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A financeirização da velhice e a convergência entre Estado e mercado

RESUMO

No capitalismo contemporâneo, a dívida assume a centralidade da dinâmica do sistema econômico dentro do que é denominado financeirização da economia. Dentro dessa linha de análise, emergem categorias como “financeirização do cuidado” e/ou “financeirização da velhice” como formas explicativas do processo de endividamento da pessoa idosa, sobretudo, para honrar as despesas de cuidado de longa duração ou para os gastos de saúde. Este artigo analisa esse fenômeno a partir de três fatores de endividamento: a saúde, o cuidado e o crédito consignado. A conclusão é que a proteção social, antes exclusividade do Estado, foi delegada ao mercado financeiro e isso amplia o risco de endividamento e expropriação, embora nem sempre a pessoa idosa perceba essa lógica como perversa.

PALAVRAS-CHAVE:
Financeirização da velhice; Endividamento; Empréstimo consignado; Planos de saúde; Cuidados

ABSTRACT

In contemporary capitalism, debt assumes the centrality of the system’s dynamics within what is called the financialization of the economy. Within this line of analysis, categories such as “financialization of care” or “financialization of old age” emerge as explanatory forms of the elderly person’s indebtedness process, above all, to cover long-term care expenses or health expenses. This article analyzes this phenomenon based on three debt factors: health, care and a specific kind of credit in Brazil (payroll loans). The conclusion is that social protection tends to be delegated to the financial market and this increases the risk of debt and expropriation. The interest of the article is to explore how this situation is perceived by retirees and pensioners.

KEYWORDS:
Financialization of old age; Debt; Payroll loans; Health security; Care

Introdução

Os dados sobre o endividamento da população brasileira são alarmantes. A inadimplência atinge mais de 70 milhões de brasileiros e brasileiras, segundo pesquisa realizada mensalmente pelo Serasa (2024), um dos principais birôs de crédito do país. Em dezembro de 2023, a proporção de famílias com contas vencidas em modalidades como cartão de crédito, cheque especial, crédito consignado, empréstimo pessoal, cheque pré-datado e prestações de carro e casa era de 77,6% segundo outra pesquisa, essa realizada pela Confederação Nacional do Comércio de Bens, Serviços e Turismo (CNC, 2024). A taxa de inadimplência anual subiu de 28,9% em 2022 para 29,5% em 2023. A pesquisa mostra que a proporção média dos que afirmavam não ter condições de pagar as dívidas em atraso era de 12,1% no período. As pessoas com mais de 58 anos de idade respondem pela menor inadimplência, mas são contas em atraso com utilities, ou seja, despesas mensais com luz, água ou telefonia, por exemplo.

No que diz respeito à cidade de São Paulo, um terço (32%) de tudo o que as famílias recebem é direcionado para pagamentos de dívidas. Uma de cada três casas na cidade já comprometeu metade da renda para despesas. O porcentual de lares com contas atrasadas em janeiro de 2024 foi de 21,8%. No segmento populacional das pessoas idosas, ou seja, com mais de 60 anos, a inadimplência no país alcança 18,8% dos 72 milhões de pessoas com dívidas não pagas (Serasa, 2024), ou 13,5 milhões, o que representa 39,7% do total de pessoas idosas - a despeito de esse grupo etário estar em melhor situação do que os grupos de 26 a 40 e de 41 a 60 anos. É indiscutível que a dívida assume centralidade na economia financeirizada do nosso século e é legítimo constatar, a partir dos dados apresentados, que quase metade da população envelhecida, envelheceu endividada.

Ao se tratar do modo como a financeirização tem operado no mundo contemporâneo, é necessário apontar inicialmente que se trata de um processo que alcança muitas dimensões, não só na esfera da produção, mas no âmbito do que tem sido pensado como a esfera da reprodução da vida. Por isso, a emergência de categorias como “financeirização do cuidado” (Horton, 2017HORTON, A. Financialisation of care: Investment and Organising in the UK and US. London, 2017. Ph.D thesis. University of London. Disponível em: <https://qmro.qmul.ac.uk/xmlui/bitstream/handle/123456789/31797/HORTON_Amy_PhD_Fina%20_281117. pdf?sequence=1&isAllowed=y>. Acesso em: 5 abr, 2023.
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) ou “financeirização da velhice” (Debert; Félix, 2022DEBERT, G. G.; FÉLIX, J. A financeirização da velhice, São Paulo, Folha de S.Paulo, edição de 21 de fevereiro, seção Tendências/Debates, p.A3, 2022. Disponível em: <https://www1.folha.uol.com.br/opiniao/2022/02/a-financeirizacao-da-velhice.shtml>. Acesso em: 8 mar. 2023.
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). Quando se convocam essas tentativas de explicações, a intenção é jogar luz em um fenômeno ainda bastante ofuscado no debate público sobre os impactos da dinâmica demográfica no bem-estar e, no caso aqui, particularmente, nos cuidados de longa duração das pessoas idosas.

É necessário sublinhar que a financeirização da velhice é um desdobramento ou consequência de uma nova relação estabelecida entre o Estado e o mercado a partir de uma certa premissa fortalecida desde os anos 1970, com a chamada reestruturação do capital. Essa premissa defende que uma vez impossibilitado de sustentar o pacto do Bem-Estar Social desenhado no pós-Segunda Guerra Mundial, a única alternativa do Estado é acessar ele mesmo - ou servir de facilitador para que a população acesse - produtos e serviços financeiros supostamente capazes de atender necessidades tradicionalmente exclusivas das políticas sociais.

Dowling (2022DOWLING, E. The Care Crisis - What Caused It and How Can We End It? 2.ed. London; New York: Verso, 2022., p.71), ao discutir a crise global do cuidado, aponta a vulnerabilização das pessoas no que ela caracteriza como o “convite” feito pelo Estado à “indústria financeira” para assumir responsabilidades sociais antes de domínio estatal. Com processos intensos de privatização, o Estado abre mão de sua função social para atuar como criador de oportunidades de lucro para o setor financeiro. No Brasil, por exemplo, como será desenvolvido a seguir, por meio do papel do que denominamos aqui de Estado fiador - para empréstimos cujos recursos custearão serviços antes fornecidos gratuitamente ou que deveriam ser, no mínimo, subsidiados. Dowling mostra que quando não há privatização, os serviços são restringidos em termos de acesso e/ou oferta, abrindo espaço para a mercantilização e a consequente financeirização, alimentando assim o que chamará de “coinvocação” entre Estado e finança: o uso do Estado para a acumulação de lucros financeiros e o uso pelo Estado do mundo financeiro para o atendimento de demandas sociais.

A utilização de créditos, vouchers, empréstimos ou bônus para financiar a vida cotidiana tem se tornado prática cada vez mais corriqueira nos setores pobres da população, que passam a compor um novo contingente de endividados. Para Cavallero e Gago (2019CAVALLERO, L.; GAGO, V. Una lectura feminista de la deuda. ¡Vivas, libres y desendeudadas nos queremos! Buenos Aires: Fundación Rosa Luxemburgo, 2019.), essa é uma nova forma de exploração, uma nova forma de viabilizar lucros pela dívida; é uma ofensiva do capital aos setores subalternos, envolvendo o que elas chamam de colonização financeira da reprodução social. Trata-se de um mecanismo de exploração específico do nosso tempo, no qual, ao lado do endividamento, coexiste, imprescindivelmente, o trabalho não remunerado, articulando-se com a escassez ou ausência completa de políticas e serviços públicos.

Essa nova relação entre Estado e mercado agrava-se à medida em que avançamos para uma sociedade superenvelhecida.1 1 1 Define-se o superenvelhecimento quando se constata o aumento da população com 80 anos ou mais, segmento etário que mais cresce na população brasileira (Camarano, 2010). Em 2012, representava 1,6% da população total ou 3,2 milhões de pessoas e em 2022, alcançou 2,2% ou 4,7 milhões (IBGE, 2022a). A crise global do cuidado, amplamente analisada na literatura, é atribuída à precariedade de políticas públicas - mesmo nos Estados de Bem-Estar Social; às alterações na composição da família, sobretudo com a ampliação da inserção da mulher no mercado de trabalho; e, ao avanço do protagonismo do capital financeiro por meio de investimentos de private equity e/ou concessões de empréstimos, o que caracteriza teoricamente a financeirização (Chesnais, 2005CHESNAIS, F. (Org.) A finança mundializada. São Paulo: Boitempo Editorial, 2005.; Lavinas; Gentil, 2018LAVINAS, L.; GENTIL, D. Brasil anos 2000: A política social sob regência da financeirização. Novos estud. Cebrap, v.37, n.2, May-Aug 2018. https://doi.org/10.25091/S01013300201800020004
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; Lavinas et al., 2017).

