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A má oclusão no umbigo do rio Xingu

"E aquilo que nesse momento se revelará aos povos, Surpreenderá a todos, não por ser exótico, Mas pelo fato de poder ter sempre estado oculto Quando terá sido o óbvio." - Caetano Veloso, da música "Um índio" -

A sensação de estar convivendo com, e tratando, uma doença de alta prevalência, sem conhecer sua origem, é inquietante. Faz-nos relembrar de quando drogas pesadas eram utilizadas para tratamento do câncer, sem o conhecimento da sua origem genética - sem se saber que tudo estava ali, no núcleo da célula, no DNA. Logicamente, isso custou perdas de tempo e vidas. Mas, quando os oncologistas resolveram encontrar os geneticistas enclausurados em laboratórios, viajando para o núcleo da célula, o salto foi para medalha de ouro, e a Oncogenética, essa nova ciência, ganhou espaço nas primeiras cadeiras dos congressos de Oncologia.

A despeito de milhões de pessoas no mundo realizarem tratamento ortodôntico, ainda não se tem uma nítida imagem sobre as causas da má oclusão. Trata-se de um paradoxo para o mundo contemporâneo, que ruge pela evidenciação de fatos. Pior ainda é saber que painéis sobre esse tema (a má oclusão) nos eventos ortodônticos suscitam um interesse infinitamente menor do que as apresentações sobre novos materiais e novas técnicas de tratamento. Estaríamos caminhando para o mesmo abismo da Medicina, uma ciência que não perdoa retardos?

Tudo começou com Begg22. Begg PR. Stone age man's dentition: With reference to anatomically correct occlusion, the etiology of malocclusion, and a technique for its treatment. Am J Orthod. 1954 April;40(4):298-312., em 1954, ao examinar crânios de aborígenes australianos. Ele definiu que a má oclusão seria "uma doença da civilização moderna", ocasionada pelo desgaste dos dentes. Entender seus achados é entender essa reluzente história que influenciou os princípios da Ortodontia, dando subsídios à necessidade da extração de dentes permanentes, para criar espaço na arcada dentária, compensatoriamente à ausência dos desgastes interproximais. A questão é que os conceitos de Begg extrapolaram o aspecto tecnicista, e isso inquieta muita gente, como diria Omar Gabriel. Numa análise macro, é marcante a influência dessa teoria na sustentação de que o meio ambiente é a causa principal da ocorrência da má oclusão e, mais especificamente, do apinhamento dentário.

A teoria de Begg suscita, até hoje, discussão, e essa questão tem sido debatida sob quatro modelos de investigação: 1) experimentos em modelos animais; 2) a análise de crânios de populações antepassadas, obtidos por meio de escavações, e estudos de cunho epidemiológico em populações primitivas e/ou isoladas; 4) estudos em gêmeos humanos. Tais observações têm dado sustentação à determinação do meio ambiente na etiologia da má oclusão.

A questão não é tão simplista e deve ser descortinada, pressupondo-se que uma determinada má oclusão provavelmente tenha mecanismos etiológicos diferentes de outra alteração oclusal. O fato do óbvio poder estar oculto intriga uma geração de ortodontistas inquietos, pois, se estivermos repetindo os mesmos erros da Oncologia - o de reprimir o olhar micro (para o núcleo e o DNA) -, poderemos pagar caro por um progresso torpe.

Na mesma linha do raciocínio de Begg, resolvi instigar o imenso monólito da arquitetura ortodôntica, tentando reproduzir o achado dele, agora sob um olhar micro: o DNA. Optei por estudar a população indígena da Amazônia brasileira33. Normando D, Almeida MA, Quintão CC. Dental crowding: the role of genetics and tooth wear. Angle Orthod. 2013 Jan;83(1):10-15. , 44. Normando D, Faber J, Guerreiro JF, Quintão CC. Dental occlusion in a split Amazon indigenous population: genetics prevails over environment. PLoS One. 2011;6(12):e28387., nos mesmos moldes de Begg, e embarquei pela exuberância do Xingu, carregando a genética em meu alforje.

