).
Convida a delegação japonesa para que veja “de perto como o Brasil recebe os imigrantes, como eles estão felizes aqui” (Câmara, 1958Câmara. (1958), Diário do Congresso Nacional - Câmara dos Deputados. Rio de Janeiro, Imprensa Nacional. Disponível em: http://imagem.camara.gov.br/pesquisa_diario_basica.asp. Acesso em: 5 fev 2020.
http://imagem.camara.gov.br/pesquisa_dia...
, Diário 97: 4465). Utiliza a sua própria trajetória até o Congresso Nacional como evidência dessas características “democráticas” da sociedade brasileira: “Realmente, no Brasil não existe preconceito de raça, nem preconceito religioso ou político. O Brasil foi o único país do mundo, nestes noventa anos de história da imigração japonesa [em diversos países], capaz de ter um representante na mais alta Corte legislativa.” (Câmara, 1958Câmara. (1958), Diário do Congresso Nacional - Câmara dos Deputados. Rio de Janeiro, Imprensa Nacional. Disponível em: http://imagem.camara.gov.br/pesquisa_diario_basica.asp. Acesso em: 5 fev 2020.
http://imagem.camara.gov.br/pesquisa_dia...
, Diário 97: 4465). O congressista faz aqui, ainda que implicitamente, uma comparação com outro importante destino da imigração japonesa: os EUA, que naquele momento ainda não havia eleito um parlamentar de ascendência nipônica8
8
. Isso, porém, aconteceria justamente em 1958, com a eleição de Daniel Inouye, herói da Segunda Guerra Mundial, ativista pela transformação do Havaí em Estado e eleito na primeira leva de representantes havaianos no Capitólio, em Washington.
e era foco de importantes movimentos contra a segregação racial.
Essa comparação com os EUA era corrente no Parlamento brasileiro e seguia de perto as comparações de Freyre entre a formação brasileira e outras formações não lusitanas. Herbert Levy, por exemplo, um deputado paulista, ao justificar o requerimento de homenagem à imigração japonesa em nome da Câmara dos Deputados, apresenta o caso do pelotão norte-americano formado por descendentes de japoneses, como forma de evidenciar a capacidade dessa corrente imigrante de ser, em suas palavras, “plenamente integrada na defesa dos interesses do país, como uma parte ativa, útil e saudável de nossa população” (Câmara, 1958, Diário 81: 3706). Ressalta na sequência, porém, algumas qualidades da sociedade brasileira em relação à estadunidense.
Está claro que não gabo o mal gosto de se constituírem somente de niseis determinadas unidades militares. Nós, no Brasil – vamos dizer com franqueza – tolerantes e muito mais compreensivos no plano humano, social e político do que muitas nações, mais desenvolvidas, não fazemos distinção seja nos quadros do Exército – onde se confraternizam e confundem brasileiros de todas origens raciais, de todos os credos e classes – seja em outros ramos de atividade (Câmara, 1958Câmara. (1958), Diário do Congresso Nacional - Câmara dos Deputados. Rio de Janeiro, Imprensa Nacional. Disponível em: http://imagem.camara.gov.br/pesquisa_diario_basica.asp. Acesso em: 5 fev 2020.
http://imagem.camara.gov.br/pesquisa_dia... , Diário 81: 3706).
Mas, se o ideário luso-tropicalista cumpria um papel nas homenagens festivas à imigração japonesa, também o fazia na exposição de persistentes desconfianças contra essa imigração. O deputado pernambucano Lima Filho é, nesse aspecto, o que mais se aproxima dos marcos conceituais de Freyre em sua forma original – inclusive com menção à “civilização luso-brasileira”. Tal como o sociólogo, considera a imigração japonesa problemática justamente no ponto em que ela se distancia do “fusionismo” brasileiro, ou seja, no fato de que “ela não se conforma com o tipo de civilização luso-brasileira que aqui se vem mantendo durante quatrocentos anos” (Câmara, 1958Câmara. (1958), Diário do Congresso Nacional - Câmara dos Deputados. Rio de Janeiro, Imprensa Nacional. Disponível em: http://imagem.camara.gov.br/pesquisa_diario_basica.asp. Acesso em: 5 fev 2020.
http://imagem.camara.gov.br/pesquisa_dia...
, Diário 108: 5012). Conquanto não faça um discurso abertamente contrário à imigração japonesa, como fazia Pacheco e Silva, ainda põe em dúvida a compatibilidade dessa imigração à formação social brasileira.