O que tem sido denominado “financeirização da vida” refere-se a essa expansão da acumulação capitalista via mecanismos financeiros que exacerbam e multiplicam a produção de valor (Dowbor, 2017DOWBOR, L. A era do capital improdutivo. São Paulo: Autonomia Literária, 2017.) e expandem a esfera do econômico para penetrar nas múltiplas esferas da vida cotidiana. Por isso, nesse processo, o sistema financeiro acaba criando e protegendo interesses e movimentos especulativos gigantescos, em detrimento até da expansão do capital direcionado para as atividades produtivas. Ainda que essa não seja a única forma de apropriação de valor pelas finanças, o crédito tem se traduzido numa exploração financeira.

Concordando com a visão de que a essência do pensamento crítico é a sua capacidade de fazer distinções que permitam uma avaliação acurada da particularidade das situações, tomamos como base para análise a materialização da financeirização da velhice em três situações: no modelo das unidades residenciais em mãos de fundos de investimento e investidores institucionais; os custos dos planos de saúde no orçamento das famílias brasileiras levando às pessoas idosas à situação de “gasto catastrófico” e, por fim, o crédito consignado que é um tipo de empréstimo bancário, criado no Brasil em 2003, cujo valor das parcelas emprestadas é descontado diretamente do salário ou dos benefícios da aposentadoria ou pensão comprometendo parte da renda antes mesmo de o dinheiro chegar à conta da pessoa, tomadora do empréstimo.

O objetivo aqui é apresentar a dinâmica desse processo na realidade das pessoas idosas destacando a submissão do Estado, cada vez mais, à função de conectar toda a vida humana à lógica financeira o que amplia os riscos na velhice (Dowling, 2022DOWLING, E. The Care Crisis - What Caused It and How Can We End It? 2.ed. London; New York: Verso, 2022., p.82), embora ocorra um (re)significado do endividamento para as pessoas idosas na contemporaneidade, como será destacado nas considerações finais.

Residenciais para idosos e a fração imobiliária do capital financeiro

O tema da financeirização da velhice invadiu a mídia francesa no início de 2022 com o lançamento de Les Fossoyeurs (“Os coveiros”, em tradução livre), do jornalista independente Victor Castanet. O livro-reportagem de Castanet (2022CASTANET, V. Les Fossoyeurs - révélations sur le système qui maltraite nos aînés, Paris, Fayard, 2022.) denunciou como o Grupo Orpea, empresa de capital aberto com 222 estabelecimentos no território francês, pertencente a um private equity 2 2 Trinta empresas de private equity possuem 2.834 residenciais para idosos na Europa com quase 200 mil clientes (Público, 2021, p.5). e a um fundo de pensão canadense (Canada Pension Plan Investments ou CPPIB, com 14,5%), administra seus residenciais em 23 países exigindo um alto retorno sobre o investimento (ROI), reduzindo custos operacionais de maneira a comprometer a qualidade do serviço e sempre atua alavancado em dívidas (200% sobre o patrimônio) devido à farta distribuição de dividendos, caracterizando assim um processo de financeirização (Chesnais, 2005CHESNAIS, F. (Org.) A finança mundializada. São Paulo: Boitempo Editorial, 2005.).

Castanet relata maus-tratos aos idosos, odor de urina, insegurança alimentar, controle no uso de fraldas, entre outras barbaridades que levaram idosos à morte3 3 Em 16 de junho de 2022, o Grupo Orpea foi condenado pela primeira vez na Justiça por um caso de morte. A Justiça considerou o Orpea culpado por ausência de socorro a uma senhora de 84 anos que teve fraturas após uma queda dentro do residencial (Le Monde, 2022a). e familiares ao endividamento, fruto da demanda elevada de produtividade sobre o trabalho de cuidado e o uso indevido de recursos públicos para fins de aferir retornos no mercado financeiro. O chamado “sistema Orpea”, assim definido pelo autor, é

[...] um sistema financeiro extremamente sofisticado, desenhado ao mais alto nível, de um império que se internacionalizou, onde tudo parece permitir o maior lucro! [...] Os idosos tornaram-se pretexto e meio de arrecadação de dinheiro público, tributando profissões afins, como laboratórios, fisioterapeutas e cabeleireiros, obtendo edifícios premium nas áreas mais dinâmicas da França e assim realizando gigantescos ganhos de capital imobiliário. (Castanet, 2022CASTANET, V. Les Fossoyeurs - révélations sur le système qui maltraite nos aînés, Paris, Fayard, 2022., p.363-5)

Uma reportagem do jornal Le Monde explica a participação da fração imobiliária do capital financeiro no modelo de negócio:

O imobiliário é central nesta estratégia: locais bonitos, com espaços verdes, bem localizados são um argumento para a captação de clientes; sua venda, com um bom ganho de capital, fornecerá recursos para serem investidos em outros lugares. O Orpea ainda detém 47% dos seus edifícios, já vendeu alguns em 2020 por 232 milhões de euros e pretende vender 400 milhões a 500 milhões de euros em dois anos. (Le Monde, 2022b)

Pesquisa sobre financeirização do mercado de cuidado no Reino Unido, na França e na Alemanha mostra que

[...] para minimizar a quantidade de dinheiro necessária no começo da operação, as firmas de private equity também podem fazer os grupos de residenciais para idosos venderem seu patrimônio, especialmente o imobiliário. Isso permite que os investidores liberem cash para novas aquisições e exija que grupos de casas de repouso paguem aluguéis ao novo proprietário do imóvel [sale-and-leasing back], muitas vezes atrelados a contratos de aluguel de longo prazo muito onerosos que a empresa operadora deve pagar, ao custo da qualidade do cuidado [care]. A razão é que a promessa contratual de longo prazo de altos pagamentos de aluguel torna o imóvel mais valioso e possibilita um preço de venda mais alto. (Bourgeron et al., 2021BOURGERON, T.; METZ, C.; WOLF, M. They don’t care - How financial investors extract profits from care homes. Berlin: Finanzwende/Heinrich Böll-Foundation, 2021., p.10)

Os investimentos aferidos depois da valorização e venda do imóvel são aplicados por empresas acionistas da Orpea - e de quase todas as outras operadoras - localizadas em paraísos fiscais, sobretudo Luxemburgo; logo, o lucro imobiliário do modelo de negócio é externalizado livrando-se de impostos no país onde o serviço é prestado (Castanet, 2022CASTANET, V. Les Fossoyeurs - révélations sur le système qui maltraite nos aînés, Paris, Fayard, 2022., p.314-15; Bourgeron et al., 2021BOURGERON, T.; METZ, C.; WOLF, M. They don’t care - How financial investors extract profits from care homes. Berlin: Finanzwende/Heinrich Böll-Foundation, 2021., p.16).

A funcionalidade do capital imobiliário é ainda constatada em razão do alto endividamento perene desse tipo de modelo e a garantia dos empréstimos são os próprios imóveis em operações de reestruturação financeira (Felix, 2022b_______. Economia da Longevidade: uma resposta construtiva para o envelhecimento populacional no Brasil. Texto para discussão n.88, Projeto Saúde Amanhã, Rio de Janeiro: Fiocruz, 2022b. Disponível em: <https://saudeamanha.fiocruz.br/textos-para-discussao/#.YsRpvnbMJPZ>. Acesso em: 5 jul. 2022.
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, p.25). O modelo financeirizado das multinacionais de residenciais para as pessoas idosas é, há algum tempo, visto pelos gestores de fundos (asset management funds) menos como um empreendimento em prestação de serviço e mais como um investimento em real estate (Mueller; Laposa, 1998MUELLER, G. R.; LAPOSA, S. P. The Investment Case for Senior Living and Long Term Care Properties in an Institutional Real Estate Portfolio. In: ANIKEEFF, M. A.; MUELLER, G. R. (Ed.) Seniors Housing. Research Issues in Real Estate. v.4. Springer, Boston, MA, 1998. https://doi.org/10.1007/978-1-4615-6067-8_12
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).

