RESUMO
O artigo aborda o modernismo sob quatro aspectos: (1) A divisão do movimento em dois tempos nos anos 1920, que correspondem a dois modos diferentes de conceber a modernização; (2) No segundo tempo, distingue duas vias de se apreender a identidade nacional - a análise e a intuição; (3) Considera o lugar de Graça Aranha no modernismo; (4) Examina os limites do programa modernista.
PALAVRAS-CHAVE: Modernismo; Etapas do modernismo; Nacionalismo modernista; Graça Aranha; Limites do modernismo
ABSTRACT
This article considers four aspects of Modernism: (1) The division of the movement in two periods in the 1920s, corresponding to two ways of conceiving mo- dernization; (2) In the second period, this article distinguishes two different definitions of the national identity; (3) The place of writer Graça Aranha in Modernism is outlined; (4) The limits of Modernism is the theme discussed in the last part of the article.
KEYWORDS: Modernism; Periods of Modernism; Nationalism; Graça Aranha; Limits of Modernism
Os dois tempos do modernismo
Desde pelo menos a conferência de Mário de Andrade, “O Movimento Modernista”, de 1942, a Semana de Arte Moderna, de fevereiro de 1922, tem sido considerada o marco inaugural do modernismo. Em 1922, já estavam firmadas as duas preocupações centrais do movimento em sua primeira fase (1917-1924). A primeira tinha a ver com a necessidade de atualizar a produção artística feita no país a um novo tempo, o que justificava a polêmica com os chamados “passadistas”. A segunda dizia respeito ao ingresso do país no concerto das nações cultas, isto é, no universo moderno.
Nesse primeiro tempo, intensificou-se o contato dos brasileiros com as vanguardas europeias. Livros e revistas foram importados, e, aqueles que podiam, viajavam para Paris.
A crítica aos “passadistas” já tinha sido exposta por Mário de Andrade na série de artigos “Mestres do passado”, publicada em agosto de 1921, no Jornal do Comércio, de São Paulo. Não se tratava tanto de uma crítica avaliando o sucesso ou o insucesso da produção poética de Raimundo Correia, Francisca Júlia, Olavo Bilac, Alberto de Oliveira e Vicente de Carvalho. O que na verdade se denunciava era a inatualidade dos poetas parnasianos. Daí a saudação feita logo no primeiro artigo: “Venho depor a minha coroa de gratidões votivas e de entusiasmo varonil sobre a tumba onde dormis o sono merecido!” (Brito, 1971, p.257).
A percepção de que a produção literária e artística estava em atraso em um país que se modernizava está presente no discurso de Oswald de Andrade em homenagem a Menotti del Picchia, de janeiro de 1921. A certa altura ele diz: “Estamos no Trianon, devassando a cidade panorâmica no recorte desassombrado das suas ruas de fábricas e dos seus conjuntos de palácios americanos” e acrescenta que São Paulo “é já a cidade que pede romancistas e poetas...” (Brito, 1971, p.182).
O próprio Menotti, na conferência na Semana, “Arte Moderna”, proclamava: “Queremos luz, ar, ventiladores, aeroplanos, reivindicações obreiras, idealismos, motores, chaminé de fábricas, sangue, velocidade, sonho, na nossa Arte!” (Salgado et al., 1927, p.21) Tudo que, de algum modo, expressava a modernidade.
Nesse primeiro tempo, o acesso ao universo moderno tinha um caráter imediatista. Ele dependia da incorporação pelos artistas brasileiros das linguagens modernas já adotadas nos principais centros culturais. Em uma das primeiras cartas escritas por Mário de Andrade para Manuel Bandeira, ele afirmou: “Sei que dizem de mim que imito Cocteau e Papini. Será já um mérito ligar estes dois homens diferentíssimos como grácil lagoa de impetuoso mar. A verdade é que movo como eles as mesmas águas de modernidade. Isso não é imitar: é seguir o espírito duma época” (Andrade; Bandeira, 2000, p.62).
A partir de 1924, ano da publicação do “Manifesto da Poesia Pau-Brasil” por Oswald de Andrade, a inserção na modernidade assegurada pela simples adoção das linguagens modernas foi posta em questão. Em lugar do imediatismo do primeiro tempo, agora, em um segundo tempo modernista, exigia-se uma mediação. Ela consistia em dotar a produção artística feita no país de traços nacionais. Só assim seria possível comparecer no concerto das nações cultas.
