ARGENTINA
A Argentina e a globalização
Aldo Ferrer
A ARGENTINA defronta-se com graves e crescentes dificuldades. Existe um fio condutor para explicar essas tendências: a qualidade das respostas aos desafios e às oportunidades da globalização.
Tal abordagem foi desenvolvida em estudos anteriores e destaca o fato de que a existência de uma ordem global se defronta, em cada país, com desafios de cuja resolução depende o desenvolvimento ou o atraso (Ferrer, 1996; 2000). Em suma, a história econômica e a análise da atualidade de cada país podem abordar-se mediante a qualidade das respostas - boas ou más - à globalização. Isto requer levar em consideração a complexa trama de circunstâncias históricas, econômicas, sociais e políticas que, em última análise, configura o caminho de cada país e a sua inserção na ordem mundial.
Se a Argentina tem hoje um comportamento insatisfatório é, desta perspectiva, resultado das péssimas respostas aos desafios da globalização. O problema não é de agora no país (Ferrer, 1998) nem, de certo, no resto da América Latina (Ferrer, 1999). Mas, atualmente, as forças globalizadoras são tão intensas que os erros se pagam por um preço maior que em outras épocas.
Permita-me o leitor uma breve referência pessoal. No início da década de 80, em plena crise da dívida, publiquei um livro entitulado Vivir con lo nuestro (1983). A obra mostrava que diante da crise de endividamento era indispensável pôr a casa em ordem, procurar estabelecer o equilíbrio das contas externas e, sobre estas bases, abrir uma negociação com os credores que permitia cumprir os compromissos externos sem ceder quanto aos interesses fundamentais do país. O contraste desse enfoque com o pensamento hegemônico, quer dizer, com a visão fundamentalista da globalização (Ferrer, 1997), ainda ressoa. Praticamente, em todas as apresentações públicas daquelas idéias - conferências ou debates - alguém pergunta sobre essa história de viver com o nosso e qual sua viabilidade na ordem global. Isto provavelmente revela que sobrevive a suspeita de que o rumo seguido, ao contrário daquele enfoque, definitivamente não deu bons resultados.
Antes de passar uma breve revista sobre o comportamento da Argentina frente à globalização convém identificar certos elementos da ordem global relevantes aos efeitos desta análise.
A Globalização
Movimento internacional de capitais
O extraordinário crescimento dos movimentos internacionais de capitais na segunda metade do século XX influi nos investimentos e em suas fontes de financiamento. Os fluxos financeiros cresceram muitas vezes mais do que as variáveis reais da economia mundial: produção, emprego, investimentos e comércio. A respeito deste último, por exemplo, em 1964, os empréstimos internacionais líquidos representavam 8% e, atualmente, mais de 100%.
A imensa maioria dos fundos concentra-se em atividades especulativas que arbitram taxas de juros, tipos de câmbio e variações nas cotações da bolsa. A desregulação das transações financeiras e a transformação dos mercados impulsionada pela revolução da informática produziram um megamercado de escala mundial que opera, considerando as diferenças de fuso horário das principais praças, praticamente 24 horas por dia, sete dias por semana.
Este aumento das correntes financeiras não se refletiu em um incremento da acumulação do capital produtivo e social na economia mundial. A taxa de investimento real se mantém na ordem de 20 a 25%. Em sua maior parte, o mercado financeiro internacional é um sistema autocentrado de transações sobre ativos e passivos. Sua influência sobre o processo real de acumulação de capital enraíza-se em seus efeitos indiretos sobre o comportamento da demanda dos consumidores (o efeito riqueza provocado pelas mudanças das cotações), a taxa de juros e as políticas macroeconômicas dos Estados.
Por sua vez, o crescimento dos investimentos privados diretos tem sido também muito importante. Atualmente, 60 mil corporações multinacionais contam com 500 mil filiais fora de seu país de origem. Os ativos das filiais alcançam mais de US$ 4 bilhões. Por sua vez, a participação das mesmas no produto mundial é da ordem de 8%. Este mesmo percentual registra-se a respeito da relação entre os investimentos das filiais e a acumulação de capital na economia mundial (UNCTAD, 1999).
Resumindo, em média, a poupança interna dos países financia mais de 90% da formação real de capital. Na Argentina e na América Latina registra-se uma relação semelhante.
Um desafio que propõe a globalização financeira e a expansão das corporações multinacionais baseia-se em compatibilizar a participação nestes processos globais com regras de jogo que contribuam para a mobilização da poupança interna (das empresas, do setor público e das pessoas) que é, como se viu, fonte fundamental do financiamento dos investimentos.
Novos padrões de produção
O aumento do comércio internacional e do investimento privado direto, sobretudo a difusão de informação e processamento de dados e imagens em escala planetária, geraram um novo ambiente produtivo fortemente influenciado pelo cenário global (Kosakoff, 2000).
Estes fatos registram o impacto do desenvolvimento da microeletrônica e suas múltiplas aplicações na organização da produção e dos mercados, no desenvolvimento de novos bens de capital e produtos de consumo de massa. Por sua vez, a biotecnologia e novos materiais se multiplicaram e diversificaram a oferta de bens e serviços.
