RESUMO
No filme Que horas ela volta?, dirigido por Anna Muylaert, observa-se o estabelecimento de uma relação mercadológico-afetiva entre Val, uma pernambucana que migrou para São Paulo para trabalhar como empregada doméstica, e a família Bragança, para quem a funcionária trabalha. Uma relação fetichista se estabelece na dissimulação por parte da família de sobrenome real de que Val é da família apesar de, em todas as circunstâncias, tratá-la como cidadã de segunda classe. O objetivo deste artigo é, assim, refletir sobre o fetichismo do igual, um dos desdobramentos do fetichismo da mercadoria, que é desvelado a partir da chegada de Jéssica, filha de Val, e que, ao portar-se como uma igual, desperta ódio. O principal referencial teórico do trabalho são os textos O capital de Karl Marx e Fetichismo - Colonizar o outro, do professor Vladimir Safatle.
PALAVRAS-CHAVE:
Fetichismo; Que horas ela volta?; Empregada doméstica; Mercadoria
ABSTRACT
In the film The second mother, directed by Anna Muylaert, it is possible to observe the establishment of a marketing-affective relationship between Val, a woman from Pernambuco who migrated to São Paulo to work as a maid, and the Bragança family, for which the employee works. A fetishistic relationship is established in the dissimulation on the part of the family with the real surname that Val belongs to the family despite, in all circumstances, treating her as a second-class citizen. The objective of this article is, therefore, to reflect on the fetishism of the equal, one of the forms of the fetishism of the commodity, which is unveiled from the arrival of Jessica, daughter of Val and who, by behaving as an equal, arouses hatred. The main theoretical framework of the work are the texts Capital by Karl Marx and Fetichismo - Colonizar o outro, by Professor Vladimir Safatle.
KEYWORDS:
Fetichism; The second mother; Maid; Commodity
Introdução
O filme Que horas ela volta? foi lançado em 2015 nos cinemas. Anna Muylaert é responsável pela direção e pelo roteiro. Formada em Cinema pela Escola de Comunicação e Artes da Universidade de São Paulo, ela tem outros trabalhos relevantes no currículo, como É proibido fumar (2009) e Mãe só há uma (2016). Ao lado de Kléber Mendonça Filho - diretor de O som ao redor (2012), Aquarius (2016) e Bacurau (2019); esse em parceria com Júlio Dornelles. Na última década, Anna se tornou um nome de grande destaque com a sua proposta de um cinema que reflete a respeito da situação sócio-histórica do Brasil (em especial no que se refere ao período posterior aos primeiros governos Lula, em que ainda se colhiam os frutos das políticas públicas do governo petista).
No filme em questão, a desigualdade social é trazida à tela pela personagem Val (Regina Casé), uma pernambucana que precisou migrar para São Paulo para trabalhar como empregada doméstica, o que a permitiu enviar dinheiro para a filha Jéssica (Camila Márdila), que ficou sob o cuidado de parentes no Nordeste. Após treze anos trabalhando para a mesma família no Morumbi, Val pouco conhece da filha; a menina até se recusa a chamá-la de mãe.
Durante o período em que esteve distante, Jéssica se tornou uma jovem crítica e que ambiciona ingressar na Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da Universidade de São Paulo, uma das mais prestigiadas e mais concorridas do país. Quando se aproxima a data do vestibular, a moça desembarca em São Paulo para ficar com Val enquanto se prepara para os exames. Jéssica fica surpresa ao descobrir que a mãe mora na casa dos patrões e é responsável pela limpeza e a organização, as refeições, o jardim, a piscina e até a cachorra. Indignada, a jovem questiona essa estrutura de poder patrão x empregado não apenas com falas - como quando responde à mãe “Não me acho melhor não, Val. Só não me acho pior, entendesse?” -, mas também com ações. Ela dorme no quarto de hóspedes, come o sorvete do Fabinho (Michel Joelsas), filho dos donos da casa Bárbara (Karine Teles) e José Carlos Bragança (Lourenço Mutarelli), e, por fim, entra na piscina dos patrões (em outras palavras, proibida aos empregados). Essas são atitudes nada convencionais para uma filha de empregada doméstica: era claramente esperado que ela fosse invisível, mas ela se faz uma moradora da casa.
Ainda antes da chegada de Jéssica, já nos sentimos incomodados com a violência velada da relação entre Val e os patrões que fica dividida entre o afeto e o trabalho e ela não percebe que está sendo explorada. Quando a moça chega, a configuração das relações fica ainda mais escancarada e, só assim, Val constrói um repertório desalienante.
