Acessibilidade / Reportar erro

Policiamento plural: perspectivas teóricas e agenda de pesquisa

PLURAL POLICING: theoretical perspectives and research agenda

Resumo

Desde a virada para o século XXI, novas perspectivas teóricas sobre o policiamento plural conceitualizaram as atividades de controle do crime para além da polícia. Embora esse pluralismo também seja uma realidade brasileira, os estudos sobre policiamento no país ainda não tiveram seu escopo ampliado e tais perspectivas seguem praticamente desconhecidas. Este artigo revisa as perspectivas teóricas mais influentes e ilustrativas sobre o policiamento plural. O objetivo é apresentar seus arcabouços conceituais, sistematizar suas questões de pesquisa e, a partir disso, propor uma agenda sobre o policiamento plural no Brasil. Como resultado, a revisão identifica nove perspectivas, distinguidas em quatro dimensões, e elenca suas principais questões em um quadro analítico.

Palavras-chave:
pluralização; policiamento; segurança; governança; controle do crime

Abstract

Since the turn to the 21st century, new theoretical perspectives on plural policing have conceptualized crime control activities beyond the police. Although this pluralism is also a Brazilian reality, policing studies in the country have not yet had their scope broadened and those perspectives remain virtually unknown. This article reviews the most influential and illustrative theoretical perspectives on plural policing. The aim is to present their conceptual frameworks, systematize their research questions and, based on this, propose an agenda on plural policing in Brazil. As results, the review identifies nine perspectives, distinguished in four dimensions, and lists their main issues in an analytical frame.

Keywords:
pluralization; policing; security; governance; crime control

Introdução1 1 Este artigo foi desenvolvido como parte de uma pesquisa de doutorado em andamento, apoiada pela Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo (FAPESP, Processos 2021/02709-3 e 2022/10622-8). Agradeço os valiosos comentários de Cleber da Silva Lopes e das/dos pareceristas anônimas(os) à versão preliminar.

A virada para o século XXI trouxe um período intelectualmente efervescente aos estudos sobre policiamento no mundo anglo-saxão. Novas perspectivas teóricas foram propostas para readequar o arcabouço conceitual desse campo de estudos ao que se convencionou chamar de policiamento plural2 2 Perspectivas, abordagens ou modelos teóricos, neste subcampo de estudos, referem-se aos trabalhos de cunho interpretativista que desenvolveram um conjunto congruente de proposições conceituais para auxiliar os acadêmicos a entender e investigar o tema (WHITE, 2011, p. 99). . De acordo com o verbete escrito por Crawford (2008CRAWFORD, Adam. “Plural Policing”. In: NEWBURN, Tim; NEYROUD, Peter (ed.). Dictionary of Policing. Cullompton: Willan Publishing, 2008, pp. 192-194.) no Dicionário do Policiamento:

“Policiamento plural” se refere simultaneamente à crescente mistura de formas públicas, paroquiais e privadas de policiamento e a uma mudança no foco dos estudos sobre policiamento que se distanciam de uma preocupação com a polícia estatal profissional para um interesse mais amplo com a regulação social, a aplicação da lei e a manutenção da ordem conduzidas por uma pletora de atores e sistemas de controle formais e informais. É tanto uma nova maneira de observar o policiamento, que não é mais centrada na polícia, como um novo conjunto de coisas a se observar - a saber, o crescente papel do setor não estatal. (CRAWFORD, 2008CRAWFORD, Adam. “Plural Policing”. In: NEWBURN, Tim; NEYROUD, Peter (ed.). Dictionary of Policing. Cullompton: Willan Publishing, 2008, pp. 192-194., p. 192, tradução nossa, itálicos do original).

Anteriormente, um pensamento estadocêntrico limitava os estudos sobre policiamento às atividades da polícia, cujo mandato adviria do monopólio reivindicado pelos Estados sobre o uso legítimo da força física. Mas os contornos dessa premissa arraigada se ofuscaram com o reconhecimento das atividades cada vez mais diversas e pervasivas de um amplo rol de indivíduos, coletividades e organizações no âmbito da sociedade e do mercado que atuam no controle do crime de maneira voluntária, comercial ou mandatória. Como exemplo notório, a quantidade de vigilantes em empresas de segurança privada superou a de policiais em muitos países (FLORQUIN, 2011FLORQUIN, Nicolas. “A Booming Business: Private Security and Small Arms”. In: BERMAN, Eric et al. (ed.). Small Arms Survey 2011: States of Security. New York: Cambridge University Press. 2011, pp. 101-127.), razão pela qual muitos estudos se basearam em reflexões e debates sobre esse setor. Além da polícia, portanto, observou-se uma pluralização dos atores relevantes aos estudos sobre policiamento, diretamente envolvidos nesse conjunto de atividades que, na definição de Reiner (2004REINER, Robert. A Política da Polícia. São Paulo: Edusp, 2004.), objetiva preservar a segurança de uma ordem social particular ou geral por meio da vigilância e da ameaça ou uso de sanções. Gradualmente, novas perspectivas teóricas conformaram um subcampo de estudos sobre o policiamento plural que, há poucos anos, foi institucionalizado com a fundação de uma rede internacional de acadêmicos denominada Everyday Political Economy of Plural Policing.

Enquanto alguns desses acadêmicos interpretaram a pluralização do policiamento como uma mudança epocal, outros apontaram as continuidades de uma realidade que teria se tornado mais evidente: mesmo em democracias consolidadas do mundo anglo-saxão, como a Inglaterra e os Estados Unidos, a premissa do monopólio da polícia sobre o policiamento tem sido reconhecida como uma imagem simbólica, “um dos mitos fundacionais das sociedades modernas” (GARLAND, 1996GARLAND, David. “The Limits of the Sovereign State: Strategies of Crime Control in Contemporary Society”. The British Journal of Criminology, v. 36, n. 4, pp. 445-471, 1996., p. 448, tradução nossa). De fato, essa realidade é uma velha conhecida no Brasil, onde o monopólio estatal permaneceu inconcluso (ADORNO, 2002ADORNO, Sérgio. “Monopólio estatal da violência na sociedade brasileira contemporânea”. In: MICELLI, Sergio (org.). O Que Ler na Ciência Social Brasileira: 1970-2022. São Paulo: ANPOCS/Editora Sumaré/CAPES, 2002, pp. 267-307.). Por aqui, o que Crawford (2008CRAWFORD, Adam. “Plural Policing”. In: NEWBURN, Tim; NEYROUD, Peter (ed.). Dictionary of Policing. Cullompton: Willan Publishing, 2008, pp. 192-194.) se referiu como novas coisas a serem observadas, a exemplo do envolvimento de empresas e comunidades em atividades de controle do crime, adicionou mais peças ao quebra-cabeças do policiamento que sempre foi pluralizado. O problema é que ainda nos falta uma nova maneira de observá-las. Entre as razões desse aparente paradoxo, para um país onde o monopólio foi a exceção e o pluralismo a regra, muitos acadêmicos animados pela expectativa da consolidação democrática após a Constituição de 1988 se empenharam em investigar os padrões autoritários do policiamento público no país e, desde então, demarcaram os estudos sobre policiamento em torno do Estado. As atividades de controle do crime realizadas por atores não estatais, embora comuns na sociedade brasileira, acabaram deixadas em segundo plano, ofuscadas pela maior atenção à polícia (LOPES; PAES-MACHADO, 2021LOPES, Cleber da Silva; PAES-MACHADO, Eduardo. “A Segurança em Mutação: Concepções, Práticas e Experiências no Século XXI”. Lua Nova: Revista de Cultura e Política, n. 114, pp. 13-28, 2021.). Ainda hoje, as perspectivas teóricas sobre o tema seguem praticamente desconhecidas.

Este artigo revisa as perspectivas teóricas mais influentes e ilustrativas do subcampo de estudos sobre o policiamento plural.3 3 As perspectivas teóricas revisadas neste artigo fornecem um panorama abrangente, mas ainda não incluem todas as que foram propostas desde o começo dos anos 2000. De modo geral, buscou-se incluir as perspectivas mais influentes, assim consideradas no interior desse subcampo de estudos por revisões anteriores (WOOD; DUPONT, 2006; WHITE, 2011; SCARPELLO, 2016), as ilustrativas de diferentes proveniências disciplinares, propostas por cientistas sociais, criminólogos e internacionalistas, por exemplo, ou as que, mesmo recentes, ampliaram e aprofundaram as perspectivas anteriores ao abordarem as questões próprias deste subcampo. O objetivo é apresentar seus arcabouços conceituais, sistematizar suas questões de pesquisa e, a partir disso, propor uma agenda sobre o policiamento plural no Brasil. Como resultados, a revisão identifica nove perspectivas, distinguidas em quatro dimensões que dizem respeito aos eixos norteadores de suas questões de pesquisa - com base nas quais o artigo está organizado em quatro partes e agenda. A primeira dimensão, sobre sociedade e Estado, inclui a governança nodal e o pluralismo ancorado. A segunda, sobre relações e disputas, inclui as redes de segurança, as montagens de segurança e a securitização dos capitais. A terceira, sobre economia e política, inclui a nova economia política da segurança privada e a economia política do policiamento plural. A quarta, sobre experiências cotidianas, inclui o policiamento de múltipla escolha e a segurança cotidiana. Por fim, o artigo elenca as principais questões abordadas por essas perspectivas em um quadro analítico e propõe uma agenda de pesquisa para esse subcampo de estudos no Brasil.

Sociedade e Estado

Na introdução de um livro que reúne textos exemplares das perspectivas teóricas sobre o policiamento plural, Wood e Dupont (2006WOOD, Jennifer; DUPONT, Benoit. “Introduction: Understanding the Governance of Security”. In: WOOD, Jennifer; DUPONT, Benoit (ed.). Democracy, Society and the Governance of Security. New York: Cambridge University Press, 2006, pp. 1-10., p. 2, tradução nossa) ressaltaram que, “Embora os colaboradores deste volume concordem que o pluralismo é uma tendência geral, as maneiras pelas quais eles descrevem, explicam e avaliam esta pluralidade diferem.” Essas diferenças são evidentes entre duas perspectivas até certo ponto antagônicas em termos empíricos e normativos: a governança nodal e o pluralismo ancorado. Suas maiores divergências giram em torno da prioridade atribuída aos atores da sociedade ou do Estado - especificamente, sobre a posição que os atores estatais, como a polícia, ocupam e deveriam ocupar perante a segurança privada e os demais atores sociais no policiamento plural.

Governança nodal

A primeira tentativa explícita para conceitualizar o policiamento plural foi exposta pelo sociólogo Clifford Shearing e coautores(as) criminólogos. Seus trabalhos pioneiros foram artigos de Shearing e Stenning (1981; 1983) sobre as “propriedades privadas de massa”, como shoppings centers e condomínios residenciais. O que os autores notaram é que essas propriedades privadas, com espaços de uso coletivo em seu interior, são geridas por corporações que impõem sua própria noção de ordem por meio da segurança privada, distinta da ordem definida pelo Estado e aplicada pela polícia. Em vez de punir infrações penais ao encaminhá-las ao sistema de justiça criminal, o objetivo é gerenciar os riscos aos interesses corporativos e resolver conflitos internamente, por meio de “sistemas de justiça privada”.

