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O espaço-tempo da literatura contemporânea: sobre As margens da ficção de Jacques Rancière

RANCIÈRE, J. As margens da ficção. Scheibe, Fernando. São Paulo: Editora 34, 2021

As margens da ficção, publicado em francês em 2017 e traduzido em 2021 para o português pela Editora 34, é um livro de ensaios do filósofo Jacques RancièreRANCIÈRE, J. As margens da ficção. Trad. Fernando Scheibe. São Paulo: Editora 34, [2017] 2021. que se propõe, a partir de uma gama bastante diversa de obras literárias, a reorganizar alguns princípios da crítica literária tendo como parâmetro a poética clássica, em especial a aristotélica. O livro não se ancora numa disciplina especializada, de modo que não se pode dizer se é crítica ou filosofia da literatura. Isso tem algumas vantagens, pois foge ao especialismo e amplia o debate com os campos da historiografia e da política, mas que certamente há de provocar certas inquietações no leitor preocupado com a dimensão sistemática dos estudos literários. A fim de apontar alguns pontos de interesse que o livro traz, acredito valer a pena fazer uma pequena digressão e abordar algumas das bases da crítica literária contemporânea.

Houve um tempo em que a disciplina foi marcada por forte inspiração sociológica e historiográfica, momento em que esteve mais preocupada em revelar o caráter nacional das obras ficcionais do que suas dimensões formais. Longe de ser uma questão puramente brasileira ou latino-americana, essa foi uma tendência comum entre europeus durante todo o século XIX. Entre nós (brasileiros), bastaria pensar no texto clássico de Machado de Assis sobre o “instinto de nacionalidade”, publicado em 1873. No século XX, como todas as formas de pensamento social, a crítica literária se expandiu, conheceu novas metodologias e inspirações, inventou modelos e linhas de pesquisa próprias. Podemos citar algumas “escolas” que fizeram cidade entre nossos intelectuais: os dialéticos, hegelianos e marxistas (Antonio Candido e Roberto Schwarz); os desconstrucionistas (Silviano Santiago); os estruturalistas (a primeira fase de Luiz Costa Lima); e os pós-estruturalistas e seus críticos (José Guilherme Merquior).

Na medida em que a crítica se expandiu, ela também se fragmentou e suas diferentes vertentes criaram embates, por vezes muito produtivos, outras levando a questões inconciliáveis. A questão nacional, contudo, retorna a cada tanto tempo, mostrando-se ainda um problema que une sociólogos, historiadores e críticos literários de diferentes vertentes (exceto, talvez, para os formalistas mais preocupados com estruturas linguísticas descoladas da realidade social concreta). Para falarmos de autores contemporâneos, por volta dos anos 1980, aparece um problema (ao menos para os de inspiração marxista), que é o da inserção globalização do capitalismo. É quando Fredric JamesonJAMESON, F. Mapeamento cognitivo. Trad. Gabriel Tupinambá e Luisa Marques. Revista Porto Alegre, julho de 2021. Disponível em: <http://revistaportoalegre.com/mapeamento-cognitivo/>.
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apresenta uma de suas teses mais influentes, que é a do pós-modernismo enquanto lógica cultural dominante. Outras de suas preocupações ficaram mais ou menos obscuras, aparecendo de maneira um tanto quanto marginal até hoje. Num cenário de capitalismo globalizado e de produção de mercadorias de maneira fragmentada por todo o território do planeta, a estética precisa recuperar sua função pedagógica e “ensinar a ver” de uma maneira ainda mais geral, abstrata e abrangente. Acredito que seja a partir dessa óptica que o livro de Rancière possa ser mais bem aproveitado.

Segundo essa perspectiva, o estudo da literatura contemporânea seria capaz de desenvolver mecanismos teórico-conceituais, a fim de recuperar a dimensão educativa da arte e possibilitar concepções mais elaboradas a respeito da realidade a partir dela. Para Jameson, isso queria dizer: trazer o contexto global para dentro da própria metodologia da crítica. Percebe-se a reapropriação de sua ideia em algumas obras contemporâneas tão díspares quanto Cidade porosa (2013), de Bruno Carvalho e Cartographies of the Absolute (2015), de Alberto Toscano e Jeff Kinkle.

