Resumo
Neste artigo, discutimos a representação da situação de rua nas notícias sobre políticas públicas veiculadas no portal Folha de S. Paulo (FSP) entre 2011 e 2013. Nosso objetivo é refletir sobre como essas representações influenciam na percepção do problema social como foco da ação pública e sua pauta na agenda pública. Para isso, mapeamos 105 textos tematizando políticas públicas dos 460 coletados sobre a situação de rua. O material foi explorado com o auxílio do software NVivo. Com base nos estudos críticos do discurso, investigamos, principalmente, quais vozes são convocadas para falar sobre/por essa população e como o grupo é avaliado nesse contexto temático. A análise permite sustentar que a representação da situação de rua é preconceituosa, e sugerir que essa visão pode contribuir para a definição de políticas públicas higienistas e sua aceitação social.
Palavras-chave: Políticas públicas; Jornalismo eletrônico; População em situação de rua; Análise de discurso crítica
ABSTRACT
In this paper, we discuss the representation of homelessness in the news about public policies published in the Folha de S. Paulo (FSP) portal between 2011 and 2013. Our objective is to reflect on how these representations influence the perception of the social problem as the focus of public action and its agenda in the public agenda. For this, we have mapped 105 texts on public policies of the 460 collected on homelessness. To analyse this corpus, we have used the software NVivo. Based on critical discourse studies, we mainly investigate which voices are summoned to speak about / in the name of this population and how the group is evaluated in this thematic context. The analysis allows to conclude that the representation of homelessness is prejudiced and to suggest that this vision can contribute to the definition of hygienist public policies and their social acceptance.
Keywords: Public policies; Online journalism; Homeless population; Critical discourse analysis
Introdução
Este artigo apresenta resultados parciais do projeto de pesquisa “Representação midiática da violação de direitos e da violência contra pessoas em situação de rua no jornalismo on-line” (CNPq 304075/2014-0), realizado entre 2015 e 2018, que teve como objetivo geral mapear e analisar representações da violação de direitos e da violência contra pessoas em situação de rua na produção discursiva dos portais de notícias de três jornais de abrangência nacional - Folha de S. Paulo, O Globo e Correio Braziliense. É também abordagem inicial para o projeto “Representação de políticas públicas para população em situação de rua como gestão do território: metáforas espaciais na Folha de S. Paulo”, embora aqui os dados não sejam focalizados pelas lentes da metáfora como categoria central de análise.
Nossa coleta de dados foi realizada por meio de um mapeamento abrangente de todos os textos publicados entre 2011 e 2013, que resultaram das buscas pelas palavras-chave “morador(a)(es) de rua”, “pessoa(s) em situação de rua” e “população (em situação) de rua” nos três portais. Para este trabalho, concentramo-nos em textos publicados no portal da Folha de S. Paulo (FSP). Os 460 textos coletados desse portal foram indutivamente divididos em 11 temas: ação social (13), acidentes (9), divulgação artística (18), drogas (24), frio e chuva (37), histórias de vida (38), manifestações (23), políticas públicas (105), violação de direitos (13), violência (112) e outros temas (58). Todos os textos foram codificados utilizando ferramentas do pacote QDA NVivo 11 Pro.
As análises que apresentamos aqui priorizaram os 105 textos publicados na FSP sobre políticas públicas, a fim de buscar respostas para as seguintes questões: (1) Quais são as vozes convocadas a falar sobre/por essa população nas notícias sobre políticas públicas? (2) Como a população em situação de rua é avaliada nesse contexto temático? (3) Quem são os atores sociais que mais avaliam a população em situação de rua nesse mesmo contexto? Para este artigo, limitamo-nos às análises realizadas por meio do software, não realizando análise discursiva fina.
Este artigo está dividido em quatro seções, além desta introdução e das considerações finais. Na primeira seção, contextualizamos a situação de rua no Brasil e em São Paulo, justificando a pesquisa discursiva desse problema social, abordado no contexto da ordem global capitalista. Em seguida, destacamos algumas medidas de políticas públicas implantadas no Brasil, que colocaram os direitos das pessoas em situação de rua na agenda pública. Na terceira seção, discutimos por que os estudos críticos do discurso podem fornecer subsídios para investigar a construção discursiva de representações, de identificações e de relações sociais em textos midiáticos. Na quarta e última seção, mostramos como os dados foram organizados no software e apresentamos as análises panorâmicas desse corpus de 105 textos, que a ferramenta computacional nos permitiu fazer. Por fim, apresentamos nossas considerações finais.
1. A situação de rua no Brasil e em São Paulo
Assim como a pobreza existe desde tempos remotos, a situação de rua tampouco é exclusividade da colonial-modernidade3. No período classificado como pré-moderno, eram indivíduos com transtornos mentais, andarilhos, viajantes e exilados (Pereira 2008). Com a industrialização e a urbanização, o número de pessoas nas ruas da Europa aumentou, e a situação de rua tornou-se cada vez mais uma questão urbana, distinta da pobreza no campo. Aponta-se como principal motivo para o crescimento da pobreza nas cidades a situação de camponeses/as obrigados/as ao êxodo. Muitas pessoas expulsas de latifúndios e terras comuns por métodos violentos foram para as cidades. Lá, viram-se impossibilitadas de pagar os preços dos aluguéis e de trabalhar, já que o número de vagas nas indústrias era limitado. Dessa forma, ficavam pelas ruas e assim eram convertidos/as em pessoas em situação de rua.
No Brasil, o processo de empobrecimento e a situação de rua no período em que o país-colônia fez a transição do sistema escravocrata para o capitalismo assemelhou-se ao caso da Europa, mantendo sistêmicas as violências caracterizadoras de um e outro regime. O Rio de Janeiro despontou como o principal centro industrial e foi onde as populações empobrecidas e racializadas mais chamaram a atenção: ali, práticas higienistas começaram a ser aplicadas com o objetivo declarado de modernizar e urbanizar o país - e de lucrar com aluguel e renda de habitações após a exclusão de populações empobrecidas das zonas centrais.