Esses achados demonstram que a pluralização do policiamento não pode ser resumida às privatizações e outras políticas governamentais, pois grande parte desse processo ocorreu independentemente do Estado. Não foram apenas os provedores dos serviços de segurança que se pluralizaram sob os auspícios de um Estado que supostamente manteve seu monopólio para ditar objetivos. A “nova estrutura do policiamento”, nos termos de Bayley e Shearing (2001BAYLEY, David; SHEARING, Clifford. The New Structure of Policing: Description, Conceptualization, and Research Agenda. Research Report. New York: National Institute of Justice, 2001.), decorre de uma pluralização tanto de provedores, que executam as atividades propriamente ditas, quanto de auspícios que definem objetivos e dirigem o policiamento de acordo com sua noção de ordem. Alinhando-se ao pluralismo legal, Shearing argumentou que corporações, comunidades e outros atores não estatais podem ser reconhecidos como “governos privados” que, assim como os governos públicos, operam como “auspícios de governança por si sós” (2006, p. 11, tradução nossa). O problema é que o pensamento estadocêntrico impede tal reconhecimento por distinguir a esfera pública governante da esfera privada governada, tornando a ideia de governo privado um oxímoro, pois todo governo seria público, por definição (SHEARING; WOOD, 2003bSHEARING, Clifford; WOOD, Jennifer. “Nodal Governance, Democracy, and the New ‘Denizens’”. Journal of Law and Society, v. 30, n. 3, pp. 400-419, 2003b.).

A perspectiva teórica da governança nodal foi proposta como alternativa a esse pensamento. Nessa perspectiva, cada ator estatal ou não estatal envolvido no policiamento como auspício ou provedor, ou mesmo um projeto ou iniciativa de governança da segurança que envolva um conjunto de atores, é representado como um “nó”. Tal conceito remete à definição abstrata de rede como um conjunto de nós conectados por linhas, servindo como metáfora para ilustrar a existência de uma pluralidade de atores e projetos que podem se relacionar de várias maneiras e, mais importante, uma crescente dispersão de poder - uma rede possui muitos nós, não um centro, como Shearing (2006SHEARING, Clifford. “Reflections on the Refusal to Acknowledge Private Governments”. In: WOOD, Jennifer; DUPONT, Benoit (ed.). Democracy, Society and the Governance of Security. Cambridge: Cambridge University Press, 2006, pp. 11-32.) depreende da teoria das redes. O autor tirou a mesma lição da noção foucaultiana de poder, a partir da argumentação de que todos os nós devem ser concebidos como governantes ou governados em potencial, de modo que nenhum seja conceitualmente priorizado (SHEARING; WOOD, 2003aSHEARING, Clifford; WOOD, Jennifer. “Governing Security for Common Goods”. International Journal of the Sociology of Law, v. 31, n. 3, pp. 205-225, 2003a.; 2003b). Uma das maneiras pelas quais os estudos sobre o policiamento plural poderiam proceder de modo empiricamente aberto, segundo Burris (2004BURRIS, Scott. “Governance, Microgovernance and Health”. Temple Law Review, v. 77, pp. 335-361, 2004.), é explorando os nós a fundo:

A teoria da governança nodal é destinada a enriquecer a teoria das redes ao focalizar a atenção e trazer maior clareza às características internas dos nós e, portanto, à análise de como o poder é efetivamente criado e exercido dentro de um sistema social. Enquanto o poder é transmitido através das redes, o ponto de fato onde o conhecimento e a capacidade são mobilizados para transmissão é o nó. (BURRIS, 2004BURRIS, Scott. “Governance, Microgovernance and Health”. Temple Law Review, v. 77, pp. 335-361, 2004., p. 341, tradução nossa).

Para essa análise das características internas dos nós, Johnston e Shearing (2003JOHNSTON, Les; SHEARING, Clifford. Governing Security: Explorations in Policing and Justice. London: Routledge, 2003.) propuseram um referencial teórico com oito dimensões sobre quem formula as regras, quem as implementa, qual a natureza dessas regras, qual o foco, os modos, os processos, as tecnologias e as mentalidades dessa governança. Outros expoentes da governança nodal, como Burris, Drahos e Shearing (2005BURRIS, Scott; DRAHOS, Peter; SHEARING, Clifford. “Nodal Governance”. Australian Journal of Legal Philosophy, v. 30, pp. 30-58, 2005.), resumiram essas dimensões em quatro categorias que definem os nós como “um espaço de governança”. As mentalidades se referem às maneiras de pensar sobre questões como ordem e desordem e os termos pelos quais os problemas são concebidos e traduzidos em ações punitivas ou preventivas. As tecnologias representam métodos, estratégias e táticas usadas, como vigilância, patrulhamento, ameaça ou uso da força física. Os recursos disponíveis são entendidos amplamente como tipos variados de capitais econômicos, políticos, culturais, sociais e simbólicos, no sentido de Bourdieu (1986BOURDIEU, Pierre. “The Forms of Capital”. In: RICHARDSON, John (ed.). Handbook of Theory and Research for the Sociology of Education. Westport: Greenwood, 1986, pp. 241-258.). E, por fim, as instituições dizem respeito aos arranjos organizacionais que permitem aos nós mobilizar pessoas e coisas com relativa estabilidade ao longo do tempo.

Inicialmente focados nas corporações que governam a segurança das propriedades privadas de massa, Shearing e coautores(as) expandiram essa perspectiva teórica ao refletirem sobre as comunidades que governam a segurança de “espaços comunais” - um conceito mais amplo que inclui aquelas corporações e propriedades, mas também grupos formais ou informais que governam a segurança de espaços públicos, como associações de bairro (KEMPA; STENNING; WOOD, 2004KEMPA, Michael; STENNING, Philip; WOOD, Jennifer. “Policing Communal Spaces: a Reconfiguration of the ‘Mass Private Property’ Hypothesis”. The British Journal of Criminology, v. 44, n. 4, pp. 562-581, 2004.). O que os autores ressaltaram é que, embora empresas e comunidades possam ser pensadas como governos privados, nem sempre alinhados aos princípios do bem público que pautam os governos públicos, o modo como dirigem e proveem a segurança tampouco pode ser descrito como um bem privado. No meio do continuum entre público e privado, esses nós governam a segurança como um bem comum aos membros de determinadas comunidades de consumidores ou residentes, por exemplo. Assim, da mesma maneira que o status de cidadania associado ao Estado é o princípio que garante o direito à segurança como um bem público, Shearing e Wood (2003a; 2003b) sugerem que cada governo privado dirige e provê a segurança de acordo com os interesses comuns dos membros de sua comunidade, cujo status de pertencimento é denominado pelos autores como denizenship.

Por fim, esse distanciamento do pensamento estadocêntrico se traduziu em propostas normativas a respeito das desigualdades decorrentes das maiores capacidades de alguns nós para garantirem a segurança dos seus denizens em detrimento de outros (SHEARING; WOOD, 2003aSHEARING, Clifford; WOOD, Jennifer. “Governing Security for Common Goods”. International Journal of the Sociology of Law, v. 31, n. 3, pp. 205-225, 2003a.). Para Shearing e coautores(as), a saída está no próprio pluralismo. Eles defendem que comunidades desprivilegiadas sejam capacitadas com os mesmos “métodos de poder” que as privilegiadas já dispõem, sobretudo capital econômico para acessar o mercado da segurança e escolher os serviços que melhor sirvam aos interesses comuns de seus membros (WOOD; SHEARING, 2007). Neste caso, o Estado deveria se limitar a redirecionar recursos às instituições locais, como associações comunitárias, e atuar como última instância no que diz respeito à observância aos direitos humanos e outros princípios de interesse público (BAYLEY; SHEARING, 1996BAYLEY, David; SHEARING, Clifford. “The Future of Policing”. Law & Society Review, v. 30, n. 3, p. 585-606, 1996.; SHEARING, 2006). Essas propostas já foram colocadas em prática: o exemplo mais citado é o de Zwelethemba, na África do Sul (WOOD; SHEARING, 2007). Na perspectiva de seus expoentes, essa é uma alternativa para lidar com os déficits de governança por meios participativos e realmente democráticos - mais factível do que tentar garantir a conformidade ao bem público por meio do fortalecimento da própria “âncora” estatal.

Pluralismo ancorado

Outra perspectiva teórica despontou como “a principal alternativa ao modelo da governança nodal como uma lente através da qual interpretar a mudança na natureza da paisagem da segurança contemporânea” (WHITE, 2011WHITE, Adam. “The New Political Economy of Private Security”. Theoretical Criminology, v. 16, n.1, pp. 85-101, 2011., p. 93, tradução nossa). Seus principais expoentes são Ian Loader e Neil Walker, acadêmicos da criminologia e do direito. Os trabalhos pioneiros remontam a artigos publicados independentemente por ambos os autores, nos anos 1990, sobre os aspectos simbólicos do policiamento público (WALKER, 1996WALKER, Neil. “Defining Core Police Tasks: the Neglect of the Symbolic Dimension?”. Policing and Society, v. 6, n. 1, pp. 53-71, 1996.; LOADER, 1997aLOADER, Ian. “Policing and the Social: Questions for Symbolic Power”. The British Journal of Sociology, v. 48, n. 1, pp. 1-18, 1997a.; 1997b).

Na época, uma série de relatórios governamentais avançavam agendas neoliberais nos serviços públicos do Reino Unido. Walker (1996WALKER, Neil. “Defining Core Police Tasks: the Neglect of the Symbolic Dimension?”. Policing and Society, v. 6, n. 1, pp. 53-71, 1996.) teceu críticas a um desses relatórios por ter considerado o policiamento como um serviço, mas ignorado suas implicações como uma categoria cultural. Para o autor, a polícia é distintamente influente na noção de ordem que permeia a sociedade, vide a capacidade de classificar indivíduos e grupos socias de maneira positiva ou negativa - questão também discutida por Loader (1997aLOADER, Ian. “Policing and the Social: Questions for Symbolic Power”. The British Journal of Sociology, v. 48, n. 1, pp. 1-18, 1997a.), que notou o poder de pronunciamento legítimo da polícia para diagnosticar problemas, apontar soluções e ter tais avaliações aceitas pela sociedade. Essa articulação entre o policiamento público e a cultura, segundo Loader (1997a), demonstra que a polícia segue proeminente no imaginário popular britânico, afetivamente atrelada aos símbolos da identidade nacional e, por isso, continuamente demandada por cidadãos que veem na presença visível dos bobbies um meio para a manutenção da ordem. De fato, Loader (1997b) argumentou que essa demanda não seria saciada com a segurança privada, embora tampouco com a polícia, ao contrário do que pressupôs outro daqueles relatórios. A mera presença dos bobbies serve como lembrete da insegurança que eles precisam controlar e, assim, faz com que essas demandas se perpetuem. O que se faz necessário, para o autor, é uma reflexão mais aprofundada sobre o que a segurança realmente significa:

Ela surge, mais fundamentalmente, de uma base geral de bem-estar econômico e social, de um sentimento de pertencer ou fazer parte da sociedade de maneiras que incutem confiança no futuro. Segurança também é uma questão de confiança, tanto nas instituições sociais quanto nas relações intersubjetivas. Assim, ela está intimamente conectada à qualidade da associação humana; referindo-se ao grau de coesão social, à “densidade” do vínculo social. Segurança, em suma, depende e é produto de um conjunto de relações sociais ricamente texturizadas e inclusivas. (LOADER; 1997bLOADER, Ian. “Private Security and the Demand for Protection in Contemporary Britain”. Policing and Society, v. 7, n. 3, pp. 143-162, 1997b., p. 155, tradução nossa).