O “Manifesto da Poesia Pau-Brasil” se situa a si mesmo como parte de um segundo tempo do movimento modernista, visto como uma fase de construção, fase que só foi possível porque antes tinha sido acertado “o relógio império da literatura nacional” (Andrade, 1972, p.9). Essa última tarefa, levada a cabo pelos modernistas da primeira hora, denominados “geração futurista”, colocou a produção brasileira no mesmo patamar das vanguardas europeias. Agora, atualizados pelo grupo de 1922, era possível ser regional, no sentido de ser nacional, e puro, no sentido de ser autêntico, na sua época.
Foi Mário de Andrade quem, mais uma vez, formulou de forma consistente essa mudança de rumos. Ele recorreu para isso a duas categorias - a de raça e a de nação.
Raça tem a ver com o acomodamento da sensibilidade nacional com a realidade brasileira. A formação de uma raça depende daquilo que Mário de Andrade chamou de tradicionalização - um processo que se dá no tempo.
O capítulo final de Macunaíma ilustra de forma ficcional esse processo. A história está terminada, Macunaíma subira para o céu, transformado na constelação da Ursa Maior. Sobrou do tempo em que se passou a rapsódia apenas o papagaio que pousa no ombro do homem e lhe conta toda a saga do herói da nossa gente. Esse homem que ouve a história é o autor do livro que acabamos de ler. Ele nos transmite aquilo que aconteceu nos “tempos de dantes”. Uma cadeia temporal põe em comunicação o tempo em que viveu o herói Macunaíma e o atual, o tempo do leitor.
Por meio da tradicionalização uma identidade é fixada e pode ser transmitida ao longo do tempo. Já o conceito de nação é a face externa desse processo de determinação da identidade nacional. Recorre-se a ele para caracterizar o momento da entrada da parte Brasil no concerto das nações.
A exigência de se estabelecer uma mediação determinou o propósito do conjunto de autores do segundo tempo modernista de definir a identidade nacional. Em Mário de Andrade, em sua poesia, nos ensaios e na ficção, em Oswald de Andrade, nos manifestos Pau-Brasil e antropófago, no movimento verde-amarelo, composto por Plínio Salgado, Menotti del Picchia e Cassiano Ricardo, nota-se a mesma preocupação.
Em carta ao escritor pernambucano Joaquim Inojosa, Mário de Andrade sintetizou esse propósito geral:
Veja bem: abrasileiramento do brasileiro não quer dizer regionalismo nem mesmo nacionalismo = o Brasil pros brasileiros. Não é isso. Significa só que o Brasil pra ser civilizado artisticamente, entrar no concerto das nações que hoje em dia dirigem a Civilização da Terra, tem de concorrer pra esse concerto com a sua parte pessoal, com o que o singulariza e individualiza, parte essa única que poderá enriquecer e alargar a Civilização. (Inojosa, 1968, p.340)
Já foi muito discutido o ensaio de Antonio Candido “Literatura e cultura de 1900 a 1945” que trata da dialética do localismo e do cosmopolitismo na nossa vida intelectual. Vale a pena acrescentar mais um comentário a esse debate, com uma referência à situação do modernismo, especialmente na visão de Mário de Andrade. No segundo tempo do movimento (1924-1929), o localismo é tão mais acentuado quanto mais se afirma o propósito de inserção do país no concerto das nações cultas, quanto mais se experimenta a atração do cosmopolitismo.
Vias analítica e intuitiva
Duas vias se apresentaram para apreender a identidade nacional - a analítica, formulada por Mário de Andrade, e a intuitiva, defendida por Oswald de Andrade na Antropofagia e pelo grupo verde-amarelo.
A via analítica pretendeu fazer o recenseamento no ambiente cultural brasileiro dos aspectos propriamente nacionais. Onde encontrá-los? Mário de Andrade responde: na cultura popular. Ele entende que é nas camadas populares, menos expostas à influência estrangeira, que podem ser localizados os traços culturais genuinamente nacionais. Afirma em seguida que é o elemento folclórico que guarda através dos tempos a essência da nacionalidade. Assim, uma cadeia se desdobra. A entrada na modernidade implica ser nacional, ser nacional remete ao elemento popular. Esse é identificado à “coisa folclórica”.