Na leitura de As margens da ficção, é possível reconhecer parte dessas preocupações. Resumo, a seguir, os pontos principais dessa obra de Rancière, a fim de solidificar meu argumento. Percebe-se: a) preocupação constante, atravessando quase todos os ensaios do livro, com a recuperação e atualização das teses aristotélicas sobre literatura (isso é, a recuperação da dimensão pedagógica da estética); b) questionar a diferença radical entre o estatuto de verdade entre ficção e ciência, apontando a raiz aristotélica comum entre as duas formas de conhecimento do mundo; c) com a possibilidade de ler as narrativas literárias contemporâneas enquanto figurações que aglutinam contextos globais de produção de mercadorias; d) finalmente, levando em consideração a “globalização” da produção estética, considerar uma inversão dos princípios aristotélicos de temporalidade e espacialidade das narrativas. Esses motivos não são mutuamente excludentes e misturando-se dentro do texto do autor.

Quanto à atualização das teses aristotélicas sobre a poética, pode-se observar a maneira pela qual Rancière volta constantemente à questão do encadeamento de eventos, que é um dos elementos fundamentais da constituição do texto trágico. Para Rancière, seguindo Erich Auerbach, a ficção moderna tratou de “democratizar a tragédia”, na medida em que retira dos grandes personagens e das grandes narrativas o privilégio do destino trágico. Trágicos, agora, são também os destinos daqueles que “não eram nada”, daqueles personagens que não eram sequer dignos de menção numa obra ficcional, ou, no melhor dos casos, poderiam aparecer enquanto objeto de riso (nas comédias).

O sofrimento, antes reservado aos grandes personagens, agora está também ao alcance dos personagens “menores”. Isso significa que, para as obras mais importantes da literatura desde o início do século XX, não se tratou de inserir nas fórmulas clássicas novos personagens, mas de reestruturar a temporalidade das narrativas, de modo que não há cadeias de eventos hierarquicamente organizáveis segundo a estrutura de expectativas construída pela poética aristotélica.

Em No caminho de Swann, de Marcel Proust, por exemplo, pouco se poderia dizer da importância histórica ou política do quarto do jovem narrador; ainda assim, trata-se de um espaço que organiza desde as primeiras linhas toda a obra do autor, atribuindo sentido e coerência de forma muito mais marcante do que salões, palácios ou espaços públicos, onde a vida política acontecia. A vida social, conduzida de forma hegemônica pelas classes dominantes, portanto digna de menção na narrativa ficcional trágica, invade o privado. A partir daí, torna-se possível falar dos objetos e da memória que eles carregam na relação que estabelecem com o narrador e, ainda assim, produzir uma grande obra de literatura. Não é incoerente que um dos romances mais importantes da literatura do século XX atravesse páginas e páginas descrevendo memórias que saltam entre quartos, quintais ou salas de jantar que, em si, não possuem qualquer relevância política ou histórica.

Conceitualmente, Rancière mobiliza, novamente a partir de Auerbach, o “momento qualquer” e mostra que no romance moderno - em ramificações que vão de Balzac, Proust, Virginia Woolf até o romance policial, chegando à literatura contemporânea - o tempo pode ser reestruturado e organizado a partir do tipo de atenção dada pelo narrador a um objeto ou memória qualquer. O ponto alto desse argumento se encontra na leitura que o autor fazer de Os anéis de Saturno, de W. G. Sebald, mostrando como essa nova relação temporal possibilita também uma nova espacialidade para o romance.

Há, como o leitor de As margens da ficção poderá perceber, algo essencialmente político nessa concepção. Rancière entende essa revolução literária como parte das revoluções do século XVIII e XIX que marcaram o cenário social europeu. Assim, além de atribuir um papel exclusivo às letras francesas nesse processo, parece insistir em localizar o ponto de partida dessa ruptura formal da literatura fora da literatura.1 1 É preciso dar crédito aqui ao escritor, filósofo e crítico Lucas Lazaretti por apontar não apenas a francofilia de Rancière nesse argumento, mas a forma como ignora processos similares nas letras “marginais” da Europa no século XVIII e XIX.

