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Qual reforma política?

DOSSIÊ CRISE DO CONGRESSO

Qual reforma política?

Francisco C. Weffort

RESUMO

A crise, revelada mais uma vez nos acontecimentos sobre o Senado, impõe o reconhecimento de distorções institucionais que se vêm acumulando há décadas no sistema político brasileiro. A oligarquização das principais instituições parlamentares - formadas de eleições por um antiquado sistema de representação proporcional - constitui uma evidência desse fenômeno. Uma das bases da crise é um enorme distanciamento entre representantes e representados, associada à reconhecida debilidade dos partidos e do sistema partidario. A oligarquização dos Parlamentos se combina com executivos por meio de eleições majoritarias que seguem o modelo de uma "democracia delegativa".

Palavras-chave: Democracia, Partidos, Sistemas de representação.

ABSTRACT

The crisis, revealed once again by the events in Brazil's Senate, force us to acknowledge the existence of institutional distortions that have accumulated in the Brazilian political system for decades. The oligarchization of the main Parliamentary institutions - whose members are chosen at elections based on an old-fashioned proportional representation system - is evidence of such a phenomenon. One of the bases of this crisis is an increasingly wider gap between the representatives and those who they represent, associated with the infamous weakness of political parties and of the party system itself. Such parliament oligarchization is combined with Executives elected by means of a majority system which follows a model that might be seen as an 'delegative democracy'.

Keywords: Democracy, Parties, Representation systems.

A ÚLTIMA CRISE do Senado mostrou algumas pontas do iceberg de desequilíbrios e distorções que afetam o conjunto do sistema institucional brasileiro. Talvez por isso tenha havido naqueles debates tanta confusão e excessos. É que eles revelavam fatos extremamente desagradáveis para muitos dentre os que nos habituamos à ideia do Brasil como uma democracia consolidada. Ocorrendo em meio a um processo de desenvolvimento social e democrático, a crise do Senado mostrou que nosso sistema de representação amadurece falhas e impasses que podem gerar consequências negativas para a democracia no país.

As revelações daqueles meses se concentraram na figura do senador José Sarney, recém-eleito presidente da instituição. Foi caminho aberto para submeter à luz do dia a face corporativista de alguns senadores que, como ele, parecem mais preocupados em defender benesses e prebendas para amigos, parentes e funcionários, do que em enfrentar os problemas que afetam a federação brasileira. Mas há algo mais do que corporativismo, nepotismo e corrupção.

Em um esforço para se desvencilhar das criticas que recebia, José Sarney disse que a crise não era dele, mas do próprio Senado. Foi então que recebeu apoio público do presidente da República. "Sarney não é um homem comum", disse ele. E depois desse apoio, o presidente do Senado passou a afirmar que o criticavam por sua aliança com o chefe do governo federal. José Sarney revelou assim, à sua maneira, pelo menos uma parte da verdade que se abriu nos debates. De fato, a crise não atingiu apenas seu nome, já bastante chamuscado por eventos passados. Mas atingiu a todo o Senado, cuja credibilidade pública chegou a baixíssimos níveis.

Consolidou-se nesses meses de turbulência brasiliense a imagem do Senado como instituição oligárquica. Já seria bastante grave, mas não é ainda isso, porém, o mais grave. Fenômenos de regressão oligárquica não são propriamente novidades na história de nosso instável desenvolvimento democrático. No andamento do debate, houve quem chegasse a propor até mesmo a supressão do Senado, considerando a sua existência desnecessária, até mesmo prejudicial, para a democracia no país. Se há alguma precipitação nesse tipo de proposta, ela serve, contudo, para enfatizar a gravidade da situação. Depois de serenados os ânimos, a questão que se coloca é outra. Vale perguntar: que revela a crise do Senado sobre os males que afetam a democracia no Brasil?

Suplentes: um vazio de autonomia

Comecemos por alguns pontos sobre o próprio Senado. Que dizer, por exemplo, da regra legal que estabeleceu a estranha figura dos "suplentes de senador"? O Senado tem hoje 18 suplentes atuando como efetivos, ou seja, mais de 20% dos 81 senadores que compõem a câmara alta. Como se vê, sua participação está longe de ser irrelevante. Pelo menos em termos numéricos, o problema dos suplentes não é um mero detalhe. Nem a questão se resume apenas em "desvios de conduta" deste ou daquele. Trata-se de uma questão estrutural, das raízes da própria instituição.