Em sentido semelhante, o deputado cearense Colombo de Souza vê com desconfiança a vinda de membros da família imperial nipônica durante os festejos da imigração japonesa, bem como a vinda de sacerdotes budistas. “O essencial é que, por assim dizer, eles esqueçam a mãe-pátria e adotem o Brasil como sua pátria para todos os efeitos” (Câmara, 1958Câmara. (1958), Diário do Congresso Nacional - Câmara dos Deputados. Rio de Janeiro, Imprensa Nacional. Disponível em: http://imagem.camara.gov.br/pesquisa_diario_basica.asp. Acesso em: 5 fev 2020.
http://imagem.camara.gov.br/pesquisa_dia...
, Diário 108: 5013). A despeito de esses parlamentares adotarem um assimilacionismo mais radical que o de Freyre, já que eles em nenhum momento defendem que seja a “cultura brasileira fecundada pela japonesa” como fazia o autor pernambucano, ainda assim, há uma confluência dos parlamentares com o sociólogo no que se refere à necessidade de maior integração dos japoneses à “mistura racial”, ao “melting-pot” e ao “fusionismo brasileiro”. Em uma fórmula sintética, Colombo de Souza afirma, por exemplo: “Vamos ficar atentos a fim de impedir que novos fatos se passem, porque o Brasil tem de permanecer como os seus maiores o plantaram. O Brasil não é preto nem branco. O Brasil é café com leite, é mistura racial, é democracia racial” (Câmara, 1958Câmara. (1958), Diário do Congresso Nacional - Câmara dos Deputados. Rio de Janeiro, Imprensa Nacional. Disponível em: http://imagem.camara.gov.br/pesquisa_diario_basica.asp. Acesso em: 5 fev 2020.
http://imagem.camara.gov.br/pesquisa_dia...
, Diário 90: 4145). Em fins da década de 1950, algumas dúvidas presentes em Freyre quanto à imigração japonesa reapareciam, pois, no Poder Legislativo.
A estratégia adotada pelo deputado Yukishigue Tamura diante desses discursos de desconfiança no Congresso Nacional foi enumerar diversas evidências da integração dos japoneses e seus descendentes à sociedade brasileira. Cita, por exemplo, inúmeros dados sobre a produção agrícola dessa população no Brasil, bem como os potenciais na indústria, no comércio e nas profissões liberais. Cita também a presença de descendentes brasileiros nas Forças Armadas (inclusive no oficialato), em diferentes posições da Administração Pública e em diversos níveis da política nacional (inclusive na Câmara dos Deputados, citando, como já vimos, a si mesmo como exemplo). Mas, de longe, a sua principal estratégia defensiva é salientar a hospitalidade brasileira, destacar que todas essas evidências arroladas de integração só foram possíveis graças ao caráter pretensamente aberto e sem preconceitos da sociedade brasileira. Da análise deste artigo, já fica claro o caráter ideológico dessa afirmação, pois ela se sustenta no esquecimento das diferentes iniciativas de restrição e tentativas de proibição da imigração japonesa no Brasil. Ela depende não apenas do ostracismo, mas do apagamento de certas ideias sobre a imigração japonesa, como aquelas externadas em 1934 pelo constituinte Pacheco e Silva, de tal modo que elas pareçam nunca ter existido. Nos discursos parlamentares da década de 1950, o Brasil é como que readequado para se encaixar, por meio de ênfases e apagamentos, na interpretação freyreana.
Esse lugar da imigração japonesa, como evidência ideológica da pretensa ausência de preconceitos no Brasil, não aparece apenas nos discursos festivos de 1958, em que é esperado uma postura mais diplomática de minimização ou esquecimento dos conflitos do passado. No ano seguinte, após denúncia de Afonso Arinos de Melo Franco de que estaria havendo um recrudescimento do racismo no Estado de São Paulo, o senador paulista Auro de Moura Andrade sobe à tribuna para defender com veemência que “São Paulo jamais praticou qualquer discriminação” (Senado, 1959, Livro 5: 446).
Considera particularmente injusta, no discurso de Arinos, a caracterização de São Paulo como um caso particular de discriminação devido à presença volumosa de estrangeiros de diferentes correntes migratórias. Chama essa tese de “desnacionalização do Estado de São Paulo”: “Por ser a unidade da Federação que mais recebeu imigrantes de outras terras, São Paulo se estaria desfigurando, [na visão de Arinos,] perdendo a natureza brasileira e permitindo a permanência de sentimentos estrangeiros dentro de sua vida real” (Senado, 1959Senado. (1959), Anais do Congresso Nacional - Senado Federal. Rio de Janeiro, Imprensa Nacional. Disponível em: https://www.senado.leg.br/publicacoes/anais/asp/RP_ AnaisRepublica_digitalizados.asp. Acesso em: 5 jan 2022.
https://www.senado.leg.br/publicacoes/an...