Entendendo a segurança nesses termos, Loader (1997bLOADER, Ian. “Private Security and the Demand for Protection in Contemporary Britain”. Policing and Society, v. 7, n. 3, pp. 143-162, 1997b., p. 155, tradução nossa) argumentou que o conceito de segurança privada é “uma contradição de termos, uma maneira oximorônica de pensar e de fornecer segurança pessoal e comunitária”, uma vez que a segurança é irredutivelmente social como “um estado de coisas compartilhado, gerado coletivamente”. Com base nesse entendimento, o autor elencou alguns tópicos que mereciam reflexões mais profundas nos estudos sobre policiamento e que, de fato, conformaram uma agenda de pesquisa colocada em prática desde então.

Um desses tópicos, talvez o mais fundamental, diz respeito à concepção da segurança como um bem público, em um sentido sociológico mais “denso” do que as concepções econômicas. Loader e Walker (2001LOADER, Ian; WALKER, Neil. “Policing as a Public Good: Reconstituting the Connections Between Policing and the State”. Theoretical Criminology, v. 5, n. 1, pp. 9-35, 2001.; 2006; 2007) argumentaram que, instrumentalmente, a segurança é uma condição necessária para patamares mínimos de liberdade que propiciam a busca e o proveito de quaisquer outros bens; socialmente, a segurança de qualquer indivíduo depende das condições em que se encontram todos os demais; e, constitutivamente, a segurança é um meio pelo qual os indivíduos percebem suas interdependências e compartilham uma identidade coletiva. De acordo com os autores, apenas o Estado tem as virtudes necessárias para pôr essa concepção em prática. Além de suscitar uma identidade coletiva - afinal, a segurança é uma das promessas da cidadania -, o Estado está em melhores condições para alocar recursos; manter arranjos deliberativos para decisões que contemplem interesses diversos; representar uma última instância que mantenha a observância aos princípios do bem comum; e, por seus poderes coercitivos, assegurar que esses compromissos sejam mantidos. Por tais razões, o Estado deveria ser priorizado como uma âncora no policiamento plural:

O Estado, nos sentidos postos acima, deve permanecer sendo a âncora da provisão de segurança coletiva, mas deve haver tanto pluralismo quanto possível, tanto internamente, nos termos dos mecanismos constitucionais de inclusividade, representatividade e proteção individual e de minorias dos processos democráticos e administrativos por meio dos quais a aspiração à segurança coletiva é refletiva e perseguida, quanto externamente, nos termos do reconhecimento do lugar apropriado de outros espaços de produção cultural e regulatória acima, abaixo e além do Estado (LOADER; WALKER, 2007LOADER, Ian; WALKER, Neil. Civilizing Security. Cambridge: Cambridge University Press, 2007., p. 193, tradução nossa).

Obviamente, os autores reconhecem que há muitas limitações e vícios na atuação do Estado, mas acreditam que arranjos institucionais e princípios gerais seriam capazes de potencializar suas virtudes. Essas soluções só poderiam ser encontradas se os estudos sobre policiamento abandonassem o que Loader e Walker (2006LOADER, Ian; WALKER, Neil. “Necessary Virtues: the Legitimate Place of the State in the Production of Security”. In: WOOD, Jennifer; DUPONT, Benoit (ed.). Democracy, Society and the Governance of Security. Cambridge: Cambridge University Press, 2006, pp. 165-195.; 2007) descreveram como um ceticismo a priori que se detém nos vícios estatais. Para eles, a governança nodal ilustra esse ceticismo: seus expoentes consideram o Estado como um idiota incapaz de conhecer e atender os interesses de comunidades locais, mas desmerecem o fato de que, mesmo em suas propostas normativas, o Estado continua prioritário como alocador de recursos e última instância de controle dos atores não estatais a fim de garantir a observância ao bem público.

De fato, subjacente a essa concepção de bem público está uma objeção à noção de segurança como mercadoria, tópico inicialmente refletido por Loader (1997cLOADER, Ian. “Thinking Normatively About Private Security”. Journal of Law and Society, v. 24, n. 3, pp. 377-394, 1997c.; 1999) e posteriormente retomado em uma série de artigos inspirados na teoria política e na sociologia cultural sobre os mercados (GOOLD; LOADER; THUMALA, 2010GOOLD, Benjamin; LOADER, Ian; THUMALA, Angélica. “Consuming Security? Tools for a Sociology of Security Consumption”. Theoretical Criminology, v. 14, n. 1, pp. 3-30, 2010.; LOADER; GOOLD; THUMALA, 2014; 2015; THUMALA; GOOLD; LOADER, 2011; 2015). Ao pesquisarem empiricamente a economia moral do mercado da segurança, Loader e coautores(as) apontaram as ambivalências e relutâncias que giram em torno da comercialização desses produtos e serviços no contexto britânico, que são pouco instigados pelas satisfações típicas da cultura de consumo contemporânea. Ao contrário, gastos “ressentidos” em um mercado “manchado” incluem a segurança no rol de “mercadorias contestadas”: valores morais limitam o que deve ser comercializado e determinam a aceitação ou a rejeição de produtos e serviços. Condomínios residenciais, por exemplo, difundidos na América do Norte e refletidos pela governança nodal, tiveram pouca receptividade no Reino Unido por não corresponderem às expectativas de como uma comunidade deveria ser (LOADER; GOOLD; THUMALA, 2015).

Por fim, Loader e White (2015LOADER, Ian; WHITE, Adam. “How Can We Better Align Private Security with the Public Interest? Towards a Civilizing Model of Regulation”. Regulation & Governance, v. 11, n. 2, pp. 1-19, 2015.) argumentaram que esses valores morais oportunizam modelos regulatórios mais alinhados ao bem público do que a proposta da governança nodal de apoiar consumidores desprivilegiados - pois mesmo um mercado com acesso equitativo pode ofuscar os vínculos sociais da identidade coletiva e enfraquecer a promessa democrática da segurança. Para os autores, a regulação do mercado de segurança deveria reunir a pluralidade de atores envolvidos de modo que valores morais e, principalmente, compromissos públicos, sejam expressos, deliberados e institucionalizados:

Central para essa ambição regulatória é a premissa de que compradores e vendedores podem e devem ser convidados a esse espaço, não apenas como atores econômicos recalcitrantes, despreocupados com as consequências sociais de seu comportamento de mercado (homo economicus), mas também como atores morais com seus próprios valores e compromissos públicos não contratuais (homo sociologicus), assim levando a condições favoráveis para implantar laços sociais nas transações econômicas. (LOADER; WHITE, 2015LOADER, Ian; WHITE, Adam. “How Can We Better Align Private Security with the Public Interest? Towards a Civilizing Model of Regulation”. Regulation & Governance, v. 11, n. 2, pp. 1-19, 2015., p. 5, tradução nossa).

Os autores enfatizam que essa ambição é parte idealista, mas parte pragmática e, portanto, factível, pois se valeria das diferentes formas de regulação que instituições policiais e associações do setor privado, por exemplo, já realizam sobre vendedores e consumidores da segurança - e assim prosseguiriam de acordo com os princípios estipulados pelo Estado e sob sua direção. Dessa maneira, a promessa democrática da segurança como um bem público se adequaria à realidade do policiamento plural (LOADER; WHITE, 2015LOADER, Ian; WHITE, Adam. “How Can We Better Align Private Security with the Public Interest? Towards a Civilizing Model of Regulation”. Regulation & Governance, v. 11, n. 2, pp. 1-19, 2015.).

Como Scarpello (2016SCARPELLO, Fabio. “Toward the Political Economy of Plural Policing: Taking Stock of a Burgeoning Literature”. International Studies Review, v. 19, n. 3, pp. 1-23, 2016.) resumiu, o pluralismo ancorado contrapôs uma perspectiva mais próxima do polo estadocêntrico à perspectiva mais sociocêntrica da governança nodal. “Cada uma tem seus entusiastas e críticos, mas, independentemente disso, a combinação das duas pôs firmemente o policiamento plural no mapa acadêmico e político” (SCARPELLO, 2016SCARPELLO, Fabio. “Toward the Political Economy of Plural Policing: Taking Stock of a Burgeoning Literature”. International Studies Review, v. 19, n. 3, pp. 1-23, 2016., p. 17-18, tradução nossa).

Relações e disputas

Um dos temas levantados desde os trabalhos pioneiros do subcampo de estudos sobre o policiamento plural é o das relações de complementaridade, competição, colaborações ou conflitos entre a polícia, a segurança privada e os demais atores estatais e não estatais (SHEARING; STENNING, 1981SHEARING, Clifford; STENNING, Philip. “Modern Private Security: its Growth and Implications”. Crime and Justice, v. 3, pp. 193-245, 1981.; 1983). De fato, o reconhecimento da relacionalidade do policiamento plural é um dos pontos de convergência entre a governança nodal e o pluralismo ancorado. Para dar conta dessa complexidade, ao menos três perspectivas teóricas de cunho relacional foram propostas: as redes de segurança, as montagens de segurança globais e a securitização dos capitais. Não apenas esta última, mas todas compartilham uma mesma influência da teoria bourdieusiana dos campos e, especificamente, do conceito de capital.

Redes de segurança

O conceito de rede tornou-se comum para descrever as relações que entrelaçam a pluralidade de atores no policiamento. Como na governança nodal, o conceito serviu de metáfora para ilustrar a complexidade dessas relações, embora Shearing e coautores(as) tenham focalizado as características dos nós em vez das redes propriamente ditas. Em meados dos anos 2000, uma perspectiva específica sobre redes de segurança foi proposta, cujo marco inaugural costuma ser atribuído ao artigo programático do cientista político Benoît Dupont (2004DUPONT, Benoît. “Security in the Age of Networks”. Policing and Society, v. 14, n. 1, pp. 76-91, 2004.).

As influências dessa perspectiva vieram de fontes variadas, uma vez que o conceito de rede perpassava os estudos sobre o policiamento plural, grandes teorias sociológicas, relatórios sobre formas organizacionais na administração pública e privada, além dos procedimentos metodológicos da análise de redes sociais. Nessa junção de influências, Dupont (2004DUPONT, Benoît. “Security in the Age of Networks”. Policing and Society, v. 14, n. 1, pp. 76-91, 2004.) definiu as redes de segurança como conjuntos de nós individuais, coletivos ou organizacionais, interconectados direta ou indiretamente para governar a segurança em prol de interesses particulares ou coletivos. O autor também ofereceu uma primeira tipologia de redes de segurança locais, institucionais, internacionais e virtuais, distinguidas sobretudo pelo escopo geográfico, mas com implicações para sua composição por atores públicos e/ou privados e sua função na busca de efetividade ou eficiência, por exemplo.

Mais fundamentalmente, Dupont (2004DUPONT, Benoît. “Security in the Age of Networks”. Policing and Society, v. 14, n. 1, pp. 76-91, 2004.) adaptou a teoria bourdieusiana dos campos para conceitualizar as dinâmicas internas das redes de segurança a partir dos recursos que os nós acumulam e intercambiam em suas relações, definidos como capitais econômicos, políticos, culturais, sociais e simbólicos4 4 Por adaptação, pretendo diferenciar a perspectiva teórica exposta por Dupont (2004; 2006a; 2006b) de uma aplicação da teoria bourdieusiana dos campos, uma vez que o que se entende por relação, posição e estrutura em redes e campos é substancialmente distinto. Exceto capital, outros conceitos da teoria bourdieusiana, como habitus, não foram mobilizados por Dupont, e a própria noção de campo adquiriu outro significado quando o autor passou a fazer referência ao campo organizacional da segurança - cujo foco está em interações concretas, algo criticado em alguns escritos de Bourdieu. . Em busca de seus respectivos objetivos, considera-se que cada nó mobiliza os capitais à sua disposição, busca apropriar-se dos capitais que valoriza e, assim, se esforça por manter ou melhorar a posição que ocupa perante os demais atores da rede. Atores ortodoxos e dominantes adotam estratégias para conservar as dinâmicas da rede que os favorecem, enquanto atores heterodoxos e dominados buscam subvertê-las de modo a ascender - embora ambos moderem suas disputas pela preservação da própria rede. Assim, a posição ocupada pela polícia, pela segurança privada e pelos outros nós, bem como a estrutura do policiamento plural em geral, é resultado das relações colaborativas e competitivas que formam as redes em determinados momentos e contextos. A “metáfora dos capitais”, nos termos do autor, ajuda a “iluminar como os nós de segurança navegam por conjuntos complexos de relacionamentos para alcançar os resultados individuais e coletivos desejados” (WHELAN; DUPONT, 2017WHELAN, Chad; DUPONT, Benoit. “Taking Stock of Networks Across the Security Field: a Review, Typology and Research Agenda”. Policing and Society, v. 27, n. 6, pp. 671-687, 2017., p. 3, tradução nossa).

