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Pacto da branquitude: racismo institucional e desigualdades no trabalho

BENTO, C. . O pacto da branquitudeSão PauloCia. das Letras2022

Cida bento possui uma longa experiência no campo profissional e acadêmico sobre relações raciais e o mundo do trabalho que é notória em sua obra O pacto da branquitude (Bento, 2022BENTO, C. O pacto da branquitude. São Paulo: Cia. das Letras, 2022.). Psicóloga organizacional e doutora em Psicologia, a autora notou, desde o início de sua carreira, que a recusa no reconhecimento das heranças materiais e imateriais, ou objetivas e subjetivas, do período escravocrata brasileiro é parte fundamental da branquitude - entendida como processo de constituição e dinâmica da identidade racial branca - e tem sua manutenção coletiva a partir de pactos narcísicos com vistas à garantia de privilégios. Cida Bento afirma: “minha atenção focava a ausência de um discurso explícito sobre os brancos na história do país, e, ao mesmo tempo, o silêncio sobre a herança escravocrata concreta ou simbólica, que definia ambientes de trabalho desiguais” (p.22).

O questionamento de Bento inverte a problemática de pensar a questão racial, costumeiramente circunscrita ao negro em si mesmo e por vezes incluindo a pessoa indígena, e interroga: quais são os efeitos da figura do escravizador e do processo escravocrata para a identidade racial da pessoa branca e para a estruturação de poder da sociedade contemporânea? Trata-se de uma herança inscrita no coração da subjetividade coletiva, que se expressa indissociavelmente nas relações interpessoais e nos processos institucionais, e sobre a qual recai um profundo silêncio. As apropriações realizadas pelos brancos ao longo da história brasileira garantiram uma supremacia branca nas esferas políticas, econômicas e sociais, o que fortalece a autoestima e o autoconceito desse grupo social e favorece a visão sobre seus semelhantes como os mais competentes para ocuparem a posição de seus antecessores. Assim, o pacto da branquitude se apresenta como um acordo tácito, em geral, não verbalizado, não formalizado, mas que exprime a cumplicidade entre iguais e a manutenção das desigualdades raciais. O escamoteamento da sustentação que as heranças escravocratas ofertam à trajetória dos brancos aos cargos de liderança tem como efeito a chancela de uma narrativa meritocrática, na qual os aspectos “individuais” são privilegiados e contados em plano único.

Após abordar o tema do pacto narcísico, a autora discute branquitude e colonização europeia. Bento compreende que em todas as regiões povoadas por europeus durante a expansão colonial houve igualmente a introjeção e o desenvolvimento de alicerces ideológicos que foram fundamentais para a constituição da branquitude. Observando a visão do europeu sobre os não europeus, é possível afirmar que aquele ganhou em força e identidade ao ratificar o branco como sujeito universal e compreender o não europeu como sujeito racializado. A construção da raça como instrumento de dominação foi simultânea à constituição da branquitude como grupo especial, de valor e status forjados em meio à expansão colonial e escravização dos sujeitos racializados. Mesmo no momento que o Brasil era pressionado a abolir o trabalho escravo, a única preocupação foi a preservação dos brancos e a garantia das riquezas apropriadas nos séculos anteriores. Um exemplo disso foi a Lei do Ventre Livre publicada em 1871, que libertava todas as crianças nascidas de pais escravizados daquele ano em diante, mas as colocava sob custódia do senhor, o qual deveria receber uma indenização do Estado ou poderia exigir da própria criança uma compensação, forçando-a trabalhar em regime de escravidão até os 21 anos.

Desse modo, a colonização europeia, ao articular terra, divisão do trabalho e raça, conferiu substância à dominação e inaugurou um sistema mundial capitalista, denominado pela autora de capitalismo racial. O termo, criado por ativistas sul-africanos em meio às lutas contra o apartheid, expressa o funcionamento do regime capitalista na exploração do trabalho assalariado que, simultaneamente, se baseia em lógicas de raça, etnia e gênero de maneira a intensificar e operacionalizar os processos de expropriação. Trata-se de um regime que congrega classe e supremacia branca desde o tráfico negreiro e a tomada de terras indígenas, e tem como efeito as desigualdades raciais e de gênero presentes nas instituições e no sistema político e econômico. A aliança entre os brancos que compõem as elites econômicas, educacionais, culturais e políticas e a não compreensão do supremacismo branco como expressão direta da antidemocracia nas instituições têm, na sua contracapa, a manutenção do capitalismo racial.