Um resultado notável das novas tecnologias é a flexibilização da organização da produção, tanto pela incorporação de equipamentos multifuncionais, capazes de produzir eficientemente séries curtas de produção, quanto pela versatilidade de habilidades da força de trabalho. Em muitas atividades as economias de escala desapareceram. Deste modo, abriu-se uma nova fronteira para empresas de médio e pequeno porte que operam na fronteira tecnológica com alta eficiência e competitividade. Estas unidades produtivas contam atualmente com o mesmo nível de informatização e de equipamentos das grandes corporações. Por sua vez, os vínculos entre os quadros de pessoal e a direção de tais firmas costumam ser mais versáteis para assimilar as relações industriais emergentes das novas tecnologias. A formação de redes, conglomerados e distritos industriais entre médias e pequenas firmas e entre estas e os grandes conglomerados fortalece o acesso ao mercado e ao financiamento que era, tradicionalmente, um dos gargalos no desenvolvimento das unidades de produção de menor tamanho relativo. Estes processos acumulativos no tecido produtivo são componentes primordiais do que se costuma denominar atualmente a nova economia e fonte de incremento da produtividade, dos lucros e do investimento.
Deste modo, a acumulação de capital e de capacidades tecnológicas, organizacionais e de mercado, operante desde a difusão da revolução industrial do século XIX adquire atualmente uma importância renovada (OECD, 1992). O processo de acumulação registra-se não apenas no nível da firma mas também nas redes associativas entre empresas de diversos tamanhos, nos distritos industriais, nos conglomerados de empresas e em outras vias de vinculação entre as firmas. Isto abarca processos simultâneos de subcontratação, terceirização e outras formas de vinculação em que a agregação de valor compromete a participação de diversas empresas. Daí surgem novas relações com fornecedores e clientes, ofertas a pedidos e racionalização de inventários, que contribuem para aumentar a eficiência e a competitividade das empresas.
Muitas destas mudanças costumam vincular-se à chamada sociedade do conhecimento, na qual os ativos intangíveis (pesquisa e desenvolvimento, patentes, licenças, capacitação etc.) adquirem importância significativa. A telemática, ou seja, a convergência entre a informática e as telecomunicações, está intimamente associada a esta nova economia fundada no conhecimento.
Dimensão endógena e cenário global
Estas transformações ocorrem em um contexto no qual convergem a abertura à ordem global e à formação interna de capacidades tecnológicas e de mercado. O êxito está ligado à aptidão de cada sociedade de incorporar os sinais da ordem global para impulsionar o processo endógeno de acumulação de capital e enriquecimento do tecido produtivo. A resolução das tensões entre o contexto mundial e o meio interno constitui, afinal, a chave do desenvolvimento.
A questão não se soluciona atendendo-se somente ao mercado global. As exportações representam cerca de 20% do produto mundial. Isto significa que, em média, a demanda interna dos países absorve 80% da oferta. Na Argentina, no Brasil e em outros países da América Latina, a proporção é ainda maior. Por sua vez, a proporção da produção mundial internacionalizada, que se pode medir pelo comércio entre as firmas das empresas multinacionais, representa menos de 10% do produto da economia mundial.
O mercado interno é, desta forma, parte fundamental da demanda e do emprego (em média, entre oito e nove de cada dez trabalhadores estão ocupados na produção para o mercado doméstico). Os novos padrões de produção precisam de uma abordagem integrada do acesso ao mercado interno e à ordem internacional, ou seja, requerem-se eixos de organização de recursos que respondam às demandas de uma economia aberta, mas integrada interiormente e fundada em sinergias acumulativas de investimento, conhecimento e capacidades organizacionais.
Notoriamente, a globalização acrescenta significação à dinâmica endógena do desenvolvimento econômico e social. A experiência histórica revela que o êxito dos países reflete a sua capacidade de participarem intensamente nas transações internacionais sobre a base da integração interna e o deslanche dos processos endógenos de acumulação. Sobre esta questão existe atualmente pouca novidade.
Convém observar que as mudanças técnicas reforçam os conteúdos endógenos do desenvolvimento. A perda do peso relativo dos produtos primários na produção e no comércio mundiais reduz a significação da divisão do trabalho fundada no intercâmbio daqueles produtos dos países periféricos por manufaturas elaboradas nos países centrais. Na antiga estrutura produtiva da periferia era possível incorporar a tecnologia na atividade primária e participar, em alguma medida, das correntes expansivas do comércio mundial. Esta possibilidade desapareceu. A única via de inserção dinâmica na ordem global é mediante a especialização intra-industrial que requer a existência de uma estrutura produtiva complexa. Isto não se importa de repente. Requer, ao contrário, que se acionem os processos acumulativos a que se fez referência anteriormente. Na ordem global contemporânea, a dimensão endógena do desenvolvimento é mais importante do que em qualquer outro momento do passado.
As políticas públicas
O peso do mercado interno, da poupança doméstica e da significação da dimensão endógena para o desenvolvimento revela quão infundados são os pressupostos da visão fundamentalista da globalização. Não é verdade que a maior parte das transações tenha lugar no mercado mundial, que o grosso da produção se encontre transnacionalizado, que a acumulação de capital seja decidida essencialmente pelos atores transnacionais, nem que, conseqüentemente, desapareceram as fronteiras e a capacidade de cada país decidir seu próprio destino. O Estado e as políticas públicas tampouco desapareceram.
Na realidade, no cenário atual, a qualidade das respostas à globalização depende da capacidade pública e privada de mobilizar o potencial interno disponível para associá-lo de maneira eqüitativa, simétrica, não-subordinada à ordem global. Um exemplo é proporcionado pelo desenvolvimento dos tecidos produtivos nas economias avançadas e pela importância decisiva das pequenas e médias empresas. Os fatos antes recordados a este respeito só foram possíveis pela coexistência da iniciativa dos atores privados no marco de políticas ativas de promoção da tecnologia, da organização, do financiamento e do mercado. Para tanto foram necessários Estados e lideranças empresariais capazes de mobilizar recursos com suficiente grau de autonomia para perseguir seus próprios objetivos.