Essa perspectiva teórica foi usada por Dupont (2004DUPONT, Benoît. “Security in the Age of Networks”. Policing and Society, v. 14, n. 1, pp. 76-91, 2004.; 2006b) para comparar os capitais historicamente acumulados pela polícia e pela segurança privada, explicar as diferenças nas estratégias adotadas por esses atores e interpretar as “lutas de poder” em um caso específico, com base nas narrativas dos comissários da polícia australiana. O que a “esfera relacional subjetiva” desse alto escalão deixa claro, segundo o autor, é o modo como a polícia percebe seu raio de ação moldado pela pressão de outras organizações e, diante disso, mobiliza capitais variados para garantir sua autonomia como nó central acima de um campo organizacional subserviente (DUPONT, 2006bDUPONT, Benoît. “Power Struggles in the Field of Security: Implications for Democratic Transformation”. In: WOOD, Jennifer; DUPONT, Benoit (ed.). Democracy, Society and the Governance of Security. Cambridge: Cambridge University Press, 2006b, pp. 86-110., p. 87).

Ao lado dessas contribuições teóricas e qualitativas, a perspectiva das redes de segurança ainda se distinguiu por contribuições metodológicas e quantitativas. Questões como a posição ocupada por cada um dos atores e a estrutura centralizada ou descentralizada das redes, comumente discutidas de modo metafórico e normativo - pontos de divergências entre a governança nodal e o pluralismo ancorado -, foram operacionalizadas empiricamente por meio das técnicas analíticas da análise de redes sociais. Por exemplo, essas técnicas foram usadas por Dupont (2006aDUPONT, Benoît. “Delivering Security Through Networks: Surveying the Relational Landscape of Security Managers in an Urban Setting”. Crime, Law and Social Change, v. 45, pp. 165-184, 2006a.) no mapeamento da rede de segurança de Montreal. Segundo o autor, essa seria uma maneira de contribuir aos debates entre as perspectivas estadocêntricas e sociocêntricas ao retratar as complexas morfologias das tramas relacionais.

Recentemente, Whelan e Dupont (2017WHELAN, Chad; DUPONT, Benoit. “Taking Stock of Networks Across the Security Field: a Review, Typology and Research Agenda”. Policing and Society, v. 27, n. 6, pp. 671-687, 2017.) fizeram um balanço dos estudos sobre redes de segurança, propuseram uma nova tipologia - de tipo funcional em vez de geográfico, que inclui redes de troca de informações, de geração de conhecimento, de resolução de problemas e de coordenação - e, por fim, apontaram tópicos para uma agenda de pesquisa.

Montagens de segurança

Um dos processos mais expressivos a partir do qual os criminólogos refletiram sobre a pluralização do policiamento foi a expansão da segurança privada, a qual também teve um paralelo na prestação de serviços militares, incluindo a proteção armada em guerras civis, que chamou a atenção dos internacionalistas. De fato, as distinções entre o nacional e o internacional que separam os estudos sobre policiamento e defesa, com seus respectivos focos no interior ou no exterior do território nacional, ofuscaram-se com o que Rita Abrahamsen e Michael Williams (2009ABRAHAMSEN, Rita; WILLIAMS, Michael. “Security Beyond the State: Global Security Assemblages in International Politics”. International Political Sociology, v. 3, n. 1, pp. 1-17, 2009.; 2011), acadêmicos da ciência política, descreveram como o fenômeno global da segurança privada. Além da superação numérica do efetivo dessas empresas em comparação ao das polícias em muitos países, corporações transnacionais ampliaram sua atuação ao redor do mundo e levantaram questões acerca das articulações entre o local e o global.

Para compreender essas articulações, Abrahamsen e Williams (2009ABRAHAMSEN, Rita; WILLIAMS, Michael. “Security Beyond the State: Global Security Assemblages in International Politics”. International Political Sociology, v. 3, n. 1, pp. 1-17, 2009.; 2011) se basearam no conceito de montagens globais formulado por Saskia Sassen em seus escritos sobre globalização - e, de modo geral, na teoria das montagens que rendeu uma vasta literatura nas ciências sociais desde o final dos anos 1980 (RANITO, 2019RANITO, Jovana. “Global Security Assemblages: Mapping the Field”. Janus.Net, v. 10, n. 2, pp. 68-81, 2019.). Ao nível nacional, segundo os autores, a expansão da segurança privada pode ser entendida como um processo de desmonte do Estado, visto que funções anteriormente assumidas pelo setor público foram devolvidas ao setor privado. Mas corporações transnacionais de segurança, que ampliaram seus conhecimentos, recursos e capacidades ao nível global, também foram respaldadas por arranjos institucionais de Estados que viabilizaram e apoiaram a presença dessas corporações ao nível local. Assim, os desmontes foram seguidos por remontagens que articulam diferentes setores e níveis, formando “montagens de segurança globais”:

(...) são estruturas complexas nas quais uma gama de diferentes agentes e normatividades globais e locais, públicos e privados, interagem, cooperam e competem para produzir novas instituições, práticas e formas de governança da segurança. Essas montagens habitam os cenários nacionais, mas são simultaneamente estendidas através das fronteiras nacionais em termos de atores, conhecimentos, tecnologias, normas e valores. (WILLIAMS, 2016WILLIAMS, Michael. “Global Security Assemblages”. In: ABRAHAMSEN, Rita; LEANDER, Anna (ed.). Routledge Handbook of Private Security Studies. Abingdon: Routledge. 2016, pp. 131-139., p. 131-132, tradução nossa).

Compreender essas estruturas requer mais do que reafirmar a proeminência da polícia ou concluir que a expansão da segurança privada significa um enfraquecimento do Estado. Segundo Williams, “o poder relativo dos diversos atores no interior da montagem permanece por ser descoberto” (2016, p. 132, tradução nossa). O que se faz necessário, portanto, são pesquisas empíricas de casos concretos em que o global se insere no local, de modo a explorar a maneira como os atores se relacionam, os papéis que desempenham e as posições que ocupam. E, como ponto de partida teórico, Abrahamsen e Williams (2009ABRAHAMSEN, Rita; WILLIAMS, Michael. “Security Beyond the State: Global Security Assemblages in International Politics”. International Political Sociology, v. 3, n. 1, pp. 1-17, 2009.; 2011) recorreram à teoria bourdieusiana para delimitar as montagens como campos, no sentido de espaços analíticos constituídos por relações cooperativas e competitivas entre uma pluralidade de atores que mobilizam os capitais à sua disposição a fim de moldar a estrutura desse espaço e as posições em seu interior.

Entre os casos estudados pelos autores, essa teoria foi usada para analisar as montagens de segurança globais em locais de mineração de diamantes, em Serra Leoa, e de extração de petróleo, na Nigéria. Embora evidenciem o empoderamento da segurança privada face à polícia no que diz respeito aos recursos e à influência, por exemplo, os casos demonstram como os Estados africanos facilitam e promovem a atuação do setor privado a fim de alcançarem seus próprios objetivos - que incluem assegurar os investimentos estrangeiros e inserir as economias nacionais nos mercados globais, cujo fim último é o fortalecimento estatal (ABRAHAMSEN; WILLIAMS, 2009ABRAHAMSEN, Rita; WILLIAMS, Michael. “Security Beyond the State: Global Security Assemblages in International Politics”. International Political Sociology, v. 3, n. 1, pp. 1-17, 2009.).

Securitização de capitais

Contribuições teóricas aos estudos sobre o policiamento plural também vieram da antropologia. Tessa Diphoorn e Erella Grassiani (2016DIPHOORN, Tessa; GRASSIANI, Erella. “Securitizing Capital: a Processual-Relational Approach to Pluralized Security”. Theoretical Criminology, v. 20, n. 4, pp. 430-445, 2016.) propuseram uma perspectiva de cunho relacional e processual, como as próprias autoras a descreveram, ao aprofundarem aspectos pouco refletidos pelos expoentes das redes e das montagens. Mas, assim como as demais, essa perspectiva foi apoiada na teoria bourdieusiana dos campos, a partir da qual Diphoorn e Grassiani (2016) formularam o conceito de “securitização dos capitais”: o processo pelo qual a legitimidade e a autoridade são alcançadas na medida em que os atores mobilizam recursos muito diversos, como tecnologias, conhecimentos e até seus contatos pessoais e profissionais, de maneira intencional ou não. Em outras palavras, o conceito se refere à conversão de capitais econômicos, culturais e sociais, por exemplo, no capital simbólico que define a posição de poder que os atores dominantes e dominados ocupam relativamente uns aos outros no campo da segurança.

Assim como as demais perspectivas relacionais, o foco da securitização dos capitais não está nas características dos “nós” considerados individualmente, mas nas colaborações, nos conflitos, nas interdependências e nos conjuntos de interações que configuram hierarquias. Diphoorn e Grassiani (2016DIPHOORN, Tessa; GRASSIANI, Erella. “Securitizing Capital: a Processual-Relational Approach to Pluralized Security”. Theoretical Criminology, v. 20, n. 4, pp. 430-445, 2016.) enfatizam três distinções dessa perspectiva. Primeiro, o seu caráter processual. Em vez de considerar os capitais acumulados pelos atores, o foco está no modo como os recursos são efetivamente mobilizados, muitas vezes por meio de elementos “não humanos”, como objetos e símbolos - vide os esforços da segurança privada para se legitimar, mimetizando símbolos policiais como uniformes e armas. Segundo, o seu caráter performativo. A perspectiva contribui diretamente à compreensão de como os atores se comportam e, assim, como as lutas de poder no campo da segurança se constituem. Entre as questões suscitadas estão como, quando e porque certo tipo de capital é mobilizado em prol de um objetivo, quais os significados atribuídos à segurança por diferentes atores, as motivações de suas práticas e, assim, questões acerca da agência. E, terceiro, seu caráter multinível. A securitização dos capitais pode ofuscar as distinções entre o local e o global, bem como entre o individual e o organizacional, que se confundem no cotidiano da segurança.

Diphoorn e Grassiani ilustraram essa perspectiva teórica ao compararem os dados de etnografias realizadas no Quênia, na Jamaica e em Israel, nas quais exploraram “quais tipos de capital são mais importantes na aquisição de capital simbólico” e, por conseguinte, “uma posição ‘dominante’ no interior da paisagem pluralizada da segurança” (2016, p. 436, tradução nossa). Os resultados demonstraram a configuração de diferentes hierarquias em cada caso, de acordo com a securitização de capitais distintos que tendem a ser valorizados em seus respectivos campos da segurança. Assim, as autoras enfatizaram as capacidades desta perspectiva como uma ferramenta analítica capaz de identificar semelhanças e diferenças na comparação de casos que possam ampliar o escopo dos estudos sobre o policiamento plural ao redor do globo.