O processo de industrialização do país foi intensificado, principalmente entre as décadas de 1950 e 1980. Os anos 80 destacaram-se pela promulgação da Constituição da República (1988), que tratou a questão da pobreza como fundamental, e pelo início da democracia neoliberal, marcada pelos efeitos a que a “privatização sem limites conduz: descapitalização nacional, subconsumo das maiorias, desemprego, empobrecimento da oferta cultural” (Canclini 1999: 92).
Na década de 1990, as reformas implementadas com foco na privatização impactaram diretamente no agravamento da situação de rua, quadro que perdura até os dias de hoje, apesar dos esforços da primeira década e meia dos anos de 2000 em políticas de redistribuição de renda. Observadas outras nações, e inclusive as do capitalismo central, o crescimento da população em situação de rua é um processo mundial.
No Brasil, um dos principais estudos sobre a população em situação de rua, e que norteou a implantação das primeiras políticas públicas nacionais voltadas para essa população, foi realizado, em 2008, pelo Ministério de Desenvolvimento Social e Combate à Fome (Brasil 2008). A pesquisa nacional identificou 31.922 pessoas vivendo nas ruas, mas considerou apenas 71 municípios brasileiros. As capitais São Paulo, Brasília e Belo Horizonte, por exemplo, não foram incluídas.
Em 2016, o Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea) divulgou o relatório “Estimativa da População em Situação de Rua no Brasil”, no qual aponta 101.854 pessoas vivendo em situação de rua no país (Ipea, 2016). Na cidade de São Paulo, o censo realizado pela Fundação Instituto de Pesquisas Econômicas da Universidade de São Paulo (Fipe/USP)4 entre fevereiro e março de 2015 sustenta que a população em situação de rua na cidade cresceu 10% nos últimos quatros anos. Ao todo, de acordo com essa pesquisa, seriam 15.905 pessoas em situação de rua na capital paulista.
O estudo da Fipe/USP também mapeou a distribuição espacial da população em situação de rua na cidade de São Paulo e apontou aumento significativo dessa população em Santa Cecília e grande redução na República. Entre os distritos de áreas não centrais, em Jabaquara, Cambuci, Freguesia do Ó e Cidade Dutra, foi registrado significativo aumento da população em situação de rua. A região da Sé foi destacada com o maior número de pessoas vivendo nas ruas: 3.863, em 2015.
Embora existam pesquisas pontuais, esse segmento populacional sempre foi tratado como invisível pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) - embora seja excessivamente visível aos olhos da polícia e da justiça (Resende 2017). Todos os censos demográficos já realizados deixaram de fora a população em situação de rua, pois a coleta de dados é baseada nos domicílios. No próximo censo, em 2020, existe a expectativa de o Instituto incluir o grupo, depois de muitos anos de pressão por parte do Movimento Nacional da População em Situação de Rua (MNPR; ver Santos 2017). A esperada inclusão da população em situação de rua no censo, contudo, ainda não está garantida, por alegadas questões metodológicas.
A falta de conhecimento, principalmente das especificidades e das necessidades dessa população, é um dos problemas que dificultam a implantação efetiva de políticas públicas específicas. Se a população em situação de rua é invisível para as políticas demográficas e de acolhimento, é, por outro lado, excessivamente visível para as forças de ordem pública, sendo as políticas repressivas e higienistas frequentemente observadas, especialmente na cidade de São Paulo.
2. Políticas públicas: conquistas morosas e retrocessos
A Constituição Federal de 1988 determina a igualdade de todos e todas perante a lei e a garantia de direitos sociais. Trinta anos após sua promulgação, uma expressiva parcela da população brasileira não acessa, sem luta, grande parte dos direitos previstos na Lei Maior. Sem acesso aos direitos básicos e essenciais à vida digna, a população em situação de rua sofre a ausência de políticas públicas e o descaso social.
Esse grupo populacional começou a contar com uma legislação que lhe garantisse assistência social apenas em 2005, com a Lei 11.258, que dispõe sobre a criação, no sistema de assistência social, de programas específicos para pessoas que vivem em situação de rua. Em 2009, com a assinatura do Decreto 7.053, foi instituída a Política Nacional para População em Situação de Rua e seu Comitê Intersetorial de Acompanhamento e Monitoramento (CIAMP-Rua), que assim caracteriza a população em situação de rua:
grupo populacional heterogêneo que possui em comum a pobreza extrema, os vínculos familiares interrompidos ou fragilizados e a inexistência de moradia convencional regular, e que utiliza os logradouros públicos e as áreas degradadas como espaço de moradia e de sustento, de forma temporária ou permanente, bem como as unidades de acolhimento para pernoite temporário ou como moradia provisória (Brasil 2009 Art. 1º Parágrafo Único).
A política é considerada uma conquista inédita ao colocar os direitos das pessoas em situação de rua, em definitivo, na agenda pública. Nesse caminho, houve a criação dos Consultórios de Rua e dos Centros de Referência Especializados para a População em Situação de Rua (Centros Pop), com o objetivo de “contribuir para restaurar e preservar a integridade e a autonomia da população em situação de rua”.
No entanto, a maior parte dos municípios do Brasil demorou a aderir à Política Nacional para a População em Situação de Rua. Conforme o Plano Municipal de Políticas para População em Situação de Rua de São Paulo5, elaborado em 2016, o município adotou os princípios, as diretrizes e os objetivos estabelecidos no Decreto nº 7.053 em maio de 2013. Só então foi criada a Coordenação de Políticas para População em Situação de Rua e, sob sua gestão, o Comitê Intersetorial da Política Municipal para População em Situação de Rua - Comitê PopRua.