O “escândalo das Ehpads” (similar francês da designação brasileira ILPI, Instituição de Longa Permanência para Idosos ou Établissement d’hébergement pour personnes âgées dépendantes) obrigou o governo a criar comissões de investigação por dois ministérios (uma no âmbito do Ministério da Economia e outra no dos Assuntos Sociais).4 4 Inspections générales des finances (IGF) e inspections générales des affaires sociales (IGAS). Disponível em: https://igas.gouv.fr/Control-of-the-ORPEA-group Outra investigação ocorreu na Assembleia Nacional e outra no Senado.5 5 Disponível em: <http://www.senat.fr/commission/soc/controle_ehpad.html>. Todas as investigações confirmaram as denúncias do livro (Le Monde, 2022b). As ações da Orpea caíram mais de 60% em menos de uma semana, e todos os seus executivos principais foram substituídos e responsabilizados. Rapidamente, as famílias de idosos clientes da líder do mercado francês, o Grupo Korian, com mais de 303 estabelecimentos no país, também citada por Castanet (2022CASTANET, V. Les Fossoyeurs - révélations sur le système qui maltraite nos aînés, Paris, Fayard, 2022., p.170), denunciaram fatos semelhantes aos da concorrente (Le Monde, 2022d).

O caso da França ilustra a ineficácia de se delegar ao setor privado o desafio de atender a certas demandas da sociedade superenvelhecida, expôs falhas de mercado irreparáveis, assim como limitações do terceiro setor (filantropia), mas, além de tudo, é um exemplo da “coinvocação” citada por Dowling dentro da nova relação Estado e mercado.

No Brasil, já temos alguns desses grupos transnacionais atuando no mesmo modelo financeirizado. Outros estão prospectando o mercado nacional motivados pelo ritmo de envelhecimento da população brasileira, como Korian e DomusVi (franceses), Ensign Group (norte-americano), SisCare (belga). Desde 2017, o Grupo Orpea está no Brasil e fundou a rede de residenciais de alto padrão Cora (Brasil Senior Living), com cinco unidades em São Paulo, em parceria (joint-venture) com o fundo Pátria Investimentos.6 6 Disponível em: <https://patria.com/private-equity>. Em março de 2019, a Orpea comprou 20% do Brasil Senior Living da Patria Investimentos. Na época, foi feito um acordo para compra da participação restante da empresa até 2025 (LexLatin, 2020). Naquele ano, o relatório de investimentos do Orpea dizia que “o Brasil oferece grandes oportunidades de desenvolvimento e o Orpea está se preparando ativamente para operar no país por meio de crescimento orgânico com projetos de construção e algumas seletivas aquisições” (Valor Econômico, 2018).

Em 2017, os 25 maiores operadores de ILPI na Europa, apenas três sem fins lucrativos, administravam 369.132 residentes (Público, 2021, p.5). De acordo com estimativas de Camarano (2010CAMARANO, A. A. Cuidados de longa duração para idosos: um novo risco social a ser assumido? Rio de Janeiro: Ipea, 2010.), o Brasil tem 1% de sua população idosa institucionalizada; logo, cerca de 340.210 residentes, levando em conta uma população idosa de 34 milhões ou 15,7% da população total (IBGE, 2022), o país teria hoje um mercado quase equivalente ao de toda a Europa, o que explica o interesse de investidores estrangeiros. As estimativas demográficas mostram crescimento robusto no mercado de cuidado no Brasil nos próximos anos (Camarano, 2021; Félix, 2019, 2022b).7 7 O mercado de toda a América Latina começa a atrair esses grupos multinacionais de cuidados de longa duração. O terceiro maior da Europa, o Domus Vi, adquiriu, em 2018, participação no Acalis Group, presente em Uruguai, Colômbia e Chile. Disponível em: <https://www.domusvigroup.com/index.php/en/group-highlights.html>.

O contexto brasileiro de oferta de serviços de cuidado às pessoas idosas favorece esses grupos. De acordo com Lacerda et al. (2021LACERDA, T. T. B. et al. Geospatial panorama of long-term care facilities in Brazil: a portrait of territorial inequalities. Geriatr Gerontol Aging, v.15:e0210060, 2021. https://doi.org/10.53886/gga.e0210060
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), a partir de estudo observacional descritivo geoespacial, das 7.029 ILPI (ou Long-Term Care Facilities) encontradas em levantamento feito pela Frente Nacional de Fortalecimento das ILPI, entidade fundada em abril de 2020, 60% são filantrópicas e 30% são privadas com finalidade de lucro e estão concentradas nas regiões Sul e Sudeste. O estudo encontrou que somente 36,22% dos 5.570 municípios brasileiros possuem, ao menos, uma ILPI.

Essa distribuição geográfica heterogênea no território nacional, além de revelar a completa ausência de uma política pública de cuidado, por um lado, reforça a tradição familista brasileira de cuidado - delegando essa tarefa à esfera doméstica seja por familiares de idosos (não remunerados), seja por empregadas remuneradas; por outro lado, amplia as oportunidades de financerização com foco nas classes médias e altas, forjando um mercado promissor para os grupos transnacionais. Um ponto a destacar é o crescimento superior a 200% entre 2010 e 2021 do mercado de ILPI em estados até então desprovidos desses estabelecimentos, como Amazonas e Rio Grande do Sul (Lacerda et al., 2021LACERDA, T. T. B. et al. Geospatial panorama of long-term care facilities in Brazil: a portrait of territorial inequalities. Geriatr Gerontol Aging, v.15:e0210060, 2021. https://doi.org/10.53886/gga.e0210060
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p.4).

Ao investigarem o mercado de cuidado na França, no Reino Unido e na Alemanha, Bourgeron et al. (2021BOURGERON, T.; METZ, C.; WOLF, M. They don’t care - How financial investors extract profits from care homes. Berlin: Finanzwende/Heinrich Böll-Foundation, 2021., p.37) mostram que o sistema Orpea é, de fato, um modelo globalizado e é descrito pelos autores como “alarmante - ainda mais porque os fundos de private equity acabam de registrar novos recordes de captação de recursos e serão os jogadores com os bolsos mais cheios nos próximos anos após a pandemia de Covid-19”.

Plano de saúde e “gastos catastróficos”

A participação do item saúde no orçamento familiar no Brasil é bastante elevada. Conforme o indivíduo envelhece, se aposenta e perde a cobertura de saúde oferecida pelo empregador, o custo do plano privado cristaliza-se, na prática cotidiana das famílias com idosos, como um endividamento perene. Cerca de 25% da população são clientes da saúde privada, enquanto 75% usam exclusivamente o Sistema Único de Saúde (SUS). No entanto, o SUS tem limitações de acesso, filas de espera e uma distribuição irregular no território nacional.

Essa “dívida” dos idosos com saúde privada é crescente devido aos constantes reajustes dos planos de saúde acima da inflação, como verifica-se na última década.8 8 Em 2022, o reajuste de planos individuais e familiares autorizado pela Agência Nacional de Saúde Suplementar (ANS) atingiu 15,5%, um percentual recorde, contra um IPCA de 12,13% (maio de 2021 e abril de 2022). Entre 2011 e 2021, o reajuste ficou em 107,9% (ANS, 2022) contra 91,5% da inflação oficial, isto é, 16,4 pontos percentuais de diferença. Em 2023, o reajuste de planos individuais e familiares foi de 9,63% - período entre maio de 2023 e abril de 2024 - contra uma inflação projetada em torno de 4,5% para o período e de 4,62% em todo o ano de 2023 (ANS, 2024). Enquanto o item saúde e cuidados pessoais representa cerca de 10,4% do orçamento das famílias brasileiras, nas famílias com ao menos 50% de idosos esse percentual é de 15% (Neri et al., 2004NERI, M. et al. Inflação e os idosos brasileiros In: CAMARANO, A. A. (Org.) Os novos idosos brasileiros - muito além dos 60? Rio de Janeiro: Ed. Ipea, 2004. p.559-85., p.563). As despesas de saúde, nas metodologias de índice de inflação, incluem médicos, hospitais, laboratórios, remédios e planos de saúde. Nas famílias de rendas mais baixas, o gasto direto (out-of-pocket) é proporcionalmente mais significativo com medicamentos (Lavinas; Gentil, 2018LAVINAS, L.; GENTIL, D. Brasil anos 2000: A política social sob regência da financeirização. Novos estud. Cebrap, v.37, n.2, May-Aug 2018. https://doi.org/10.25091/S01013300201800020004
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), já nas faixas de renda mais alta, os planos de saúde assumem o dobro do peso relativo.