, Livro 5: 447). Tanto Arinos como Andrade seguem de perto a sociologia freyreana, na medida em que ambos entendem o racismo como algo estrangeiro ao complexo luso-tropical. Para o senador paulista, São Paulo seria, no entanto, como que um modelo para ser seguido pelo Brasil no processo de absorção, integração e nacionalização dos estrangeiros. A maior prova disso seria, para ele, a corrente imigratória japonesa – descrita pelo senador com grande ênfase nos seus aspectos idiossincráticos e exóticos, estrangeiros à brasilidade.
Não temos o exemplo da raça amarela? Japoneses vieram para São Paulo como imigrantes, falando língua que ninguém entendia, um idioma remoto, asiático, distante, para o qual não havia sequer intérprete; essa raça, totalmente diversa na cor, nas características físicas, no semblante, nos olhos, de religião completamente diferente, tão distante dos princípios do Cristianismo, vindo de outras tradições, trazendo costumes milenares para uma Nação nova que surgia, praticamente, não poderia viver no novo ambiente. Não tinham como comunicar-se pela palavra, nem pela religião; não tinham como adaptar-se pela cultura, nem pela tradição, nem pelos princípios universais que pudessem possuir. Não havia qualquer universalidade para a vida daqueles colonos, que desembarcavam, em grandes avalanches, no Porto de Santos (Senado, 1959Senado. (1959), Anais do Congresso Nacional - Senado Federal. Rio de Janeiro, Imprensa Nacional. Disponível em: https://www.senado.leg.br/publicacoes/anais/asp/RP_ AnaisRepublica_digitalizados.asp. Acesso em: 5 jan 2022.
https://www.senado.leg.br/publicacoes/an... , Livro 5: 447).
O fato de um tal grupo idiossincrático estar se integrando à sociedade brasileira seria mérito e evidência da capacidade de absorção do povo paulista. “São Paulo, no entanto, soube absorvê-los, soube recebê-los e com eles tratar; [...]; e, demonstrando não ter discriminações raciais, elegeu Deputados Estaduais e Federais filhos diretos de pai e mãe japoneses (Senado, 1959Senado. (1959), Anais do Congresso Nacional - Senado Federal. Rio de Janeiro, Imprensa Nacional. Disponível em: https://www.senado.leg.br/publicacoes/anais/asp/RP_ AnaisRepublica_digitalizados.asp. Acesso em: 5 jan 2022.
https://www.senado.leg.br/publicacoes/an...
, Livro 5: 447).
Como que invertendo Arinos, Moura Andrade faz São Paulo aparecer não mais como um caso anômalo das pretensas tendências racialmente democráticas da sociedade brasileira, mas como um dos artífices mais importantes no processo de abrasileiramento e absorção das diferentes raças, culturas e religiões no Brasil. Se em Arinos a manutenção do complexo lusitano estava ameaçada por culpa de São Paulo, em Moura Andrade, na verdade, a conservação desse complexo se daria graças a São Paulo. Nesse laboratório étnico paulista, o experimento japonês figurava como o mais vistoso modelo dessa vocação assimilacionista e integracionista do Estado.
O aspecto ideológico dessa interpretação é o mesmo verificado acima: em 1959, Moura Andrade apagava os episódios ainda então recentes da década de 1940 de grande turbulência na relação da sociedade brasileira com a imigração japonesa. A idiossincrasia de japoneses e descendentes, que tanta dúvida produziu na década de 1940 – dúvidas que, como as externadas por Pacheco e Silva, chegavam mesmo à constituição biológica dessa população –, surgia, apenas uma década depois, como uma espécie de trunfo: a progressiva inserção de uma população tão diferente do mainstream brasileiro parecia demonstrar definitivamente a capacidade de absorção do povo paulista e a ausência de preconceitos no Brasil.