Em resposta à entrevista do portal DW Brasil, a diretora Anna Muylaert relata que o filme é um dos retratos possíveis da sociedade brasileira há séculos e ainda hoje: “Eu queria fazer um espelho, mostrar o jogo separatista que nós brasileiros praticamos desde o tempo colonial - sem nos darmos conta, como se fosse uma coisa natural. Se esse espelho funcionasse - e creio que funcionou, ele permitiria que víssemos nossas ações como se estivéssemos de fora e, a partir daí, poderíamos julgá-las de acordo com cada um e seu papel nesse jogo” (DW Brasil, 2015).
É por essa razão que nós brasileiros nos relacionamos com a narrativa do filme: ela expõe a dinâmica de exploração da classe rica sobre a classe trabalhadora no presente. O crescimento econômico e as medidas políticas de distribuição de renda alçaram as classes mais pobres aos lugares até então exclusivos às classes mais altas, como a Universidade pública, e isso gera uma reação. É isso que Bárbara traz quando declara, em tom de pesar, “Tá vendo, o país está mudando mesmo...”; e podemos acompanhar essas mudanças na tela do cinema, em forma de obra de arte.
O objetivo deste artigo é compreender os véus da relação de exploração estabelecida entre a família Bragança e Val, e os problemas da indefinição do que é trabalho e o que é afeto. O objeto de análise será o fetiche do igual, que afasta ou aproxima Val dessa estrutura familiar, em que ela é “quase da família”.
A qualidade e a relevância dessa discussão empreendida em Que horas ela volta? é reconhecida desde a sua estreia no Festival de Sundance em 2015 lhe rendeu o Prêmio Especial do Júri pela atuação de Regina Casé e Camila Márdila e abriu portas para muitos mais prêmios. Em âmbito internacional, recebeu no ano de 2015 o prêmio do público de melhor filme no World Cinema of Amsterdan Festival e no Festival de Cinema Brasileiro em Moscou, além do Troféu APC no Festival de Cinema de Lima e os prêmios CICCAE e o do Público de Melhor ficção na Mostra Panorama do Festival de Berlim. Em relação aos prêmios nacionais, recebeu ainda em 2015 o Troféu APCA (Associação Paulista de Críticos de Arte) de Melhor filme e Melhor atriz de cinema para Regina Casé premiado pela Abraccine como Melhor Longa Brasileiro e foi também o mais expressivo ganhador do Grande Prêmio do Cinema Brasileiro de 2016,2 2 Melhor filme, melhor direção para Anna Muylaert, melhor atriz para Regina Casé, melhor atriz coadjuvante para Camila Márdila, melhor roteiro original, melhor Montagem Ficção e melhor Longa-metragem Ficção (Voto Popular). recebendo a premiação em quase todas as categorias. O filme também foi indicado para representar o país no Oscar na categoria Melhor Filme Estrangeiro, concorrendo com outras grandes produções como Estrada 47 (de Vicente Ferraz), A história da eternidade (de Camilo Cavalcante) e Casa Grande (de Fellipe Barbosa).
O que é ser “quase da família”?
Assistir a um filme é estar atento aos seus detalhes e aos seus advérbios. No compte rendu sobre Que horas ela volta? publicado por Jéssica Moreira na Revue Ergologia, percebemos que muito é determinado por esse “quase”:
O filme vai até a ferida da sociedade brasileira, onde a luta de classes é encoberta com a frase “você é quase da família”. O quase é a linha tênue que mantém a empregada na cozinha quando o dia é de festa. O quase é o andar que separa o quartinho sem ventilação do quarto luxuoso de hóspedes. O quase é o presentinho que substitui o salário digno, que sempre fica aquém daquilo que cada babá, empregada doméstica - mensalista ou diarista - realmente deveria receber segundo as leis que regem essas profissões. (Moreira, 2015MOREIRA, J. Compte rendu: MUYLAERT, Anna. Que horas ela volta? Revue Ergologia, n.14, p.181-5, dec. 2015., p.181)
A família Bragança é composta pela mãe Bárbara, o pai José Carlos e o filho Fabinho; uma tradicional família branca. Val, a empregada doméstica, ocupa o lugar do “quase”, do “como se fosse”; ela está presente no dia a dia, mas não possui o sobrenome e nem a relação sanguínea. Ao contrário, sua relação é de trabalho. Ela é imprescindível aos Bragança: ela mantém a casa limpa e organizada, ela cozinha para os patrões e os outros funcionários da casa e serve à família mesmo nas pequenas coisas, como pegar um sorvete na geladeira ou buscar um refrigerante.