Isso significa dizer que os idosos com capacidade orçamentária de adquirirem um plano de saúde constituem-se num mercado considerável sobretudo pela motivação financeira, isto é, a prioridade dada a esse tipo de gasto com o avanço da idade. Desde o início dos anos 2000, o item saúde aparece apenas atrás de alimentação e habitação entre os maiores gastos monetários dessas famílias (Neri et al, 2004NERI, M. et al. Inflação e os idosos brasileiros In: CAMARANO, A. A. (Org.) Os novos idosos brasileiros - muito além dos 60? Rio de Janeiro: Ed. Ipea, 2004. p.559-85., p.564; IBGE, 2020, p.48 e 71).

Uma maneira de verificar essa preferência é o percentual de pessoas idosas com planos de saúde médico-hospitalar (com ou sem odontologia) na modalidade individual e familiar, ou seja, registrados em nome de um CPF e não de um CNPJ (planos empresariais ou coletivos, que somam 42 milhões, em janeiro de 2024). Em abril de 2022, 28,94% do total de 8,9 milhões de clientes tinham mais de 60 anos (ANS, 2022). É relevante sublinhar o crescimento desse mercado. De 2010 a 2020, o número dos 60+ nesse segmento de plano cresceu 35,4%. De 2000 a 2020, 102,9% (IESS, 2020) contra um crescimento do PIB no período de 44,3%. O mercado alcançou mais de 3,3 milhões de clientes idosos, embora tenha retornado, depois dos primeiros dois anos de pandemia de Covid-19, para o patamar de 2,5 milhões, isto é, 8% do total de idosos do país.

Tal dinamismo atraiu players globais para o mercado brasileiro. Em 2012, a Amil, quarta maior operadora brasileira de planos de saúde, foi adquirida pela norte-americana UnitedHealth Group Inc., oitavo maior grupo em receita do planeta (Fortune, 2021), por 10 bilhões de reais. Até 2018, o setor apresentou “resultados notáveis” de aumento de receita mesmo com volatilidade do número de segurados e em meio à estagnação da economia brasileira (Ocké-Reis et al., 2021a, p.9).

Em análise da performance financeira das empresas líderes do mercado entre 2007 e 2019, constatou-se que esses players tiveram uma rentabilidade superior comparados às grandes empresas de capital aberto, especialmente em 2015, quando as firmas com registro ativo na Comissão de Valores Mobiliários (CVM) tiveram uma taxa de lucro negativa (-5%) devido à recessão, enquanto o conjunto de tais operadoras apresentou uma lucratividade de 14%. Em alguns momentos, esse indicador chegou a ser três vezes superior (18% contra 6%) à taxa média de lucro da economia brasileira (Ocké-Reis et al., 2021b). Grande parte dos dividendos distribuídos constituem-se em capital não reinvestido nas empresas e autonomizado na esfera financeira, uma das principais características do fenômeno da financeirização (Chesnais, 2005CHESNAIS, F. (Org.) A finança mundializada. São Paulo: Boitempo Editorial, 2005., p.35).

O segmento idoso tem contribuído significativamente para alimentar essa performance de retorno do capital dos planos de saúde e, ao longo das últimas décadas, pode-se afirmar que essa despesa, assumida com a intenção de oferecer maior segurança, sofreu uma metamorfose no orçamento familiar e constitui-se atualmente em um processo de endividamento.

A pessoa idosa percebe o plano de saúde menos como uma dívida perene e mais como um seguro para o risco de despesas altas e repentinas. No entanto, esse sentimento de segurança, de acordo com Moraes et al. (2022MORAES, R. M. de et al. Gastos das famílias com planos de saúde no Brasil e comprometimento da renda domiciliar: uma análise da Pesquisa de Orçamentos Familiares (2017/2018). Cad. Saúde Pública, Rio de Janeiro, v.38, n.3, :e00354320, 2022. doi: https://doi.org/10.1590/0102-311X00354320.
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), é falso. O fato de pagar um plano de saúde está longe de reduzir o risco de a família ou a pessoa idosa cair na situação denominada de “gasto catastrófico”. Essa categoria é definida como aquele tipo de gasto que representa mais de 40% da renda, e para honrá-lo a família ou o indivíduo precisa abrir mão ou reduzir algum tipo de despesa essencial, como alimentação, por exemplo.

Os pesquisadores confirmaram achado de estudo baseado na Pesquisa de Orçamentos Familiares (POF) de 2002/2003 (Barros et al., 2011BARROS, A. J. D.; BASTOS, J. L.; DÂMASO, A. H. Gasto catastrófico com saúde no Brasil: planos privados de saúde não parecem a solução. Cad. Saúde Pública, Rio de Janeiro, v.27, Sup. 2:S254-S262, 2011.) no qual domicílios com idosos e/ou de menor renda apresentaram relação positiva com “gastos catastróficos” em todas as faixas de renda, exceto na mais baixa (em que a proporção de pagantes de planos é pequena). Entre 2017 e 2018, gastos com planos de saúde representaram 58% do gasto das famílias com serviços de saúde. A proporção de pessoas que pagam planos cresce com a idade, chegando a 58,1% na faixa de 69-73 anos. As faixas de 64-78 anos são as que têm maior proporção de pagantes, acima de 50%. Os valores médios dos planos individuais e familiares são 20% mais altos que os empresariais e coletivos.

A conclusão dos pesquisadores foi de que as pessoas idosas têm, em média, chance maior que o total da população de ter “gastos catastróficos” com saúde devido aos planos de saúde. Mesmo sem levar em conta gastos com medicamentos e outros serviços de saúde pagos diretamente, 5,6% das pessoas idosas comprometem mais de 40% da renda domiciliar per capita apenas com os planos de saúde individuais ou coletivos - para os planos empresariais (coparticipação) o percentual é de 4%. Moraes et al. (2022MORAES, R. M. de et al. Gastos das famílias com planos de saúde no Brasil e comprometimento da renda domiciliar: uma análise da Pesquisa de Orçamentos Familiares (2017/2018). Cad. Saúde Pública, Rio de Janeiro, v.38, n.3, :e00354320, 2022. doi: https://doi.org/10.1590/0102-311X00354320.
https://doi.org/10.1590/0102-311X0035432...
, p.7-8) destacam que 34,8% das pessoas que pagam plano e têm despesas acima de 40% da renda domiciliar per capita têm mais de 60 anos.

Os pagantes de planos de saúde de 59 a 63 anos têm renda 2,5 vezes maior do que os da primeira faixa etária (menos de 19 anos), como destacam os autores; no entanto, os planos podem cobrar deles uma mensalidade seis vezes maior do que as da primeira faixa etária. Embora o uso do plano aumente com a idade, defendem os autores, a capacidade de pagamento também deveria ser um critério para determinar os limites de preço por idade. Para as operadoras, a perspectiva de perder os clientes com maior uso de serviços não é ruim financeiramente e essa estratégia pode explicar a defesa ou o desprezo pela mutação dessa “despesa” em “endividamento” no contexto do orçamento familiar, conforme defendido acima.

Crédito consignado: o idoso no mercado e na família

A universalização do direito a um rendimento mensal por ocasião da inatividade é uma das condições que explicam o fato de a pessoa idosa, em todas as classes sociais, ser o segmento com maior poder aquisitivo. Mas o expressivo aumento no crescimento da oferta de serviços financeiros e de crédito dirigido ao segmento de aposentados de baixa renda é, certamente, uma inovação que garante uma outra posição do idoso na economia brasileira. Pode-se dizer que, com o crédito consignado, assistimos à inclusão definitiva do idoso no sistema financeiro.