Economia política

Outro tema que perpassa os estudos sobre o policiamento plural desde seus trabalhos pioneiros é o da economia política. Ainda no final dos anos 1970, Spitzer e Scull (1977SPITZER, Steven; SCULL, Andrew. “Privatization and Capitalist Development: the Case of the Private Police”. Social Problems, v. 25, n. 1, pp. 18-29, 1977.) traçaram uma reconstituição histórica das maneiras pelas quais o “policiamento orientado pelo lucro” se adaptou aos diferentes momentos da economia política do sistema capitalista na Inglaterra e nos Estados Unidos. Inspirados na teoria marxista, os autores argumentaram que a segurança privada dos dias de hoje, assim como seus antecedentes do início da industrialização, faz parte de um amplo processo histórico de expansivo controle capitalista sobre a classe trabalhadora e de racionalização da atividade produtiva. O tema também se fez presente em estudos mais recentes e, inclusive, denomina a rede internacional de acadêmicos Everyday Political Economy of Plural Policing.Diphoorn e Grassiani (2016DIPHOORN, Tessa; GRASSIANI, Erella. “Securitizing Capital: a Processual-Relational Approach to Pluralized Security”. Theoretical Criminology, v. 20, n. 4, pp. 430-445, 2016.), por exemplo, ressaltaram que a posição ocupada por cada país na “economia política globalizada” é fundamental para compreender os capitais securitizados em seus campos da segurança. Convencidos da importância do tema, dois autores fizeram da economia política o tema central de suas perspectivas teóricas: a nova economia política da segurança privada, de Adam White (2011WHITE, Adam. “The New Political Economy of Private Security”. Theoretical Criminology, v. 16, n.1, pp. 85-101, 2011.), e a economia política do policiamento plural, de Fabio Scarpello (2016SCARPELLO, Fabio. “Toward the Political Economy of Plural Policing: Taking Stock of a Burgeoning Literature”. International Studies Review, v. 19, n. 3, pp. 1-23, 2016.).

A nova economia política da segurança privada

Embora o tema da economia política seja recorrente, muitos estudos sobre o policiamento plural fizeram da economia e da política uma dicotomia, notada por Adam White (2011WHITE, Adam. “The New Political Economy of Private Security”. Theoretical Criminology, v. 16, n.1, pp. 85-101, 2011.). Nas entrelinhas dos escritos acerca da segurança privada, por exemplo, uma vertente de estudos tende a enfatizar o contexto econômico a partir dos equilíbrios e flutuações de oferta e demanda, como a governança nodal, enquanto outra vertente enfatiza o contexto político das concepções de legitimidade, das normas enraizadas e das expectativas de que o policiamento seja inerentemente estatal, como o pluralismo ancorado. Mas, para compreender e explicar o percurso da segurança privada, seu crescimento e suas barreiras, ambos os contextos deveriam ser integrados em uma mesma perspectiva. Segundo White (2011), acadêmico da ciência política, agendas de pesquisa desta disciplina podem contribuir para essa tarefa, sobretudo a chamada “nova economia política” que integra economia e política a fim de expressar as múltiplas racionalidades que simultaneamente configuram os fenômenos sociais. O autor, então, formulou um conjunto de questões, métodos e proposições para uma agenda sobre “a nova economia política da segurança privada”, com foco em democracias desenvolvidas.

O primeiro conjunto de questões diz respeito ao contexto econômico e sua racionalidade correspondente. Elas incluem as flutuações de oferta e demanda que facilitam ou dificultam a expansão da segurança privada, as estratégias desse setor para capitalizar tais flutuações e os efeitos dessas estratégias na governança da segurança. O método do “mapeamento nodal”, empreendido pelos expoentes da governança nodal, pode ser útil para responder essas questões ao explorar as maneiras pelas quais a sensação de insegurança e a organização de propriedades e comunidades variam entre os nós e influenciam as mentalidades, tecnologias, recursos e instituições da segurança privada. O segundo conjunto de questões, por sua vez, refere-se ao contexto e à racionalidade política. As normas sociais que restringem o setor de segurança privada, as estratégias do setor para adequar-se ou contorná-las e, por fim, como essas estratégias também influenciam a governança da segurança, estão entre essas questões. Para respondê-las, o método da “investigação cultural historicamente fundamentada”, como feita pelos expoentes do pluralismo ancorado, ajudaria a entender como e por que a segurança privada opta por certas estratégias de legitimação a fim de melhorar sua imagem e garantir seu lugar em uma atividade que continua pensada como um monopólio estatal.

Com base nessas questões e métodos, White (2011WHITE, Adam. “The New Political Economy of Private Security”. Theoretical Criminology, v. 16, n.1, pp. 85-101, 2011.) enuncia duas proposições para que os contextos da economia e da política sejam integrados em uma mesma análise. Primeiro, as pesquisas empíricas devem reconhecer que o crescimento e as barreiras da segurança privada não se explicam por uma única racionalidade, mas por ambas, que merecem ser levadas igualmente em conta. E, segundo, que os efeitos resultantes dessas duas racionalidades podem constituir-se mutuamente, de modo que a segurança privada deve ser situada nos contextos econômico e político ao mesmo tempo a fim de observar seus deslocamentos e oscilações entre um e outro. Com essa integração, segundo o autor, a perspectiva teórica da nova economia política da segurança privada contribuiria para compreender e explicar problemas prementes nos estudos sobre o policiamento plural, como a maior ou menor proeminência da segurança privada relativamente à polícia, as relações entre esses atores e suas aproximações ou distanciamentos do bem público em diferentes países - de acordo com as variações nacionais de oferta e demanda econômica, por um lado, e normas políticas estadocêntricas, por outro.

A economia política do policiamento plural

Além de institucionalizado com a fundação de uma rede internacional de acadêmicos, a conformação do subcampo de estudos sobre o policiamento plural é atestada por balanços bibliográficos que buscaram compilar a numerosa produção sobre o tema. O foco de um desses balanços, realizado pelo cientista político Fabio Scarpello (2016SCARPELLO, Fabio. “Toward the Political Economy of Plural Policing: Taking Stock of a Burgeoning Literature”. International Studies Review, v. 19, n. 3, pp. 1-23, 2016.), esteve justamente nas perspectivas teóricas. O autor comparou os conceitos e as fundamentações ontológicas e epistemológicas dessas perspectivas, suas forças, fraquezas e questões que permanecem pouco exploradas. Apesar das contribuições de White (2011WHITE, Adam. “The New Political Economy of Private Security”. Theoretical Criminology, v. 16, n.1, pp. 85-101, 2011.) para interpretar as influências da economia política sobre a segurança privada, por exemplo, as “relações dialéticas” entre a economia política e o policiamento plural não foram exploradas a fundo. As maneiras pelas quais a própria segurança privada influencia a economia política, bem como o papel desempenhado pelos diversos outros atores que compõem o policiamento plural, não encontraram espaço nessa perspectiva por seu recorte a países muito específicos, como White (2011) reconheceu:

É importante reconhecer que a nova economia política da segurança privada é, em geral, relevante apenas para países democráticos avançados, precisamente porque em muitos outros países a existência de normas políticas intersubjetivas estadocêntricas é irregular e inconsistente na melhor das hipóteses - geralmente porque a provisão da segurança doméstica nesses países foi dominada em algum momento da história recente por Estados autoritários cujas ações repressivas serviram para contrariar em vez de reforçar a presença de tais normas políticas. (WHITE, 2011WHITE, Adam. “The New Political Economy of Private Security”. Theoretical Criminology, v. 16, n.1, pp. 85-101, 2011., p. 99, tradução nossa).

Essas limitações foram discutidas por Scarpello (2016SCARPELLO, Fabio. “Toward the Political Economy of Plural Policing: Taking Stock of a Burgeoning Literature”. International Studies Review, v. 19, n. 3, pp. 1-23, 2016.) a partir do caso da Indonésia, à luz do qual o autor propôs uma perspectiva teórica mais adequada às relações dialéticas entre a economia política e o policiamento plural. Seguindo os critérios usados em seu balanço bibliográfico, os conceitos dessa perspectiva foram embasados em fundamentações ontológicas e epistemológicas específicas.

Na “economia política do policiamento plural”, entende-se que a sociedade é composta por uma pluralidade de atores, caracterizados como sociopolíticos, que disputam recursos e poder. O policiamento plural deve ser reconhecido como um desses componentes e, portanto, não pode ser considerado como um conjunto de atividades à parte das disputas em torno da economia política na sociedade. Atentar-se apenas às relações concretas entre os atores que dirigem e proveem o policiamento ao nível local, por exemplo, limita o nosso entendimento dessas articulações. O foco da perspectiva teórica proposta por Scarpello (2016SCARPELLO, Fabio. “Toward the Political Economy of Plural Policing: Taking Stock of a Burgeoning Literature”. International Studies Review, v. 19, n. 3, pp. 1-23, 2016.) está nas maneiras pelas quais o policiamento está intrinsecamente articulado àquelas disputas mais amplas. O objetivo é interpretar o modo como as disputas por poder e recursos que conformam a economia política na sociedade afetam as atividades e as relações dos atores envolvidos no policiamento, e vice-versa - em muitos casos, conforme ilustrado pela Indonésia, como, por quem e para quem o policiamento é realizado constitui um dos âmbitos mais relevantes no qual se travam as disputas que afetam a economia política. Portanto, questões de economia política sobre recursos e poder contribuiriam aos estudos sobre o policiamento plural.

Experiências cotidianas

Conforme revisavam o arcabouço conceitual das redes e das montagens, Diphoorn e Grassiani (2016DIPHOORN, Tessa; GRASSIANI, Erella. “Securitizing Capital: a Processual-Relational Approach to Pluralized Security”. Theoretical Criminology, v. 20, n. 4, pp. 430-445, 2016.) indicaram que essas perspectivas teóricas compartilhavam um foco organizacional e uma visão top-down. Esse foco já havia sido notado no começo dos anos 2000, quando Bruce Baker (2004bBAKER, Bruce. “Protection from Crime: What is on Offer for Africans?”. Journal of Contemporary African Studies, v. 22, n. 2, pp. 165-188, 2004b.) se referiu a alguns paradigmas que vinham surgindo para compreender o policiamento plural - e que, mais tarde, se firmariam como a governança nodal, o pluralismo ancorado, entre outros. Embora ampliassem o escopo dos estudos sobre policiamento para além da polícia, esses paradigmas mantinham organizações como unidades de análise e pouco se atentavam ao ponto de vista dos próprios cidadãos. Recentemente, Adam Crawford e Steven Hutchinson (2015CRAWFORD, Adam; HUTCHINSON, Steven. “Mapping the Contours of ‘Everyday Security’: Time, Space and Emotion”. The British Journal of Criminology, v. 56, n. 6, pp. 1184-1202, 2015.) somaram críticas nesse sentido. Segundo os autores, muitos estudos sobre o tema se propõem a analisar projetos formais levados a cabo por organizações e, consequentemente, prestam pouca atenção às maneiras pelas quais pessoas comuns buscam garantir sua própria segurança, informalmente. Portanto, defendendo uma visão bottom-up, que tem as experiências de indivíduos e coletividades como foco, Baker delineou a perspectiva teórica da múltipla escolha, enquanto Crawford e Hutchinson propuseram uma agenda de pesquisa sobre a segurança cotidiana.