Um dos mais importantes símbolos que servem de metáfora para a tensão de classes é a piscina. A abertura do filme é um enquadramento da área externa em que ela se encontra e, em frente a câmera, Fabinho ainda criança passa correndo. Em seguida, a atriz Regina Casé é apresentada na tela do filme com um fundo preto e retomamos ao jardim: Val, vestindo um uniforme todo branco, brinca com o menino em torno da piscina, incentivando-o a entrar. Até que ele pergunta, naturalmente: “Nada comigo?”, e ela nega, dizendo que não tem maiô para nadar. É claro para o expectador e para os patrões que não é esse o motivo de ela não entrar na piscina (o que, em teoria, seria até o mais recomendado visto que Fabinho era criança); a motivação é uma tensão de classe: Val é empregada, não deve desfrutar do que é reservado à família. Essa lógica pode ser observada em outras situações, como durante as refeições, em que ela não se senta à mesa, ou durante a festa, em que ela serve aos convidados. E nada disso precisa ser dito, são regras tácitas da relação entre empregada doméstica e família contratante. É sobre essa regulamentação implícita que Val enuncia “Isso aí ninguém precisa explicar não, a pessoa já nasce sabendo o que pode e o que que não pode”. Considerando apenas que o seu contrato é de trabalho, não há confusão em apontar que ela é uma funcionária.
De encontro à clareza de que há em curso uma relação de trabalho, existe um investimento afetivo nos Bragança por parte da Val. Há um compromisso com cada membro da família: o José Carlos, por exemplo, confia integralmente que ela não vai compartilhar com Bárbara o segredo de que ele fuma. Para o Fabinho Val oferece um afeto de mãe, servindo de apoio ao garoto mesmo durante as noites, em que ele vai dormir na sua cama em busca de carinho e de segurança. É interessante pensar que em espanhol o filme recebeu o título de La segunda madre e, em inglês, The second mother; e o que é a segunda mãe senão alguém que investe afeto materno? Fabinho estabelece ao longo do filme uma relação mais forte com Val do que com Bárbara, assim como a empregada estabelece um vínculo mais estável com o filho dos patrões do que com a própria. Por fim, o investimento afetivo de Val na patroa, para além da servidão praticamente incondicional, é o presente de aniversário, o jogo de xícaras. E levanta-se a questão: com quem nos sentamos para tomar café? Esse presente é uma declaração de que Val quer partilhar com eles, de que os Bragança são a família dela; ele é uma metáfora do afeto.
Val conhece a hierarquia, os lugares por onde deve circular e a que horas deve aparecer (ou ser invisível). Apesar disso, ela se sente grata por ter um quê de afeto em retorno, como quando a dona Bárbara oferece o dinheiro para comprar o colchão para Jéssica, um “bem legal, que eu faço questão de pagar”, nas palavras da patroa. Isso é uma clara medida de manutenção da segregação social, porque se a empregada alugasse um lugar para ficar, não estaria disponível para servir a família prontamente, a qualquer hora. E, em permanecendo, ainda que não faltassem camas e quartos na casa, ela se dispôs a prover um colchão para que a moça dormisse no quarto da empregada, ao lado da mãe - não em outro espaço da casa. Mas Val se sente grata, porque o abismo social que motiva essa discriminação de por onde Jéssica deve ou não circular já está tão internalizado que não é mais passível de questionamentos. O afeto, portanto, é unilateral.
Para prosseguir com a discussão, é preciso compreender a gênese dessa divisão social considerada natural por patrões e empregadas domésticas. Para isso, retornamos à expressão “quase da família”:
O termoquase da família, aquela que integra sem verdadeiramente integrar a família e que trabalha sem ter o trabalho reconhecido como trabalho, é uma das máscaras que escondem a exploração no espaço doméstico. A divisão sexual do trabalho e as marcas indeléveis da escravidão estão presentes nas regras e práticas do trabalho doméstico no Brasil. É uma herança nefasta do Período Colonial inscrita no sistema racista-capitalista-patriarcal. Segundo Christine Delphy, o trabalho doméstico não gratuito ou mal remunerado é um dos pilares ocultos da economia geral de exploração capitalista. (Lima, 2015LIMA, D. O futuro redescoberto: um olhar feminista sobre Que horas ela volta? Blog da Boitempo, 5 de out. de 2015. Disponível em: <https://blogdaboitempo.com.br/2015/10/05/o-futuro-redescoberto-um-olhar-sobre-o-filme-que-horas-ela-volta/>. Acesso em: 20 out. 2020.