Para alguns autores, essa inclusão é uma das causas mais palpáveis do bom momento vivido pela economia nacional nas últimas duas décadas. O aumento do consumo, a diminuição das desigualdades econômicas e a ampliação dos setores médios foram resultados da elevação do salário-mínimo e das políticas de distribuição da renda. Porém, como mostra Müller (2009MÜLLER, L. “Então, eu fui à luta!”: repensando as representações e práticas econômicas de grupos populares a partir de uma trajetória de ascensão social. Política & Sociedade, v.8, n.15, out. 2009.), para entender o grau desse crescimento econômico é preciso que se leve em consideração o acesso aos serviços financeiros e, em especial, o acesso ao crédito que atingiu, de forma evidente, importante parcela da população de baixa renda.

Outros autores, no entanto, tendem a olhar com menos otimismo o curso das recentes mudanças sociais e econômicas. Para Grün (2007GRÜN, R. Decifra-me ou te devoro! As finanças e a sociedade brasileira. Mana, v.13, p.381-410, 2007.), o Brasil, de fato, assistiu à instauração do modo de dominação financeira. Para Doll e Cavallazzi (2016DOLL, J.; CAVALLAZZI, R. I. Crédito consignado. Revista de Direito do Condumidor, v.107, ano 25, p.309-41, set.-out. 2016.) e também pesquisa do Instituto de Defesa de Consumidores (Idec, 2021), o crédito leva ao endividamento dos idosos e a perda dos valores das aposentadorias e pensões para os juros cobrados mensalmente pelas instituições bancárias.

A venda de empréstimos consignados foi regulamentada em 2003, pela Lei n.10.820, que deu maior acesso ao crédito para empregados formais, aposentados e pensionistas do INSS, com taxas de juros reduzidas, graças às garantias de baixo risco de inadimplência porque as parcelas do pagamento do empréstimo poderiam ser descontadas diretamente da folha de pagamento do cliente.9

Nas palavras de Lavinas et al. (2017LAVINAS, L.; ARAÚJO, E.; BRUNO, M. Brasil: vanguarda da financeirização entre os emergentes? Uma análise exploratória. Texto para discussão n.32, Rio de Janeiro, Instituto de Economia da UFRJ, 2017. Disponível em: <https://www.ie.ufrj.br/images/IE/TDS/2017/TD_IE_032_2017_LAVINAS_ARA%C3%9AJO_BRUNO.pdf>. Acesso em: 1 jul. 2022.
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, p.23), o setor financeiro passou a usar o crédito consignado como um produto para captar uma clientela “cuja característica é ter o Estado como o fiador de sua renda. Ou seja, pagamentos feitos pelo Estado tornam-se o colateral que praticamente elimina o risco moral para os bancos, além de assegurar uma rentabilidade nada desprezível”.

Essa modalidade de crédito rapidamente se popularizou no mercado pelo fato de proporcionar juros menores e pela facilidade do acesso. A legislação permite aos bancos acessarem o cadastro do aposentado através do seu número de benefício do INSS. Apenas com a informação oferecida por aqueles que telefonam ou visitam uma financeira, o vendedor de empréstimo pode verificar qual valor o banco pode oferecer ao aposentado. O cálculo se dá através do benefício e da idade do cliente, variando progressivamente com os prazos.

De início, poderia comprometer 30% do benefício com o pagamento do empréstimo. Em 2020, com o agravamento da crise econômica decorrente da pandemia, o governo editou a Medida Provisória n.1006/20, convertida na Lei n.14.131/2013, ampliando a margem de descontos de 35% para 40%. Houve ainda o aumento do prazo de pagamento de 72 para 84 meses. Quanto maior o parcelamento da dívida, maior a quantia emprestada, valores esses estimados pela idade do aposentado, que limita progressivamente o montante máximo do empréstimo.

Como mostra a pesquisa do Idec (2021), desde março de 2007, a evolução do saldo das carteiras de crédito consignado apresenta um crescimento constante para os servidores públicos, seguido pelos aposentados do INSS. Em setembro de 2021, o saldo em concessão por categoria foi de 289 bilhões de reais (58%) para os funcionários públicos, 189 bilhões de reais (38%) para aposentados e pensionistas do INSS e 28 bilhões de reais (6%) para trabalhadores da iniciativa privada. Porém, em número de clientes ativos, os beneficiários do INSS representam 60% de toda a carteira de crédito consignado para pessoa física. Em janeiro de 2024, as concessões totais foram de 191,8 bilhões, sendo 49,4% para funcionários públicos, 41,1% para aposentados e pensionista do INSS e 9,5% para trabalhadores ativos da iniciativa privada (BCB, 2024).

A pesquisa do Idec indica ainda que em dezembro de 2020, dentre os tomadores de crédito consignado vinculados ao INSS, a tendência é comprometer de 30% a 40% da renda e, entre esses, 73% possuíam renda de até dois salários-mínimos. Esse perfil de renda foi responsável por 57% do volume financeiro concedido para clientes beneficiários do INSS. Com base em dados do INSS, a pesquisa do Idec mostra que, em agosto de 2021, o Brasil emitiu pagamento de benefícios de aposentadoria ou pensão para 36.200.790 aposentados e pensionistas. Desse total, 65% (23.385.126) dos beneficiários recebiam apenas um salário-mínimo ou 1.100 reais por mês, em valores de 2021. Esse percentual se mantém até hoje, com um salário-mínimo de 1.412 reais em valores de 2024 (Felix, 2023_______. População brasileira envelhece endividada, como a reforma tributária mexe com essa dinâmica. The Conversation Brasil, 2023. Disponível em: <https://theconversation.com/populacao-brasileira-envelhece-endividada-como-a-reforma-tributaria-mexe-com-essa-dinamica-212840#:~:text=S%C3%A3o%2033%2C4%20milh%C3%B5es%20de,pena%20de%20uma%20cat%C3%A1strofe%20fiscal>. Acesso em: 25 mar. 2024.
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).

Como mostra Giufrida (2011GIUFRIDA, G. A sua vida merece crédito: a velhice e o empréstimo consignado. Monografia defendida no Instituto de Economia da Unicamp, 2011. Disponível em: <https://www.prp.unicamp.br/pibic/congressos/xviiicongresso/resumos/071071.pdf>. Acesso em: 6 ago. 2022.
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), na etnografia realizada numa financeira especializada no centro de São Paulo, o aposentado, além de comprometer parte da sua renda com o crédito consignado, passa a ter acesso a outros produtos financeiros, como cartões de crédito com altos limites (em geral o dobro do salário mensal do aposentado), seguros (inclusive funeral) e bilhetes premiados etc. “Um produto estimula a venda do outro”, como disse um dos bancários entrevistados.

O autor conta que assistiu à vinda de uma filha à agência querendo saber sobre os empréstimos do pai, recém-falecido, e descobre as dívidas que ele havia realizado no cartão de crédito oferecido pelo banco com as taxas de juros de mercado e cuja dívida - diferentemente do que ocorre com o consignado - passa diretamente à família. O bancário sugere, então, a possibilidade de estudar um empréstimo com juros de mercado para a filha pagar as dívidas deixadas pelo pai. Nesse caso, o consignado foi uma porta para uma dupla expropriação.

Giufrida indica em detalhes os procedimentos adotados para a obtenção do consignado. O primeiro passo é verificar se o aposentado ou pensionista não tem outros empréstimos, nesta ou em outra instituição. Caso seja cliente de um concorrente, o objetivo seguinte é “reverter” essa situação, trazendo o cliente para o banco e se possível concentrando todos os seus empréstimos. Se isso é acordado, o banco vai em busca das instituições em que o emprestador tinha créditos e paga a dívida, levando os clientes candidatos a um novo empréstimo consignado. O que um banco mais teme é que um cliente venha quitar seus empréstimos e sabe que em geral isto é feito via empréstimos em outros bancos.

Numa etnografia sobre o crédito consignado e as pessoas idosas realizada num banco em Porto Alegre, Candido (2007CANDIDO, L. Crédito sob a ótica da terceira idade: significados da utilização do empréstimo pessoal para os idosos. Monografia defendida na Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul, 2007.) mostra que os idosos procuram manter uma relação pessoal com os funcionários. Os bancários consideram as relações estreitas com esses clientes como um fator positivo na venda dos empréstimos.

