TEXTOS
Lições da Era McCarthy para os Estados Unidos de George W. Bush
Robert Meeropol
Introdução
DE INUMERÁVEIS maneiras, a atmosfera política nos Estados Unidos durante o segundo mandato do presidente Bush me relembra 1953, o ano em que meus pais, Ethel e Julius Rosenberg, foram executados. Abordarei isso de duas maneiras neste ensaio. Primeiro, considerando o caso de meus pais como um caso de "conspiração capital" (em que os réus acabam sendo executados embora tenham sido condenados apenas por conspiração) e examinando a possibilidade de casos semelhantes ocorrerem hoje. Segundo, comparando a atmosfera política atual dos Estados Unidos com a de 1953. Como no resto do mundo, é essencial que os que defendem as liberdades civis e se opõem à pena de morte nos Estados Unidos conheçam e aprendam com episódios passados de repressão, pois casos que envolvem liberdade civil e pena de morte são inerentemente políticos. Explorarei ambos em conjunto, pois tanto uns como outros demarcam a fronteira entre a soberania pessoal e o poder governamental. É por isso que a propagação da pena de morte costuma acompanhar uma retração das liberdades civis.
Creio que meu irmão Michael e eu somos as únicas pessoas na história dos Estados Unidos que tiveram pai e mãe executados pelo governo federal. Como o único advogado com tal legado, tenho me manifestado ativamente contra o castigo capital há mais de uma década, um período de discussão acirrada sobre a questão nos Estados Unidos. Mas todo esse furor se concentra em casos de assassinato. As forças contrárias à pena de morte muitas vezes resumem sua posição com a seguinte pergunta: "Por que matamos pessoas que matam pessoas, para mostrar que matar pessoas é errado?".
O caso de meus pais, no entanto, não foi de assassinato. Como também não foi um caso de traição ou espionagem, como relata a maior parte da mídia em todo o mundo até hoje. Meus pais foram acusados, condenados e, por fim, executados por "conspiração para cometer espionagem". No sistema de jurisprudência dos Estados Unidos, isso significa que o governo acusou Ethel e Julius Rosenberg de terem se juntado a outras pessoas que planejavam cometer espionagem e de terem dado os primeiros passos para realizar seu plano. O júri concordou. Na atmosfera política do início do século XXI, esse tipo de caso capital anômalo tinha interesse primordialmente histórico ou acadêmico, mas isso mudou no dia 11 de setembro de 2001. Por exemplo, o governo norte-americano quis que Zacarius Moussaui, condenado por conspiração para cometer ato terrorista, fosse executado. E quem sabe qual será o destino dos detentos em Guantánamo, que o governo americano designou "combatentes inimigos", e o das centenas, talvez milhares, de pessoas que os Estados Unidos mantêm detidas em locais secretos sob controle da CIA em todo o mundo? De repente, o tipo de caso de meus pais adquiriu importância vital.
O caso Rosenberg
Duas palavras contexto político explicam por que meus pais foram executados, apesar de só terem sido condenados por conspiração. A Guerra da Coréia balizou o caso deles. Meu pai foi preso em julho de 1950, poucas semanas depois do início da guerra. E foi executado, junto com minha mãe, em 19 de junho de 1953, algumas semanas antes o término do conflito.
Ultimamente, nos Estados Unidos, os que são velhos o bastante para se lembrar têm a nítida sensação de estarem revivendo a Era McCarthy o período do final da década de 1940 ao início dos anos 1950. Esse período também é conhecido como o tempo do "perigo vermelho". Em vez de fazer um relato histórico árido, prefiro descrever aqui dois incidentes que dão uma idéia do sabor da época.