Em síntese, viu-se neste artigo, da perspectiva privilegiada dos intelectuais políticos Pacheco e Silva e Gilberto Freyre, as transformações da reputação da imigração japonesa no Brasil e das constelações discursivas em torno dela. Se a imigração japonesa era vista por Pacheco e Silva como inadequada no nível biológico para uma saudável formação da população brasileira, o próprio psiquiatra parece se distanciar dessa tese na década de 1950 ao elogiar as iniciativas de pesquisa da Unesco e ao silenciar-se quanto ao tema migratório. Se Freyre desde o início recusa uma interpretação determinista quanto ao efeito da imigração japonesa na sociedade brasileira, não deixa ainda assim de nutrir certa desconfiança e desconforto com tendências supostamente segregacionistas da população de ascendência nipônica. O desafio a esse resquício de dúvidas sobre a imigração japonesa parece partir dos políticos paulistas que, sem se afastar da tese fundamental freyreana, pelo contrário, para sustentá-la, afirmam a integração e assimilação de japoneses e seus descendentes ao caldeirão brasileiro. A imigração japonesa passava a figurar ideologicamente como uma espécie de evidência dos discursos da hospitalidade dos brasileiros e da ausência de preconceitos no Brasil.
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Notas
-
1
. Prova disso é o seguinte aparte de Leite durante o discurso de Freyre: “V. Ex.ª está fazendo um discurso memorável” (Brasil, 1946Brasil. (1946), Anais da Assembleia Constituinte de 1946. 26 volumes. Rio de Janeiro, Imprensa Nacional. Disponível em: https://www.senado.leg.br/publicacoes/anais/asp/RP_AnaisRepublica_ digitalizados.asp. Acesso em: 1 set 2021.
https://www.senado.leg.br/publicacoes/an... , Livro 13:199). -
2
. Vale ressaltar, porém, que a oposição à imigração japonesa era tão forte em agosto de 1946, que mesmo Aureliano Leite, embora rejeitando a emenda 3.165, mostra-se contrário à imigração japonesa durante o encaminhamento da votação da emenda: “Não sou favorável à imigração japonesa; ao contrário, sou contra ela, no momento. Acho, porém, iníquo incluir esse dispositivo no texto constitucional” (Brasil, 1946Brasil. (1946), Anais da Assembleia Constituinte de 1946. 26 volumes. Rio de Janeiro, Imprensa Nacional. Disponível em: https://www.senado.leg.br/publicacoes/anais/asp/RP_AnaisRepublica_ digitalizados.asp. Acesso em: 1 set 2021.
https://www.senado.leg.br/publicacoes/an... , Livro 23: 73). -
3
. Com Freyre como segundo signatário, a emenda seria aprovada e passaria a constar no artigo 129, inciso IV, da Constituição de 1946. Até mesmo hoje, na Constituição de 1988 em vigor, sobrevive o espírito da proposta de Leite e Freyre, ampliada para originários de países lusófonos (ver art. 12, II, a, CF/1988 – Brasil, 1988Brasil. (1988), Constituição da República Federativa do Brasil de 1988. Brasília.).
-
4
. Couto Filho afirma, por exemplo, em relação à pretensa incapacidade de japoneses se assimilarem: “os seus filhos serão sempre brasileiros de alma amarela, com os quais a Pátria jamais poderá contar” (Brasil, 1946, Livro 20: 186-187).
-
5
. Nota-se, em diferentes momentos da década de 1950, a constante referência conjunta a esses três grupos imigrantes, o que sugere que Freyre entenda essas imigrações dentro de um mesmo processo de influência para a formação nacional brasileira, embora reconheça frequentemente a maior proximidade da vertente italiana à luso-brasileira.
-
6
. Para Freyre, o Brasil assumiria “cada dia maior importância como experiência e, talvez, como exemplo” (Cruzeiro, 27 out. 1951: 10).
-
7
. Aqui fica clara a posição particular da imigração italiana no pensamento freyreano.
-
8
. Isso, porém, aconteceria justamente em 1958, com a eleição de Daniel Inouye, herói da Segunda Guerra Mundial, ativista pela transformação do Havaí em Estado e eleito na primeira leva de representantes havaianos no Capitólio, em Washington.
-
*
A pesquisa para este artigo teve o apoio da Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo (processo n.º 2017/25367-5 – Fapesp e processo n.º 2021/07202-4 – Bepe-Fapesp). Uma versão preliminar do artigo foi apresentada no GT30 – Pensamento Social no Brasil, do 45º Encontro Anual da Associação Nacional de Pós-Graduação e Pesquisa em Ciências Sociais (Anpocs)
Datas de Publicação
-
Publicação nesta coleção
17 Maio 2024 -
Data do Fascículo
Abr 2025
Histórico
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Recebido
21 Dez 2021 -
Recebido
17 Jan 2023 -
Aceito
27 Mar 2023