Essa também é uma dimensão muito evidente no trabalho etnográfico de Giufrida. Os funcionários da agência bancária pesquisada consideraram que o esclarecimento de todas as dúvidas do cliente e o bom atendimento são as melhores estratégias e que a simpatia deve ser o foco maior, pois o diferencial das financeiras especializadas no crédito consignado é a abordagem amigável.

As cláusulas do contrato são muito complicadas, escritas em linguagem jurídica e exigem um conhecimento refinado de cálculos matemáticos, configurando, assim, uma assimetria de informação. O cliente espera que o funcionário faça os cálculos e lhe ofereça uma boa quantia. As condições de pagamento parecem ficar em um segundo plano, pois serão descontadas mensalmente.

O aposentado, mostra ainda o autor, parece circular entre os bancos do centro de São Paulo em busca daquele que lhe oferecer o maior empréstimo. O temor é que o cliente venha quitar a dívida, fazendo um empréstimo em outro banco. Como mostram Debert e Giufrida (2013DEBERT, G. G.; GIUFRIDA, G. O dinheiro, a velhice e a Família. In: Guilherme R. PASSAMANI, G. R. (Org.) (Contra)pontos: Ensaios de gênero, sexualidade e diversidade sexual: curso da vida e gerações. Campo Grande: Ed. UFMS, 2013.), em termos financeiros é muito difícil quitar uma dívida, pois, com o spread elevado cobrado no Brasil mesmo para o consignado,10 10 Em março de 2024, as taxas de juros ao mês para os aposentados e pensionistas do INSS variavam de 1,39% a 1,83% (BCB, 2024a). ela ganha um montante muito maior do que o valor inicial. O desafio dos funcionários é convencer o cliente de continuar no banco. Quando não há sucesso, a delicadeza no tratamento do cliente é substituída pela demora no atendimento e até mesmo por grosserias verbais.

Práticas abusivas não estão ausentes das ofertas de crédito consignado. Como mostra a pesquisa do Idec (2021), os consumidores são expostos a ações de telemarketing com centenas de ligações diárias, com todo tipo de oferta de serviços vinculados ao crédito consignado, com operações de portabilidade, refinanciamento com troco e cartão de crédito consignado.

O INSS e o Conselho Monetário Nacional (CMN), periodicamente, criam regulamentações com o objetivo de ampliar ou restringir o acesso aos créditos.11 11 Em 17 de março de 2022, o presidente da República editou a Medida Provisória n.1.106 (Brasil, 2022a), estendendo aos recebedores do Benefício de Prestação Continuada (BPC) da Lei Orgânica da Assistência Social o direito ao crédito consignado no percentual de comprometimento da renda em até 45% (sendo 5% no cartão de crédito consignado), sem estabelecer nenhum teto para o empréstimo, que passa a depender de um acerto entre o banco credor e o tomador do empréstimo. Aprovada pelo Congresso Nacional e sancionada como Lei n.14.403, em 4 de agosto de 2022, a medida atinge, em sua grande maioria, os idosos de baixa renda e até os vulnerabilizados financeiramente, pois o valor máximo desse benefício é um salário-mínimo. Na mesma MP, foi ampliado o percentual da renda dos aposentados e pensionistas do Regime Geral de Previdência Social que pode ser comprometida, passando de 40% para 45% (sendo 5% no cartão de crédito). Essa decisão reforça a tendência de sucessivos governos, desde 2003, optarem por uma ampliação do endividamento da pessoa idosa principalmente como ferramenta para o estímulo à economia ou uma “política” de bem-estar social para esse segmento da população, ou seja, a adoção do modelo de Estado Fiador. Aos esforços para coibir abusos, podem-se somar as ações dos institutos voltados para o direito do consumidor bem como o número significativo de reportagens na imprensa que têm procurado orientar sobre o custo financeiro do consignado e alertar sobre fraudes na oferta desse produto financeiro, que funciona como uma porta de entrada para outros produtos desenvolvidos pelos bancos para esse segmento etário (Ryngelblum, 2022RYNGELBLUM, I. Banco Mercantil vai investir R$ 150 milhões de olho nos “novos cinquentões”, São Paulo, Neofeed, 2022. Disponível em: <https://neofeed.com.br/blog/home/banco-mercantil-vai-investir-r-150-milhoes-de-olho-nos-novos-cinquentoes/>. Acesso em: 5 jul. 2022.
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).

Merece destaque a recente promulgação da Lei do Superendividamento (Lei n.14.181/2021) que é considerada um avanço na defesa dos consumidores de créditos na medida em que estabelece que a oferta deve garantir o mínimo existencial, tanto no pagamento das parcelas decorrentes da contratação de crédito quanto na eventual necessidade de repactuação de dívidas. Em 27 de julho, o Decreto n.11.150 estabeleceu como o mínimo de sobrevivência o valor referente a 25% do salário-mínimo vigente na data da publicação do ato, ou seja, 303 reais, levando em conta o valor de 1.212 reais para 2022 (Brasil, 2022b). Todavia, o Artigo 3º, parágrafo 2º do decreto diz que “o reajustamento anual do salário-mínimo não implicará a atualização do valor” do mínimo existencial.12 12 O conceito de mínimo existencial remete ao Título II - “Garantias e Direitos Fundamentais”, da Constituição Federal de 1988 (Art.6º). Nesta seção da CF estão localizados aqueles direitos fundamentais à vida. Esta noção de vida denota uma vivência com dignidade e não somente sobrevivência, todavia, em termos quantitativos é subjetiva (Torres, 1989).

No que se refere aos usos do crédito consignado, as pesquisas mostram que o empréstimo tem como objetivo, na maioria dos casos, saldar dívidas. De acordo com a investigação realizada pelo instituto de pesquisa Plano CDE, entre 45% e 50% dos representantes das classes C, D e E indicam que a alimentação e as contas do mês foram ou seriam a principal finalidade dos diferentes empréstimos feitos em 2022, e que esse percentual cai para 30% entre as classes A e B. Esses dados indicam que o acesso ao crédito para alguns setores da população significa a possibilidade de reprodução social, que os rendimentos do trabalho, do Benefício da Prestação Continuada (que corresponde ao direito de um salário-mínimo para a pessoa idosa que não tem outro rendimento) ou mesmo a aposentadoria não garante. Os empréstimos como condição para a reprodução da vida transformam o endividamento num ciclo que se reproduz de forma constante.

As pesquisas mostram também que o crédito consignado é a modalidade escolhida pela facilidade, rapidez na concessão e pelo fato de as taxas oferecidas serem abaixo das opções de mercado. Importante mencionar que empréstimos informais e ilegais como a agiotagem são um dos principais recursos disponíveis para as classes populares para saldar dívidas, adquirir bens ou mesmo atender ao que consideram necessidades básicas ou condições de sobrevivência. Nesses casos, não apenas as taxas são muito mais altas como mostra Gobbi (2021GOBBI, F. Uma análise da prática agiotagem em São Paulo a partir tipificação penal deste ilegalismo popular. Trabalho apresentado no VII Encontro Nacional de Antropologia do Direito, 2021 Disponível em: <file:///C:/Users/LG/Downloads/Fernanda%20de%20Gobbi_Uma%20ana&%23769%3Blise%20da%20pra&%23769%3Btica%20de%20agiotagem%20popular%20(2).pdf>. Acesso em: 28 nov. 2022.), mas uma rede de proteção para garantir a eficácia das cobranças é montada e apoiada na violência física.

Já as pesquisas qualitativas mostram que boa parte da demanda pelo consignado está relacionada com a ajuda aos filhos e netos. Observa-se, então, uma recomposição intergeracional, uma vez que o crédito consignado “evidência que, em grande parte das famílias, não são os filhos que ajudam o velho da casa, mas pelo contrário; a figura mais velha ganha sentido econômico nas famílias que utilizam o crédito facilitado aos aposentados” (Debert; Giufrida, 2013DEBERT, G. G.; GIUFRIDA, G. O dinheiro, a velhice e a Família. In: Guilherme R. PASSAMANI, G. R. (Org.) (Contra)pontos: Ensaios de gênero, sexualidade e diversidade sexual: curso da vida e gerações. Campo Grande: Ed. UFMS, 2013., p.21).