https://blogdaboitempo.com.br/2015/10/05... )
A lógica da escravidão empreendida pelos europeus que colonizaram o Brasil foi apropriada à brasileira pela elite. A falta de clareza entre ser funcionária e ser membro da família é o que justifica uma regulamentação diferenciada em que os direitos não são plenos. Mesmo com a promulgação da PEC 66/2012,3 3 A PEC 66/2012 (que se tornou Emenda Constitucional 72/2013 e, por fim, Lei Complementar 150/2015) é uma lei promulgada a fim de regulamentar os direitos trabalhistas das empregadas domésticas. O objetivo era equiparar os direitos trabalhistas das domésticas com os de outros profissionais e reduzir a informalidade. muitas vezes se trabalha sem registro, o que abre a possibilidade para se receber menos que o salário mínimo nacional, ou com um registro incompleto (como não constar que se dorme no trabalho, ou o horário em que se começa e se finaliza o serviço).
E é alarmante a consideração de que pouco mudou desde o século passado, como expõe a criadora do Conselho Nacional de Mulheres Negras Maria de Loudes Valle Nascimento (2019NASCIMENTO, M. de L. V. O Congresso Nacional de Mulheres e a regulamentação do trabalho doméstico. In: SANTANA, B. Vozes insurgentes das mulheres negras: do século XVIII à primeira década do século XXI. Belo Horizonte: Mazza Edições e Fundação Rosa Luxemburgo, 2019. p.34-7., p.35-6):
É inacreditável que numa época em que tanto se fala em justiça social possam existir milhares de trabalhadoras como as empregadas domésticas, sem horário de entrar e sair no serviço, sem amparo na doença e na velhice, sem proteção no período de gestação e pós-parto, sem maternidade, sem creche para abrigar seus filhos durante as horas de trabalho. Para as empregadas domésticas o regime é aquele mesmo regime servil de séculos atrás, pior do que nos tempos da escravidão.
A citação é o fragmento de um texto publicado na edição n.4 do Jornal Quilombo: vida, problemas e aspirações do negro, no Rio de Janeiro, em 1949, e dialoga com os tempos ainda hoje, mais de setenta anos depois.
Desvelando a operação fetiche
O afeto é o que nos aproxima e nos iguala de algum modo, ele é uma relação de troca horizontal. Dissimular a sua eminência numa relação de trabalho é ignorar as distâncias sociais de classe. Essas distâncias, porém, nunca deixam de estar presente nos discursos e nas práticas, ainda que de forma velada. Para além das vantagens econômicas de não remunerar o trabalhador de maneira digna de acordo com o seu trabalho, há vantagens psíquicas. É da filósofa Márcia Tiburi (2016TIBURI, M. Uma fuga perfeita é sem volta. Rio de Janeiro: Record, 2016. [versão digital/ePub]., p.317), autora de Como conversar com um fascista (2015), que nos apropriamos para discutir o tema:
Mas as pessoas têm na base de sua burrice o fetiche do igual. Amam o igual, porque, na vida, só o que querem ver é o espelho. O espelho que certifica que existem. Onde não há espelho, as pessoas põem ódio. O amor que sentem por si mesmas não vale de nada diante desse fato.
Na passagem de Uma fuga perfeita é sem volta, Tiburi explora o fetiche do igual, que pode explicar o porquê de ser necessário para todos a dissimulação de que a empregada é parte da família Bragança. E claramente não é: ao passo que a personagem Val nem sobrenome tem, a família dos patrões tem o sobrenome da ilustríssima família real, condutora do processo de escravidão no Brasil e grande beneficiária dos lucros da exploração humana, majoritariamente negra. Por falar em nomes, “Bárbara”, de origem grega, significa “não grego”, forasteiro, estranho; numa apropriação, o Outro. E ela encarna esse papel: ela é desprezível, e o sentimento de identificação com ela é profundamente incômodo. Ela é a personagem que exerce de maneira mais escrachada o poder que emana do dinheiro, e garante que a filha da empregada fique “da porta da cozinha pra lá”.