Apesar da lentidão no cumprimento do Decreto nº 7.053, São Paulo é considerada uma cidade pioneira na execução de políticas públicas de assistência social. Editou a primeira medida de caráter assistencial em 1997. A Lei nº 12.316 dispõe sobre a obrigatoriedade do poder público municipal em prestar atendimento à população em situação de rua, determinando também que compete à Secretaria Municipal de Assistência Social estabelecer prioridade de demandas. Em 2001, o Decreto nº 40.232 definiu a realização do censo da população em situação de rua e, além da contagem censitária, incluiu a necessidade de caracterização amostral de seu perfil socioeconômico. Em 2015, foi criado o Centro Público de Direitos Humanos e Economia Solidária, que visa fomentar a criação de cooperativas, e o Programa Operação Trabalho PopRua, focado na geração de renda.
Contudo, a partir de 2017, uma guinada à direita no executivo municipal renovou as forças das políticas higienistas e securitárias. É o caso da edição do Decreto nº 57.581, de 2017, que modifica o Decreto nº 57.069, de 2016, ao dispor sobre os procedimentos de zeladoria urbana quanto à abordagem das pessoas em situação de rua. Entre as alterações, estão a permissão de retirada de bens sem consultar a pessoa em situação de rua e a realização das ações de zeladoria em qualquer dia da semana e horário, sem necessidade de aviso prévio direto. A medida anterior estabelecia que não houvesse apreensão de bens como cobertores, travesseiros e colchões, e proibia as ações aos finais de semana e fora do horário de expediente normal do serviço público, ou sem ampla divulgação prévia à população6.
Embora a situação de rua esteja na pauta de alguns governos, ainda é geralmente tratada com descaso, e o mesmo se observa na atuação da mídia jornalística, que reforça uma representação pejorativa do grupo. Essa é mais uma forma de violência agregada a tantas outras que sofre esse segmento populacional (Resende e Ramalho 2017). O discurso midiático muitas vezes banaliza, distorce fatos ou filia-se diretamente a perspectivas preconceituosas, influenciando a maneira como se percebe e se reage à precarização da vida nas cidades. Em geral, as distorções ocorrem por relações de poder enraizadas, contribuindo para a reprodução discursiva da desigualdade social. As produções jornalísticas podem ser identificadas como um local de discurso, e por isso é útil investigá-las sob a ótica da análise de discurso crítica.
3. Análise de discurso crítica
A análise de discurso crítica (ADC) propõe analisar a estrutura de textos, a fim de compreender construções ideológicas presentes e o funcionamento de textos na manutenção de relações baseadas em abuso de poder (van Dijk 2015). Segundo Resende (2012: 101), o objetivo é “desvelar discursos e ideologias que sustentem estruturas de dominação”. Na definição de van Dijk (2001: 352), os estudos críticos do discurso referem-se a:
um tipo de investigação analítica do discurso que estuda principalmente as formas como o abuso de poder social, a dominação e a desigualdade são conquistados, reproduzidos e contestados, por meio de textos, no contexto social e político. Com esse tipo de investigação, analistas de discurso críticos/as assumem posição explícita e, portanto, pretendem compreender, expor e, finalmente, resistir à desigualdade social.
Assim, a ADC analisa o uso da linguagem para investigar problemas sociais, entendendo que não há como pensar a linguagem fora da sociedade, e vice-versa. Para van Dijk (2009), muitas formas de poder contemporâneo devem ser definidas como poder simbólico, isto é, em termos de acesso preferencial ou de controle sobre o discurso público.
Na ADC, o discurso é concebido como parte de toda prática social, instrumento de representação e de significação do mundo (Fairclough 2001). Desse modo, o discurso é constitutivo do social, funcionando como meio de ação (sobre o mundo e os outros), de representação (da experiência) e de identificação (de si e dos outros a estilos particulares de ser). Sendo a linguagem parte de toda estrutura, na forma de semiose; de toda prática social, na forma de ordem do discurso; e de todo evento social, na forma de texto, as relações de linguagem-sociedade são internas, a linguagem interiorizando e realizando traços de outros elementos das estruturas, práticas e eventos (Chouliaraki e Fairclough 1999).
Neste artigo, a análise da representação de pessoas em situação de rua quanto a ações e políticas públicas toma um corpus de notícias do portal da FSP, considerando as práticas discursivas (que incluem condições de produção, distribuição e consumo) e as práticas sociais situadas. Ao produzir textos, que são parte do resultado de eventos sociais, o uso situado da linguagem tem efeitos causais, gerando mudanças em nosso conhecimento sobre o mundo e, consequentemente, em nossas crenças e atitudes a respeito desse mundo (Fairclough 2003; van Dijk 2014).
Quando o jornalismo online filia-se a perspectivas preconceituosas a respeito da situação de rua, dispersa com longo alcance discursos que desumanizam esse segmento populacional (Resende e Ramalho 2017; Resende e Gomes 2018). O baixo grau de humanidade atribuído a certas identidades define a negação ontológica de que nos fala Fanon (2015), a sub-alteridade. Para Benedito (2017), é preciso pensar nos corpos torturáveis: aqueles a serem disciplinados, dominados, domesticados, castigados. Esses corpos são também os corpos de pessoas em situação de rua (Resende 2017). Assim, domestica-se também uma sociedade civil tolerante com o “holocausto diário” das grandes cidades (Malaguti Batista 2017).
Essa violência também se exerce pela linguagem. Há, nesse âmbito, da violência epistêmica, a subrepresentação, a impossibilidade de autorrepresentação e também a vinculação de certos grupos a discursos preconceituosos e avaliações pejorativas. Diante disso, e compondo um corpus de 450 notícias publicadas na FSP, nos perguntamos: como esse jornal online cruza os temas da situação de rua e das políticas públicas nos 105 textos em que essa temática foi central?