O primeiro envolve o beisebol, muitas vezes chamado de "passatempo nacional" dos Estados Unidos. Quando eu era criança, os times da National League só jogavam contra os da American League na famosa World Series, com exceção dos jogos amistosos da primavera. Durante a Era McCarthy, os "Reds", de Cincinnati, venceram um desses jogos contra os "Yankees", de Nova York. Na manhã seguinte, torcedores sonolentos puderam ler as manchetes da seção esportiva dos jornais, que diziam: "Reds vencem Yanks por 5 a 2". Isso provocou um verdadeiro frenesi. Cartas chegaram aos montes à sede do time em Cincinnati, reclamando que não era bom para o estado de ânimo nacional descobrir que os "Reds" [vermelhos] haviam vencido os "Yanks", mesmo que fosse na página de esportes, ainda mais que soldados norte-americanos estavam lutando e morrendo na Coréia. Algumas cartas mais ameaçadoras questionaram o patriotismo de um time que se autodenominava "Reds". O time de Cincinnati levou isso muito a sério e convocou às pressas uma entrevista coletiva, na qual anunciou que estava mudando o nome para "Red Legs" [pernas vermelhas] embora, é claro, todos ainda os chamem apenas de Reds até hoje.
Nem tudo, porém, era tão tolo assim. O comandante da base militar dos Estados Unidos na Baía Subec, nas Filipinas, colocou uma advertência no quadro de avisos principal informando que a Constituição dos Estados Unidos e a Bill of Rights1 não deveriam ser afixadas na base por serem "controversas". Esse era o clima no qual a vida de meus pais foi a julgamento. Apesar de vagas acusações de conspiração contra eles e do fato de as palavras "bomba atômica" não constarem de seu indiciamento, a imprensa, os promotores, o FBI, o juiz e até o então presidente Truman caracterizaram o caso como julgamento de alta espionagem atômica. J. Edgar Hoover, o poderoso diretor do FBI, classificou o roubo do segredo da bomba atômica como o "crime do século". Meus pais foram sentenciados como se eles tivessem sido condenados de entregar o segredo da bomba para a União Soviética. Ocuparam um lugar na psique norte-americana que hoje é ocupado por Osama bin Laden.
Eles foram julgados e considerados culpados em março de 1951, um mês particularmente sangrento na Guerra da Coréia, na qual em média mil soldados norte-americanos morreram mensalmente durante três anos. Os advogados de meus pais tentaram por dois anos reverter a sentença. Fizeram apelações à Suprema Corte em nove ocasiões, mas a Corte se recusou a revisar o processo. Apresentaram pedidos de clemência, inicialmente ao presidente Truman, depois ao presidente Eisenhower. Ambas as petições foram indeferidas.
Como a acusação contra eles era de conspiração, o governo não foi obrigado a apresentar nenhuma prova material de que alguém havia roubado algo ou dado esse algo a terceiros. Nenhuma evidência nesse sentido foi apresentada no julgamento. Em seu lugar, as principais testemunhas do governo, David e Ruth Greenglass, receberam tratamento privilegiado em troca de um testemunho oral de que os Rosenberg eram culpados.
David Greenglass, irmão mais jovem de minha mãe, e sua esposa, Ruth, afirmaram sob juramento que meu pai, com ajuda de minha mãe, o haviam recrutado para fazer parte de um círculo de espionagem atômica em 1944. Na época, David, sargento do Exército, trabalhava como operador de máquina na fábrica de componentes para a bomba atômica das instalações secretas do Exército em Los Alamos, Novo México. Os Greenglass também juraram ter entregue esquemas, esboços e uma descrição por escrito da bomba a meu pai em seu apartamento em Nova York, numa visita que fizeram durante uma licença de David do Exército, e que minha mãe estivera presente ao encontro e datilografara as anotações manuscritas de David. Essa foi a principal "prova" contra minha mãe.
Se essa afirmação foi verdade, então o governo dos Estados Unidos executou minha mãe por haver datilografado. Mas não era verdade. David Greenglass só romperia seu silêncio em 2001, quando admitiu que mentira ao dizer que se lembrava de que Ethel estava presente e datilografara. Essa revelação, embora chocante, não chegou a surpreender meu irmão ou a mim, pois já sabíamos o seu perjúrio por outras fontes, incluindo arquivos do FBI, há mais de 25 anos.