A ideia de que há afeto no binômio patrões x empregada é tão frágil que desmorona com a chegada de Jéssica. Ela não se submete às regras tácitas da relação, e se faz ser vista como uma pessoa qualquer, que tem demandas e desejos. Quando ela se mostra uma igual, ela desperta ódio. É interessante pensar que a postura da moça não seria nada surpreendente se ela não fosse filha da empregada. O afeto da família Bragança só existe quando há a manutenção das relações sociais da forma que sempre foram, com uma Val (e, por consequência, sua filha) submissa e à espera das demandas da Casa Grande.
Jéssica, porém, tem ímpeto e vontade de passar no vestibular. Quando ela manifesta isso, é reprimida por Bárbara, porque expõe o vazio da própria família. A relação dos personagens com a arte é um exemplo disso: José Carlos é um herdeiro que se intitula artista, mas pouco produz e, o que tem pintado, não circula; Bárbara é tão despreparada que, apesar de ser uma mulher que dita tendências, define estilo como “não tem segredo, sabe, não tem o que inventar: estilo é você se conhecer, se assumir. Por isso que eu acredito que estilo é ser quem você é!”. Fabinho, por sua vez, não demonstra particular interesse sobre o assunto. Já Jéssica, quando questionada sobre o porquê de escolher arquitetura, demonstra consciência sobre os aspectos técnicos, estéticos e sociais do curso.
Essa cena é como um todo muito interessante: é a cena em que a filha de Val é apresentada aos donos da casa. Jéssica e a mãe estão em pé, em oposição aos Bragança, sentados à mesa. Em pé costumam ficar os que estão servindo, mas no cinema ficam os que têm dominância sobre a cena, porque ocupam maior espaço na tela. Jéssica chega com os pratos na mão, ajudando a mãe a servir a mesa, e recebe um buquê de flores de boas-vindas. Todos se levantam para cumprimentá-la e, à maneira de cada um, ela é recebida com carinho e cumplicidade. Quando ela diz que quer cursar arquitetura na USP - o que, em outras palavras, significa ocupar o lugar de igual em relação aos patrões -, ela é recebida com desconfiança por todos: Fabinho fala espantado “na FAU?”, insinuando que ela não teria condições de passar; José Carlos questiona se ela teve um bom ensino e, com a resposta negativa, Bárbara enuncia “Coitadinha!” em tom de pena.
Em Uma estética da fome, Gláuber Rocha (1965ROCHA, G. Uma estética da fome (ou Eztetyka da Fome). Gênova: Congresso Terzo Mondo e ComunitàMondiale, jul. 1965.) manifestou as bases do Cinema Novo brasileiro. Destaco o seguinte trecho:
Eis - fundamentalmente - a situação das artes no Brasil diante do mundo: até hoje, somente mentiras elaboradas da verdade (os exotismos formais que vulgarizam problemas sociais) conseguiram se comunicar em termos quantitativos, provocando uma série de equívocos que não terminam nos limites da arte mas contaminam sobretudo o terreno geral do político. Para o observador europeu, os processos de criação artística do mundo subdesenvolvido só o interessam na medida que satisfazem sua nostalgia do primitivismo; e este primitivismo se apresenta híbrido, disfarçado sob as tardias heranças do mundo civilizado, heranças mal compreendidas porque impostas pelo condicionamento colonialista.
Ainda que não sejamos mais o Brasil da década de 1960, muito da estrutura social permanece. O diretor de Deus e o Diabo na Terra do Sol(1964) acertou ao falar que a elite brasileira, alinhada à perspectiva do mundo desenvolvido, considera a arte de países periféricos como um campo dos exotismos, nostálgica do primitivismo, interessada no pitoresco. Mas para o artista, que está na rua, em atividade, a arte ocupa um lugar de afirmação enquanto humanos. E é essa a posição de Jéssica frente à família Bragança.
A cena subsequente caminha até a piscina, e ficam de costas para ela, em ordem (esquerda para a direita): José Carlos, Fabinho, Jéssica e Val. Esse plano é, de um jeito, o retrato do Brasil atual: nas pontas, os herdeiros mais diretos de um período de escravidão com que nunca lidamos, seja em termos econômicos, sociais ou políticos - José Carlos do lado da riqueza da Casa Grande; Val, do trabalho extenuante da Senzala; e no centro, a primeira geração após as políticas públicas dos anos Lula, buscando uma vaga numa universidade muito concorrida. Não há afeto que supere essa tensão de classes.