4. Organização e análise dos dados
Nosso corpus de textos publicados pela FSP entre os anos de 2011 e 2013 é composto por 450 textos, dos quais 105 tematizam políticas públicas e são foco deste artigo. Coletamos os textos por meio de busca no portal da FSP, utilizando os argumentos “morador de rua”, “moradores de rua”, “moradora de rua”, “população de rua” e “situação de rua”.
Para organizar o material, utilizamos o Qualitative Solution Reserch NVivo 11Pro, um software desenvolvido com o intuito de facilitar a coleta, a organização e a análise de conteúdos diversos (texto, imagem, vídeo) em pesquisas qualitativas. Todos os textos da FSP foram agrupados por temas: ação social, acidentes, divulgação artística, drogas, frio e chuva, histórias de vida, manifestações, políticas públicas, violação de direitos, violência e outros temas, considerando as principais temáticas encontradas no corpus7. Criamos, então, pastas para essa separação temática dos dados, que também foram classificados em termos desses temas delimitados inicialmente. Neste artigo, concentramos as análises nas notícias da pasta de políticas públicas. Dos 105 textos sobre políticas públicas no intervalo considerado, 20 foram publicados em 2011, 42, em 2012 e 43, em 2013.
Após estabelecermos as pastas temáticas, organizamos as categorias de análise, que envolveram aspectos textuais, com inspiração nos estudos críticos do discurso. Criamos as seguintes categorias (chamadas nós, nos termos do NVivo): intertextualidade e fontes jornalísticas, modos de avaliação de pessoas em situação de rua, modos de referência a pessoas em situação de rua e modos de representação de pessoas em situação de rua. Com a criação desses nós, nosso objetivo foi identificar quais grupos sociais têm espaço de fala quando se trata de representar a situação de rua no jornal, como pessoas em situação de rua são referidas e avaliadas nesses casos e de que forma aparecem representadas, individual ou coletivamente. No recorte que abordamos neste artigo, essas questões são restringidas aos textos em que ações e políticas públicas são tematizadas.
O nó de cada categoria analítica foi indutivamente preenchido de seus sub nós por meio da leitura dos textos e de sua codificação. Em seguida, realizamos mapeamentos cruzados (matrizes de codificação) para investigar contextos específicos. Nas subseções, a seguir, apontamos resultados de matrizes no que se refere (1) às vozes convocadas a falar sobre situação de rua e políticas/ações públicas no jornal e às avaliações que se articulam a essas vozes; (2) aos modos de representação e referência a pessoas em situação de rua no corpus; (3) à frequência de palavras e ao padrão de colocação com “foram”.
4.1. Intertextualidade e avaliação: mapeamentos com matrizes de codificação
Mapeamos, primeiro, quem são os atores que falam sobre políticas públicas nos textos de nosso corpus. O governo é a fonte mais acionada: foram 203 codificações relacionadas a vozes de representantes do governo. Em seguida, aparecem vozes de ativistas e religiosos (52 codificações), de moradores e trabalhadores locais (49), de especialistas (44), de pessoas em situação de rua (34), vozes da lei (36), de empresários (23) e da polícia (14). Outras vozes tiveram representação mínima, e assim optamos por nos concentrar nessas mais frequentes.
O fato de o governo falar mais sobre ações e políticas públicas não nos surpreende, mas sim o fato de ser acionado quase seis vezes mais que a população em situação de rua. Isso porque a parte mais interessada na formulação de políticas públicas é quem delas necessita e cujas demandas e apreciações deveriam ser observadas. São as pessoas em situação de rua, detentoras de conhecimento vivencial, que podem, realmente, apontar suas necessidades e avaliar as políticas disponíveis e as ações públicas executadas.
Jornalistas também consideraram ativistas e religiosos fontes sobre o assunto, pois é a segunda voz mais frequente nas notícias analisadas. Como esses/as ativistas, em geral, atuam em movimentos a favor da população em situação de rua, pode-se especular que jornalistas tendam a considerá-los como representantes desse grupo populacional, e, efetivamente, acionam essas vozes com mais frequência que as vozes dos coletivos e movimentos sociais que, de fato, congregam a população em situação de rua. Essa escolha pode ser um indicativo da tutela (ou infantilização) dessa população na cobertura jornalística. Como há outras pessoas que parecem representar os interesses da população em situação de rua, o resultado é que esta última pouco se autorrepresenta nos textos. A esse respeito, van Dijk (2015) lembra que o acesso das minorias aos meios massivos de comunicação é limitado, estereotipado, negativo, mas crucial para sua participação na definição pública de sua situação.
É preciso considerar, então, os fatores que levam jornalistas a recorrer a uma fonte ou a outra. Para Pena (2008), a fonte de qualquer informação nada mais é do que a subjetiva interpretação de um fato. Lage (2008), que classifica as fontes em oficiais, oficiosas e testemunhais, considera as fontes oficiais as mais tendenciosas. Nessa categoria, estão governos, institutos, empresas, associações e demais organizações. “Têm interesses a preservar, informações a esconder e beneficiam-se da própria lógica do poder que as coloca na clássica condição de Instituição” (Pena 2008: 62). Das fontes levantadas em nossos dados, e organizadas na tabela 1, três vozes podem ser associadas a esta categoria (polícia, lei e governo), e juntas somam mais da metade das articulações intertextuais nesse corpus. As fontes oficiosas, para Lage (2008), referem-se às pessoas que falam pelas fontes oficiais sem estarem autorizadas ou que não têm nenhum vínculo direto com o assunto, isto é, trata-se de fontes independentes. Ativistas, religiosos e especialistas podem ser incluídos nessa categoria, embora em alguns casos vozes de ativistas e religiosos possam ser consideradas também no rol das fontes oficiais8. Outra categoria é a fonte testemunhal, mas nunca esquecendo que todo testemunho é apenas uma perspectiva de um fato, jamais sua exata e fiel representação (Lage 2001). No caso das notícias que analisamos, as fontes testemunhais mais frequentes são moradores/as locais, trabalhadores/as locais e empresários/as. Essas fontes, em nosso corpus, geralmente emitem testemunhos da perspectiva de quem se incomoda com a presença da população em situação de rua, mas sem ter vivenciado jamais essa situação, que é testemunhada direta e vivencialmente apenas nas vozes das próprias pessoas em situação de rua. As vozes acessadas como fontes por jornalistas acabam sendo empoderadas, transmitindo “sutilmente” (algumas vezes nem tanto) certas posições sociais e ideológicas.