Cida Bento discute a perspectiva teó- rica da personalidade autoritária, elaborada por Theodor W. Adorno e vários psicólogos clínicos e sociais, para questionar o quanto do autoritarismo de governantes como Donald Trump e Jair Bolsonaro está intimamente ligado à supremacia racial e à masculinidade branca. A personalidade autoritária está convicta de que a visão de mundo do seu próprio grupo deve ser a referência para todos os outros, oferecendo a característica da prepotência à branquitude. A difusão social desse traço permite à atitude autoritária de governantes estabelecer relações de identificação com boa parte da população, além de favorecer a leniência na apuração dos crimes praticados por políticos brancos. Os operadores da justiça, brandos com os seus, são severos com os outros, relegando à morte e ao encarceramento em massa as pessoas negras, por exemplo.

Apesar de o sistema de justiça ser fatídico quanto à discriminação racial, elementos racistas impregnados na estrutura e dinâmica são notáveis em outras instituições de natureza pública, privada ou da sociedade civil. O racismo institucional se caracteriza por ser rotineiro e contínuo, e variar entre as formas aberta e encoberta. Refere-se, muitas vezes, a práticas cristalizadas na estrutura da instituição e aparentemente neutras, mas que perpetuam visões de mundo e estratégias de ação que priorizam um grupo racial. Trata-se das heranças do período escravocrata que se expressam na presença de pessoas brancas nos cargos de liderança de todas as instituições. Além dos recursos materiais de qualidade, como acesso a educação, moradia, cultura, dentre outros, Cida Bento aponta que tais heranças têm, em aliança com os aspectos materiais, outra dimensão mais sutil:

Essa herança tem também sua dimensão simbólica, fazendo com que o perfil daqueles que lideram as organizações, que é majoritariamente masculino e branco, esteja sempre bem representado nos meios de comunicação, o que mantém um imaginário que favorece sua permanência em lugares da sociedade considerados mais prestigiados, bem como propicia a naturalização de outros em posição de subordinação e desqualificação. (p.77)

A autora aponta o descompromisso com a diversidade racial nas instituições como uma lacuna moral branca de distanciamento psicológico em relação a outros grupos raciais, uma lacuna tão significativa que se torna indiferente ao fato de os cargos de liderança serem majoritariamente ocupados por pessoas brancas em um país de maioria negra.

Como psicóloga organizacional que trabalhou com recursos humanos e consultoria para diversidade racial e de gênero em instituições, Bento observou que o território da ascensão social é um dos mais tensos para a pessoa negra, tendo em vista a dificuldade dos brancos em enxergá-la como competente e qualificada. Isto é, se há a dificuldade em incluir mais pessoas negras no quadro de funcionários, a situação piora drasticamente quando alguma pessoa negra desponta como possibilidade de liderança.

Se os cargos de maior remuneração são ocupados por homens brancos, a presença de mulheres negras é massiva nas condições de trabalho mais precarizadas. A autora aponta como exemplar o caso do trabalho doméstico remunerado, o último lugar no mundo do trabalho brasileiro que teve direitos reconhecidos, somente em 2015, após muita luta das trabalhadoras domésticas. E, apesar disso, são constantes os exemplos das situações cruéis que vivenciam nos ambientes de trabalho e o tratamento como objeto por parte dos patrões: uma invariável desde o período escravocrata.

O feminismo negro brasileiro, como uma revolução insurgente, há décadas tem realizado leituras de alta qualidade das opressões que perfazem as estruturas de gênero, racial e de classe e fortalecido práticas de ação e movimentos sociais. Cida Bento é um grande exemplo desse movimento tanto pela elaboração deste livro quanto pela fundação do Centro de Estudos das Relações de Trabalho e Desigualdades (Ceert)) em 1990, junto com Hédio Silva Junior e Ivair Augusto dos Santos. Com a missão de defesa dos direitos da população negra e o objetivo de realizar pesquisa e intervenção acerca das questões de gênero e raça no mundo do trabalho, o Ceert ofereceu contribuições significativas na realização de auditorias de equidade racial em diversos setores, consultoria às instituições para aplicação de políticas de diversidade de gênero e racial, além da realização de pesquisas e produção de material sobre o tema, sistematizando boas práticas e diagnósticos, como é o caso do Censo de Diversidade e Equidade de 2008 que envolveu aproximadamente 400 mil funcionários em território nacional.