Para compreender a origem desse deslocamento de classe para afeto, é preciso refletir sobre o fetiche do igual. E ele é uma nova face, ou uma consequência, do fetichismo da mercadoria. O poder divino dado ao dinheiro segrega as pessoas em classes sociais, ainda que o trabalho (a mercadoria que Val leva ao mercado) seja equivalente ao dinheiro oferecido por ele (responsabilidade dos Bragança). Essa inversão é discutida na “Seção I: Mercadoria e dinheiro”, que inaugura O capital, no tópico sobre o caráter fetichista da mercadoria e seu segredo.
É importante considerar que o livro em questão é uma obra científica, escrita para o trabalhador que já compreendeu (por meio do Manifesto Comunista, que é uma obra de agitação) que é importante lutar contra essa forma de organização socioeconômica, apontando formas de superação desse sistema. Por isso, é um dos livros mais difíceis e mais fundamentais para se compreender a obra de Marx, porque aborda as considerações mais abstratas. Lá, encontra-se a passagem que afirma que o fetichismo da mercadoria “É apenas uma relação social determinada entre os próprios homens que aqui assume, para eles, a forma fantasmagórica de uma relação entre coisas” (Marx, 2019, p.20).
O fetichismo para Marx não é subjetivo, ele é um dado objetivo que consiste no fato de que o que permitiu que as mercadorias fossem produzidas e distribuídas para que chegassem até nós não se mostra. Há sempre um mediador, que está no meio das nossas relações sociais. Então a forma equivalente (o ouro ou, atualmente, o dinheiro), que deveria ser um meio para mostrar o valor da forma relativa (a mercadoria que levamos ao mercado; no caso da Val, a sua força de trabalho), se torna o próprio detentor do valor e passa a ser o regulador das relações sociais; uma inversão entre meio e fim.
Em outras palavras, as mercadorias é que levam os personagens ao mercado, são elas as verdadeiras regentes das relações entre eles. O caráter humano - do afeto - perde espaço para as relações automatizadas, em que as pessoas são representantes de suas classes sociais - trabalhadores e patrões - antes de qualquer outro vínculo.
O jogo de café com que Val presenteou Bárbara, definido anteriormente como símbolo de afeto, já demonstra como o jogo de classes está sempre presente: ele é preto e branco, em que as peças de cores diferentes se misturam. Esse era o desejo de Val, que Jéssica pudesse acessar lugares restritos a uma cor e que a outra tradicionalmente não é bem-vinda, mais especificamente a Universidade. E é também o pesadelo de Bárbara, que brancos e pretos4 4 “Enquadrando o contexto brasileiro, o jogo de xadrez estabelece também uma antítese de cor, porque traz à superfície a dinâmica da branquitude, que produz desigualdades profundas entre brancos e não brancos no Brasil, em nossos valores estéticos e em outras condições cotidianas de vida, em que os sujeitos brancos exercem posições de poder sem tomar consciência deste habitus racista que perpassa toda a nossa sociedade” (Schucman, 2012, p.92). Jéssica, que não está entre os branquíssimos paulistas, age de forma autodeterminada, não aceitando as assimetrias historicamente estabelecidas entre brancos e não brancos. Em consequência, prova-se que “os discursos conservadores que apelas para a não mudança aparecem de formas mais ferozes do que em épocas em que o poder do branco está garantido” (ibidem, p.80). fossem peças iguais.
Quando o filme caminha para o fim, a piscina se torna um elemento ainda mais importante. Jéssica é querida por Fabinho e pelo amigo, e eles a levam para a piscina mesmo contra os pedidos da moça, apesar de a vontade dela parecer ser mergulhar. Ao mesmo tempo, vemos Bárbara na cama, machucada após sofrer um acidente (que, pela trajetória narrativa, parece ser o fato de Jéssica estar profanando a sua piscina). A situação se torna uma grande confusão em que a empregada insiste para a filha sair de lá e, uma cena depois, a dona pede para Val esvaziar a piscina porque viu um rato nela. Posteriormente, Fabinho comenta com Jéssica o que a mãe falou, e, um tempo depois, a moça diz “você acha que eu sou um rato?”, rindo. A metáfora de Cazuza5 5 Refere-se ao fragmento “A tua piscina tá cheia de ratos / Tuas ideias não correspondem aos fatos”, da música O tempo não para (1988). nunca fez tanto sentido.