Os suplentes são figuras que não receberam nenhum voto. Muitos deles são completamente ignorados pelo eleitor. Se o eleitor conhece algum deles, isso deriva de fatos que nada têm a ver com os mecanismos institucionais que os levaram à chamada "câmara alta". Há nessa figura institucional a que aderem políticos desconhecidos, quase anônimos, algo que prenuncia o gosto do Senado pelo sigilo que se revelou na denúncia dos "atos secretos". Segundo a lei, cada candidato a senador pode designar dois suplentes, os quais não se submetem ao voto do eleitor. Embora seus nomes possam ser propagandeados na campanha, não é neles que o eleitor vota, e, sim, no candidato a titular da "chapa".

Como explicar essa estranha figura institucional sem perceber o papel que os suplentes, em muitos casos, desempenham na campanha do candidato efetivo? Há exceções, mas muitos deles só têm a justificar a sua posição na "chapa" pela colaboração financeira que dão ao titular na obtenção de recursos. Alguns deles, de fato, são mais do que colaboradores, são financiadores da campanha do candidato titular.

Quaisquer que sejam as qualidades pessoais (e mesmo políticas) deste ou daquele, temos aí um mecanismo que pode ajudar a entender o descrédito do Senado como instituição. Terminadas as eleições, o suplente está sempre disponível como "quadro" auxiliar do senador eleito. E assume o lugar do efetivo quando este deixa as funções para as quais foi eleito para assumir outras, em geral no Executivo federal. Nesses casos, o efetivo vai em frente e o suplente fica para trás, "guardando o lugar" para o caso do eventual retorno do cabeça de "chapa".

Já se tentou justificar esse sistema com exemplos tirados das experiências de outros países. Mas precisaríamos copiar de outros países uma tão precária figura institucional? Nossa própria experiência tem vários exemplos dessas figuras institucionais que permitem a determinados personagens ocupar posições no Parlamento sem passar pelo teste das urnas. Ou já nos esquecemos da figura dos senadores "biônicos"? Foi uma experiência que, como a dos governadores "biônicos", não serviu em nada à democracia. Deveríamos saber de antemão que os suplentes, tal como atualmente definidos em lei, também não servem a ela.

Tal como está hoje, a figura do suplente diz algo de muito grave sobre o regime democrático do qual faz parte. Assim como os senadores "biônicos" do passado, essa figura institucional caracteriza uma dimensão subalterna do Senado como instituição. Tal como definida hoje, a figura do suplente constitui vazios de autonomia do Senado em face dos demais poderes da República, especialmente em face do Executivo, que concentra sempre a maior soma de recursos e de votos. Esse vazio de autonomia se torna evidente quando assumem as funções do titulares cujos lugares se tornaram vagos por assumirem funções no Executivo.

Se é que se entende que os senadores precisam realmente de suplentes, há que inventar algum mecanismo pelo qual esses passem pelo teste das urnas. Pode-se admitir, por exemplo, que o segundo colocado na eleição para o Senado seja considerado suplente. O que não pode continuar é a situação atual em que o suplente é apenas um agregado do titular.

Posição subalterna da Federação

A crise do Senado remete para o tema da autonomia do Parlamento, incluída a Câmara, essa com vícios iguais ou maiores que os do Senado. Há mais tempo, no período da ditadura de 1964, mais grave do que a estranha fórmula institucional do suplente de senador que mencionei antes, foi o casuísmo institucional pelo qual o regime de então transformou em Estados os antigos territórios da República. Desde então, o risco que passamos a correr não é apenas o de uma condição subalterna do Senado, mas de uma condição subalterna da própria Federação ao Executivo.

Alguma desigualdade na representação parlamentar é aceitável em uma federação democrática quando atende a razões históricas reconhecidas como legítimas. Tal é o caso da discrepância de representação entre alguns grandes Estados do Sudeste e alguns pequenos Estados do Nordeste. Mas a desigualdade de representação dos Estados se torna gritante em sua injustiça quando resulta de casuísmos que acabam por se tornar permanentes. Nos termos em que o regime militar, por razões de preservação do próprio poder, operou essa mudança, a histórica desigualdade da representação no Congresso foi levada a extremos insustentáveis em qualquer democracia que tome a sério os princípios nos quais se fundamenta.