A Argentina
Um aparente paradoxo
Uma vez mais, no decorrer da década de 90, a economia argentina foi o cenário de acontecimentos paradoxais. O período registra uma taxa de crescimento do PIB próxima dos 5% anuais e um acumulado do produto por habitante na ordem dos 30%. Comportamento na verdade notável, considerando-se a prolongada estagnação prévia. Ao mesmo tempo, a alta da inflação, instalada desde fins da década de 40, e a culminação na hiperinflação de 1989-90 foram substituídas pela estabilidade dos preços. Estes indicadores de crescimento registraram duas interrupções no transcurso da década passada: 1995 e 1998 até a atualidade. Em princípios de 2001 continua uma débil atividade econômica que já se prolonga por mais de 30 meses. Em ambos os casos, aparentemente, como conseqüência inevitável do contágio de turbulências financeiras internacionais.
Outros acontecimentos significativos são a ampliação da fronteira de recursos naturais agropecuários, energéticos e minerais e as melhoras observadas nos serviços públicos privatizados (telecomunicações, energia elétrica, gás, rede viária etc.), nas redes comerciais administradas por grandes operadores e nos serviços bancários. As filiais de empresas estrangeiras no setor manufatureiro e alguns conglomerados de capital nacional têm impulsionado uma profunda transformação na produção de insumos básicos (alumínio, aço, petroquímica, refinarias de petróleo), alimentos, automóveis e em diversas manufaturas de consumo de larga escala. Em todos estes ramos registram-se forte concentração de produção em poucas firmas, incremento da dotação de capital, incorporação de tecnologia de nível internacional e notáveis aumentos de produtividade.
Estes fatos estão intimamente associados às mudanças registradas no cenário mundial e nos rumos da política econômica do governo do presidente Menem. A respeito dos primeiros cabe observar a mudança de sinal na transferência de recursos para América Latina. Na chamada década perdida de 80, em plena crise da dívida externa, registrou-se uma transferência líquida de recursos desde a região para o resto do mundo de US$ 220 bilhões. Na seguinte, a partir de 1991, produziu-se substancial aumento do investimento privado direto e dos empréstimos financeiros, gerando uma transferência líquida para a região de US$ 170 bilhões. Isto permitiu financiar o déficit da conta corrente dos países latino-americanos e aumentar as reservas internacionais das autoridades monetárias.
Quanto às mudanças da política econômica argentina, desde o início da sua gestão, em meados de 1989, o presidente Menem acionou uma estratégia de abertura, privatizações, desregulamentação dos mercados e incentivos ao investimento privado direto e aos financiamentos externos. A conversibilidade e a fixação do tipo de câmbio em princípios de 1991 estabeleceram a nova estratégia em um contexto de estabilidade dos preços.
Um conjunto de circunstâncias foi muito favorável à evolução do modelo. Como no resto da América Latina, a transferência líquida de recursos com o exterior (entradas de capitais menos pagamentos de juros e amortizações) transformou-se de negativa em positiva: de menos US$ 35 bilhões na década de 80, a mais de US$ 55 bilhões entre 1992 e 1999. Ao mesmo tempo, a estabilidade dos preços teve um efeito positivo sobre a opinião pública, a demanda interna e a arrecadação tributária. Os recursos fiscais também aumentaram em US$ 20 bilhões pela venda de empresas públicas. Tudo isto viabilizou a expansão do gasto público, a demanda privada de consumo e investimento, a produção e o ingresso de capitais.
O cenário de crescimento, estabilidade e transformações foi acompanhado, no entanto, pelo mal estar social e pela percepção de incredulidade acerca do futuro. Vejamos algumas causas deste paradoxo.
O desemprego aberto, somado às ocupações informais de baixa produtividade, alcança atualmente dimensões sem precedentes. O mesmo sucede com a proporção da população em situação de pobreza. As remunerações médias na atividade manufatureira estão praticamente estancadas na última década e têm declinado para a maior parte da força de trabalho no conjunto da economia. A distribuição da riqueza e o ingresso têm piorado nos últimos anos. A Argentina, que não se caracterizava por registrar péssimos índices de concentração de renda dentro da América Latina, está se aproximando daqueles países em pior situação nesta matéria.
Os avanços em alguns setores têm sido acompanhados pela retração nas economias regionais e em multidões de pequenas e médias empresas. Deste modo, as mudanças estruturais registradas nos anos recentes tendem à formação de um sistema econômico e um mercado de trabalho fraturados: em um segmento prevalecem atividades de alta produtividade e crescimento; em outro, baixas dotações de capital e tecnologia e menores níveis de produção por pessoa ocupada.
O primeiro gira ao redor de 1/3 do PIB e 20% do emprego total, e inclui diversas áreas industriais, de serviços públicos privatizados (particularmente naqueles de rápida transformação tecnológica, como as telecomunicações), as grandes redes de comercialização, a exploração da nova fronteira de recursos naturais, as empresas agropecuárias mais eficientes e serviços nos quais haja penetrado a tecnologia da informática. Estas atividades têm incrementado a proporção de seus insumos importados, desorganizando conexões prévias com a produção interna de bens e serviços (incluindo a oferta do sistema nacional de ciência e tecnologia) e, em conjunto (excluindo a exportação de produtos primários), registram um forte déficit em sua balança operacional de divisas. Estas atividades caracterizam-se por baixa capacidade de geração de emprego, maior capacitação relativa de sua força de trabalho e salários médios substancialmente superiores à média da economia. As áreas produtoras de bens e serviços não-transferíveis, como no caso dos serviços públicos, registram benefícios adicionais pela melhora de seus preços relativos.