Realizamos outro cruzamento, visando mapear as avaliações de pessoas em situação de rua emitidas nas notícias que abordam ações e políticas públicas. Cruzamos a pasta sobre políticas públicas com o nó modos de avaliação de pessoas em situação de rua e obtivemos a matriz a seguir. Foram 58 avaliações, das quais apenas três avaliações positivas: alegres, gentis e solidários. As pessoas em situação de rua foram avaliadas como indesejáveis (11); perigosas (13); viciadas (6); vítimas (4); invisibilizadas (4); abandonadas (2); bangunceiras (2); doentes (2) e usuárias de drogas (2). Outras avaliações negativas também apareceram nas codificações, com uma referência, como ilustra a tabela a seguir.
Juntas, as avaliações de pessoas em situação de rua como perigosas e indesejáveis somam mais da metade dos casos de avaliação explícita no corpus, o que serve de indicativo para o tipo de representação privilegiado na FSP e também para o tipo de abordagem das notícias sobre ações e políticas públicas, especialmente quando já sabemos que a tematização de ações higienistas é frequente. Obviamente, avaliações depreciativas recorrentes acabam por servir de reforço e justificativa para operações de “remoção” e de restrição do espaço público e do direito à cidade.
Uma vez mapeadas as vozes que se utilizam como fontes jornalísticas nesses textos e as avaliações que se fazem presentes, interessou-nos mapear também os cruzamentos entre esses dois nós, ou seja, essas avaliações são articuladas nas notícias como parte da representação de outras vozes ou são assumidas pela voz jornalística autoral? Para isso, cruzamos o nó intertextualidade e fontes jornalísticas com o nó modos de avaliação de pessoas em situação de rua. Das 58 avaliações, 35 foram articuladas às relações intertextuais mapeadas, mas 23 foram feitas na voz autoral jornalística.
Perigosas, por exemplo, que foi uma avaliação com 13 ocorrências, conforme mostramos na tabela 2, foi articulada nas vozes de moradores e trabalhadores locais, com seis referências, e de empresários, da polícia, de especialistas, do governo e de pessoas em situação de rua, com uma avaliação cada. Duas, portanto, foram avaliações implicadas da própria voz autoral, sendo que uma dessas referências ocorreu num editorial9, ou seja, texto que expressa a opinião do jornal, em que são desenvolvidos os argumentos que o jornal defende editorialmente. No outro texto10, o jornalista vincula a situação de rua à insegurança. Dessa forma, sociedade e Estado podem entender que a situação de rua deveria ser entendida como questão para políticas securitárias, e não questão de garantia de acesso a direitos sociais.
A avaliação “perigosas” realizada na voz de pessoa em situação de rua aponta a força do discurso dominante. Nesse caso, a pessoa reconhece (e nega, ver a seguir) esse discurso que reforça sentidos negativos sobre si mesma. A notícia é sobre um “confronto” entre manifestantes e a Guarda Civil Metropolitana (GCM) no Centro de São Paulo, em que a GCM pretendia “retirar” manifestantes que ocupavam uma calçada após a reintegração de posse do prédio em que moravam11. Com a reintegração, a fonte entrevistada declarou: “decidimos sair para não levar borrachada à toa e para que as pessoas não pensem que somos bandidos e traficantes”. Assim, a avaliação “perigosas” é evocada (em “bandidos e traficantes”) do discurso dominante que a pessoa entrevistada nega no pressuposto ativado em “não pensem que”.
A análise panorâmica possibilitada pelo NVivo apontou ainda que empresários e moradores e trabalhadores locais são os dois grupos que mais avaliam negativamente a população em situação de rua. De acordo com a pesquisa “Os Donos de Negócio no Brasil”, do DataSebrae, o estado de São Paulo conta 4,9 milhões de empresários12. O poder e a influência dessa categoria fazem com que muitos trilhem também o caminho político. São Paulo, por exemplo, elegeu João Dória (PSDB), um empresário, para administrar a cidade e, posteriormente, o Estado. A atuação dele em termos de políticas e ações públicas dirigidas à população em situação de rua deixa ver consonância com as relações que traçamos aqui. Basta ver as modificações que seu governo municipal fez ao Decreto 57.069, de 2016. Na gestão anterior, o decreto regulava “os procedimentos e o tratamento à população em situação de rua durante as ações de zeladoria urbana”. O novo decreto (57.581, de 2017) altera o anterior, estabelecendo foco em políticas securitárias, em detrimento de ações voltadas à humanidade de pessoas em situação de rua (para uma discussão das mudanças textuais entre um e outro decreto, ver Resende 2017).
4.2. Modos de representação e de referência: mapeamentos com matrizes de codificação
Como os discursos que prevalecem nos meios massivos de comunicação representam interesses da classe dominante, detentora desses mesmos meios, isso explica a presença de empresários/as manifestando-se e defendendo seus interesses e os das entidades que representam. Algumas de suas falas merecem serem destacadas em termos dos modos de representação e de referência que articulam: “Esses mendigos têm mais é que trabalhar”, “Os moradores de rua atrapalhavam seu negócio”, “A chegada dos mendigos trouxe risco à segurança, como furtos e outros crimes”, “Todo dia um bando diferente. As pessoas têm medo de andar na rua, são abordadas, ameaçadas”, “Muitos desses moradores de rua têm antecedentes criminais e são viciados em crack”, dentre outras avaliações sustentadas em discursos de incômodo e de risco.