O tempo não para
Viralizou na internet à época do lançamento do filme a frase “Todo o problema do Brasil começou quando a Jéssica passou no vestibular e o Fabinho não”. E essa é uma sequência de cenas muito intrigante.
Quando Fabinho não tem nota suficiente para passar no vestibular, ele recebe o apoio e o carinho de Val, e chega a chorar no abraço dela. É interessante que o tom das roupas que eles vestem combina: ela está de cinza escuro, e ele de azul. Quando dona Bárbara chega, de vestido vermelho, uma cor quente que contrasta com a fria da camisa do filho, expondo uma clara desconexão com ele, Val se retira. Os dois ficam sozinhos por alguns instantes, mas o rapaz também se afasta sem aceitar o carinho da mãe. De fato, ele não estabeleceu com ela uma relação materna e nesse momento ele preferiu a sua segunda mãe.
Enquanto eles conversam adistância, Val retorna falando que Jéssica telefonou dizendo que fez 68 pontos no vestibular. A empregada diz “Não estou acreditando até agora!”, muito feliz, e é respondida com um irônico “É, eu também não estou acreditando. Incrível, né? Impressionante”, da patroa. Enquanto Bárbara tenta frear a empolgação de Val falando que ainda tem outra fase muito mais difícil, Fabinho diz “Não acredito!”, em tom de revolta. Quando Val termina de falar e se retira novamente, Fabinho senta-se ao lado da mãe e dá um abraço nela. A conclusão é de que as questões de classe superam as questões de afeto: Val não deixou de apoiar o rapaz, mas ele preferiu estar ao lado da mãe quando se sentiu injustiçado por não ter passado no vestibular, mas a filha da empregada sim.
A cena seguinte é comovente, porque Val entra na piscina e liga para a filha. Entrar ali significou a ruptura com as proibições que duraram anos, com as interdições de classe. Assim como Jéssica ultrapassou uma barreira, a empregada também o fez. E brincou com a água, realmente disfrutou da situação. Sem mais essas amarras de classe, Val se vê ainda mais descomprometida com os Bragança quando Fabinho embarca para a Austrália num intercâmbio e ela se demite. O plano de abertura da cena é Bárbara sentada, expressando preocupação, e Val de costas, demonstrando grandeza frente à (agora ex-) patroa. A dona não entende o porquê de ela se demitir, e pergunta genuinamente “eu fiz alguma coisa?”, entre outras, chegando a oferecer um aumento. À beira da piscina, Val é irredutível, ainda que cuidadosa para com Bárbara. No retorno a casa que alugou para ficar com a filha, Val leva o jogo de xícaras que havia dado para a patroa. Nesse gesto, ela retira metaforicamente o afeto que dedicou àquela família, compreendendo que a relação era de fato de trabalho. Ele é redirecionado para Jéssica, dizendo que o jogo “É diferente, que nem tu”, que reconhece o afeto ao chamá-la carinhosamente de mãe.
Val termina o filme tomando um café em sua casa, e sorrindo com a possibilidade de ter a sua família reunida e se dedicar a ela, recuperando a sua verdadeira motivação desde que foi trabalhar na casa dos Bragança.
Conclusão
A relação fetichista que se estabelece ao dissimular que Val é da família apesar de, em todas as circunstâncias, tratá-la como cidadã de segunda classe, é desmistificada com a chegada de Jéssica e a impetuosidade da moça frente às reações negativas da mãe e da dona Bárbara. A manutenção do mecanismo do fetiche do igual, estruturado por Márcia Tiburi, era prioridade para a patroa para que a exploração do trabalho de Val continuasse como sempre foi. A empregada, porém, vai gradativamente construindo uma consciência social sobre sua situação, conduzida pela chegada da filha, até que se retira dessa relação danosa e direciona o afeto para onde ela sempre gostaria que fosse: sua própria família.
A consistência do filme é tanta que as críticas foram majoritariamente positivas: o filme recebeu elogios do jornalista André Azenha do Portal G1; de Bruno Carmelo do AdoroCinema; de Marcelo Hesssel do Omelete; de Ana Clara Carvalho do site Medium; do Observatório do cinema, cuja resenha não é assinada; de Pablo Villaça do Ciema em Cena; de Gisele Santos do portal Plano Crítico; de Willian Silveira do Papo de Cinema etc.