As outras atividades geram ao redor de 2/3 do PIB e 80% do emprego. Estas abarcam o universo de pequenas e médias empresas, a maior parte da produção das economias regionais e boa parte do setor público nacional, provincial e municipal pós-privatizações. Nestas áreas estão incorporadas as empresas e trabalhadores informais com baixos níveis de produtividade e salários. Tais atividades produzem quase exclusivamente para o mercado interno e se abastecem essencialmente de bens e serviços da produção nacional. As conexões destes setores tradicionais com a área moderna da economia têm-se debilitado desde meados da década de 70 e, particularmente, na de 90. No caso das produtoras de bens transferíveis, a menor taxa de crescimento destas atividades tem sido agravada pela abertura do mercado interno e pelo movimento dos preços relativos. Estes registram o efeito do tipo de câmbio fixo e o aumento dos custos internos não-transferível aos preços de venda. Tais circunstâncias provocaram a quebra e o desaparecimento de numerosas empresas, particularmente nos ramos de metalmecânica, têxtil e vestuário. Outras, como as que operam no comércio varejista, não suportaram a concorrência das redes de supermercados.
Esta dualidade do sistema produtivo e do mercado de trabalho coincide com a perda de competitividade e o crescente endividamento externo. Como veremos logo, a Argentina é o país mais endividado da América Latina (depois da Nicarágua). Os serviços da dívida geram uma demanda crescente de divisas, e os da dívida pública representam proporções cada vez maiores do gasto público consolidado. A perda de competitividade reflete-se no persistente déficit da balança comercial, que recentemente se está conseguindo eliminar depois de uma prolongada contração da demanda interna.
A economia argentina está subordinada a um gigantesco e crescente déficit em seus pagamentos internacionais. Ao efeito já comentado da dívida e do desequilíbrio operacional nas divisas das filiais das empresas multinacionais deve-se agregar a perda de competitividade produzida pela deterioração do tecido produtivo e a sobrevalorização cambial. Deste modo, registram-se uma reprimarização das exportações argentinas (predomínio de commodities e energéticos) e um incremento da brecha no conteúdo tecnológico do comércio exterior. Enquanto as exportações suportam a debilidade relativa da demanda internacional e a instabilidade dos preços dos produtos primários, as importações registram incremento do coeficiente importado dos setores de maior crescimento da economia (incluindo os liderados pelo investimento estrangeiro).
Como resultado desta soma de acontecimentos, a necessidade de financiamento externo continua aumentando. Na atualidade a mesma sobe a US$ 15 bilhões, equivalentes a 4% do PIB.
As condições, que foram inicialmente tão favoráveis ao modelo, mudaram. Não sobram mais ativos públicos vendáveis, e a situação fiscal piora pelo estancamento da arrecadação tributária e pelo peso crescente dos serviços da dívida. Por sua vez, a estabilidade dos preços esgotou seu efeito positivo sobre a demanda interna.
Respostas à globalização
Como em outros países, prevalecem atualmente na Argentina as reformas orientadas a abrir a economia, a privatizar os serviços públicos, a eliminar as regulamentações e a transmitir sinais amistosos para os mercados. Estas reformas deveriam produzir uma maior eficiência do emprego dos recursos disponíveis, promover a competitividade, aumentar a produção e o emprego. Trata-se de responder aos desafios e às oportunidades da globalização, com normas propícias ao bom funcionamento dos mercados, os quais permitiriam uma relação equilibrada e dinâmica com a ordem mundial.
Como vimos, os resultados não foram os prometidos. Na realidade a nova estratégia incorreu em três disparates fatais: provocou uma dívida excessiva, incorporou indiscriminadamente numerosos investimentos privados diretos e renunciou à condução da política econômica. Detenhamo-nos brevemente em cada um destes três pontos.
Dívida externa
O golpe de estado de 1976 coincidiu com o auge do movimento internacional de capitais e a penetração das entidades financeiras transnacionais nos mercados periféricos. A partir de então, a dívida externa cresceu sem pausa. Na década de 90 aumentou 150% e alcança na atualidade US$ 145 bilhões. Em relação ao valor das exportações, a Argentina registra o pior indicador de endividamento da América Latina (salvo a Nicarágua): 5.3 vezes frente aos 2.2 da média regional. Os juros obtidos sobre a dívida externa representam mais de 40% do valor das exportações, se comparados com os 17% da média da região.
O efeito do endividamento externo sobre as finanças do Estado é também notável. Os serviços da dívida pública externa representam atualmente 20% do gasto fiscal consolidado, proporção quatro vezes maior que a de princípios da década de 90.
Investimento privado direto
No curso da década de 90, ingressaram no país US$ 50 bilhões. Cerca de 80% destes investimentos destinaram-se à compra de ativos existentes correspondentes às empresas públicas privatizadas, empresas industriais e redes comerciais de capital local. Atualmente na economia argentina verifica-se um dos maiores índices de estrangeirização do mundo: a maior parte da infra-estrutura, as grandes empresas comerciais, o sistema bancário, as redes comerciais e os serviços de informação e comunicações são atualmente propriedade de não-residentes. A relação entre os rendimentos pagos e as exportações é superior a 10%, frente a pouco mais de 6% verificado no conjunto da América Latina.