Observamos nas falas destacadas a representação coletiva da população em situação de rua. A representação é generalizante, no plural. O mapeamento dos modos de representação de pessoas em situação de rua nos textos sobre políticas públicas mostra-nos que a representação coletiva é muito mais frequente: teve 297 referências, enquanto a individual, 54. Nesse sentido, a referência como “um bando” é de ressaltar, pois sugere que não importa quem são as pessoas e reforça o caráter coletivo da representação. A definição dicionarizada de “bando” evidencia seu caráter negativo na representação da população em situação de rua: “1-Grupo de pessoas para um fim comum; 2-Ajuntamento de aves ou outros animais; 3-Grupo de indivíduos que percorrem a localidade anunciando uma festa ou espetáculo público; 4-Rancho, fação, partido; 5-Companhia de malfeitores; 6-Tropa de indisciplinados”. Assim, a referência como “bando” reforça os discursos de incômodo (“indisciplinados”) e de risco (“malfeitores”) a que a FSP frequentemente associa suas representações da população em situação de rua.
Na adaptação que faz das categorias de representação de atores sociais de van Leeuwen (2008), Resende (2015b) enfatiza a relevância, para estudos da representação da população em situação de rua, da representação por generalização e da representação por funcionalização, quando atores sociais são representados em termos de uma atividade, como “viciados em crack”, ou de uma ocupação, como “catador”; por impessoalização, quando o grupo é representado de modo impessoal pelas supostas consequências de sua presença: por exemplo, insegurança (“furtos”, “crimes”, “antecedentes criminais”), e por abstração, quando atores sociais são representados por meio de uma qualidade a eles atribuída, por exemplo a qualidade de serem considerados “um problema”. Na avaliação por empresários, o grupo é referido por meio do substantivo abstrato “risco” e a qualidade é a de “atrapalharem” e de “serem ameaçadores”, ou seja, ‘indesejáveis’ e ‘perigosos’.
Outra categoria de análise que adotamos é o modo de referência a pessoas em situação de rua. “Morador/a/es de rua” são as principais referências, com 298 citações, seguidas de “população de rua”, com 19. A alta frequência desses modos de referência já era esperada, tendo em vista nossos argumentos de busca, e, portanto, este não é um resultado analítico relevante, em que pese sua densidade relativa. Mais relevantes são os resultados de referências como “sem-teto”, com 15 ocorrências; “mendigo”, com 12; “andarilhos”, com seis, e “miseráveis”, com cinco, além da referência pelo nome, que chamou a atenção. Pessoas em situação de rua foram citadas pelo nome próprio 23 vezes.
A referência pelo nome ocorre quando é dada voz a pessoas em situação de rua. Nesses casos, na maioria das vezes, elas fazem relatos sobre dificuldades para sobreviver e sobre os albergues, o que permite sua individualização, abrindo espaço para a singularidade de sua experiência. Na contramão dessa constatação, contudo, é interessante mencionar a reportagem “Morador de rua é levado da Sé para tenda precária em São Paulo”13. Pela manchete, a expectativa é de que vamos encontrar uma abordagem sobre o homem identificado no singular, mas não. Trata-se de cobertura de operação da prefeitura para “remover” pessoas acampadas na Praça da Sé, em que elas foram encaminhadas para uma tenda sem água, luz e estrutura para recebê-las. O/A jornalista apenas escolheu um personagem, mas não o ouviu, só o citou entre as outras pessoas que padeciam da mesma ação pública. Não teve espaço de fala, o qual foi dado apenas para a Secretaria Municipal de Assistência e Desenvolvimento Social. Embora o homem tenha sido identificado e referido no singular, ainda assim predominou a generalização.
Como mostramos na tabela 3, houve poucas referências à população em situação de risco (1) e população vulnerável (4). Quando ocorreram, estavam relacionadas a centros de atendimentos, que incluíam a assistência a pessoas em situação de rua. As mesmas matérias também faziam referência ao grupo como “andarilhos”, “sem-teto” e “moradores de rua”. Os jornais preferem usar esses termos, tomados como sinônimos, a referir pessoas “em situação de risco” e “vulneráveis”, termos que confeririam uma representação mais explanatória da situação de rua. Isso porque expõem, por um lado, o vínculo à transitoriedade da situação e, por outro, a vulnerabilidade social que demanda atenção pública. Além disso, “andarilhos” ativa uma conotação quase romântica, e “sem-teto” eterniza essa condição de carência.
Em uma notícia sobre treinamento de pessoas em situação de rua para atuar como guias de turismo, a palavra vulnerabilidade aparece entre aspas no seguinte trecho: “A ideia do projeto é requalificar pessoas em situação de ‘vulnerabilidade social’ para que elas possam voltar ao mercado de trabalho”14. O sinal gráfico é usado para exprimir ironia, para associar o dito a uma voz externa ou para destacar uma expressão fora do contexto habitual. Na frase destacada, não há como justificar a utilização do recurso. No entanto, ao lançar mão das aspas, o/a jornalista parece duvidar da vulnerabilidade do público-alvo do projeto, o que ativa uma avaliação implícita.