Na segunda metade da década de 1920, Mário de Andrade insistiu nesse ponto. Ensaio sobre música brasileira, de 1928, é quase um manifesto. O livro é dirigido aos músicos que pretendem fazer música moderna no Brasil. Em tom doutrinário é dito que é preciso definir um critério para eles. O argumento-chave é retomado. Para se fazer música atual é preciso nacionalizar as manifestações musicais, é preciso refletir as características musicais da raça. E onde estas estão? Na música popular. A certa altura, Mário de Andrade apresenta o argumento em sua generalidade. A arte nacional “já está feita na inconsciência do povo” e “o artista tem só que dar pros elementos já existentes uma transposição erudita” (Andrade, 1928, p.4).
O contato de Mário de Andrade com o folclore foi motivado pela adesão à via analítica de abordar o elemento nacional. Mas logo o interesse pela “coisa folclórica” ganhou autonomia nos trabalhos do autor. Mesmo as viagens do “turista aprendiz”, em 1927, ao Norte, e na virada de 1928 para 1929, ao Nordeste, foram chamadas de viagens etnográficas. Nos anos seguintes, ao longo da década de 1930, se avolumou a produção do folclorista Mário de Andrade, que passou a ter um lugar de destaque na sua obra. Um livro nunca terminado tinha sido programado, Na pancada do ganzá, que reuniria a parte mais importante desses estudos.
A elaboração de uma via intuitiva de apreensão da realidade é uma das dimensões do “Manifesto antropófago”, publicado por Oswald de Andrade no primeiro número da Revista de Antropofagia, em maio de 1928. O manifesto, redigido em tom provocativo e com agilidade, contém também uma revisão da história do país, um retrato da situação atual e o desafio de fundar em novas bases a civilização brasileira.
Em várias passagens, Oswald de Andrade rechaça uma visão analítica ou até lógica do real. A seu ver, a análise considera a realidade de um ponto de vista muito externo. Ora, para o manifesto, “o que atropelava a verdade era a roupa, o impermeável entre o mundo interior e o mundo exterior”. A análise seria como é essa roupa, esse impermeável que impede o acesso à verdade. Em outra imagem, sugere que a análise, e mesmo a lógica são como “as elites vegetais” que perderam a comunicação com o solo. Afirma ainda ser necessário se distanciar de toda especulação e confiar na adivinhação para a apreensão do real. Assim, o conhecimento da entidade nacional consiste em uma aproximação, envolvendo um contato afetivo e não lógico. Esse contato pode aparecer na forma da antropofagia, quando o que é visado é ao mesmo tempo destruído e incorporado.
Um certo irracionalismo permeia as teses dos movimentos antropófago e verde-amarelo. Ele inspira a crítica da perspectiva analítica e a defesa da intuição na apreensão da brasilidade. Para os verde-amarelos, a entidade nacional é constituída por uma unidade de sentimentos. Por esse motivo, apenas com o recurso da emoção seria possível apreendê-la. A certa altura faz-se a avaliação da figura de Rui Barbosa. Não há como não reconhecer em Rui “o maior demônio da inteligência tropical em contato com os léxicos”. No entanto, ele não tinha “o senso divinatório e profundo - a intuição perscrutante dos fenômenos”. A crítica a Rui Barbosa é a ocasião para a denúncia das inteligências puramente teóricas, da cultura demasiadamente sistemática incapaz de ter acesso às “verdades cruas e nuas da vida diretamente vivida com gosto de sangue e de luta” (Salgado et al., 1927, p.85)
Graça Aranha - um mediador
Definir o lugar de Graça Aranha no modernismo foi sempre motivo de polêmica. Um livro que é referência para a pesquisa do movimento modernista, História do Modernismo Brasileiro - Antecedentes da Semana de Arte Moderna, de Mário da Silva Brito, só aborda o assunto nas últimas páginas. Tudo começou com a disputa entre Graça Aranha e Mário de Andrade sobre quem teve a iniciativa da virada nacionalista do movimento em 1924/1925. O ponto de vista de Mário de Andrade terminou prevalecendo. A distância, é possível afirmar que Graça Aranha teve no modernismo o papel de um mediador. Ele pôs em contato o movimento modernista com tendências filosóficas existentes desde o final do século XIX.