Em sua maior parte, as filiais de empresas estrangeiras produzem para o mercado interno, mas realizam transferências ao exterior a título de insumos, bens de capital e pagamentos de royalties e rendimentos. O balanço operacional em divisas das empresas estrangeiras radicadas na Argentina representa cerca de 1/3 do déficit do balanço de pagamentos em conta corrente.
Regime cambial
A instalação de um regime de conversibilidade com tipo de câmbio fixo a partir de 1991 respondeu inicialmente à necessidade impostergável de erradicar a inflação e restabelecer a ordem no funcionamento dos mercados. A paridade inicial estava superavaliada em cerca de 30%. Até que fosse alcançada a convergência dos preços internos com os internacionais, a defasagem aumentou a 50%. Desde o início, como já havia sucedido com a reforma financeira de 1977, a competitividade internacional da produção argentina de bens e serviços se deteriorou. A abertura comercial com sobrevalorização cambial constituiu-se em uma combinação explosiva.
A permanência do regime levou a uma sobrevalorização crônica e praticamente à dolarização da economia argentina. A moeda norte-americana circula como meio de pagamento interno em paridade com o peso. Ao redor de 2/3 dos passivos e ativos financeiros estão denominados em dólares. Em tais condições, a oferta monetária é determinada pela evolução das reservas do Banco Central, a taxa de juros reflete o risco país e o déficit fiscal está limitado pelo acesso ao crédito internacional.
As conseqüências
Este conjunto de disparates não constitui uma simples soma de erros de avaliação. Pelo contrário, foram fundamentais a interesses setoriais, associados à especulação financeira, à apropriação de ativos públicos subavaliados e à corrupção infiltrada nos tomadores de decisões sobre questões de vital interesse para o país.
Seja como for, as conseqüências foram péssimas na ordem interna e, a respeito da globalização, foi instalada uma subordinação sem precedentes aos acontecimentos externos. Observemos brevemente algumas dessas conseqüências.
A política econômica
A dependência do financiamento externo reduziu a política econômica argentina a administrar a dívida e a tratar de reduzir o risco país. Quer dizer, o objetivo central da política é influir nas expectativas dos mercados financeiros internacionais. Esta percepção doméstica do sentido da política econômica reforça-se pelas exigências dos credores, instrumentalizadas mediante os acordos com os organismos de Bretton Woods. Mais do que em outros momentos do passado, a evolução da atividade econômica está essencialmente determinada por fatores exógenos. Em primeiro lugar, pela resposta dos mercados financeiros internacionais e, em menor medida, pela evolução dos preços das commodities exportadas pelo país.
A política econômica carece de instrumentos para administrar a conjuntura por causa do endividamento e, sobretudo, da rigidez da política cambial. O tipo de câmbio fixo que foi bem sucedido para a eliminação da hiperinflação implica, de fato, uma situação muito próxima da dolarização plena. A política monetária e fiscal está atada pelo regime cambial. Este sustenta-se pela resignação de uma opinião pública que tem pânico de regressar ao transbordamento inflacionário. A mesma estabilidade e o ajuste dependem de fatores exógenos que impõem um alto custo de contração e deterioração social, cada vez que se produz a menor incerteza sobre a permanência da paridade do peso.
A política econômica limita-se a transmitir sinais amistosos aos mercados financeiros internacionais. Supõe-se que assim baixaria a taxa de juros, aumentaria o investimento e cresceria o nível de emprego. Trata-se de uma expressão de desejos raramente confirmada pela realidade.
Definitivamente, os critérios dos credores e as exigências do ajuste estrutural propiciados pelo FMI e pelo Banco Mundial configuram um quadro de subordinação permanente a restrições exógenas. A política econômica argentina é atualmente residual e opera dentro de uma estreita margem de manobra. Esta política resulta em grande medida impotente para mobilizar recursos e remediar a deterioração que suportam as economias regionais, as pequenas e médias empresas e a situação social.
É também impotente para enfrentar as turbulências dos mercados financeiros internacionais. Frente a qualquer mudança de expectativas (como aconteceu em 1995 durante o chamado efeito tequila e em 1997-98 pela insolvência da Rússia e a crise de vários países asiáticos), o risco de contágio é imenso. A resposta é então a recessão, o desemprego e o agravamento da situação social. Por sua vez, as modificações da taxa de juros internacionais ou a mudança na qualificação do país por seu risco introduz um elemento de instabilidade no orçamento e nos pagamentos internacionais inadministráveis com os instrumentos disponíveis, quer dizer, sem política cambial fiscal ou monetária. O mesmo sucede a respeito da modificação da paridade do dólar e do euro, que afeta a capacidade competitiva do país nos diferentes mercados nos quais opera. O vínculo ao dólar impede que o tipo de câmbio do peso compense esses câmbios no contexto externo.
Um fato notável da situação argentina é que os serviços públicos privatizados (eletricidade, água, gás, telefone, pedágios) têm tarifas ajustáveis pela inflação dos Estados Unidos. Nos últimos quatros anos, os preços norte-americanos ao consumidor subiram 9% enquanto na Argentina permaneceram estáveis. Deste modo, mesmo quando os preços domésticos não subam ou baixem, as tarifas aumentam. Tal comportamento de um segmento da economia essencial na determinação do nível geral de preços, somado à enorme e incerta incidência dos serviços da dívida, determina que os salários resultem como a única variável de ajuste para sustentar a conversibilidade e a paridade do peso um a um com o dólar. Assim, a Argentina é provavelmente, na atualidade, o único país do mundo no qual a redução nominal dos salários é um instrumento de política econômica.