Nessa mesma direção, no artigo “Os dependentes da renda dos idosos e o coronavírus: órfãos ou novos pobres?”, a economista Ana Amélia Camarano (2020) mostra que quando um idoso morre aumenta o risco de uma família cair na pobreza. Candido (2007CANDIDO, L. Crédito sob a ótica da terceira idade: significados da utilização do empréstimo pessoal para os idosos. Monografia defendida na Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul, 2007.) considera que o aposentado se tornou além de um consumidor potencial aos olhos do mercado, aquele que pode, no grupo familiar e de amigos, emprestar o nome para transações financeiras, o que explicaria o otimismo com que os aposentados de baixa renda vêm o empréstimo consignado.

É difícil saber se os filhos pressionam os pais a fazerem um empréstimo com taxas de juros menores, ou se, pelo contrário, dizer que o empréstimo é para ajudar os filhos garante uma legitimidade que os gastos em lazer e divertimentos não contemplam - mesmo quando a ideia da terceira idade e das suas vantagens, como um momento privilegiado para o prazer e a concreção de sonhos abandonados em outras etapas da vida, está tão em voga (Debert, 1999DEBERT, G. G. A reinvenção da velhice: socialização e reprivatização do envelhecimento São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo, Fapesp, 1999.).

Sabemos que para pensar o investimento simbólico no campo econômico, particularmente quando a relação é entre o mercado e a família, é crucial atentar para a maneira que os atores apreciam, supõem e justificam o uso que fazem do dinheiro e como concebem as relações de intimidade e as fronteiras estabelecidas entre os parentes. Essas fronteiras não são fixas e ganham configurações dinâmicas no que diz respeito às configurações históricas e sociais.

O dinheiro muitas vezes aparece como um elemento que remunera o carinho familiar. A norma da intimidade nega o interesse e as relações de poder e seu sustento é governado pela confiança, proximidade, ajuda ou por sentimentos de dever e culpa (Journet, 2005JOURNET, N. L’argent en famille. Terrain, v.45, p.5-12, 2005. https://doi.org/10.4000/terrain.3504
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; Ribert, 2005RIBERT, E. Dire la dette à travers l’argent ou la taire à travers le don: les allocataires du RMI et l’aide monetaire. Terrain, v.45, p.53-66, 2005.; Zelizer, 2011ZELIZER, V. A. A negociação da intimidade. Petrópolis: Vozes, 2011. Coleção Sociologia.; Debert; Giufrida, 2013DEBERT, G. G.; GIUFRIDA, G. O dinheiro, a velhice e a Família. In: Guilherme R. PASSAMANI, G. R. (Org.) (Contra)pontos: Ensaios de gênero, sexualidade e diversidade sexual: curso da vida e gerações. Campo Grande: Ed. UFMS, 2013.). Doll e Cavallazzi (2016DOLL, J.; CAVALLAZZI, R. I. Crédito consignado. Revista de Direito do Condumidor, v.107, ano 25, p.309-41, set.-out. 2016.) verificaram em pesquisa que o principal motivo para a contratação de um empréstimo consignado é para ajudar algum familiar, 37,7% dos idosos declararam ter feito pelo menos um empréstimo consignado com essa finalidade. A facilidade de contratação do crédito consignado com juros mais baixos cria as condições nas quais os idosos e familiares sentem-se tentados a efetivar uma contratação no nome da pessoa idosa, em benefício de um terceiro que, em geral, promete o pagamento da dívida. Todavia, sabemos que as relações familiares são complexas, estando presentes elementos de solidariedade e de violência ao mesmo tempo, e muitas vezes o pagamento aos idosos pelos familiares não acontece. No entanto, pesquisa mais recente realizada pela FGV-SP aponta em outra direção: os mais velhos estariam cada vez mais contratando esse tipo de empréstimo menos para uma transferência intergeracional e mais para custear seus próprios gastos com saúde (FGV, 2023).

Em contraposição às denúncias do superendividamento das classes populares, o crédito consignado parece, paradoxalmente, ter sido uma estratégia vitoriosa para todos os atores envolvidos. Para o sistema financeiro, significou a possibilidade de negócios extremamente lucrativos em que o risco é praticamente inexistente. Para os aposentados, é uma modalidade de crédito tentadora por oferecer menores taxas de juros, ser concedido de modo rápido, fácil e sem consulta às entidades de proteção ao crédito até mesmo a quem tem restrições creditícias. Ironicamente, como mostram as pesquisas citadas, em boa parte dos casos, o montante dos juros, de início, parece ser relativamente pequeno quando se avalia apenas o desconto mensal. Além disso, a pessoa idosa passa a receber um tratamento gentil e diferenciado nos bancos e ocupa um novo papel na família, ganhando mais prestígio na economia familiar. Esse tratamento, indubitavelmente, ofusca a expropriação financeira e os dramas do endividamento.

Em síntese, a inclusão financeira dos mais velhos revela com clareza a centralidade do endividamento na reprodução social. O fato de a renda da aposentadoria não garantir o que são consideradas condições básicas da existência faz da dívida um ciclo que se reproduz de forma constante. Sendo essa percepção de melhora por parte das pessoas idosas devedoras, certamente, uma das contradições mais dramáticas da financeirização da vida social.

Considerações finais

Este texto analisou três fatores que caracterizam uma financeirização da velhice na contemporaneidade: o cuidado, a saúde e a finança. Diante das metamorfoses sociais observadas desde os anos 1970, o papel do Estado como planejador e provedor do bem-estar social foi significativamente reduzido, sobretudo na saúde - mesmo nos países que experimentaram o chamado Welfare State, após-Segunda Guerra Mundial (1939-1945). Esse processo encontra, no século XXI, uma nova realidade demográfica, o chamado superenvelhecimento populacional, oferecendo assim uma complexidade socioeconômica para a desobrigação estatal.

Os três fatores analisados demonstram a incapacidade de o mercado assumir de maneira eficiente a totalidade das atribuições antes exclusivas do Estado na saúde e, com o envelhecimento, agora também no cuidado de longa duração para idosos. Essa conjunção de novas demandas suscitadas pela demografia desafia modelos de negócios típicos do capitalismo financeirizado do século XXI, replicados para essas áreas tradicionalmente assumidas pela família, pela filantropia ou pelo próprio Estado.

No caso dos cuidados, a partir do caso da França, a atuação de fundos de private equity e a atuação da fração imobiliária do capital financeiro inviabilizam a prestação de um serviço de qualidade - uma vez que para aferirem a rentabilidade sobre o investimento almejada é imprescindível que esses atores financeiros maximizem a produtividade do trabalho do cuidado. Diferentemente do trabalho industrial, numa linha de montagem, o trabalho dos cuidadores exige paciência, dedicação e carinho.13 13 Sobre a especificidade do trabalho de cuidado, ver Guimarães et al. (2012); Soares, (2012); Hirata (2016). É pela degradação dos serviços que se obtém o lucro, como ficou demonstrado na investigação de Castanet.

Um monitoramento e uma dedicação cautelosa a essa linha de pesquisa no contexto brasileiro é necessária por se tratar de um fenômeno em plena expansão global. Quais os limites que devem ser impostos em termos de regulamentação para esses modelos de negócios no segmento de ILPI? Como limitar a vocação desse tipo de capital para a financeirização da velhice sem impedir também sua utilidade na expansão dos serviços de cuidado, haja vista que o Estado terá restrições para atender a tamanha demanda? Como enfrentar as limitações dos órgãos de fiscalização desses estabelecimentos, designados para controlar e supervisionar apenas a parte sanitária do estabelecimento, sem poder legal para verificar o modelo financeiro do negócio? São questões iniciais que emergem quando nos debruçamos sobre a área de cuidado.