4.3. Nuvem e árvore de palavras: mapeamentos com pesquisa de texto
Além das matrizes de codificação, o software utilizado na pesquisa oferece outros recursos de análise. Com o uso da ferramenta “frequência de palavras”, identificamos os termos mais recorrentes nas notícias sobre políticas públicas. As palavras mais frequentes são apresentadas sob a forma de uma “nuvem de palavras”. A nuvem de palavras que geramos exibe os 50 termos mais frequentes, com mais de quatro letras, na pasta de políticas públicas. O tamanho das letras usadas para as palavras e sua localização mais ou menos centralizada na nuvem indicam a frequência relativa de ocorrência de cada vocábulo nas notícias do corpus. Neste caso, “moradores”, “prefeitura”, “pessoas”, “disse” e “saúde” foram, nessa ordem, as palavras mais recorrentes. A palavra “moradores”, normalmente, vem acompanhada por “de rua”, sendo que essa palavra não aparece na nuvem porque a busca foi limitada a palavras com quatro letras ou mais.
“Prefeitura”, a segunda palavra mais recorrência, remete à voz a que mais se atribui espaço de fala nas notícias. Não por acaso, também observamos a presença de “secretaria” e de “ministério”, órgãos governamentais que também foram fontes de muitas notícias, como já era esperado na temática de políticas públicas. A articulação dessas (e de outras) vozes está atrelada à presença de verbos de dizer (“disse”, “diz”, “afirma”, “afirmou”) na nuvem gerada: e assim, “disse” é a quarta palavra mais recorrente.
“Pessoas” foi usada em diversas situações, sendo a maioria em referência a pessoas em situação de rua. Já “saúde” é a palavra mais reveladora que aparece na nuvem, pois liga a situação de rua a problema de saúde pública. As palavras “tratamento”, “crack”, “cracolândia”, “usuários” e “drogas”, mesmo em tamanho menor, também são representativas e sugerem, nesse corpus, a vinculação da situação de rua à drogadição, um aspecto de “saúde”. A vinculação é sistêmica na imprensa, mas a situação de rua vai muito além de questões de saúde/drogadição. Envolve também demandas por políticas habitacionais, de trabalho e emprego, educacionais e de acesso aos direitos sociais de modo amplo. Habitação e moradia, por exemplo, não aparecem na nuvem, o que gera surpresa em um corpus de notícias sobre políticas públicas voltadas à situação de rua. Mesmo no aspecto especificamente ligado à drogadição e à demanda que essa questão faz a políticas de saúde, pode-se perguntar o quanto as intervenções no centro de São Paulo são efetivamente políticas, visando à saúde da população, ou mais diretamente políticas securitárias que beneficiam muito mais a especulação imobiliária que a população diretamente atingida por essas políticas e ações públicas.
A ferramenta “frequência de palavras” também aponta que a palavra “santa” aparece 31 vezes no corpus. Uma ocorrência se refere ao polo comercial Santa Efigênia; três, às unidades de saúde Santa Casa e Santa Marcelina; e duas, ao estado de Santa Catarina. Todas as outras estão relacionadas ao bairro de Santa Cecília, na região central de São Paulo, que, segundo o estudo da Fipe/USP, registrou aumento significativo da população em situação de rua nos últimos anos. As notícias que fazem referências ao bairro são sobre a polêmica gerada pela instalação de um centro social para pessoas em situação de rua. De um lado, moradores/as, empresários/as e trabalhadores/as locais, e de outro, pessoas em situação de rua e grupos assistenciais ligados à Igreja (veja uma discussão desse caso específico em Resende 2015a).
O verbo “foram” também é frequente no corpus: apareceu 78 vezes. Há presença de sujeito gramatical relacionado a substantivos concretos, como “grades”, “chuveiros”, “casas e prédios”, “gradil e as plantas”, “chapas de metal” e “serviços de saúde”; entretanto, na maioria das ocorrências, o sujeito gramatical refere-se a pessoas em situação de rua, como mostra a árvore de palavras a seguir (para melhor visualização, dividimos a árvore em duas partes):
As pessoas em situação de rua aí representadas sofrem ações de serem abandonadas, ameaçadas, recolhidas, conduzidas, mortas, levadas, encaminhadas, retiradas, removidas e devolvidas. Segundo Resende (2017), essas são ações de controle e vigilância às quais pessoas em situação de rua estão sujeitas. Nesse caso, sua objetificação é clara em ocorrências com “recolhidas”, “retiradas”, “devolvidas”. Há apenas uma ocorrência de “foram” com ação de atendimento e nenhuma com palavras que indiquem acolhimento. Assim, as ações públicas, conforme representadas na FSP, não oferecem proteção ou conforto físico, e estão muito mais no campo da remoção e do controle de populações. O foco das ações representadas é a gestão do espaço público, sem garantia, à população em situação de rua, de seus direitos sociais básicos.
Considerações finais
Neste artigo, analisamos a representação da situação de rua em notícias sobre políticas públicas veiculadas no portal Folha de S. Paulo, entre 2011 e 2013. Com base nos estudos críticos do discurso, investigamos quais vozes são convocadas a falar sobre/por essa população nas notícias sobre políticas públicas e como a população em situação de rua é avaliada nesse contexto temático. Além disso, buscamos as vozes que mais avaliam a população em situação de rua no mesmo contexto. Nosso objetivo foi refletir sobre como esse veículo jornalístico cruza os temas da situação de rua e das políticas públicas, a fim de compreender a percepção da situação de rua como foco da ação pública e sua pauta na agenda pública.
As análises panorâmicas proporcionadas pela ferramenta analítica utilizada mostraram que a população em situação de rua é silenciada e pouco se autorrepresenta para falar sobre suas próprias demandas por ação pública. Os interesses de pessoas em situação de rua são representados, muitas vezes, por ativistas e religiosos, mas muito raramente por seus movimentos organizados - isso mostra-se ainda mais relevante quando sabemos que a coordenação do Movimento Nacional da População em Situação de Rua (MNPR) tem atuante gestão na capital paulista. O governo tem lugar de fala garantido para tratar de políticas públicas, mas, enquanto, na teoria, preza-se pela gestão participativa, contando com vários setores da sociedade (como no caso da Política Nacional mencionada), a imprensa parece buscar uma única voz, ou somente a voz dominante. Em que pese a rotina das redações, o fato é que quando se consultam apenas as fontes de “praxe” e “acessíveis”, limita-se o debate, o que pode provocar prejuízos para a sociedade, notadamente na incompreensão da complexidade envolvida na situação de rua como questão social mais abrangente.