Em troca de sua cooperação, Ruth Greenglass, que testemunhou sob juramento ter ajudado a roubar o que a promotoria caracterizou como "os maiores segredos da história da humanidade", não foi indiciada e não permaneceu nem um minuto sequer na prisão. Minha mãe, que jurou não ser espiã (arquivos governamentais mostram que a promotoria sabia que ela falava a verdade), foi executada.
Em seus depoimentos, meus pais negaram qualquer atividade ilegal. Durante a repergunta (interrogatório da testemunha pela parte adversa), a promotoria persistiu em indagar sobre suas filiações políticas. Ambos apelaram para a Quinta Emenda (que, na Bill of Rights dos Estados Unidos, protege contra a auto-incriminação), recusando-se a responder às perguntas sobre sua filiação ao Partido Comunista. Durante a Era McCarthy, a maioria das pessoas, incluídos os jurados, interpretava isso como admissão de pertencer ao Partido. A maioria dos norte-americanos da época também acreditava que os membros do Partido eram espiões da União Soviética.
Ao dar a sentença, o juiz Kaufman deixou bem claro o contexto político do caso. Ele justificou a pena de morte pelo crime de conspiração em parte dizendo:
Considero os seus crimes piores que assassinato [ ] Creio que sua conduta, colocando nas mãos dos russos a bomba atômica anos antes do que nossos melhores cientistas previam a Rússia fosse capaz de desenvolvê-la, já causou a agressão comunista na Coréia, onde o número de vítimas superou 50 mil. E sabe-se lá quantos outros milhões de pessoas inocentes poderão pagar o preço de sua traição.
Apesar da referência do juiz Kaufman a "nossos melhores cientistas", nenhum cientista testemunhou o julgamento de meus pais. Pelo contrário, um coro de cientistas atômicos, incluindo notáveis como Harold Urey e J. Robert Oppenheimer, afirmou em público que simplesmente não havia um segredo atômico único. O Dr. Philip Morrison, um dos detentores da patente de uma das primeiras bombas atômicas, declarou na década de 1970 que produzir uma bomba atômica exige "uma indústria, não uma receita".
Só muitos anos depois, os cientistas atômicos tiveram acesso aos diagramas apresentados no julgamento e que Greenglass declarara ter desenhado de memória em sua cela na prisão alguns dias antes. Ao examiná-los, o Dr. Henry Linschitz, diretor científico da divisão para a qual Greenglass trabalhava, jurou que o material apresentado era "por demais incompleto e ambíguo, e até mesmo incorreto, para que tivesse alguma utilidade ou valor no sentido de reduzir o tempo necessário para os russos desenvolverem suas bombas atômicas".
Revelações mais recentes, entre elas a liberação pela CIA em 1995 das chamadas "transcrições VENONA", levaram a mídia e muitos ditos "especialistas" no caso Rosenberg a reafirmar a conclusão anterior de que meus pais eram culpados. No entanto, essas transcrições não apontam para o envolvimento dos Rosenberg em espionagem atômica. O nome de Julius nem sequer é mencionado, e o espião cujo nome em código era "Antenna" e, mais tarde "Liberal", o qual o governo afirma ter sido Julius Rosenberg, estava envolvido em espionagem militar/industrial, não atômica. Ainda mais notável, a principal menção à esposa de Antenna/Liberal afirma que ela não era uma agente de espionagem!
A validade desse material secreto repetidamente revisado pelo governo é questionável. Mesmo que todas as palavras dessas transcrições fossem verdade, o seguinte resumo continua exato: nem Julius nem Ethel Rosenberg eram membros de um círculo de espionagem atômica que roubou o segredo da bomba atômica. Nenhum deles cometeu o crime pelo qual foram executados. E o governo dos Estados Unidos sabia o tempo todo que Ethel Rosenberg não era espiã.