O tecido produtivo
As reformas inspiradas no consenso de Washington - somadas ao endividamento externo -, a incorporação maciça de investimentos privados diretos e a conversibilidade provocaram uma mudança drástica nas regras do jogo. Não que o Estado tenha permanecido à margem dos acontecimentos mencionados. Pelo contrário, a estratégia seguida promoveu a concentração de capital e de riqueza, e castigou as produções regionais e das empresas que não conseguiram adaptar-se (ou não tiveram tempo de fazê-lo) ao novo contexto. O resultado foi a dualidade que caracteriza atualmente a economia e o mercado de trabalho.
Esta dualidade foi acrescentada pela entrada maciça de investimentos privados diretos e um extraordinário processo de transferência de titularidade de ativos a filiais de empresas estrangeiras. O grosso destes investimentos não se materializou na instalação de novas empresas e na ampliação da capacidade produtiva, mas, majoritariamente, na compra de empresas, ativos e redes de comercialização preexistentes no país, como no caso dos serviços públicos, de diversas firmas industriais e dos bancos. Uma das conseqüências destes fatos foi a forte redução dos postos de trabalho e o aumento da produção por homem ocupado.
A estrangeirização e os laços entre matrizes e filiais, somados à abertura do conjunto do setor moderno, estabelecem laços mais profundos entre as atividades dinâmicas e o mercado mundial do que na economia interna. Da perspectiva de muitas empresas, a Argentina é hoje essencialmente um mercado para a venda de bens e serviços provistos do exterior ou, quando produzidos localmente, com crescente participação de insumos importados. O problema não está na abertura, mas em que abranja essencialmente as importações, sem efeitos sobre a competitividade em outros mercados e as exportações.
Nas economias desenvolvidas e em países mais bem sucedidos de industrialização recente existem redes, conglomerados e distritos industriais reveladores da integração do sistema. Na Argentina, ao contrário, observa-se uma desagregação do tecido produtivo e a fratura entre seus principais agentes. Desapareceram elos internos e surgiram novos laços com o contexto externo. Estes não atuam como elementos de transmissão entre as mudanças nos mercados mundiais e a realidade interna, mas como agentes de desarticulação e fratura.
Tal fato é observado no comportamento das filiais de empresas multinacionais e em conglomerados de capital nacional. Seus vínculos com o espaço interior debilitaram-se, contribuindo para a dualidade do sistema. Por sua vez, as mudanças na composição da demanda, derivadas da concentração do ingresso e da abertura, orientam parte principal do gasto aos setores favorecidos pela estratégia adotada.
Estas respostas à globalização frustram o intensivo potencial de desenvolvimento das médias e pequenas empresas, incluindo as que utilizam tecnologia intensiva. Desaparecem assim do cenário unidades produtivas que, dadas as tendências predominantes na mudança tecnológica, deveriam ter um amplo horizonte de crescimento para o espaço interno e o mercado mundial. As possibilidades da chamada sociedade do conhecimento ficam então reduzidas aos setores concentrados. Para a maior parte do sistema não é suficiente ter acesso à informática e à internet, se as regras do jogo não contribuem para a capitalização e o desenvolvimento das firmas.
As debilidades do contexto explicam o escasso efeito que têm as políticas ativas para promover o desenvolvimento de pequenas e médias empresas e as economias regionais. Uma das causas deve-se à escassa magnitude dos recursos destinados a tais fins devido à contínua necessidade de comprimir gastos, aumentar a carga de impostos e transmitir sinais amistosos aos mercados financeiros internacionais.
Ciência e tecnologia
As tendências assinaladas têm debilitado os vínculos entre a produção de bens e serviços e o sistema nacional de ciência e tecnologia. O incremento das importações e a inclinação das filiais das empresas multinacionais a abastecer-se de bens de capital e tecnologia em seus países de origem têm deprimido a demanda de tecnologia, maquinários e equipamentos produzidos internamente. Tais comportamentos têm sido difundidos nas firmas de capital nacional.
Deste modo, os problemas do sistema científico-tecnológico não dependem somente da escassez de recursos, por outra parte compreensível dadas as restrições orçamentárias. Influem de maneira decisiva as transformações produzidas na economia e as orientações das políticas públicas que têm debilitado os laços entre a produção e o sistema de ciência e tecnologia (Ferrer, arquivos recentes). Estes fatos refletem-se, por exemplo, na deterioração da produção local de bens de capital, no desmantelamento de departamentos de pesquisa e desenvolvimento em numerosas empresas e na substituição dos processos de adaptação de tecnologia pela simples importação de equipamentos e processos prontos para uso imediato.
Poupança e investimento
Até a crise da dívida dos anos 80, a taxa de investimento na Argentina era da ordem de 20% a 22%. A poupança interna financiava praticamente a totalidade do investimento de capital. O endividamento externo e a abertura ao investimento privado direto mudaram esta situação. Na década de 90, a dívida externa privada aumentou em US$ 85 bilhões e ingressaram cerca de US$ 50 bilhões de investimentos privados diretos, ou seja, uma entrada agregada de US$ 135 bilhões. Mal a década terminou, a taxa de investimentos recuperou níveis da ordem de 22%, mas, agora, a poupança interna financia apenas 80% da acumulação de capital. Fato observado pela CEPAL em vários países da América Latina, a abertura à entrada de capitais estrangeiros costuma ser acompanhada por diminuição da poupança interna. No caso argentino, a taxa de poupança interna/PIB é 30% inferior à que prevalecia antes da crise da dívida.