As análises apontam também que as pessoas em situação de rua foram avaliadas, principalmente, como “perigosas” e “indesejáveis”. Essas representações são naturalizadas nas redações e reproduzidas para as leitoras e leitores que consomem as notícias, muitas vezes sem refletir sobre os estereótipos ali expostos. Como resultado, tem-se a reprodução da imagem negativa das pessoas em situação de rua, o agravamento do preconceito e do quadro de violação de seus direitos sociais.
Também chamou atenção o fato de empresários/as serem os atores em cuja atribuição de vozes mais se mapeiam avaliações negativas de quem vive em situação de rua. O grupo social é influente em vários setores, tanto que muitos colocam-se na linha de frente da política, como citamos o caso de João Dória, em São Paulo. Também não é por acaso que os Estados Unidos elegeram Donald Trump presidente, um ‘empreendedor de sucesso’, dono de uma das maiores fortunas de seu país - transformando, como no caso do paulista, capital econômico em capital político. Aqui, no Brasil, empresários/as mobilizam-se para estruturar uma rede capaz de influenciar o cenário político, como é o movimento RENOVA. O grupo, que se incomoda com a presença de pessoas em situação de rua e as julga como perigosas, movimenta-se pela questão econômica, mas não pela pauta social.
Diante desse cenário, podemos afirmar que a frequência de vozes empresariais e seu escopo avaliativo indicam a natureza mais economicamente motivada das ações públicas dirigidas à população em situação de rua - de retirada, em políticas de gentrificação que atendem a interesses imobiliários na área central de São Paulo e adjacências, o que a nuvem e a árvore de palavra realizadas nesse corpus também apontam.
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3
. O termo colonial-modernidade faz referência aos estudos decoloniais desenvolvidos, por exemplo, nos trabalhos de Aníbal Quijano (2000), Walter Mignolo (2003), Enrique Dussel (2005), Catherine Walsh (2009), Yuderkys Espinosa (2012), Rita Segato (2018), entre outros/as (esses nomes estão associados, respectivamente, aos conceitos de colonialidade do poder; pensamento liminar; transmodernidade; interculturalidade, feminismo decolonial e violência). Entender a modernidade como colonial-modernidade implica reconhecer que a modernidade europeia só foi possível graças à exploração colonial, e portanto só se pode pensar o conceito de modernidade ao lado do conceito de colonialidade.
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4
. Disponível em: <http://www.prefeitura.sp.gov.br/cidade/secretarias/upload/assistencia_social/observatorio_social/2015/censo/FIPE_smads_CENSO_2015_coletivafinal.pdf>. Acesso em: 8 fev. 2018.
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5
. Disponível em: <http://www.prefeitura.sp.gov.br/cidade/secretarias/upload/direitos_humanos/Plano%20PopRua.pdf>. Acesso em: 26 fev. 2018.
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6
. Uma análise das alterações no Decreto 57.069 pelo Decreto 57.581 é apresentada em Resende (2017).
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7
. Outros dois veículos noticiosos online foram estudados na pesquisa de que este artigo é recorte: o Correio Braziliense e O Globo. No caso desses dois jornais, a classificação temática foi feita em apenas cinco temas: drogas, políticas públicas, violação de direitos, violência e outros temas (Ramalho 2017). O corpus da FSP é mais complexo em vários sentidos: muito mais extenso, mais diverso em termos de multimodalidade, mais variado também nas temáticas que articula recorrentemente.
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8
. Por exemplo, quando se trata de vozes de padres que falam institucionalmente pela igreja católica, e especialmente quando se trata de membros atuantes da Pastoral do Povo da Rua, que certamente apresentam vínculo com a situação de rua.
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9
. Trata-se do texto “Liberdade para o vão”, publicado em 1º de dezembro de 2013. Disponível em: <http://www1.folha.uol.com.br/opiniao/2013/12/1379082-editorial-liberdade-para-o-vao.shtml>.
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10
. Além do editorial, a outra notícia que tem avaliação implicada do jornalista é: “Centro Social para morador de rua provoca discórdia em Santa Cecília”, publicado em 4 de junho de 2013. Disponível em: <http://www1.folha.uol.com.br/cotidiano/2013/06/1289361-centro-social-para-morador-de-rua-provoca-discordia-em-santa-cecilia.shtml>.
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11
. Trata-se do texto “GCM e manifestantes entram em confronto na região central”, publicado em 5 de fevereiro de 2012. Disponível em: <http://www1.folha.uol.com.br/cotidiano/2012/02/1044259-gcm-e-manifestantes-entram-em-confronto-na-regiao-central-de-sp.shtml>.
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10
. Disponível em: <http://datasebrae.com.br/perfil-dos-empresarios/>. Acesso em: 9 fev. 2018.
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12
. Publicada em 10 de outubro de 2013. Disponível em: <http://www1.folha.uol.com.br/cotidiano/2013/10/1354419-morador-de-rua-e-levado-da-se-para-tenda-precaria-em-sao-paulo.shtml>. Acesso em: 9 fev. 2018.
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13
. Trata-se do texto: “SP usa sem-teto no trânsito para ser guias”, publicado em 2 de julho de 2011. Disponível em: <http://www1.folha.uol.com.br/cotidiano/938065-sp-usa-sem-teto-no-transito-e-os-treina-para-ser-guias.shtml>. Acesso em: 9 fev. 2018.
Datas de Publicação
-
Publicação nesta coleção
2 Dez 2019 -
Data do Fascículo
2019
Histórico
-
Recebido
09 Maio 2018 -
Aceito
24 Maio 2019