Na abordagem da figura de Graça Aranha é preciso considerar sua filosofia, exposta em A estética da vida, elaborada a partir de uma dupla preocupação. A primeira é a de fazer a crítica de qualquer forma de dualismo; a segunda, a de buscar uma via de acesso ao ser compreendido como uma totalidade. O monismo defendido por Graça Aranha tem um sentido filosófico amplo. Ele abrange desde uma definição da realidade como uma totalidade espetacular até uma teoria do conhecimento, na qual a intuição estética é privilegiada. A doutrina apresenta também uma versão dialética. Graça Aranha descreve um processo que apresenta um primeiro momento no qual haveria a integração do eu no cosmos. Trata-se de um momento de enorme satisfação e de inconsciência. Em um segundo momento, esta unidade teria sido perdida. Este estágio é acompanhado de extrema dor. Surge, nesse ponto, a consciência destacada do real. Instaura-se a dualidade, fixa-se a oposição de eu e mundo. O terceiro passo desse desenvolvimento é o da recuperação de uma nova síntese. Ela será alcançada por meio de determinadas experiências como o amor, a religião, a arte e a filosofia. Cada uma delas constitui-se numa possibilidade de “restabelecer a homogeneidade universal na indiscriminação dos seres, na integração de todos os seres no Todo infinito” (Graça Aranha, 1968, p.588).
Graça Aranha não pretende que a integração do eu no cosmos se dê pela inação, como acontece, por exemplo, no pensamento oriental. Em vez disso, ele faz uma convocação à ação. É preciso que sejam realizados trabalhos para se alcançar a síntese pretendida. Eles são de três ordens. O primeiro consiste na resignação à fatalidade cósmica, o segundo, na incorporação à terra e o terceiro, na ligação dos homens entre si.
Uma parte de A estética da vida, “Metafísica brasileira”, é dedicada à composição de um retrato do Brasil e a definir um projeto para o país. “Metafísica brasileira” contém também um apelo à ação. Ela sublinha a necessidade de serem superados os dualismos vigentes até o presente na vida brasileira por meio de uma série de trabalhos. Há, em primeiro lugar, o dever de vencer a nossa natureza pelo trabalho material. O terror que os perigos da natureza inspiram no brasileiro precisariam ser superados pelo desbravamento do território. O brasileiro ainda precisa integrar-se à terra. Afirma Graça Aranha (1968, p.626): “O brasileiro é o lírico da tristeza. Ainda não sentiu gloriosamente nos trópicos magníficos o frêmito do turbilhão das coisas tumultuosas”.
Essa postura ativa no domínio do ambiente físico deverá ser acompanhada pela eliminação da metafísica animista, chamada também de misticismo físico. Isso significa que deverá ser alcançada uma posição na qual a natureza não seja mais vista como força desconhecida e ameaçadora, mas como motivo de fruição estética.
Outro trabalho proposto em “Metafísica brasileira” é o de vencer a nossa inteligência. O escritor maranhense sentia a urgência de promover uma reorientação geral da vida intelectual no país. Baseado nessa convicção, Graça Aranha estava disposto a endossar e a participar de todo movimento de renovação de ideias, como foi o caso daquele iniciado pelo grupo dos modernistas de São Paulo.
Para a transformação da nossa inteligência, é necessário cumprir duas etapas. Em primeiro lugar, a produção intelectual brasileira deve incorporar os “elementos bárbaros” que fazem parte da vida nacional. Graça Aranha (1968, p.632 ) argumentava: “E no entanto aqueles elementos bárbaros da nossa formação espiritual e da nossa nacionalidade reclamam, antes de seu desaparecimento total, os seus vates e os seus escritores”. Para ele, o pedantismo dos nossos artistas e literatos os impediu de viverem a necessária selvageria e está na base do formalismo e do artificialismo da nossa cultura. Em literatura, nunca os escritores “se entenderam secretamente com as coisas de que trataram” (ibidem, p.632).
A ausência de correspondência da alma brasileira e de seus intérpretes com sua própria terra impede que se fixe uma fisionomia própria da cultura feita no país. Nesse caso, a inteligência brasileira não tem condições de se distinguir e de se firmar entre todas as demais. “É possível que a literatura brasileira transmita um dia o fluido que nos ponha em comunicação com o Universo inteligente. Por ora, ela não satisfaz plenamente à própria alma brasileira” (ibidem, p.631).
O programa apresentado em “Metafísica brasileira” coincide em muitos pontos com o dos modernistas nas suas duas fases. Assim como Graça Aranha, os modernistas queriam integrar a parte Brasil no concerto das nações cultas. Uma perspectiva universalista orienta Graça Aranha bem como os modernistas. Também o viés nacionalista presente em “Metafísica brasileira” coincide com a posição dos modernistas no segundo tempo.
Em um sentido mais específico há proximidade de Graça Aranha com os defensores de uma apreensão intuitiva da nacionalidade, como a Antropofagia de Oswald de Andrade e o grupo verde-amarelo. Em todos os casos comparecem uma crítica da abordagem analítica, como a de Mário de Andrade, e a defesa de uma apreensão intuitiva e imediata da realidade.