No que diz respeito à saúde, a financeirização da velhice tem se verificado, como defendido aqui, por um endividamento das pessoas idosas para suprir as suas necessidades por ausência do Estado, ou melhor, uma dificuldade de acesso à oferta pública - no caso do SUS. Os planos de saúde ao empurrarem os idosos para a situação de “gasto catastrófico” se cristalizam no orçamento familiar como uma dívida - alta e eterna - embora jamais percebida dessa forma e assumida como uma compra de serviço no mercado e, subjetivamente, como uma ascensão social. A despeito de a legislação vigente proibir os reajustes por idosismo (após os 60 anos), os persistentes reajustes acima da inflação e a atuação da agência reguladora com viés mais favorável ao mercado do que ao consumidor (Felix, 2022a_______. Estado regulador, saúde e envelhecimento: uma análise da atuação da ANS a favor do “rol taxativo”. Revista Pesquisa & Debate, v.34 n.1(61), 2022a. Doi: https://doi.org/10.23925/1806-9029.v34i1e60236
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), exigiria, no mínimo, uma reflexão e pesquisas para encontrar um modelo mais transparente nessa relação. O freio à financeirização da velhice na área de saúde se faz urgente diante da incapacidade financeira de uma parcela em crescimento da população idosa brasileira para honrar essa dívida, mesmo a classe média.

Quanto ao crédito consignado, é o fator mais característico da financeirização da velhice. O crédito consignado mostra como formas extremas de opressão podem ser vividas e percebidas como um ganho pelos agentes envolvidos, justificadas pelo apreço às relações familiares, que envolvem necessidades de consumo e manutenção de laços entre as gerações. Inserir a pessoa idosa aposentada no mercado de crédito, em meio a uma economia complexa como a do século XXI, é condizente com o marco regulatório brasileiro para o envelhecimento (Política Nacional do Idoso, Lei n.8.842/1994, regulamentada pelo Decreto n.1.948/1996; e o Estatuto do Idoso, Lei n.10.741/2003). A prática do crédito está tão inserida na economia que seria uma negação de direitos deixar de oferecer condições de acesso, sobretudo com juros menores, a esse segmento. No entanto, é preciso questionar o risco de essa prática perpetuar o endividamento da pessoa idosa constituindo-se assim exatamente o oposto do objetivo alegado para a criação do crédito consignado. O endividamento e a discussão do percentual de comprometimento da renda e, especialmente, a fiscalização dos agentes envolvidos nesse mercado merecem uma atenção especial para futuras pesquisas, sempre com o intuito de frear a financeirização da velhice. É preciso reconhecer que a regulamentação do endividamento é uma segurança para o setor financeiro, mas um infortúnio para as pessoas idosas endividadas.

No entanto, alerta-se que tratar da financeirização envolvendo relações na família não pode ser reduzida à ação de atores livres e racionais. É preciso atentar para a complexidade das relações que envolvem dinheiro e intimidade, o que a socióloga Viviana Zelizer (2011ZELIZER, V. A. A negociação da intimidade. Petrópolis: Vozes, 2011. Coleção Sociologia.) chamou de “vidas conexas”. Essas relações nem sempre são expressões de pura solidariedade, mas muitas vezes possibilitam posição de maior prestígio das pessoas idosas na família e de tratamento e atenção diferenciados no mundo social mais amplo - mesmo quando as análises apontam a exploração financeira de seus parcos recursos que são garantidos por direitos duramente conquistados.

Agradecimentos

A autora e o autor agradecem ao projeto internacional de pesquisa Who Cares? Rebuil-ding Care in a Pospandemic World (Cebrap, Fapesp, CNPq, Fundação Arymax), do qual fazem parte, pois os comentários da equipe contribuíram para a reflexão sobre o tema deste artigo. www.cuidado.cebrap.org.br

Referências

Notas

  • 1
    1 Define-se o superenvelhecimento quando se constata o aumento da população com 80 anos ou mais, segmento etário que mais cresce na população brasileira (Camarano, 2010). Em 2012, representava 1,6% da população total ou 3,2 milhões de pessoas e em 2022, alcançou 2,2% ou 4,7 milhões (IBGE, 2022a).
  • 2
    Trinta empresas de private equity possuem 2.834 residenciais para idosos na Europa com quase 200 mil clientes (Público, 2021, p.5).
  • 3
    Em 16 de junho de 2022, o Grupo Orpea foi condenado pela primeira vez na Justiça por um caso de morte. A Justiça considerou o Orpea culpado por ausência de socorro a uma senhora de 84 anos que teve fraturas após uma queda dentro do residencial (Le Monde, 2022a).
  • 4
    Inspections générales des finances (IGF) e inspections générales des affaires sociales (IGAS). Disponível em: https://igas.gouv.fr/Control-of-the-ORPEA-group
  • 5
    Disponível em: <http://www.senat.fr/commission/soc/controle_ehpad.html>.
  • 6
    Disponível em: <https://patria.com/private-equity>. Em março de 2019, a Orpea comprou 20% do Brasil Senior Living da Patria Investimentos. Na época, foi feito um acordo para compra da participação restante da empresa até 2025 (LexLatin, 2020).
  • 7
    O mercado de toda a América Latina começa a atrair esses grupos multinacionais de cuidados de longa duração. O terceiro maior da Europa, o Domus Vi, adquiriu, em 2018, participação no Acalis Group, presente em Uruguai, Colômbia e Chile. Disponível em: <https://www.domusvigroup.com/index.php/en/group-highlights.html>.
  • 8
    Em 2022, o reajuste de planos individuais e familiares autorizado pela Agência Nacional de Saúde Suplementar (ANS) atingiu 15,5%, um percentual recorde, contra um IPCA de 12,13% (maio de 2021 e abril de 2022). Entre 2011 e 2021, o reajuste ficou em 107,9% (ANS, 2022) contra 91,5% da inflação oficial, isto é, 16,4 pontos percentuais de diferença. Em 2023, o reajuste de planos individuais e familiares foi de 9,63% - período entre maio de 2023 e abril de 2024 - contra uma inflação projetada em torno de 4,5% para o período e de 4,62% em todo o ano de 2023 (ANS, 2024).
  • 9
    Vale reiterar que 90,5% dos que tomam crédito consignado são funcionários públicos e aposentados, cuja renda é paga pelo Estado. O acesso dos trabalhadores formais constitui-se em apenas 9,5% dos que obtêm crédito consignado e as taxas de juros para esse grupo são bem maiores (BCB, 2024).
  • 10
    Em março de 2024, as taxas de juros ao mês para os aposentados e pensionistas do INSS variavam de 1,39% a 1,83% (BCB, 2024a).
  • 11
    Em 17 de março de 2022, o presidente da República editou a Medida Provisória n.1.106 (Brasil, 2022a), estendendo aos recebedores do Benefício de Prestação Continuada (BPC) da Lei Orgânica da Assistência Social o direito ao crédito consignado no percentual de comprometimento da renda em até 45% (sendo 5% no cartão de crédito consignado), sem estabelecer nenhum teto para o empréstimo, que passa a depender de um acerto entre o banco credor e o tomador do empréstimo. Aprovada pelo Congresso Nacional e sancionada como Lei n.14.403, em 4 de agosto de 2022, a medida atinge, em sua grande maioria, os idosos de baixa renda e até os vulnerabilizados financeiramente, pois o valor máximo desse benefício é um salário-mínimo. Na mesma MP, foi ampliado o percentual da renda dos aposentados e pensionistas do Regime Geral de Previdência Social que pode ser comprometida, passando de 40% para 45% (sendo 5% no cartão de crédito). Essa decisão reforça a tendência de sucessivos governos, desde 2003, optarem por uma ampliação do endividamento da pessoa idosa principalmente como ferramenta para o estímulo à economia ou uma “política” de bem-estar social para esse segmento da população, ou seja, a adoção do modelo de Estado Fiador.
  • 12
    O conceito de mínimo existencial remete ao Título II - “Garantias e Direitos Fundamentais”, da Constituição Federal de 1988 (Art.6º). Nesta seção da CF estão localizados aqueles direitos fundamentais à vida. Esta noção de vida denota uma vivência com dignidade e não somente sobrevivência, todavia, em termos quantitativos é subjetiva (Torres, 1989).
  • 13
    Sobre a especificidade do trabalho de cuidado, ver Guimarães et al. (2012); Soares, (2012); Hirata (2016).

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    30 Ago 2024
  • Data do Fascículo
    May-Aug 2024

Histórico

  • Recebido
    25 Mar 2024
  • Aceito
    26 Jun 2024
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