Deste modo, tem-se deteriorado a acumulação de capital. Por sua vez, a transferência de setores mais dinâmicos e rentáveis da economia a filiais de empresas estrangeiras (como no caso do serviço de telecomunicações, de diversas empresas industriais e das redes comerciais) reforça a estrangeirização do sistema produtivo uma vez que a entrada de recursos reflete as prioridades das matrizes ao invés dos objetivos próprios do país. A orientação do processo de acumulação está, no fundamental, exogenamente determinada.
Organização do sistema
Em resumo, as péssimas respostas da Argentina aos desafios e oportunidades da globalização fazem com que a economia esteja organizada em torno de eixos transnacionais: os critérios dos mercados financeiros, as políticas das filiais e as exigências das organizações de Bretton Woods. O país tem perdido grande parte de sua capacidade de conduzir sua política e a organização de seus recursos.
Provavelmente o pior não seja a existência de restrições reais, mas a conformidade de influentes interesses econômicos e setores de opinião sobre a inevitabilidade destes fatos e seu caráter irreversível. Trata-se de uma visão fundamen-talista da globalização segundo a qual este é o único dos mundos possíveis.
Este cenário é incompatível com o desenvolvimento sustentável, o progresso social, a participação nas correntes de tecnologia e comércio mundiais, e o estabelecimento de uma relação simétrica de mão dupla com a ordem global. Deste modo, o país é arrastado por uma corrente de acontecimentos totalmente fora de seu controle. Veremos mais adiante as repercursões destes fatos sobre o Mercosul.
Estas questões transcendem o espaço econômico para abarcar a viabilidade do exercício da democracia e a soberania na Argentina. Detenhamo-nos brevemente neste ponto.
Democracia e soberania
As crescentes restrições à condução da política econômica e o predomínio da visão fundamentalista da globalização modificam as regras de funcionamento do sistema democrático e o exercício da soberania.
A soberania, entendida aqui como a capacidade de decidir o próprio destino na ordem global, requer que os atores sociais e políticos do país tenham suficiente poder decisório para projetar as relações com o resto do mundo. Vale dizer, para organizar os mercados e os recursos conforme critérios que, levando em conta os meios disponíveis e as restrições existentes, persigam a construção de um projeto nacional.
A democracia, conforme os princípios fundamentais estabelecidos pelos grandes pensadores políticos dos séculos XVII e XVIII, John Locke e Charles Montesquieu, e incorporados à ordem constitucional argentina, implica que o poder reside no povo. Por sua vez, a divisão de poderes (executivo, legislativo e judiciário) impõe os equilíbrios necessários para evitar a instalação de uma autoridade despótica. Neste contexto, o povo elege seus governantes para promover o bem comum.
Estes requisitos para a existência de um regime democrático e soberano têm sido alterados na atualidade. Como vimos, a economia argentina está organizada em torno de eixos transnacionais ao invés de em regras de jogo destinadas a construir o próprio destino na ordem global. Influir na percepção dos mercados é o objetivo dominante da política econômica, seja qual for sua conseqüência sobre o desenvolvimento econômico e social e sobre os equilíbrios macroeconômicos.
No plano político temse difundido o conceito de governabilidade da democracia, que consiste em um comportamento de órgãos de estado compatíveis com os critérios dos mercados. Se aquele difere destes, a democracia é ingovernável. Tal enfoque fere os fundamentos da democracia e a da divisão de poderes. Na nova situação, definitivamente, o poder reside no povo. A eleição periódica dos representantes da vontade da cidadania é em grande medida um fato simbólico frente à realidade dos mercados que votam todos os dias e decidem o rumo dos acontecimentos. Para que a democracia seja governável, os três poderes da democracia - executivo, legislativo e judiciário - devem satisfazer os critérios dos operadores da economia e das finanças. Dentro deste enfoque, na verdade, a democracia é um luxo apenas acessível aos países desenvolvidos.
Estas transformações alteram também a teoria do conflito, segundo a qual a resolução de uma diferença entre partes requer que cada uma defina seus interesses e seus representantes os defendam. Na situação atual, isto não se verifica porque uma das partes negocia com os critérios da outra e, freqüentemente, é representada por pessoas associadas a interesses da outra parte.
Tais fatos contribuem para explicar a deterioração da credibilidade dos dirigentes políticos e do próprio regime democrático como o espaço natural para defender a identidade e o próprio destino na ordem global.
Bases para uma nova etapa
do desenvolvimento argentino
No futuro, quando os historiadores explicarem a evolução da economia argentina no último quarto do século XX e princípios do XXI, provavelmente perceberão que as medidas dispostas pelo ministro Cavallo em 1º de dezembro último fecham um ciclo inaugurado pelo ministro Martinez de Hoz em 2 de abril de 1976.
Esta última data corresponde ao anúncio do programa econômico que instalou na Argentina a visão fundamentalista da globalização, segundo a qual o mercado é árbitro todo poderoso da atribuição de recursos e da distribuição do ingresso, e o Estado mero assegurador da ordem pública e do exercício irrestrito das perspectivas racionais dos atores econômicos. Em tais condições, um país como o nosso só pode realizar políticas adaptativas aos critérios dos mercados e deve renunciar a toda fantasia de construir seu próprio destino no mundo global. Qualquer desvio deste realismo periférico culminaria com a desordem, o desemprego e a pobreza.
Com efeito, 25 anos depois o país vive o pior quarto de século de sua história econômica, com desemprego e pobreza sem precedentes, endividado ao limite da insolvência e com seus principais recursos transferidos a titulares não-residentes. Isso, não por desatender aos conselhos do neoliberalismo, mas precisamente por havê-los executado a todo custo. A situação é tal que sequer os bancos podem cumprir normalmente com suas funções próprias, nem os depositantes dispor de seus fundos.