Aproximar Graça Aranha do modernismo não significa afirmar sua influência sobre o movimento de renovação. Antes, permite reconhecer uma coincidência de ideias. Mais que isto, essa aproximação abre a possibilidade de situar o modernismo em um movimento intelectual bem mais amplo.
Limites do modernismo
Nas anotações feitas para o prefácio nunca publicado de Macunaíma, Mário de Andrade se refere ao processo de desgeograficação à “embrulhada geográfica proposital” presente no livro (Batista et al., 1972, p.295). Na trama da rapsódia o herói atravessa o país em todas as direções e quando nasce seu filho, os presentes chegam de várias partes do Brasil. A desgeograficação é um recurso que acentua o caráter unitário do país abolindo as diferenças regionais. A tradicionalização aproxima os “tempos de dantes” do tempo atual. Tem a ver com a dimensão temporal. A desgeograficação anula as distâncias no espaço.
Em 1926, foi lançada em São Paulo a revista Terra roxa e outras terras, que se assume, àquela altura, como porta-voz do modernismo. Em seu primeiro número, Sergio Milliet fez a resenha de Raça, livro de poemas de Guilherme de Almeida, afirmando que se tratava de um livro brasileiro, e acrescentava: “Digo mais: paulista”. Foi o suficiente para provocar a reação irritada de Mário de Andrade. No número seguinte, ele adverte o amigo que evite toda forma de regionalismo e propõe que se grite “Vem minha gente” “pros brasileiros sem limites estaduais”. Mário de Andrade estava apenas trazendo Sergio Milliet de volta para o caminho do modernismo que valorizava o todo nacional em detrimento das partes.
A visão dos modernistas da proposta de modernização supõe a presença de parâmetros espaciais. Na perspectiva modernista, o espaço é diferenciado. O país é composto de partes que precisam ser reunidas em um todo - a entidade nacional. Um poema de Mário de Andrade - “Descobrimento” - dá conta dessa pretensão unificadora:
Abancado à escrivaninha em São Paulo Na minha casa da rua Lopes Chaves De supetão senti um friúme por dentro. Fiquei trêmulo, muito comovido Com o livro palerma olhando pra mim. Não vê que me lembrei que lá no norte, meu Deus! muito longe de mim, Na escuridão ativa da noite que caiu, Um homem pálido, magro, de cabelo escorrendo nos olhos, Depois de fazer uma pele com a borracha do dia, Faz pouco se deitou, está dormindo. Esse homem é brasileiro que nem eu... (Andrade, 2013, p.287)A modernização traz como exigência encurtar distâncias e isso de duas formas. Em primeiro lugar, é preciso desgeograficar, anular as distâncias regionais no país, como fez Mário de Andrade no poema. Também o cenário mundial é composto de partes, de lugares diferentes. Por essa razão, é preciso transpor a distância que separa o Brasil do concerto das nações modernas. É ainda Mário de Andrade quem afirma que, da mesma forma que do ponto de vista econômico, do ponto de vista artístico, só poderemos ingressar na civilização artística humana, com aquilo que nos individualiza, “com o contingente brasileiro, derivado das nossas necessidades, da nossa formação por meio da nossa mistura racial transformada e recriada pela terra e clima” (Inojosa, 1968, p.341).
O modernismo literário e artístico dos anos 1920 é manifestação de um movimento amplo, iniciado no final do século XIX, que atravessou várias décadas do século XX, tendo por propósito modernizar a vida brasileira. Uma característica essencial do modernismo dos anos 1920 - a adesão a uma certa concepção do espaço ao compor o retrato do Brasil e ao definir o ingresso do país no concerto das nações modernas - está presente em várias outras manifestações.
O modernismo em sentido amplo se expressou na literatura, nas artes, na vida intelectual em geral, na política e na sociedade de diferentes formas.
Já a presença de Graça Aranha na Semana de 22 assegurou o contato com a geração anterior, de 1870. Um livro como Os sertões, de Euclides da Cunha, participa desse movimento de renovação. O livro faz a denúncia do fracasso da incorporação da população sertaneja no todo do país. Apresenta um caso pontual de malogro do processo de desgeograficação.