Inicialmente, deve-se entender que, entre as populações de ameríndios (índios americanos), a formação de novas aldeias é um evento frequentemente observado, seja por um mecanismo de fissão (divisão) ou fusão (união). Logo, é fácil entender que essa mistura contribui para o aumento da variação genética entre as populações indígenas, compensando, assim, a baixa variação intratribal55. Ribeiro-dos-Santos AK, Guerreiro JF, Santos SE, Zago MA. The split of the Arara population: comparison of genetic drift and founder effect. Hum Hered. 2001;51(1-2):79-84.. Assim, ao contrário do que se imagina, os grupos indígenas são, geneticamente, bastante distintos entre si, apesar de os indivíduos da mesma aldeia terem traços semelhantes.

Estaria aí a oportunidade para melhor responder a minha inquietação com o tema? Assim sendo, botei as botinas de indigenista e o alforje de pesquisador e, tal como um Begg, agora disfarçado na brasilidade de um Villas-Bôas, aproei minha montaria para o Xingu, entre os anos de 2009 e 2010. A região possui dezenas de aldeias de grupos indígenas de nove etnias diferentes. Trata-se, portanto, de uma das mais altas diversidades étnicas da nossa espécie no mundo.

Na primeira viagem, tivemos contato com dois grupos da etnia Arara. Logo, duas populações genéticas bastante diferentes. Uma investigação antropológica sobre os Arara66. Teixeira-Pinto M. Ieipari - sacrifício e vida social entre os índios Arara. 1ª ed. São Paulo/Curitiba: Ed. Hucitec/ ANPOCS, 1997. reportou que os indivíduos que formam a aldeia Arara-Iriri compõem uma única unidade familiar e seriam todos descendentes de um único casal que, segundo relatos históricos, teria sido expulso de um grupo ancestral denominado Arara-Laranjal. O processo de separação teria ocorrido entre os anos de 1925 e 1926, quando ainda viviam isolados da civilização. O casal expulso teve sete filhos e a expansão inicial da população da aldeia filha Arara-Iriri ocorreu por meio de relações consanguíneas muito próximas, caracterizadas como incestuosas (irmão-irmã, pai-filha, mãe-filho) e, posteriormente, por meio de casamentos de parentes menos próximos (tia-sobrinho, tio-sobrinha, primos em primeiro grau)55. Ribeiro-dos-Santos AK, Guerreiro JF, Santos SE, Zago MA. The split of the Arara population: comparison of genetic drift and founder effect. Hum Hered. 2001;51(1-2):79-84.. A endogamia, por outro lado, é um evento raro na aldeia ancestral.

Um estudo genético55. Ribeiro-dos-Santos AK, Guerreiro JF, Santos SE, Zago MA. The split of the Arara population: comparison of genetic drift and founder effect. Hum Hered. 2001;51(1-2):79-84. comparando as duas aldeias Arara demonstrou a presença de um único haplótipo DNAY e DNA mitocondrial, corroborando com os relatos históricos sobre a origem da aldeia resultante. Esse estudo confirmou um caso drástico de fissão linear (envolvendo parentes) de uma aldeia ancestral. Ademais, revelou que a distância genética e a variação molecular entre as aldeias Arara eram muito grandes, de modo que, apesar da origem comum, as populações que compõem essas aldeias apresentam, atualmente, um genótipo bastante distinto.

Esses indígenas ainda mantêm hábitos alimentares tradicionais, o que foi comprovado pela semelhança do desgaste dentário (evidência direta de como o indivíduo se alimentou no passado), apesar de diferentes aldeias. Portanto, teríamos duas populações de mesma origem vivendo em ambientes semelhantes e bem distintas geneticamente. Prato cheio para responder à pergunta inicial, agora com subsídio genético.