Múltipla escolha

Notando que os estudos sobre o policiamento plural tinham como foco as organizações, Baker propôs uma perspectiva teórica que assume o ponto de vista dos cidadãos. Segundo nos conta, a inspiração dessa perspectiva decorreu de sua própria vivência durante uma década de pesquisa no continente africano:

Eu ainda consigo me lembrar do dia em Grahamstown, África do Sul, 2000, quando minha mente estadocêntrica finalmente digeriu o fato, evidente para todos os africanos, que o policiamento não é feito apenas pela polícia. Diante de cooperativas de guarda veicular, segurança privada de resposta armada, comitês de rua, vigilantes e patrulhas policiais adicionais pagas pela comunidade, eu tive que repensar como a segurança era provida para o africano médio e se importava que o Estado fosse um player tão menor. Os nove anos seguintes me levaram ao leste, oeste e sul da África, perguntando às pessoas a quem elas procuravam por proteção contra o crime e, quando crimes ocorriam, a quem elas procuravam em resposta. As vozes delas nas cidades e nos campos eram quase universais: primariamente, elas não buscavam o Estado por proteção e nem por resposta, mas a toda uma gama de atores não estatais. Inicialmente, fiquei surpreso pelas escolhas oferecidas para a maioria dos africanos na maior parte do tempo e como eles negociavam sua segurança em diferentes cenários e circunstâncias de acordo com suas normas, experiências e capacidades financeiras. Eventualmente, porém, eu tive que encarar as implicações políticas do policiamento de múltipla escolha. (BAKER, 2010BAKER, Bruce. Security in Post-Conflict Africa: the role of nonstate policing. Boca Raton: CRC Press, 2010., p. xi, tradução nossa).

Assim, em uma série de artigos, Baker (2004aBAKER, Bruce. “Multi-choice Policing in Africa: is the Continent Following the South African Pattern?”. Society in Transition, v. 35, n. 2, pp. 204-223, 2004a.; 2004b; 2005a; 2005b) elaborou o arcabouço conceitual do policiamento de múltipla escolha, perspectiva que se detém no modo como as atividades de manutenção da ordem, prevenção e punição são experienciadas por indivíduos e coletividades “de baixo pra cima”. A premissa do autor é a de que cotidianamente, no decorrer de suas rotinas, os cidadãos transitam através das esferas de influência de uma pluralidade de organizações e, mais importante, podem escolher a qual delas recorrer. Do ponto de vista dos cidadãos, portanto, o policiamento é experienciado como um amplo rol de opções estatais e não estatais, formais e informais, legais e até ilegais, que podem ser selecionadas de acordo com os serviços desejados para cada situação. Essas escolhas podem ser determinadas pelos custos de cada opção, pelas experiências prévias de indivíduos ou coletividades com as organizações disponíveis, suas preferências por atuações preventivas ou punitivas e, por conseguinte, pela maior ou menor adequação de cada organização à noção de ordem que se pretende manter.

A família estendida pode proteger o conjunto habitacional, mas é o comitê da rua que resolve o assalto ao bar, o feiticeiro que detecta o culpado, o chefe ou o padre local que medeia um acordo sobre os danos causados por um vizinho, uma multidão espontânea que lida com o batedor de carteiras na estação de ônibus, o guarda da segurança comercial que protege a entrada do escritório no centro da cidade e a polícia estatal que é chamada se um colega é assassinado na agência bancária. (BAKER, 2004aBAKER, Bruce. “Multi-choice Policing in Africa: is the Continent Following the South African Pattern?”. Society in Transition, v. 35, n. 2, pp. 204-223, 2004a., p. 205, tradução nossa).

Para orientar as análises dessa múltipla escolha, Baker (2004bBAKER, Bruce. “Protection from Crime: What is on Offer for Africans?”. Journal of Contemporary African Studies, v. 22, n. 2, pp. 165-188, 2004b., p. 172) elaborou uma tipologia das organizações disponíveis aos cidadãos dos países africanos, comparando-as de acordo com algumas características gerais - como os papéis que desempenham na direção ou na provisão do policiamento, alcance operacional do local ao global, nível de cooperação com a polícia, se estão ou não submetidas a regulação estatal, se são orientadas pelo lucro e, por fim, se atuam na prevenção ou na punição. Mais importante, o autor buscou aprofundar o modo como os cidadãos percebem, avaliam e escolhem essas organizações a partir de estudos de caso na África do Sul, Serra Leoa e Uganda (BAKER, 2004aBAKER, Bruce. “Multi-choice Policing in Africa: is the Continent Following the South African Pattern?”. Society in Transition, v. 35, n. 2, pp. 204-223, 2004a.; 2005a; 2005b).

Segurança cotidiana

Apesar da ampliação dos estudos sobre policiamento para além da polícia, um tipo de viés continuou limitando o escopo desse campo de estudos a projetos e iniciativas que são em alguma medida formais. A segurança, assim, tende a ser retratada como objeto de trabalho de profissionais especializados, sobretudo de organizações com poderes legais de securitização - para definir os riscos a serem enfrentados e as soluções a serem adotadas. Em artigo programático que finca um dos alicerces da rede internacional Everyday Political Economy of Plural Policing, Adam Crawford e Steven Hutchinson (2015CRAWFORD, Adam; HUTCHINSON, Steven. “Mapping the Contours of ‘Everyday Security’: Time, Space and Emotion”. The British Journal of Criminology, v. 56, n. 6, pp. 1184-1202, 2015.) buscaram ampliar esse escopo com base na vida cotidiana, conceito de uma vasta literatura sociológica.

Mais do que empresas, associações e outras organizações que compõem o rol dos atores não estatais, a perspectiva teórica da segurança cotidiana reflete o ponto de vista de indivíduos e coletividades ordinários e leigos, pessoas comuns que também lidam subjetiva e objetivamente com a segurança em suas rotinas. Afinal, são elas que sentem a insegurança em determinados lugares e momentos, por diferentes motivos e em medidas variadas de acordo com seu gênero, classe e raça, por exemplo, e adotam medidas a fim de protegerem a si e aos seus pares, mesmo sem uma articulação consciente e explícita - providências muitas vezes subtendidas como aspectos corriqueiros do dia a dia. Nesse sentido, Crawford e Hutchinson (2015CRAWFORD, Adam; HUTCHINSON, Steven. “Mapping the Contours of ‘Everyday Security’: Time, Space and Emotion”. The British Journal of Criminology, v. 56, n. 6, pp. 1184-1202, 2015.) argumentam que o foco no cotidiano traria novas questões aos estudos sobre os projetos de segurança na criminologia e nas relações internacionais, disciplinas que convergem na pesquisa empírica de como a segurança é entendida e significada, por um lado, e de quais as estratégias e as técnicas adotadas para lidar com os problemas definidos como de segurança, por outro. Para os autores, a segurança cotidiana poderia ser explorada nessas duas dimensões interdependentes: as experiências e as práticas.

A primeira dimensão diz respeito ao modo como indivíduos e coletividades vivenciam os projetos de segurança no dia a dia. Mesmo projetos formalmente impostos por atores estatais e que parecem causar grandes mudanças ao nível macro são praticados cotidianamente de acordo com as interpretações de pessoas comuns e podem acarretar pequenas mudanças, senão continuidades ao nível micro. Tais projetos são acatados, adaptados ou rejeitados na medida em que convergem ou divergem com as ideias, os hábitos e as idiossincrasias das ordens locais informais - o que Crawford e Hutchinson (2015CRAWFORD, Adam; HUTCHINSON, Steven. “Mapping the Contours of ‘Everyday Security’: Time, Space and Emotion”. The British Journal of Criminology, v. 56, n. 6, pp. 1184-1202, 2015.) descreveram como um tipo de infrapolítica que ocorre veladamente, distante de qualquer publicização. Assim, segundo os autores, as questões relativas às experiências vão além da mera implementação dos projetos: elas incluem sensibilidades, percepções e reações suscitadas pelas medidas de segurança tanto nos indivíduos e nas coletividades que as executam quanto nos que constituem o público a ser protegido. Por conseguinte, a segunda dimensão é justamente a das práticas habitualmente levadas a cabo por indivíduos e coletividades que atuam em nome da segurança, informalmente, “de baixo pra cima”. Alinhadas ou desalinhadas aos projetos formais, mas orientadas sobretudo por valores, interesses e expectativas próprias, pessoas comuns também se empenham em “securitizações cotidianas”, identificam riscos e adotam medidas para proteger a si e aos seus pares como um aspecto regular de suas rotinas.

Em vez de considerar ambas as dimensões separadamente, a agenda de pesquisa defendida por Crawford e Hutchinson (2015CRAWFORD, Adam; HUTCHINSON, Steven. “Mapping the Contours of ‘Everyday Security’: Time, Space and Emotion”. The British Journal of Criminology, v. 56, n. 6, pp. 1184-1202, 2015.) visa aprofundar as articulações entre as experiências vivenciadas e as práticas de segurança adotadas por diferentes indivíduos e coletividades. Para os autores, essa tarefa deve se atentar à contextualização e às implicações das experiências e das práticas no tempo, no espaço e nas emoções que motivam os projetos de segurança e que deles surgem - afetos que, portanto, também são peças do quebra-cabeças do policiamento plural.

Questões para uma agenda de pesquisa

As perspectivas teóricas revisadas neste artigo ilustram a efervescência intelectual dos estudos sobre o policiamento plural. Ao ampliarem o escopo desse campo de estudos para além da polícia, algumas perspectivas elencaram perguntas específicas, enquanto outras elaboraram fundamentações gerais; ativeram-se às problemáticas em torno da expansão da segurança privada ou consideraram o conjunto de atores estatais e não estatais envolvidos no controle do crime; refletiram sobre as implicações da pluralização ao nível nacional ou exploraram as reverberações do transnacional em locais circunscritos; limitaram-se ao mundo anglo-saxão ou buscaram compreender as nuances do Norte ao Sul Global. Mesmo com divergências, essas perspectivas teóricas complementaram-se e, como White (2011WHITE, Adam. “The New Political Economy of Private Security”. Theoretical Criminology, v. 16, n.1, pp. 85-101, 2011.), Scarpello (2016SCARPELLO, Fabio. “Toward the Political Economy of Plural Policing: Taking Stock of a Burgeoning Literature”. International Studies Review, v. 19, n. 3, pp. 1-23, 2016.) e outros autores ressaltaram, podem ser integradas em pesquisas empíricas. O quadro analítico a seguir sistematiza as questões de pesquisa abordadas por essas perspectivas e que podem compor uma agenda para os estudos sobre o policiamento plural no Brasil.

