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"Afinidades eletivas" ou "Relações perigosas", por Michael Löwy

Weber ou Marx? Para ir além da escolha que tradicionalmente divide os partidários desses grandes clássicos do pensamento social, Michael Löwy nos convida a pesquisar os pontos de confluência entre eles. O resultado surpreende: citações são apresentadas e o leitor, desafiado a descobrir o seu autor. O mais aplicado leitor de Marx descobre, perplexo, que o autor daquela afirmação obviamente marxista é Weber; o mesmo vale para os weberianos, ao serem informados que foi Marx quem escreveu aquele parágrafo tão fiel ao espírito de Weber.

A intenção do autor é mostrar as analogias possíveis entre os dois clássicos, fazer "experimentação", "exploração precária e arriscada de certas veredas escarpadas", para flexibilizar os "cânones frequentemente rígidos das disciplinas e das escolas de ciências sociais".

Para explicar a confluência entre autores que sempre foram apresentados como representantes de tendências epistemológicas opostas - a primazia do espiritual em Weber, e das condições materiais de existência em Marx -, o autor remete ao conceito de "afinidades eletivas". Tal conceito, o livro nos informa, tem uma longa história que "vai da alquimia à literatura romântica e desta às ciências sociais". Na alquimia medieval, o termo era usado para explicar "a atração e a fusão dos corpos". Mais tarde, Goethe consagrou a expressão "afinidades eletivas" para falar das almas que se atraem. Depois, Weber apoderou-se da expressão para evitar as explicações monocausais no estudo dos nexos entre religião e capitalismo.

"Afinidades eletivas", em Weber, opõe-se à categoria da "totalidade", que, segundo Lukács, seria a base do método de Marx. Talvez para pôr em prática a dialética, o marxista Löwy preferiu ficar com o conceito weberiano para conduzir sua obra.

A primeira parte do livro é dedicada ao estudo do capitalismo. O fim da dependência pessoal fez nascer uma ordem em que os indivíduos são dirigidos por relações impessoais, reificadas e cuja finalidade única é a acumulação do capital. Ambos os clássicos estudados partilham desse diagnóstico que tem como complemento a formação das classes sociais e do Estado burocrático que monopoliza a violência. A diferença, porém, surge na interpretação da gênese do capitalismo. Para Marx, o capitalismo formou-se a partir da expropriação dos camponeses pelos enclosures, do tráfico de escravos e da pilhagem das colônias. Weber acreditava que essa realidade brutal descrita por Marx valeria apenas para o "capitalismo aventureiro" e não para "o verdadeiro capitalismo moderno, baseado numa atividade econômica legal, metódica e racional, cujos protagonistas são empreendedores inspirados pela ética protestante". Ficamos sabendo, então, que a famosa tese weberiana sobre o papel do protestantismo na gênese do capitalismo foi formulada inicialmente por um autor ... marxista: Eduard Bernstein. Weber não só reconhece a paternidade como agradece Bernstein por ter emprestado livros e chamado sua atenção para documentos importantes.

Na sequência, Löwy mostra que, apesar das diferenças notórias entre a posição revolucionária de Marx e a fatalista e resignada de Weber, ambos convergem na avaliação crítica do capitalismo. Também Weber apontou para temas similares aos de Marx: a desigualdade social, a exploração dos trabalhadores, a inversão entre meios e fins conduzindo a vida social, e o aprisionamento dos homens a um sistema que eles inventaram, mas que não controlam. Sem a esperança revolucionária que animava Marx, restou a Weber a resignação perante um destino inexorável: "não é a florada do verão que nos espera, mas a noite polar, glacial, sombria e rude".

Somos, assim, conduzidos ao tema do pessimismo cultural que fez escola a partir do fim do século XIX. A principal referência é Nietzsche, mas esse estado de espírito migrou para autores de posições diversas entre si, como Thomas Mann, Ferdinand Tönnies e Spengler. Mas também se incluem aí Stefan Zweig, Joseph Roth e Walter Benjamin. Weber ocupa uma posição ambivalente, pois compartilha esse olhar desencantado perante a modernidade que se instalava, mas, ao mesmo tempo, aceita resignado o mundo que se formava. Nem por isso, contudo, Weber deixou de criticar o processo de racionalização em curso. E, em sua crítica, mostra Löwy, rompe com o princípio metodológico por ele mesmo proclamado, o de "neutralidade axiológica", e com o ideal de uma ciência "livre de julgamentos de valor".