No desenho do trabalho, traçamos um perfil epidemiológico sobre a má oclusão e foram observadas diferenças marcantes nas características dentofaciais. A prevalência da má oclusão foi, aproximadamente, o dobro na aldeia resultante (Arara-Iriri). A maioria da população da aldeia original apresentou uma relação normal entre as arcadas dentárias, contudo, na aldeia filha (Arara-Iriri), a Classe III era a relação sagital mais comum, atingindo cerca de um terço da população. Outro resultado espasmódico foi a ausência do apinhamento dentário na aldeia resultante, enquanto essa característica ocorreu em cerca de um quarto da aldeia original. Esses resultados mitigam a influência do desgaste dentário no desenvolvimento dentofacial, e enfatizam o predomínio da hereditariedade na etiologia da variação anormal da oclusão dentária e da morfologia da face. Lançamo-nos ao contrário da corredeira importada pelos achados de Begg22. Begg PR. Stone age man's dentition: With reference to anatomically correct occlusion, the etiology of malocclusion, and a technique for its treatment. Am J Orthod. 1954 April;40(4):298-312..

Após as minhas andanças pelas terras Arara, resolvi apontar a canoa para mais adiante. Resolvemos visitar um grupo Assurini, no rio Xingu, e duas aldeias de etnia Xicrin-Kaiapó, no rio Bacajá. Os resultados observados ratificaram a marcante diferença observada no padrão oclusal entre esses grupos. Expelimos a mesma conclusão. Nenhuma novidade para um ortodontista brasileiro que, no início dos anos 70, visitou os índios Yanomamis: o Dr. Cléber Bidegain Pereira, gaúcho de Uruguaiana. Entre os Yanomamis, caracterizados por viverem em regime de completo isolamento, constatou-se a presença da má oclusão em 71% da amostra, muito semelhante ao observado nas populações urbanas brasileiras. O apinhamento foi observado em 48% dos indígenas, apesar da preservação dos hábitos alimentares originais, com os adultos apresentando as cúspides completamente desgastadas. O nosso verdadeiro Villas-Bôas da Ortodontia concluiu, então, que a má oclusão é uma alteração determinada geneticamente e que acompanha a evolução morfológica do homem, portanto, independe da atividade mastigatória. Chegamos à mesma aldeia meio século depois.

Toda ciência deve aquilatar a possibilidade de erro nas suas conclusões: é fato. E sempre reexaminando o próprio umbigo, exposto, como é costume entre os indígenas. Existe a chance de estarmos equivocados; mas cisnes negros existem, na realidade científica e em obras de não-ficção, como o filme dirigido por Cao Hamburger, um cineasta gerado por cientistas. Xingu, um emaranhado de encontros d´água, gente, ciência e consciência.

David Normando - editor-chefe (davidnormando@hotmail.com)

REFERENCES

  • 1
    Normando D. The statistics of clinical case. Dental Press J Orthod. 2012 May-June;17(3):1.
  • 2
    Begg PR. Stone age man's dentition: With reference to anatomically correct occlusion, the etiology of malocclusion, and a technique for its treatment. Am J Orthod. 1954 April;40(4):298-312.
  • 3
    Normando D, Almeida MA, Quintão CC. Dental crowding: the role of genetics and tooth wear. Angle Orthod. 2013 Jan;83(1):10-15.
  • 4
    Normando D, Faber J, Guerreiro JF, Quintão CC. Dental occlusion in a split Amazon indigenous population: genetics prevails over environment. PLoS One. 2011;6(12):e28387.
  • 5
    Ribeiro-dos-Santos AK, Guerreiro JF, Santos SE, Zago MA. The split of the Arara population: comparison of genetic drift and founder effect. Hum Hered. 2001;51(1-2):79-84.
  • 6
    Teixeira-Pinto M. Ieipari - sacrifício e vida social entre os índios Arara. 1ª ed. São Paulo/Curitiba: Ed. Hucitec/ ANPOCS, 1997.
  • 7
    Pereira CB, et al. Saúde periodontal, oclusão, desgastes e outras características nos índios Yanomamis (aborígenes brasileiros). Ortodontia. 1972;5(1):39-54.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    May-Jun 2014
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