Outro ponto de interesse da obra é a relação entre ficção e ciência. A moderna ciência social é analisada a partir de categorias aristotélicas. Rancière aponta, tomando Marx como objeto de discussão, um tipo de inversão similar ocorrida dentro do primeiro volume de O capital: as ações de príncipes e reis não são aquilo que deve capturar o estudioso em busca da verdade sobre o mundo - como seria para um historiador clássico -, mas o tipo de operação invisível, submersa, que mobiliza os meios de produção e a circulação de mercadorias.

O submundo do capital agora é a verdade a ser revelada e sua aparência, materializada nos grande eventos e personagens da história, é apenas ideologia. Os pequenos personagens (os trabalhadores) e suas condições precárias de vida saem das margens da ciência e chegam ao centro. Por isso, para Rancière, a ciência moderna é essencialmente trágica. Seus objetivos conduzem a investigação sobre a realidade até que se traga à superfície uma verdade antes submersa. Tal qual uma tragédia, aquilo que era desconhecido por todos agora fica exposto à luz do dia. A ciência universaliza os resultados trágicos de maneira democrática e universal.

Apesar da unidade anunciada pelo próprio Rancière, As margens da ficção não se trata de um estudo sistemático de literatura contemporânea e seu leitor não encontrará uma exposição clara dos argumentos. A maneira escolhida pelo autor de analisar seus objetos, saltando do romance policial ao marxismo, de Proust a W. G. Sebald e, sem qualquer mediação, finalizando com Guimarães Rosa, evidencia a obscuridade de seu método. Os textos analisados aparecem como se fossem produtos de uma força universal, descolada de contextos individuais e coletivos, como se não existissem editoras, livrarias, nem impostos, nem leitores: para apresentar um argumento fundamentalmente filosófico, Rancière ultrapassa quaisquer particularidades envolvidas em cada uma das obras.

Também a noção de “momento qualquer” - que Rancière diz em determinado momento não se tratar de um momento qualquer, mas apenas uma aparência de ocasionalidade - não fica clara. Há uma ou outra referência a Walter BenjaminBENJAMIN, W. Magia e técnica, arte e política. Trad. Sergio Paulo Rouanet. São Paulo: Brasiliense, 1986., mas não exatamente à tese sobre a imagem em Proust, que é aquela que melhor dialoga com seu próprio entendimento do fenômeno. Tal diálogo acrescentaria em muito a compreensão do leitor a respeito da tese de Rancière. Falta também uma discussão mais elaborada a respeito da porosidade existente entre ficção e ciência, assim como do questionamento da diferença entre o estatuto de verdade entre ambas - discussão feita de forma bastante interessante por Luiz Costa Lima (2009)COSTA LIMA, L. O controle do imaginário e a afirmação do romance. São Paulo: Cia. das Letras, 2009. em um de seus livros sobre o nascimento romance moderno.

Ainda assim, pensando na formação do contexto contemporâneo da crítica e filosofia da literatura, o livro de Rancière contribui com a tentativa de “globalizar” teórica e metodologicamente a análise literária. Além disso, sua fuga ao especialismo no estudo da ficção é de grande valia num contexto de grande fragmentação do conhecimento teórico. De modo que, se for possível tomar seu gesto enquanto exemplo e não lição, novas análises podem surgir e fornecer material de grande valia ao campo contemporâneo.

Referências

  • BENJAMIN, W. Magia e técnica, arte e política. Trad. Sergio Paulo Rouanet. São Paulo: Brasiliense, 1986.
  • COSTA LIMA, L. O controle do imaginário e a afirmação do romance. São Paulo: Cia. das Letras, 2009.
  • JAMESON, F. Mapeamento cognitivo. Trad. Gabriel Tupinambá e Luisa Marques. Revista Porto Alegre, julho de 2021. Disponível em: <http://revistaportoalegre.com/mapeamento-cognitivo/>.
    » http://revistaportoalegre.com/mapeamento-cognitivo
  • RANCIÈRE, J. As margens da ficção. Trad. Fernando Scheibe. São Paulo: Editora 34, [2017] 2021.

Nota

  • 1
    É preciso dar crédito aqui ao escritor, filósofo e crítico Lucas Lazaretti por apontar não apenas a francofilia de Rancière nesse argumento, mas a forma como ignora processos similares nas letras “marginais” da Europa no século XVIII e XIX.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    22 Abr 2024
  • Data do Fascículo
    Jan-Apr 2024

Histórico

  • Recebido
    11 Abr 2023
  • Aceito
    16 Maio 2023
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