Entre muitas resenhas, li apenas duas críticas feitas ao filme, ambas do jornal Folha de S.Paulo: “‘Que horas ela volta?’ perde ao não confiar em seu público”, de Inácio Araújo, e “Panfletário e acrítico, ‘Que horas ela volta?’ é caricatura mediana do país”, de Sérgio Alpendre. Ambas insistem em um argumento semelhante, de que o filme é um retrato estereotipado ou amplificado das contradições da família de classe alta brasileira. Creio que com os recentes movimentos da elite, essas resenhas de 2015 ficaram desatualizadas ou mesmo equivocadas.
Encerro o texto com uma provocação, uma fala de Bianca Santana6 6 Doutora em Ciência da Informação pela Escola de Comunicação e Artes da Universidade de São Paulo com uma tese A escrita de si de mulheres negras: memória e resistência ao racismo, ela é colaboradora da Revista Cult. no 31º Guilhotina, o podcast do jornal Le Monde Diplomatique Brasil: “[...] a minha sensação, eu nunca fiz uma pesquisa sobre isso, nem sei se teria condição de fazer, mas a minha sensação de que a gênese do golpe de 2016 tá (sic) na PEC das domésticas. Eu acho que foi ali que o bueiro foi destampado [...]” (Guilhotina 31, 2019)
Referências
- DW BRASIL. “Que horas ela volta? é o espelho do nosso jogo separatista”, diz diretora. DW Brasil (Deutsche Welle), 20 de setembro de 2015. Disponível em: <https://www.dw.com/pt-br/que-horas-ela-volta-%C3%A9-espelho-do-nosso-jogo-separatista-diz-diretora/a-18751829>. Acesso em: 20 out. 2020.
» https://www.dw.com/pt-br/que-horas-ela-volta-%C3%A9-espelho-do-nosso-jogo-separatista-diz-diretora/a-18751829 - GUILHOTINA 31. Entrevistadores: Luís Brasilino. Entrevistada: Bianca Santana. Le Monde Diplomatique Brasil, 25 de jul. de 2019. Podcast. Disponível em: <https://diplomatique.org.br/guilhotina-31-bianca-santana/>. Acesso em: 20 out. 2020.
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Notas
-
1
Este artigo foi escrito em caráter de trabalho final da disciplina “Fetiche(s) sob a pele das palavras há cifras e códigos”, ministrada pela professora Priscila Saemi Matsunaga no Programa de Pós-Graduação em Ciência da Literatura da Universidade Federal do Rio de Janeiro no ano de 2020.
-
2
Melhor filme, melhor direção para Anna Muylaert, melhor atriz para Regina Casé, melhor atriz coadjuvante para Camila Márdila, melhor roteiro original, melhor Montagem Ficção e melhor Longa-metragem Ficção (Voto Popular).
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3
A PEC 66/2012 (que se tornou Emenda Constitucional 72/2013 e, por fim, Lei Complementar 150/2015) é uma lei promulgada a fim de regulamentar os direitos trabalhistas das empregadas domésticas. O objetivo era equiparar os direitos trabalhistas das domésticas com os de outros profissionais e reduzir a informalidade.
-
4
“Enquadrando o contexto brasileiro, o jogo de xadrez estabelece também uma antítese de cor, porque traz à superfície a dinâmica da branquitude, que produz desigualdades profundas entre brancos e não brancos no Brasil, em nossos valores estéticos e em outras condições cotidianas de vida, em que os sujeitos brancos exercem posições de poder sem tomar consciência deste habitus racista que perpassa toda a nossa sociedade” (Schucman, 2012, p.92). Jéssica, que não está entre os branquíssimos paulistas, age de forma autodeterminada, não aceitando as assimetrias historicamente estabelecidas entre brancos e não brancos. Em consequência, prova-se que “os discursos conservadores que apelas para a não mudança aparecem de formas mais ferozes do que em épocas em que o poder do branco está garantido” (ibidem, p.80).
-
5
Refere-se ao fragmento “A tua piscina tá cheia de ratos / Tuas ideias não correspondem aos fatos”, da música O tempo não para (1988).
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6
Doutora em Ciência da Informação pela Escola de Comunicação e Artes da Universidade de São Paulo com uma tese A escrita de si de mulheres negras: memória e resistência ao racismo, ela é colaboradora da Revista Cult.
Datas de Publicação
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Publicação nesta coleção
22 Abr 2024 -
Data do Fascículo
Jan-Apr 2024
Histórico
-
Recebido
14 Jan 2022 -
Aceito
02 Jan 2023