Quadro analítico
Sistematização das perspectivas teóricas sobre o policiamento plural

Desvencilhando-se de premissas que priorizam o Estado, essas perspectivas teóricas adequaram seus conceitos aos contextos em que atores não estatais são tão presentes quanto os estatais, pouco controlados ou até mais capacitados, podendo contribuir à compreensão e à explicação do policiamento plural no Brasil. De fato, além dos padrões autoritários da atuação policial, o vasto acervo de estudos sobre a violência na sociedade brasileira inclui pesquisas sobre indivíduos, coletividades e organizações que fazem justiça com as próprias mãos e cujas práticas se aproximam da definição de policiamento em maior ou menor medida. Por exemplo, são numerosas as formas de vigilantismo que se manifestam em ações premeditadas ou espontâneas a fim de punir criminosos à margem do devido processo legal (HUGGINS, 2010HUGGINS, Martha. “Violência urbana e privatização do policiamento no Brasil: uma mistura invisível”. Caderno CRH, v. 23, n. 60, pp. 541-558, 2010.; MARTINS, 2015MARTINS, José de Souza. Linchamentos: A Justiça Popular no Brasil. São Paulo: Ed. Contexto, 2015.; NIVETTE, 2016NIVETTE, Amy. “Institutional Ineffectiveness, Illegitimacy, and Public Support for Vigilantism in Latin America”. Criminology, v. 54, n. 1, pp. 142-175, 2016.) e são bem documentadas as situações nas quais facções e milícias se responsabilizam pela resolução de conflitos e pela segurança de determinados territórios (FELTRAN, 2010FELTRAN, Gabriel. “Crime e castigo na cidade: os repertórios da justiça e a questão do homicídio nas periferias de São Paulo”. Caderno CRH, v. 23, n. 58, pp. 59-73, 2010.; MANSO; DIAS, 2018MANSO, Bruno Paes; DIAS, Camila Nunes. A Guerra: A Ascensão do PCC e o Mundo do Crime no Brasil. São Paulo: Todavia, 2018.; ADORNO; ALVARADO, 2022ADORNO, Sérgio; ALVARADO, Arturo. “Criminalidade e a governança de grandes metrópoles na América Latina: Cidade do México (México) e São Paulo (Brasil)”. Dilemas: Revista de Estudos de Conflito e Controle Social, v. 5, n. 4, pp. 79-115, 2022.; HIRATA et al. 2022HIRATA, Daniel et al. “The Expansion of Milicias in Rio de Janeiro: Political and Economic Advantages”. Journal of Illicit Economies and Development, v. 4, n. 3, pp. 257-271, 2022.). As questões abordadas pelas perspectivas teóricas revisadas neste artigo oferecem uma nova maneira de identificar, caracterizar e entender estes antigos problemas que fazem parte da “múltipla escolha” do policiamento plural no Brasil, bem como nos ajudam a ampliar o escopo desse campo de estudos de modo a reconhecer a pluralidade de atores e projetos coexistentes no controle do crime - sejam eles públicos ou privados, formais ou informais, explícitos ou implícitos, coercitivos ou consensuais, legais ou ilegais, locais ou globais e assim por diante.

Há alguns exemplos ilustrativos de estudos sobre o policiamento plural no Brasil que aplicaram essas perspectivas teóricas. Ainda no começo dos anos 2000, Wood e Cardia (2006WOOD, Jennifer; DUPONT, Benoit. “Introduction: Understanding the Governance of Security”. In: WOOD, Jennifer; DUPONT, Benoit (ed.). Democracy, Society and the Governance of Security. New York: Cambridge University Press, 2006, pp. 1-10., p. 139, tradução nossa) comentaram que “o caso brasileiro nos faz lembrar do imperativo de explorar novas direções conceituais na pesquisa sobre o policiamento”, sobretudo pela pluralidade de atores não estatais cujas atividades de controle do crime não são diretamente autorizadas pelo Estado. Elas recorreram aos conceitos da governança nodal ao descreverem as características de atores e projetos públicos, comerciais e comunitários, bem como se alinharam às propostas normativas dessa perspectiva. Segundo as autoras, uma concepção negativa de regulação predomina nos estudos sobre policiamento no país, dado que um dos maiores desafios à consolidação democrática é a existência de uma mentalidade punitiva que atribui primazia à violência como recurso essencial de controle do crime - e, portanto, fazem-se necessários mecanismos de controle adequados. No entanto, em uma concepção positiva de regulação, esses mecanismos deveriam ser acompanhados pelo apoio de outras formas de policiamento, baseadas em recursos não violentos e mais responsivas aos interesses comuns de determinadas comunidades. Recentemente, Lopes, Lima e Melgaço (2021LOPES, Cleber da Silva; PAES-MACHADO, Eduardo. “A Segurança em Mutação: Concepções, Práticas e Experiências no Século XXI”. Lua Nova: Revista de Cultura e Política, n. 114, pp. 13-28, 2021.) também aplicaram os conceitos da governança nodal na caracterização de projetos de segurança comunitária. Segundo os autores, “estudar a participação dos cidadãos no controle do crime e da desordem no contexto brasileiro requer uma abordagem teórica menos centrada no Estado e mais sensível às articulações entre arranjos informais e instituições formais de provisão de segurança” (LOPES; LIMA; MELGAÇO, 2021LOPES, Cleber da Silva; PAES-MACHADO, Eduardo. “A Segurança em Mutação: Concepções, Práticas e Experiências no Século XXI”. Lua Nova: Revista de Cultura e Política, n. 114, pp. 13-28, 2021., p. 89, tradução nossa).

Outros estudos sobre o policiamento plural no país apropriaram-se das perspectivas teóricas das redes (PAES-MACHADO; NASCIMENTO, 2012PAES-MACHADO, Eduardo; NASCIMENTO, Ana Márcia. “Governança Multicêntrica e Redes de Segurança de Taxistas”. Dilemas: Revista de Estudos de Conflito e Controle Social, v. 5, n. 4, pp. 597-626, 2012.; PATRIARCA, 2021PATRIARCA, Gabriel. “A Âncora da Segurança: Centralidades e Capitais na Rede de Segurança do Porto de Santos”. Lua Nova: Revista de Cultura e Política, n. 114, pp. 69-104, 2021.), das montagens (DURÃO, 2019DURÃO, Susana. “Ação policial: nos limites plurais do sensível”. O Público e o Privado, v. 17, n. 34, pp. 87-109, 2019.) e da securitização dos capitais (NALIN; LOPES, 2021NALIN, Luan; LOPES, Cleber da Silva. “Uma Análise das Relações de Poder no Campo da Segurança: As Interações entre Vigilantes e Policiais nas Portas Giratórias de Agências Bancárias”. O Público e o Privado, v. 19, n. 38, pp. 233-258, 2021.). Mas mesmo as perspectivas que incorporaram premissas estadocêntricas, como o pluralismo ancorado e a nova economia política da segurança privada, apontam questões pertinentes para uma agenda de pesquisa adequada à realidade brasileira e podem embasar comparações entre contextos locais e nacionais ao redor do globo. Por exemplo, um survey realizado no estado de São Paulo evidencia os aspectos simbólicos do policiamento, como o apoio e a legitimidade da instituição policial. Ainda que o imaginário popular associe maiores abusos de poder e violações de direitos à polícia do que à segurança privada, a preferência da população continua mais favorável à primeira para o policiamento em grandes espaços e eventos abertos ao público (LOPES, 2018). Já a pesquisa de um dos eventos típicos do país, o Carnaval de Salvador, revela as implicações práticas do policiamento realizado por organizações “híbridas” entre a polícia e a segurança privada. Em vez de ancorado positivamente no Estado e norteado por valores como a igualdade, esse policiamento é ancorado negativamente nas práticas autoritárias da polícia brasileira e produz desigualdades e exclusões até no espaço público (OLIVEIRA; PAES-MACHADO, 2022OLIVEIRA, Pedro; PAES-MACHADO, Eduardo. “Itinerant Bubbles: Hybrid Carnival Security and Privatization of Public Spaces”. International Journal of Comparative and Applied Criminal Justice, v. 46, n. 1, pp. 31-48, 2022.). Assim, torna-se possível compreender o policiamento plural de maneira situada no contexto brasileiro e compará-lo com outras realidades já pesquisadas.

Em suma, as questões de pesquisa elencadas por essas perspectivas teóricas nos oferecem novas maneiras de observar o policiamento plural evidente há tempos na sociedade brasileira, de maneira interdisciplinar e com dimensões alternativas.