Lições específicas para os dias de hoje
Existem vários paralelos assustadores entre o caso de meus pais e os casos atuais de "antiterrorismo", embora um gigantesco hiato político separe meus pais, que eram judeus comunistas seculares, dos diversos muçulmanos que os Estados Unidos buscam hoje processar. A convergência fica ainda mais evidente quando o caso de meus pais é visto em termos psicossociais. Durante a Era McCarthy, procuradores federais associaram a bomba atômica (a coisa que a população dos Estados Unidos mais temia) aos comunistas (as pessoas mais temidas) no auge da Guerra da Coréia. Hoje, os mesmos elementos da burocracia governamental estão novamente associando o maior medo da população (armas de destruição em massa nas mãos de terroristas internacionais) aos bichos-papões do momento (fundamentalistas islâmicos) durante um período de guerra aparentemente sem fim. Milhares de norte-americanos morreram no dia 11 de setembro de 2001 e muitos outros milhares morreram no Iraque e no Afeganistão desde que esses países foram invadidos e ocupados. Os mesmos desafios desalentadores, que tornaram praticamente impossível proteger os direitos dos comunistas e salvar a vida de meus pais no clima carregado do início dos anos 1950, hoje intimidam aqueles que desejam proteger os direitos dos muçulmanos e salvar a vida daqueles que talvez em breve enfrentem a pena de morte ao serem condenados por crimes de conspiração relacionados a terrorismo.
O "corredor da morte" dos que aguardam execução poderá vir a incluir co-conspiradores, já que os assassinos em massa que pilotavam os aviões em 11 de setembro estão todos mortos e o governo dos Estados Unidos tenha de buscar vingança em figuras mais periféricas. O governo chegou, no início, a chamar Zacarius Moussaui de "o 20º seqüestrador", afirmando que ele teria participado dos ataques de 11 de setembro se não estivesse preso por infração imigratória naquela data. Em seu julgamento, porém, os promotores abandonaram essa linha de ataque e, em vez disso, alegaram que Moussaui tinha informações sobre o ataque que o FBI poderia ter usado para preveni-los. Em outras palavras, o governo norte-americano estava querendo executar alguém não pelo que esse indivíduo fizera, mas porque ele não contara aos interrogadores toda a verdade e que isso provocara a morte de pelo menos uma pessoa nos ataques de 11 de setembro. Ao condenar Moussaui à prisão perpétua, o júri aparentemente rejeitou essa tentativa de estender a pena de morte a quem causa indiretamente a morte de outrem, mas mesmo assim o juiz determinou que teria sido motivo válido para execução se houvessem decidido impor o castigo capital.
Os latino-americanos precisam estar cientes de que os Estados Unidos desejariam estender a pena de morte também para o seu continente. O governo Bush procura realizar isso pressionando os países da região a assinarem um tratado internacional de contraterrorismo que envolveria indiretamente a pena capital. Argentina e Paraguai já assinaram acordos com os Estados Unidos que determinam a extradição de terroristas para aquele país, onde, se condenados, poderão ser sentenciados à morte.
Não houve, entretanto, nos Estados Unidos a onda de casos de "conspiração capital" após o 11 de setembro que eu previra. Infelizmente, isso se deu porque as coisas estão piores, não melhores, do que eu temia. Após os ataques, centenas de homens muçulmanos foram detidos em blitz de imigração. Muitos foram tratados com brutalidade, poucos tiveram seus direitos legais mínimos respeitados, alguns foram deportados para países onde poderiam ser torturados ou mesmo mortos, mas nenhum foi acusado de terrorismo. Centenas de outros permanecem há anos detidos no centro de tortura que os Estados Unidos mantêm na base de Guantánamo, Cuba, apesar dos pedidos das Nações Unidas para que o local fosse fechado. Afora os três suicídios noticiados recentemente, não sabemos se outros morreram ou foram mortos, nem o que acontecerá aos demais, caso a base seja fechada. Também não sabemos praticamente nada do que aconteceu com aqueles que estão presos em centros de detenção secretos controlados pela CIA. A despeito das fotos de Abu Graib, a incidência de assassinato e abuso de prisioneiros em cadeias militares também permanece uma incógnita.