Para começar pelo Senado, eis a anomalia instaurada desde então: senadores dos novos Estados passaram a se eleger por alguns poucos milhares de votos, enquanto senadores dos Estados históricos podem chegar a centenas de milhares de votos, alguns até a milhões de votos. Não ficou apenas nisso. Na mesma época militar, essa mudança foi complementada por outra que concedeu a cada ex-território oito representantes na Câmara Federal, uma representação muito acima das proporções definidas por suas populações.

O resultado disso é que hoje, nos novos Estados nascidos dos ex-territórios (aos quais se acrescentou, mais recentemente, o Tocantins), a proporção de população por deputado se encontra muito abaixo da média nacional. Hoje, considerados todos os Estados brasileiros, incluídos os novos no cálculo, temos uma media nacional de 370 mil habitantes por deputado. No Acre, no Amapá e em Roraima, esse quociente não alcança 100 mil. Alcança 200 mil em Rondônia e no Tocantins, o que apenas se aproxima da metade do quociente nacional. No país, com 26 Estados e um Distrito Federal, são 18 as unidades da Federação acima dos 300 mil habitantes por deputado.

Cultura dos casuísmos

Nessa democracia representativa carregada de distorções, temos também, de tempos em tempos, propostas de reformas. Lamentável é que, como as mencionadas antes, são inspiradas no mesmo espírito casuístico das distorções que, em princípio, deveriam corrigir. Na ausência de uma discussão nacional capaz de considerar o conjunto do sistema institucional na perspectiva do aprimoramento da democracia, criou-se uma expressão nova para essa sucessão ininterrupta de tentativas. Juntas, elas formariam uma "reforma política fatiada".

Não passam, porém, de casuísmos que se somam, ano a ano, em face das exigências de autopreservação dos poderosos de plantão. Ao longo do tempo, os casuísmos de origem ditatorial se casaram com outros, nascidos esses de circunstâncias democráticas e juntos produziram resultados que, muitas vezes, agravam os problemas que, supostamente, pretendem resolver.

Um exemplo nítido dos casuísmos "democráticos" é o das "medidas provisórias" (MP) estabelecidas pela Constituição de 1988. As "MP" foram concebidas, segundo se diz, seguindo exemplos italianos, para que o Executivo pudesse enfrentar situações de urgência e circunstâncias excepcionais. A ratificação (ou recusa) do Congresso viria depois. O que significa que as "MP", mesmo atendido o espírito da lei que as criou, implicam, desde logo, um grave risco, pois sua ratificação (ou recusa) teria que vir quando suas iniciativas já estariam em execução.

Quanto às "MP", nossa situação, porém, é ainda pior do que isso. Como as Casas do Congresso estão, com frequência, emperradas em seus próprios assuntos ou se revelam demasiado lentas, o Executivo foi, pouco a pouco, transformando as "medidas provisórias" em medidas de rotina. Assim, as "MP", embora nascidas de uma conjuntura democrática, mais se parecem hoje com revivescências dos decretos dos períodos ditatoriais. É certo que hoje as "MP" têm prazos definidos para a consideração do Congresso, prazos além dos quais teríamos "trancada" a pauta do Parlamento pretendendo-se com isso pressionar em favor da celeridade da atividade parlamentar. Como no mais das vezes a lentidão permanece, surge dessa situação, paradoxalmente, uma razão a mais para novas "MP".

Essa cultura dos casuísmos obedece, na verdade, a uma certa lógica. É a lógica que vem produzindo ao longo do tempo o sistema institucional que temos diante de nós: um presidencialismo forte, um parlamento débil e um federalismo desequilibrado, aliás praticamente inexistente. Na sucessão das crises e dos casuísmos que buscam corrigi-las, chegamos assim a um presidencialismo de tipo imperial que tem às mãos recursos autoritários quando, eventualmente, lhe faltem recursos democráticos para as iniciativas que pretende tomar. É evidente o domínio do Executivo federal sobre a maioria dos Estados, por meio de uma rede complexa de distribuição de poder e de recursos que valem como prêmios e que a sua supressão pode valer como castigo. Hoje, esse poder imperial, de ajuda ou de castigo, chega aos milhares de municípios que se espalham na vastidão do território brasileiro.