Referências bibliográficas

  • ABRAHAMSEN, Rita; WILLIAMS, Michael. “Security Beyond the State: Global Security Assemblages in International Politics”. International Political Sociology, v. 3, n. 1, pp. 1-17, 2009.
  • ABRAHAMSEN, Rita; WILLIAMS, Michael. Security Beyond the State: Private Security in International Politics. Cambridge: Cambridge University Press, 2011.
  • ADORNO, Sérgio. “Monopólio estatal da violência na sociedade brasileira contemporânea”. In: MICELLI, Sergio (org.). O Que Ler na Ciência Social Brasileira: 1970-2022. São Paulo: ANPOCS/Editora Sumaré/CAPES, 2002, pp. 267-307.
  • ADORNO, Sérgio; ALVARADO, Arturo. “Criminalidade e a governança de grandes metrópoles na América Latina: Cidade do México (México) e São Paulo (Brasil)”. Dilemas: Revista de Estudos de Conflito e Controle Social, v. 5, n. 4, pp. 79-115, 2022.
  • BAKER, Bruce. “Multi-choice Policing in Africa: is the Continent Following the South African Pattern?”. Society in Transition, v. 35, n. 2, pp. 204-223, 2004a.
  • BAKER, Bruce. “Multi-choice Policing in Uganda”. Policing and Society, v. 15, n. 1, pp. 19-41, 2005a.
  • BAKER, Bruce. “Protection from Crime: What is on Offer for Africans?”. Journal of Contemporary African Studies, v. 22, n. 2, pp. 165-188, 2004b.
  • BAKER, Bruce. Security in Post-Conflict Africa: the role of nonstate policing. Boca Raton: CRC Press, 2010.
  • BAKER, Bruce. “Who do People Turn to for Policing in Sierra Leone?”. Journal of Contemporary African Studies, v. 23, n. 3, pp. 371-390, 2005b.
  • BAYLEY, David; SHEARING, Clifford. “The Future of Policing”. Law & Society Review, v. 30, n. 3, p. 585-606, 1996.
  • BAYLEY, David; SHEARING, Clifford. The New Structure of Policing: Description, Conceptualization, and Research Agenda. Research Report. New York: National Institute of Justice, 2001.
  • BOURDIEU, Pierre. “The Forms of Capital”. In: RICHARDSON, John (ed.). Handbook of Theory and Research for the Sociology of Education. Westport: Greenwood, 1986, pp. 241-258.
  • BURRIS, Scott. “Governance, Microgovernance and Health”. Temple Law Review, v. 77, pp. 335-361, 2004.
  • BURRIS, Scott; DRAHOS, Peter; SHEARING, Clifford. “Nodal Governance”. Australian Journal of Legal Philosophy, v. 30, pp. 30-58, 2005.
  • CRAWFORD, Adam. “Plural Policing”. In: NEWBURN, Tim; NEYROUD, Peter (ed.). Dictionary of Policing. Cullompton: Willan Publishing, 2008, pp. 192-194.
  • CRAWFORD, Adam; HUTCHINSON, Steven. “Mapping the Contours of ‘Everyday Security’: Time, Space and Emotion”. The British Journal of Criminology, v. 56, n. 6, pp. 1184-1202, 2015.
  • DIPHOORN, Tessa; GRASSIANI, Erella. “Securitizing Capital: a Processual-Relational Approach to Pluralized Security”. Theoretical Criminology, v. 20, n. 4, pp. 430-445, 2016.
  • DUPONT, Benoît. “Delivering Security Through Networks: Surveying the Relational Landscape of Security Managers in an Urban Setting”. Crime, Law and Social Change, v. 45, pp. 165-184, 2006a.
  • DUPONT, Benoît. “Power Struggles in the Field of Security: Implications for Democratic Transformation”. In: WOOD, Jennifer; DUPONT, Benoit (ed.). Democracy, Society and the Governance of Security. Cambridge: Cambridge University Press, 2006b, pp. 86-110.
  • DUPONT, Benoît. “Security in the Age of Networks”. Policing and Society, v. 14, n. 1, pp. 76-91, 2004.
  • DURÃO, Susana. “Ação policial: nos limites plurais do sensível”. O Público e o Privado, v. 17, n. 34, pp. 87-109, 2019.
  • FELTRAN, Gabriel. “Crime e castigo na cidade: os repertórios da justiça e a questão do homicídio nas periferias de São Paulo”. Caderno CRH, v. 23, n. 58, pp. 59-73, 2010.
  • FLORQUIN, Nicolas. “A Booming Business: Private Security and Small Arms”. In: BERMAN, Eric et al. (ed.). Small Arms Survey 2011: States of Security. New York: Cambridge University Press. 2011, pp. 101-127.
  • GARLAND, David. “The Limits of the Sovereign State: Strategies of Crime Control in Contemporary Society”. The British Journal of Criminology, v. 36, n. 4, pp. 445-471, 1996.
  • GOOLD, Benjamin; LOADER, Ian; THUMALA, Angélica. “Consuming Security? Tools for a Sociology of Security Consumption”. Theoretical Criminology, v. 14, n. 1, pp. 3-30, 2010.
  • HIRATA, Daniel et al. “The Expansion of Milicias in Rio de Janeiro: Political and Economic Advantages”. Journal of Illicit Economies and Development, v. 4, n. 3, pp. 257-271, 2022.
  • HUGGINS, Martha. “Violência urbana e privatização do policiamento no Brasil: uma mistura invisível”. Caderno CRH, v. 23, n. 60, pp. 541-558, 2010.
  • JOHNSTON, Les; SHEARING, Clifford. Governing Security: Explorations in Policing and Justice. London: Routledge, 2003.
  • KEMPA, Michael; STENNING, Philip; WOOD, Jennifer. “Policing Communal Spaces: a Reconfiguration of the ‘Mass Private Property’ Hypothesis”. The British Journal of Criminology, v. 44, n. 4, pp. 562-581, 2004.
  • LOADER, Ian. “Consumer Culture and the Commodification of Policing e Security”. Sociology, v. 33, n. 2, pp. 373-392, 1999.
  • LOADER, Ian. “Policing and the Social: Questions for Symbolic Power”. The British Journal of Sociology, v. 48, n. 1, pp. 1-18, 1997a.
  • LOADER, Ian. “Private Security and the Demand for Protection in Contemporary Britain”. Policing and Society, v. 7, n. 3, pp. 143-162, 1997b.
  • LOADER, Ian. “Thinking Normatively About Private Security”. Journal of Law and Society, v. 24, n. 3, pp. 377-394, 1997c.
  • LOADER, Ian; GOOLD, Benjamin; THUMALA, Angélica. “The Moral Economy of Security”. Theoretical Criminology, v. 18, n. 4, pp. 469-488, 2014.
  • LOADER, Ian; GOOLD, Benjamin; THUMALA, Angélica. “Grudge Spending: the Interplay Between Markets and Culture in the Purchase of Security”. The Sociological Review, v. 63, n. 4, pp. 858-875, 2015.
  • LOADER, Ian; WALKER, Neil. “Policing as a Public Good: Reconstituting the Connections Between Policing and the State”. Theoretical Criminology, v. 5, n. 1, pp. 9-35, 2001.
  • LOADER, Ian; WALKER, Neil. “Necessary Virtues: the Legitimate Place of the State in the Production of Security”. In: WOOD, Jennifer; DUPONT, Benoit (ed.). Democracy, Society and the Governance of Security. Cambridge: Cambridge University Press, 2006, pp. 165-195.
  • LOADER, Ian; WALKER, Neil. Civilizing Security. Cambridge: Cambridge University Press, 2007.
  • LOADER, Ian; WHITE, Adam. “How Can We Better Align Private Security with the Public Interest? Towards a Civilizing Model of Regulation”. Regulation & Governance, v. 11, n. 2, pp. 1-19, 2015.
  • LOPES, Cleber da Silva. “Plural Policing and Public Opinion in Brazil”. Security Journal, v. 31, n. 2, pp. 451-469, 2018.
  • LOPES, Cleber da Silva; LIMA, Fabricio Silva; MELGAÇO, Lucas. “Solidary Neighbors? The Involvement of Middle-Class Communities in the Governance of Security and Disorder in Brazil”. Journal of Contemporary Criminal Justice, v. 38, n. 1, pp. 88-104, 2021.
  • LOPES, Cleber da Silva; PAES-MACHADO, Eduardo. “A Segurança em Mutação: Concepções, Práticas e Experiências no Século XXI”. Lua Nova: Revista de Cultura e Política, n. 114, pp. 13-28, 2021.
  • MANSO, Bruno Paes; DIAS, Camila Nunes. A Guerra: A Ascensão do PCC e o Mundo do Crime no Brasil. São Paulo: Todavia, 2018.
  • MARTINS, José de Souza. Linchamentos: A Justiça Popular no Brasil. São Paulo: Ed. Contexto, 2015.
  • NALIN, Luan; LOPES, Cleber da Silva. “Uma Análise das Relações de Poder no Campo da Segurança: As Interações entre Vigilantes e Policiais nas Portas Giratórias de Agências Bancárias”. O Público e o Privado, v. 19, n. 38, pp. 233-258, 2021.
  • NIVETTE, Amy. “Institutional Ineffectiveness, Illegitimacy, and Public Support for Vigilantism in Latin America”. Criminology, v. 54, n. 1, pp. 142-175, 2016.
  • OLIVEIRA, Pedro; PAES-MACHADO, Eduardo. “Itinerant Bubbles: Hybrid Carnival Security and Privatization of Public Spaces”. International Journal of Comparative and Applied Criminal Justice, v. 46, n. 1, pp. 31-48, 2022.
  • PAES-MACHADO, Eduardo; NASCIMENTO, Ana Márcia. “Governança Multicêntrica e Redes de Segurança de Taxistas”. Dilemas: Revista de Estudos de Conflito e Controle Social, v. 5, n. 4, pp. 597-626, 2012.
  • PATRIARCA, Gabriel. “A Âncora da Segurança: Centralidades e Capitais na Rede de Segurança do Porto de Santos”. Lua Nova: Revista de Cultura e Política, n. 114, pp. 69-104, 2021.
  • RANITO, Jovana. “Global Security Assemblages: Mapping the Field”. Janus.Net, v. 10, n. 2, pp. 68-81, 2019.
  • REINER, Robert. A Política da Polícia. São Paulo: Edusp, 2004.
  • SCARPELLO, Fabio. “Toward the Political Economy of Plural Policing: Taking Stock of a Burgeoning Literature”. International Studies Review, v. 19, n. 3, pp. 1-23, 2016.
  • SHEARING, Clifford. “Reflections on the Refusal to Acknowledge Private Governments”. In: WOOD, Jennifer; DUPONT, Benoit (ed.). Democracy, Society and the Governance of Security. Cambridge: Cambridge University Press, 2006, pp. 11-32.
  • SHEARING, Clifford; STENNING, Philip. “Modern Private Security: its Growth and Implications”. Crime and Justice, v. 3, pp. 193-245, 1981.
  • SHEARING, Clifford; STENNING, Philip. “Private Security: Implications for Social Control”. Social Problems, v. 30, n. 5, pp. 493-506, 1983.
  • SHEARING, Clifford; WOOD, Jennifer. “Governing Security for Common Goods”. International Journal of the Sociology of Law, v. 31, n. 3, pp. 205-225, 2003a.
  • SHEARING, Clifford; WOOD, Jennifer. “Nodal Governance, Democracy, and the New ‘Denizens’”. Journal of Law and Society, v. 30, n. 3, pp. 400-419, 2003b.
  • SPITZER, Steven; SCULL, Andrew. “Privatization and Capitalist Development: the Case of the Private Police”. Social Problems, v. 25, n. 1, pp. 18-29, 1977.
  • THUMALA, Angélica; GOOLD, Benjamin; LOADER, Ian. “A Tainted Trade? Moral Ambivalence and Legitimation Work in the Private Security Industry”. The British Journal of Sociology, v. 62, n. 2, pp. 283-303, 2011.
  • THUMALA, Angélica; GOOLD, Benjamin; LOADER, Ian. “Tracking Devices: on the Reception of a Novel Security Good”. Criminology & Criminal Justice, v. 15, n. 1, pp. 3-22, 2015.
  • WALKER, Neil. “Defining Core Police Tasks: the Neglect of the Symbolic Dimension?”. Policing and Society, v. 6, n. 1, pp. 53-71, 1996.
  • WHELAN, Chad; DUPONT, Benoit. “Taking Stock of Networks Across the Security Field: a Review, Typology and Research Agenda”. Policing and Society, v. 27, n. 6, pp. 671-687, 2017.
  • WHITE, Adam. “The New Political Economy of Private Security”. Theoretical Criminology, v. 16, n.1, pp. 85-101, 2011.
  • WILLIAMS, Michael. “Global Security Assemblages”. In: ABRAHAMSEN, Rita; LEANDER, Anna (ed.). Routledge Handbook of Private Security Studies. Abingdon: Routledge. 2016, pp. 131-139.
  • WOOD, Jennifer; CARDIA, Nancy. “Brazil”. In: JONES, Trevor; NEWBURN, Tim (ed.). Plural Policing: a Comparative Perspective. Abingdon: Routledge, 2006, pp. 139-168.
  • WOOD, Jennifer; DUPONT, Benoit. “Introduction: Understanding the Governance of Security”. In: WOOD, Jennifer; DUPONT, Benoit (ed.). Democracy, Society and the Governance of Security. New York: Cambridge University Press, 2006, pp. 1-10.
  • WOOD, Jennifer; SHEARING, Clifford. Imagining Security. Cullompton: Willan, 2007.
  • 1
    Este artigo foi desenvolvido como parte de uma pesquisa de doutorado em andamento, apoiada pela Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo (FAPESP, Processos 2021/02709-3 e 2022/10622-8). Agradeço os valiosos comentários de Cleber da Silva Lopes e das/dos pareceristas anônimas(os) à versão preliminar.
  • 2
    Perspectivas, abordagens ou modelos teóricos, neste subcampo de estudos, referem-se aos trabalhos de cunho interpretativista que desenvolveram um conjunto congruente de proposições conceituais para auxiliar os acadêmicos a entender e investigar o tema (WHITE, 2011, p. 99).
  • 3
    As perspectivas teóricas revisadas neste artigo fornecem um panorama abrangente, mas ainda não incluem todas as que foram propostas desde o começo dos anos 2000. De modo geral, buscou-se incluir as perspectivas mais influentes, assim consideradas no interior desse subcampo de estudos por revisões anteriores (WOOD; DUPONT, 2006; WHITE, 2011; SCARPELLO, 2016), as ilustrativas de diferentes proveniências disciplinares, propostas por cientistas sociais, criminólogos e internacionalistas, por exemplo, ou as que, mesmo recentes, ampliaram e aprofundaram as perspectivas anteriores ao abordarem as questões próprias deste subcampo.
  • 4
    Por adaptação, pretendo diferenciar a perspectiva teórica exposta por Dupont (2004; 2006a; 2006b) de uma aplicação da teoria bourdieusiana dos campos, uma vez que o que se entende por relação, posição e estrutura em redes e campos é substancialmente distinto. Exceto capital, outros conceitos da teoria bourdieusiana, como habitus, não foram mobilizados por Dupont, e a própria noção de campo adquiriu outro significado quando o autor passou a fazer referência ao campo organizacional da segurança - cujo foco está em interações concretas, algo criticado em alguns escritos de Bourdieu.

Editado por

Editor responsável:

Michel Misse

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    09 Out 2023
  • Data do Fascículo
    Sep-Dec 2023

Histórico

  • Recebido
    19 Out 2022
  • Aceito
    17 Abr 2023
Universidade Federal do Rio de Janeiro Largo de São Francisco de Paula, 1, Sala 109, Cep: 20051-070, Rio de Janeiro - RJ / Brasil , (+55) (21) 3559.1926 - Rio de Janeiro - RJ - Brazil
E-mail: coordenacao.dilemas@gmail.com