O ponto de chegada que resume o pessimismo cultural de Weber é a expressão "jaula de aço". Tal expressão popularizou-se graças à tradução para o inglês feita por Talcott Parsons. Weber usou a expressão Stahlhartes Gehäuse (habitáculo duro como o aço), para se referir à indumentária dos ascetas protestantes a quem a preocupação com os bens materiais deveria pesar em seus ombros como "um manto leve, que pode ser largado a qualquer instante. Mas a fatalidade fez com que esse manto se tornasse um habitáculo duro como o aço". Paradoxo das consequências: o capitalismo passou a funcionar como um sistema alheio e em oposição aos valores religiosos que o formaram. A expressão "jaula de aço" acabou ganhando vida própria nas ciências humanas. Independentemente do erro do tradutor, ela traduz corretamente a visão pessimista projetada por Weber para a civilização ocidental.

A relação entre protestantismo e capitalismo é a parte mais referenciada de sua obra. Weber, entretanto, em sua vasta sociologia religiosa interessou-se também pelo judaísmo antigo, taoísmo, budismo, confucionismo etc. Mas, observa Löwy, "os 1.500 anos de catolicismo ocidental são simplesmente ignorados na genealogia weberiana". Sendo assim, o autor procurou indicar pistas para se reconstituir essa lacuna. Se há uma "afinidade eletiva" entre protestantismo e capitalismo, entre esse regime e o catolicismo haveria, em contrapartida, uma "afinidade negativa", pois a Igreja católica desde o começo viu com desconfiança a "ascensão das forças econômicas impessoais, inevitavelmente hostis à ética da fraternidade". Tal visão inaugurou na França uma tradição católica anticapitalista que teve entre seus pioneiros Charles Péguy e Emmanuel Mounier. A partir dessas referências teóricas desenvolveu-se na América Latina um catolicismo progressista em franca oposição ao capitalismo.


Várias leituras anticapitalistas de Weber foram feitas, à revelia do autor, por pensadores como Bloch, Benjamin e Erich Fromm. O eixo, agora, é a crítica do capitalismo como religião, conceito inexistente em Weber e desenvolvido por Löwy.

Weber também se fez presente no marxismo. Segundo Merleau-Ponty, História e consciência de classe de Lukács inaugura o "marxismo-weberiano". De fato, Lukács lançou mão de conceitos de seu antigo mestre como "possibilidade objetiva", o recurso às tipologias etc. Mas a influência que mais resultados trouxe para as ciências humanas foi a junção entre a teoria da racionalização crescente de Weber com a problemática marxista da reificação. Esse será o ponto de partida dos pensadores da Escola de Frankfurt, analisados na sequência.

Como se pode ver, são muitos os temas e autores analisados. E Löwy, mais uma vez, mostrou competência e erudição, pondo os leitores a par de tudo o que de importante se produziu na literatura especializada. E isso foi feito numa linguagem clara, acessível ao público não especializado. Outro ponto positivo é o caráter aberto e não conclusivo do livro. Há muitas indagações sem respostas que são feitas para estimular o leitor. São muitas as pistas abertas por esse livro e as relações entre Weber e Marx continuam abertas para novos trabalhos.

É evidente que a tese das "afinidades eletivas" entre os dois clássicos é uma bela provocação.

Os weberianos mais fanáticos poderão protestar afirmando que se trata, isto sim, de "ligações perigosas" a serem evitadas entre o respeitável sociólogo de Heildelberg e o revolucionário comunista. Poderão, também, dizer que as coincidências apontadas se devem à própria realidade que se impôs aos dois estudiosos e não ao método. E que o método de Weber repudia abstrações generalizantes: trata-se de um método ideográfico que se apega às singularidades e não tem a pretensão de reproduzir a totalidade, pois considera a realidade um "entulho caótico de acontecimentos".

Já os marxistas são tradicionalmente refratários às analogias e, portanto, às "afinidades eletivas", que, afinal, se apoiam em comparações. E estas quase sempre fixam aspectos exteriores dos fenômenos sem penetrar na essência que os constituiu. Quanto ao método, a categoria da totalidade insere o marxismo na tradição monológica que busca as leis gerais que habitam os fenômenos particulares e não no culto weberiano da singularidade, da imagem de um mundo estilhaçado povoado por acontecimentos dispersos e descontínuos ("entulho caótico"), que só ganham sentido quando ordenados pelas categorias a priori do entendimento.

Pode-se esperar qualquer tipo de reação perante o último livro de Michael Löwy, pois um de seus muitos méritos é provocar a inteligência do leitor.

  • Celso Frederico é professor da Escola de Comunicações e Artes da Universidade de São Paulo. @ - celsof@usp.br

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    Jan-Apr 2015
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