Uma grande democracia eleitoral

Em meio a tantos defeitos, essa democracia frágil se alimenta de umas poucas virtudes. Não há como negar que temos liberdade de voto. Isso não vem de ontem. Deixamos para trás há muito tempo as eleições "de bico de pena", da Primeira República. Deixamos também no passado as práticas usuais nas eleições da Segunda República, que podiam ser livres, mas ainda enfrentavam, às vezes, situações duvidosas na apuração dos votos. Ficaram também no passado as restrições, que vivemos por muito tempo sob o peso da guerra fria, que limitavam ou proibiam a participação política de determinados segmentos ideológicos. Hoje, somos, pelo menos do ponto de vista eleitoral, uma das maiores democracias do mundo.

Ocorre, porém, que o voto, nas circunstâncias brasileiras, convive com uma enorme distância entre os representantes e os representados. Sabemos de pesquisas segundo as quais grande parte dos eleitores se esquece rapidamente dos nomes dos deputados nos quais votou nas últimas eleições. Quanto aos eleitos, muitos deles se esquecem rapidamente de suas promessas de campanha. Isso é particularmente verdadeiro para eleições parlamentares, especialmente as eleições para a Câmara Federal, embora possa ocorrer também para as Assembleias Legislativas. Não ocorre, porém, o mesmo com as eleições majoritárias, nas quais, pelo menos do lado popular, as adesões de massa parecem regidas por sentimentos mais duradouros e, talvez, por uma memória mais atenta.

Além da liberdade de votar, sem dúvida um elemento particularmente saudável na democracia, sobretudo quando essa é ainda frágil, é oportuno lembrar a ação da imprensa, e, em geral, dos meios de comunicação. Não obstante as frequentes denúncias que apresentam do cenário político - e talvez por isso mesmo -, os meios de comunicação têm servido para diminuir a distância que separa representantes e representados. Não por acaso, durante tanto tempo tornou-se generalizada no Senado a prática dos "atos secretos". É que o grande temor de políticos que atuam apenas para a preservação do seu próprio poder (para não falar dos apenas desonestos que, aliás, não são poucos) não é propriamente o eleitorado, mas a opinião pública, formada pelo debate nos jornais e na mídia em geral.

Os efeitos dessa ação de controle dos meios de comunicação são maiores nas grandes cidades e, sobretudo, nos segmentos de classe média. Pode-se dizer que tardam a chegar aos mais pobres, especialmente os das regiões mais pobres do país. Mas, de conjunto, o que se pode afirmar é que têm repercussão no controle das instituições de Estado e, finalmente, na disposição de voto de grande parte da população. Aqui, há que ressaltar que as cidades, sobretudo as grandes cidades, mais expostas aos meios modernos de comunicação, alteram de maneira significativa, e para melhor, a imagem que se pode construir sobre a democracia no país.

Representação e sistemas de voto

Temos no Brasil a combinação de dois sistemas de voto, o majoritário para os Executivos e para o Senado, e o proporcional para as Câmaras municipais, estaduais e federal. O sistema de representação proporcional, de voto em listas abertas, foi adotado a partir de 1930 e tomou em conta a crítica da revolução às "eleições de bico de pena" que sempre asseguravam vitória ao partido (ou oligarquia) dominante. Enfatizando a liberdade de opiniões, e sobretudo o direito de expressão das minorias, esse sistema eleitoral foi adotado nas eleições de 1932, 1934 e 1935, consolidando-se a partir da redemocratização de 1945.

Segundo as regras da representação proporcional, o eleitor escolhe o deputado de sua preferência em uma lista de candidatos organizada por um partido, em disputa com outros partidos que organizam as suas próprias listas. Essas listas, uma para cada partido, sãos as chamadas "listas abertas", cujos nomes valem como sugestão ao eleitor que entre eles escolherá livremente. Outra característica dessas listas é que valem para um único distrito, entendendo-se por distrito o Estado da Federação de domicílio eleitoral do candidato.

Embora se reconheça que todos os métodos de escolha eleitoral têm problemas, em nosso caso parece que esses problemas vieram se tornando cada vez mais graves nos 70 anos de sua aplicação, nem sempre contínua, às circunstâncias brasileiras. Nas condições atuais, o primeiro grande problema desse sistema está em sua aplicação a distritos de enorme população como são os formados pela maioria dos Estados da Federação brasileira. São as mesmas unidades nas quais se elegem os senadores e governadores, com a diferença de que esses se submetem ao sistema majoritário, no qual vence o que tiver mais votos. Havendo duas vagas, como os senadores em algumas eleições, entra também o segundo colocado na votação.