Em outro contexto, as campanhas de Rondon que incorporaram pelo telégrafo vastas regiões, até a Amazônia, na civilização brasileira, assim como as expedições que fixaram as fronteiras definitivas do país constituíram-se em formas de desgeograficação. Por outro lado, as reformas urbanísticas da capital da república e de São Paulo, inspiradas em moldes franceses, nos aproximaram do concerto das nações cultas. Também é sugestivo que o primeiro voo a atravessar o Atlântico para o Brasil tenha ocorrido em 1922, ano da Semana de Arte Moderna.
Nas décadas seguintes à eclosão do modernismo literário e artístico, as principais orientações intelectuais do país apresentavam-se ainda como expressões do modernismo em sentido amplo. Isso significa que elas se sustentavam sobre os mesmos pressupostos espaciais dos modernistas de 1922. No campo das ciências sociais, as teses desenvolvimentistas e dependentistas, mais politizadas, ainda tiveram por assunto a entrada problemática do país no concerto das nações modernas.
Existiria um ponto de esgotamento do modernismo em sentido amplo? Seria esse esgotamento o da conceituação modernista de espaço? Em que momento esses pressupostos espaciais perdem validade?
No panorama da produção cultural das últimas décadas do século XX se destaca, no final dos anos 1960, o movimento tropicalista. O tropicalismo pretendeu também compor um retrato do Brasil nos moldes do modernismo em sentido amplo, isto é, desgeograficando o país. A canção “Tropicália” ilustra esse propósito. O resultado, no entanto, é desconcertante. A combinação bem-sucedida das partes cede lugar a imagens que contrastam muitas vezes de forma surpreendente. Em uma mesma estrofe a imagem da cabeleira que esconde o luar do sertão se choca com a de um monumento sem porta, com a entrada em uma rua antiga, estreita e torta e de uma criança sorridente, feia e morta que estende a mão. Em outra passagem a menção à roseira que autentica a eterna primavera é aproximada da cena em que os urubus passeiam entre os girassóis.
O tropicalismo ainda faz parte do modernismo em sentido amplo, mas torna problemático seu programa.
Nas últimas décadas do século XX, com o processo de globalização, experimentou-se uma alteração profunda na ordem mundial. A própria configuração espacial do globo se alterou. As distâncias foram encurtadas ou mesmo anuladas. Com isso, a concepção da modernização como deslocamento da parte Brasil na direção do concerto das nações perdeu força. A base em que se sustentava o modernismo vacilou.
Não somos mais contemporâneos do movimento modernista. Em uma visada a distância nos damos conta de que ele foi o mais importante movimento da nossa história intelectual e de que podemos retornar a ele desimpedidos agora de um compromisso de pertencimento.
Referências
- ANDRADE, M. Ensaio sobre música brasileira. São Paulo: Chiarato, 1928.
- _______. Obras completas. Rio de Janeiro: MEC; Civilização Brasileira, 1970. v.6 Do Pau-Brasil à antropofagia e às utopias.
- _______. Poesias completas. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2013. v.1.
- ANDRADE, M.; BANDEIRA, M. Correspondência. Org. introd. notas Marcos Antônio de Moraes. São Paulo: Instituto de Estudos Brasileiros/USP, 2000.
- ANDRADE, O. Do Pau-Brasil à antropofagia e às utopias, Obras Completas - 6, Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1972.
- BATISTA, M. R.; LOPEZ, T. P. A.; LIMA, Y. S. Brasil: 1o Tempo modernista - 1917/29 - Documentação. São Paulo: Instituto de Estudos Brasileiros, Universidade de São Paulo, 1972.
- BRITO, M. S. História do modernismo brasileiro - Antecedentes da Semana de Arte Moderna. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira; MEC, 1971.
- CANDIDO, A. Literatura e sociedade. Rio de Janeiro: Ouro sobre Azul, 2008.
- GRAÇA ARANHA. Obra completa. Rio de Janeiro: Instituto Nacional do Livro, 1968.
- INOJOSA, J. O movimento modernista em Pernambuco. Rio de Janeiro: Gráfica Tupy, 1968.
- SALGADO, P.; DEL PICCHIA, M.; RICARDO, C. O Curupira e o carão. São Paulo: Editorial Helios, 1927.
- TERRA ROXA E OUTRAS TERRAS. São Paulo: Martins Editora; Secretaria de Cultura do Estado de São Paulo, 1977.
- VELOSO, C.; FERRAZ, E. (Org.) Letra só. São Paulo: Cia. das Letras, 2003.
Datas de Publicação
-
Publicação nesta coleção
18 Fev 2022 -
Data do Fascículo
Jan-Apr 2022
Histórico
-
Recebido
18 Out 2021 -
Aceito
17 Dez 2021