Tudo isso não é conseqüência do ataque de abutres especuladores. As aves de rapina só atacam presas indefesas e, nas finanças, aos países em situação vulnerável. A questão é, portanto, entender como chegamos à situação atual.
A crise enraíza-se nas péssimas respostas à globalização: paridade superavaliada, abertura indiscriminada, desnacionalização maciça, paralisia da política econômica em um mundo em que todas as variáveis mudam. Isto destruiu a competitividade da economia argentina e boa parte do tecido industrial, deprimiu a poupança e gerou um déficit gigantesco dos pagamentos internacionais. O Estado instrumentalizou políticas para gerar enormes rendas especulativas, desfinanciar o orçamento e sustentar a pior das corrupções: dilapidar, por delegação, o patrimônio argentino e empobrecer a maioria.
As decisões de 1º de dezembro ratificam que, contrariamente ao sermão neoliberal, o Estado conserva um poder decisório. Tanto que pode impor o controle do câmbio, regular as taxas de juros e fixar limites para a disposição do dinheiro da população. Como sabíamos desde há muito tempo, a conversibilidade não sobreviveria à uma corrida bancária e à fuga maciça de capitais.
As medidas recentes demoliram os mitos neoliberais da intangibilidade dos mercados e da impotência do Estado para fixar molduras reguladoras, arbitrar conflitos e defender o interesse geral. Pode, como acaba de fazê-lo, impor o controle do câmbio e também, por exemplo, desindexar as tarifas dos serviços públicos, renegociar a dívida pública, promover a concorrência e induzir as filiais de corporações multinacionais a reinvestir seus lucros e abastecer-se de insumos e tecnologia dentro do país.
As últimas decisões reinstalam o poder decisório do Estado mas não resolvem a crise terminal do modelo. A política econômica continua sendo a mesma de 2 de abril de 1976.
A crise não se resolve dolarizando nem desvalorizando a moeda porque, em qualquer caso, as reservas do Banco Central representam cerca de 20% do meio circulante e dos depósitos. Como demonstra a experiência dos últimos dias, não existe possibilidade alguma de converter, para o conjunto do sistema, ativos virtuais denominados em dólares em dólares reais. A menos que um apoio maciço externo, improvável, restabeleça a confiança e evite a corrida bancária e a fuga de capitais. A suposição de que a estrangeirização da maior parte do sistema bancário o consolidava é outra fantasia: nenhuma matriz banca uma corrida contra sua filial argentina.
A atual política econômica está reduzida a sustentar a ficção da conversibilidade a um custo gigantesco de perda de produção, emprego e bem-estar. A crise é terminal e quanto mais se demore em assumir as conseqüências, maior será a desordem que, a esta altura, já é insuportável. Desmoronou-se o regime de contratos em que se sustenta toda economia organizada. Como acaba de decidir o governo, esta realidade é incompatível com os contratos da dívida e os compromissos dos bancos com seus depositantes. O Estado já havia desejado cumprir os contratos virtuais com seus servidores e aposentados. É preciso recompor o regime de contratos sobre bases reais e com o menor custo possível para todas as partes envolvidas.
Para que o Estado possa resolver a crise é indispensável abandonar de imediato a ficção da conversibilidade e converter todos os ativos e passivos denominados em dólares em pesos à paridade atual. É possível garantir o poder aquisitivo em moeda nacional e a poupança da imensa maioria dos depositantes. O Banco Central reassumiria sua capacidade de prestamista de última instância e condutor da política monetária. Isto permitiria restabelecer de imediato o funcionamento pleno do sistema bancário. Enquanto durar a emergência é preciso manter o controle do câmbio na conta de capital e liberar na maior medida possível as transações correntes. Uma renegociação da dívida bem conduzida, aproveitando ao máximo as oportunidades que hoje oferece o contexto externo, reduziria os pagamentos a limites compatíveis com os equilíbrios do orçamento e o balanço de pagamentos, e a reativação da economia.
No marco de um plano de reativação da demanda e da produção é preciso manter em equilíbrio as contas públicas e fortalecer o balanço de pagamentos, protegendo o mercado interno e incentivando as exportações. Um ataque maciço contra a evasão fiscal e uma reforma tributária e do sistema previdenciário que imprima eqüidade à tributação permitiriam um rápido aumento da arrecadação de impostos. Os equilíbrios macroeconômicos restabelecidos permitiriam flexibilizar a política cambial com a intervenção do Banco Central. A evolução do tipo de câmbio dependerá do comportamento da economia e do governo. No contexto da situação existente e dos equilíbrios fundamentais do sistema, não cabe esperar ajustes drásticos da paridade nem dos preços. O país aprendeu muito com as conseqüências da conversibilidade, mas também com as desordens do passado que desembocaram na hiperinflação, nas desvalorizações maciças e na destruição da moeda nacional.
É preciso viver com o nosso e sobre bases responsáveis de condução da economia, traçar a estratégia de mobilização do potencial argentino para crescer e assumir nosso próprio destino na ordem global.
Argentina, 5 de dezembro de 2001
Aldo Ferrer é professor-titular da Universidade de Buenos Aires, Argentina.
Tradução de José Alfredo Bosi. O texto original Argentina y la globalización encontra-se à disposição do leitor no IEA-USP para eventual consulta.
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Datas de Publicação
-
Publicação nesta coleção
11 Mar 2005 -
Data do Fascículo
Abr 2002