Segundo alguns pesquisadores, no sistema proporcional, a escolha do candidato em lista aberta tende a acirrar a competição pelo voto dentro do partido ao qual pertence. Em vez de estimular a competição desse partido com os demais, o sistema proporcional tende a transformar o próprio partido em campo de luta eleitoral. Diz um pesquisador: "os candidatos têm como principais adversários os colegas da própria lista e não de outros partidos" (J. Nicolau).

E assim, a campanha de cada candidato tende a assumir um caráter eminentemente pessoal, tornando-se menos relevante o significado da legenda sob a qual se apresenta para competição. Observam alguns pesquisadores que os próprios candidatos reconhecem que suas campanhas têm um caráter predominantemente pessoal, e que seus partidos nelas desempenham um papel apenas secundário.

O pior da aplicação do sistema proporcional nas atuais circunstâncias brasileiras é que, além de enfraquecer os partidos, arrisca tornar irrelevantes os próprios eleitores. É que o voto em lista aberta se combina com as coligações eleitorais e com um peculiar mecanismo de distribuição das "sobras". Por isso, os partidos tendem a programar suas listas escolhendo um ou alguns candidatos com a suposta de capacidade de "puxar votos". Submetem assim uma eleição parlamentar como se fosse uma eleição de massas, o que é perfeitamente verossímil, já que os candidatos, em princípio, concorrem em todo o Estado. Um talento "puxador de voto" pode assim conseguir um estoque que beneficie diversos candidatos de seu partido que sós não conseguiriam o mínimo necessário para se eleger. Tudo isso se combina com as coligações eleitorais entre legendas diferentes, para um efeito surpreendente: o eleitor termina sem saber qual dos candidatos seu voto ajudou a eleger.

Observe-se, porém, que, em geral, os sistemas eleitorais são objeto de dúvidas e formam um amplo campo de incertezas. A alternativa da mera substituição do "voto em lista aberta" pelo "voto em lista fechada" poderia conceder demasiado poder às direções partidárias. Pretendendo conceder maior significação ao partido, poderia, se operar sem os devidos contrapesos, criar um mecanismo adicional em favor das oligarquias partidárias já existentes.

Uma segunda alternativa se apresenta para complementar o voto em lista fechada com outro mecanismo capaz de aumentar o controle do eleitor sobre o destino do seu próprio voto. Essa alternativa seria a de adaptar às condições brasileiras o sistema aplicado na Alemanha que, nas eleições parlamentares, oferece ao eleitor o direito de escolher dois candidatos ao Parlamento. O eleitor escolheria um candidato, o único do partido em questão, que concorreria com outros candidatos, cada um deles representando individualmente seu partido, em um distrito no distrito de dimensões menores. O eleitor teria ainda um segundo voto que seria dado à lista partidária de sua preferência.

Como no sistema eleitoral brasileiro considerado de conjunto, combinam-se aqui dois sistemas de voto, o majoritário para a escolha no distrito e o proporcional para a escolha da lista. O que se pretende é garantir, no distrito, a maior proximidade do representante com o representado, e na lista, a liberdade de opinião das minorias. As eleições majoritárias ficariam para o Senado, prefeituras dos municípios, governos dos Estados e governo federal. Quanto às eleições parlamentares, haveria que abandonar o atual distrito único, criando nos Estados distritos menores, em número que deveria obedecer aos critérios democráticos de proporcionalidade.

"Democracia majoritária" e "democracia delegativa"

Se no âmbito do Congresso temos que falar de uma democracia oligárquica, nas eleições para os cargos executivos - e mesmo para o Senado, pelo menos em alguns Estados - há que falar de uma democracia de massas. Isso vale em particular para a eleição presidencial, mas também para as eleições dos governadores de muitos Estados, em particular os de maior população. Quanto ao Senado, talvez seja essa uma razão pela qual aquela instituição, sempre formada por eleições majoritárias, se tenha tornado, apesar de tudo, mais transparente que a Câmara, onde provavelmente os vícios são iguais, se não maiores.