Essa proliferação de detenções internacionais e/ou secretas é uma tentativa de o governo Bush evitar o sistema judiciário norte-americano. E como o governo norte-americano não reconhece nenhum tipo de revisão judicial internacional de seus governantes, o presidente Bush está se colocando acima do estado de direito. Bush e seus comparsas afirmam repetidamente que as regras antigas não se aplicam desde 11 de setembro. O que querem dizer é que estão instituindo novas regras e que ninguém no mundo tem direito de fazer nada a respeito de quaisquer regras que estabeleçam. E afirmam que não prestam contas a ninguém.
Foi essa a argumentação do governo Bush no caso Rasul vs. Bush, que o Center for Constitutional Rights (uma organização legal de direitos humanos sediada em Nova York) levou para a Suprema Corte. O ministro da Justiça argumentou que a Suprema Corte não tinha jurisdição (isto é, "poder", em termos leigos) para revisar os acontecimentos em Guantánamo porque esta não é parte dos Estados Unidos. Em junho de 2004, porém, a Suprema Corte determinou, por seis votos contra três, que na verdade ela tinha essa jurisdição. A Corte citou a Magna Carta de 1215, que instituiu o habeas corpus, ao decidir que os detidos pelo governo têm o direito de que um corpo jurídico independente determine a legalidade de sua detenção. Assim, pode-se argumentar que o governo Bush estava tentando revogar 789 anos de precedente legal.
A despeito, porém, de Rasul vs. Bush, até o momento nenhum detento conseguiu uma audiência. Aqueles que têm advogado entraram com pedidos para que sua situação fosse avaliada por um tribunal, mas advogados do Departamento de Justiça argumentaram que, embora os detentos tenham esse direito de acordo com Rasul vs. Bush, todas as suas petições devem ser indeferidas porque eles não têm direitos sob a Constituição dos Estados Unidos. É um argumento absurdo, que ignora a essência do caso Rasul, ao mesmo tempo que finge aceder a ele, mas protelou indefinidamente qualquer audiência efetiva para os detentos. No início de 2006, o Senado dos Estados Unidos aprovou uma lei restringindo a autoridade da Corte em revisar os casos de Guantánamo. Em junho de 2006, no caso Hamdan vs. Rumsfeld, a Suprema Corte rejeitou essa limitação a seu poder ao declarar que os tribunais militares, que Bush instituíra para "julgar" os detentos em Guantánamo, eram inconstitucionais. Enquanto isso, os detentos padecem num limbo jurídico.
Guantánamo é apenas um dos vários meios que o governo Bush vem empregando para subverter o estado de direito. O presidente e seu grupo desejam aboli-lo como parte de uma estratégia de dominação mundial. É um empreendimento extremamente ambicioso, mesmo para um grupo que dispõe de enormes recursos financeiros e militares, e seu plano custaria um volume espantoso de dinheiro e volumes horripilantes de sangue. O que está em jogo é gigantesco, e, por certo, não se pode permitir que questões menores como padrões internacionais de direitos humanos, a Constituição dos Estados Unidos, o estado de direito e opositores internos atrapalhem o projeto. E nisso algumas lições mais gerais da Era McCarthy têm relevância hoje.
Lições gerais para os dias de hoje
Bush sancionou a lei conhecida como USA PATRIOT Act seis semanas e um dia depois de 11 de setembro de 2001. A lei possui 342 páginas de legislação complexa e abrangente, e foi aprovada por ambas as câmaras do Congresso com pouca discussão. Não pretendo me ater a detalhes, mas um rápido exame de seu conteúdo mostra que, em nome da segurança nacional, ela confere poderes vastos e irrefreados ao Poder Executivo, particularmente ao presidente. O USA PATRIOT Act codifica a suspensão das liberdades civis ao, entre outras coisas, caracterizar diversas formas de dissensão como terrorismo, permitir uma invasão sem precedentes da privacidade pessoal e ampliar o número e tipos de crimes federais capitais. O tratamento mais severo é reservado aos imigrantes. O adendo aprovado recentemente determina apenas alguns ajustes menores.