A discussão e os exemplos apresentados por Bento evidenciam o quanto as instituições brasileiras não conseguiram realizar, de fato, uma ruptura com o período escravocrata, trazendo continuidades desse período, que, em geral, se encontram cristalizadas e naturalizadas no cotidiano institucional. A autora é assertiva ao discutir como os elementos fundantes da branquitude - a ausência de crítica acerca da trajetória histórica de seu próprio grupo racial e o não reconhecimento das heranças materiais e imateriais do período escravocrata - contribuem para a manutenção de uma visão pejorativa sobre os negros, o que torna a relação com brancos no interior das instituições, muitas vezes, marcada por uma hostilidade encoberta. Impasse que atravessa de maneira ampla a dinâmica das relações raciais, pois, como afirma Achille Mbembe (2019MBEMBE, A. Crítica da razão negra. Trad. Sebastião Nascimento. São Paulo: N-1 Edições, 2019.), a discriminação racial é constantemente mobilizada, mas como o sujeito racializado é outro, ela se torna conceitualmente impensável.

Do ponto de vista de um grupo racial que experiencia condição de privilégio econômico, político e cultural, tal omissão e recusa de se comprometer com uma realidade racializada acaba por alimentar o racismo impregnado na estrutura e dinâmica das instituições, o que define a sociedade e a condena a seguir como um substrato do Brasil colonial. É importante salientar que essa problemática é observada desde 1957, quando o sociólogo Guerreiro Ramos (1957, p.187) escreveu o texto “Patologia social do ‘branco’ brasileiro”, no qual afirma que os ideais raciais cultivados pelos brancos e imposto à população “embaraça o processo de maturidade psicológica do brasileiro, e, além disso, contribui para enfraquecer a integração social dos elementos constitutivos da sociedade nacional”, isto é, prejudicando o desenvolvimento pleno e autêntico do país.

Acrescenta-se também que a discussão crítica elaborada por Cida Bento chega em um momento histórico ímpar do país. Tendo em vista a política de cotas para o acesso ao ensino superior, é possível afirmar que, passados dez anos da data de promulgação da Lei de ações afirmativas (Brasil, 2012), há um contingente significativo de pessoas negras e indígenas recém-formadas vivenciando os dramas apontados por Cida Bento para acessar espaços no mercado de trabalho em que a presença desses sujeitos não era esperada. Esse panorama também radicaliza a urgência da necessidade de as instituições repensarem profundamente suas estruturas e dinâmicas internas e proporem mecanismos para a inclusão de pessoas negras e indígenas de maneira equânime nos diferentes níveis institucionais.

Por fim, Cida Bento observa que “instituições mais equânimes e mais diversas, sejam elas públicas, privadas ou da sociedade civil, têm mais condições de valorizar a multiplicidade de visões de mundo, de culturas e, justamente por serem ambientes mais democráticos, podem identificar e recusar sistemas totalitários” (p.116). Isso nos permite pensar o quanto a presença majoritária de pessoas brancas no topo das hierarquias institucionais e nos cargos de maior prestígio e de poder se configura como uma continuidade do nosso regime político, que, ao longo da história do país, apresentou profundas dificuldades em se expressar como uma democracia plena. Relação que a Coalizão Negra por Direitos, uma coalizão de organizações da sociedade civil para igualdade racial no Brasil, já identificou e sintetiza como lema central de seu manifesto: enquanto houver racismo, não haverá democracia (Coalizão Negra por Direitos, 2020).

Referências

  • BENTO, C. O pacto da branquitude. São Paulo: Cia. das Letras, 2022.
  • BRASIL. Lei n.12.711, de 29 de agosto de 2012. Dispõe sobre o ingresso nas universidades federais e nas instituições federais de ensino técnico de nível médio e dá outras providências. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2011-2014/2012/lei/l12711.htm>. Acesso em: 22 jun. 2022.
    » http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2011-2014/2012/lei/l12711.htm
  • COALIZÃO NEGRA POR DIREITOS. Manifesto: Enquanto houver racismo, não haverá democracia. 2020. Acesso em 22 de junho de 2022 Disponível em: <https://comracismonaohademocracia.org.br/>.
    » https://comracismonaohademocracia.org.br
  • GUERREIRO RAMOS, A. Introdução crítica à Sociologia brasileira. Rio de Janeiro: Editora da UFRJ, 1957.
  • MBEMBE, A. Crítica da razão negra. Trad. Sebastião Nascimento. São Paulo: N-1 Edições, 2019.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    22 Abr 2024
  • Data do Fascículo
    Jan-Apr 2024

Histórico

  • Recebido
    25 Jun 2022
  • Aceito
    20 Set 2022
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