As características do presidencialismo no Brasil coincidem em muitos pontos com a descrição apresentada pelos teóricos a respeito da "democracia majoritária", em contraste com a "democracia consensual" (Arend Lijphart). Em vez de uma democracia consensual que, em princípio, preconiza a participação nas decisões de governo de todos os afetados por elas, a democracia majoritária entende que o governo democrático seja o "governo da maioria", e que os excluídos do governo formem a oposição. Difícil distinguir no Brasil quanto da dominância da democracia majoritária sobre uma possível democracia consensual é um fenômeno do campo cultural e ideológico, e quanto é um fenômeno da realidade institucional da organização da República. É certo, porém, que ocupa uma posição de dominância, com traços como os que seguem: a predominância do Executivo sobre o Congresso; os governos de um partido que, submetido ao Executivo, predomina sobre a chamada "base aliada"; o controle do Executivo sobre o Banco Central etc.

Seja por descrédito dos Parlamentos, seja por méritos próprios do presidencialismo, a preferência popular é claramente pelos sistemas de voto de maioria. Algum sinal dessa preferência popular já ocorrera no plebiscito de 1963, quando nas condições de um parlamentarismo de circunstância, a alternativa de regressar a um regime presidencialista foi amplamente vitoriosa. Foi também o que vimos em 1993 quando uma maioria de 55% da população se definiu em favor do presidencialismo e recusou o parlamentarismo como regime político.

Essa democracia majoritária brasileira, porém, dividida entre oligarquias parlamentares e executivos escolhidos pelas massas, sofre dos males típicos do que Guillermo O'Donnell chamou de uma "democracia delegativa". Embora se possa dizer que toda representação envolve uma delegação, a democracia delegativa se caracteriza em situações de enorme distância entre representantes e representados. Nos vazios criados por essa distância, consagrada pela tradição e pela duração dos vícios institucionais, as coisas se passam como se, no ato de votar, o representado entregasse ao representante um "cheque em branco". Evidentemente, concorre para essa "delegação" esse sentimento de identidade do eleitor com os candidatos aos executivos.

O que, porém, se busca caracterizar é algo mais, um sentimento que tem muito de conteúdo pessoal e quase nada de conteúdo político e programático. Um dos traços da democracia delegativa é que o eleitor pode ser esquecido por seus lideres, quase tanto quanto é esquecido pelos parlamentares que elegeu e dos quais, porém, o eleitor nem mesmo se lembra. São conhecidas as mudanças de programa de candidatos ao Executivo, no apagar das luzes da campanha. E, sobretudo, quando eleito, no andamento do governo, quando alguns executivos falam de suas promessas passadas como "bravatas de campanha". No fim das contas, o que sobra do candidato para o eleitor não é a proposta de um programa de governo, mas uma imagem pessoal. Talvez uma pouco mudada, às vezes um tanto deteriorada, mas que sempre se pode realimentar nas tradições do personalismo ibérico de um país como o nosso.

* * *

São evidentes as dificuldades a enfrentar em uma reforma política. Especialmente porque irrelevantes os partidos para qualquer tema de maior significação, e pouco lembrados os eleitores em qualquer debate dessa natureza, é óbvio que prevalecem, nas leis eleitorais como em outros pontos débeis do sistema, os interesses dos que conseguiram se eleger. Até onde se pode prever, estaremos por isso durante algum tempo submetidos à lógica de autopreservação do sistema formado de remendos e às incertezas geradas pela nossa cultura de casuísmos. Creio, portanto, que, ainda uma vez, a alternativa que resta é de recorrer à opinião pública. Só por meio de um debate que a oriente sobre os problemas institucionais poderemos chegar a uma verdadeira reforma.

Recebido em 21.9.2009 e aceito em 25.9.2009.

Francisco C. Weffort é professor aposentado do Departamento de Ciência Política da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas, da Universidade de São Paulo (FFLCH-USP), e pesquisador do Centro de Estudos da Cultura Contemporânea (Cedec). Foi ministro da Cultura do governo Fernando Henrique Cardoso. Lecionou também no Wilson Center e no Helen Kellogg Institute. É autor, entre outras, das seguintes obras: O populismo na política brasileira (Paz e Terra, 1978), Por que democracia? (Brasiliense, 1984), Os clássicos da política (Org.) (Brasiliense, 1989) e Qual democracia (Cia. das Letras, 1992). @ - f.weffort@terra.com.br

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    06 Maio 2010
  • Data do Fascículo
    2009
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