Minha primeira reação ao saber que o governo apresentara uma lei de 342 páginas ao Congresso apenas algumas semanas depois do 11 de Setembro foi: "Como eles conseguiram preparar algo tão extenso tão depressa?". Obviamente, não foi tão depressa assim. A lei era a consumação de uma longa lista de desejos de um governo que já era furiosamente favorável à pena de morte e hostil às liberdades civis. Com uma desculpa em mãos, puseram suas mangas de fora e cravaram a legislação no peito do Congresso.
Não precisaram, no entanto, partir do zero, pois as leis desonrosas da Era McCarthy eram um esqueleto do qual podiam usar e abusar. Tudo indica que eles usaram parágrafos inteiros de leis daquela época. Apenas substituíram os termos "comunista" ou "subversivo" por "terrorista", acrescentaram algumas cláusulas sobre computadores para modernizá-la e voilà o USA PATRIOT Act estava pronto.
Não são apenas as palavras da lei que lembram a Era McCarthy. Quando alguns democratas fizeram objeções à restrição das liberdades civis, a Casa Branca respondeu que quem contestasse a lei estava ajudando e colaborando com o inimigo. O mesmo foi dito para silenciar os defensores das liberdades civis na Era McCarthy.
Esse tipo de investida cria um clima de medo crescente. A mídia sente esse mesmo medo e não ousa fazer críticas, pois também ela tornou-se temerosa. Dei uma entrevista a um repórter da National Public Radio pouco depois do 11 de Setembro, na qual afirmei que era contrário à pena de morte em qualquer circunstância, mesmo para aqueles acusados de conspiração para cometer terror. Uma das primeiras perguntas que o repórter me fez foi: "Você não está apoiando esses terroristas, está?". A pergunta me deu um frio na espinha, pois, há mais de 50 anos, a primeira pergunta que as pessoas que se manifestaram contra a execução de meus pais ouviam era: "Vocês não estão apoiando esses comunistas, estão?".
Conclusões
O que o povo norte-americano pode fazer a respeito dessa nova atmosfera política que proponentes da pena de morte e governantes despóticos buscam explorar? Acho que a primeira coisa deva ser definir a pena de morte como uma violação dos direitos humanos. Enquanto o castigo capital não for visto assim, aqueles que buscam obter vantagem política continuarão exigindo que ele seja aplicado sempre que algum crime particularmente hediondo inflame a opinião pública.
A maioria dos europeus não exigiu a reimposição da pena capital em seus países após os ataques terroristas ao World Trade Center. Houve pouco ou nenhum clamor na Espanha depois dos atentados aos trens de Madri em 2004 ou na Inglaterra depois das explosões no metrô em 2005. Um dos motivos é que, no geral, os europeus hoje consideram a pena de morte uma violação dos direitos humanos. E como violar os direitos humanos nunca é aceitável, nenhuma circunstância pode permitir a sua ressurreição na Europa. Conduzir a opinião pública norte-americana para essa posição não será uma tarefa fácil, pois a vasta maioria da população dos Estados Unidos não percebe o castigo capital dessa maneira. Mas, se desejar abolir permanentemente a pena de morte, o movimento contrário a ela deve esforçar-se para atingir essa meta.
Em seguida, devemos enfrentar aqueles que nos aconselham a abdicar de nossas liberdades em prol de maior segurança. O povo norte-americano vê, ouve ou lê repetidamente na mídia pretensos especialistas que presumem que o equilíbrio entre liberdades civis e segurança deve pender para o lado desta última enquanto grassa a guerra contra o terror. Muitos cidadãos dos Estados Unidos caíram nesse falso dilema entre liberdade e segurança. Deveriam, ao contrário, atacar o pressuposto subjacente. Onde está a prova de que abrir mão da liberdade aumenta a segurança? As caças às bruxas dos anticomunistas na década de 1950 sufocaram a dissensão, mas pouco fizeram para aumentar a segurança nacional. Exatamente de que maneira promover tortura e violações dos direitos humanos aumenta a nossa segurança? A história nos mostra que certamente haverá menos liberdade, mas dificilmente um aumento da segurança. Na realidade, em nações que possuem um poderoso aparato de polícia secreta, as pessoas geralmente vivem com medo das próprias forças de segurança.
A polícia e os órgãos de inteligência, que não advertiram a nação antes do 11 de Setembro (quaisquer que tenham sido os motivos dessa inação), agora querem que a população acredite que sua falha deveu-se à insuficiência de verba e poder. Isso não é verdade: ambos a possuíam em abundância muito antes de 2001. Talvez esses órgãos precisem de um novo conjunto de prioridades. Talvez tivessem feito um trabalho melhor de proteger Nova York e Washington se dedicassem menos tempo assediando dissidentes, prendendo 2,2 milhões de cidadãos e executando dezenas deles todos os anos. É bastante irônico que os Estados Unidos, que se autodenominam "a terra dos livres", tenham 25% da população carcerária total do mundo, cerca de oito milhões.
Hoje o principal dever patriótico dos cidadãos norte-americanos é não permitir que o governo amplie o alcance da pena de morte e declare guerra às liberdades civis e aos direitos humanos em nome de combater o terrorismo. Meus concidadãos norte-americanos não devem permitir que Bush e outros destruam a liberdade e o estado de direito enquanto afirmam protegê-los. Somente cidadãos que preferem não saber o que acontece à sua volta se deixarão enganar pelo governo dos Estados Unidos, que tenta encobrir uma política sistemática que tolera a tortura e promove a violação dos direitos humanos.
Durante a Era McCarthy, o medo instigou milhões a aceitarem políticas autoritárias. O governo Bush recorreu às mesmas táticas de assustar e amedrontar a população. Temos de aprender as lições da Era McCarthy e defrontar tais táticas diretamente. O hino nacional dos Estados Unidos termina assim: "Dizei se o estandarte salpicado de estrelas ainda tremula sobre a terra dos livres e a morada dos valentes". O povo norte-americano precisa lembrar-se que sua nação só continuará sendo "a terra dos livres" se seus cidadãos forem valentes.
Meus concidadãos norte-americanos também precisam entender melhor o que a frase "meu país, certo ou errado" significa numa democracia. Numa democracia, votamos a nossa aprovação quando o país está certo; mas, quando está errado, não é apenas nosso direito, mas também nosso dever manifestar desaprovação. O medo não deve promover o silêncio. É por isso que a dissensão é patriótica e é altamente patriótico lutar pelos direitos constitucionais até mesmo daqueles dos quais discordamos. É por isso que, como um cidadão judeu secular de esquerda dos Estados Unidos, eu apóio os esforços de organizações defensoras dos direitos humanos, como o Center for Constitutional Rights, sediado em Nova York, para proteger as liberdades civis dos muçulmanos neste país. Ampliar o modo como os cidadãos norte-americanos entendem o que são direitos humanos em seu próprio país e no mundo é a melhor maneira de todos nós aprendermos as lições da Era McCarthy.
Nota
Recebido em 20.7.2006 e aceito em 5.9.2006.
O arquivo disponível sofreu correções conforme ERRATA publicada no Volume 21 Número 60 da revista.
Robert Meeropol é diretor-executivo do Fundo Rosenberg para Crianças, Easthampton, Massachusetts (EUA). @ rfc@rfc.org
Tradução de Carlos Malferrari, revista por Valéria Wasserman. O original em inglês "McCarthy Era Lessons for Bushs America" encontra-se à disposição do leitor no IEA-USP para eventual consulta.
Datas de Publicação
-
Publicação nesta coleção
26 Out 2007 -
Data do Fascículo
Abr 2007