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Mediação da informação e da leitura: uma análise do livro “O Diário de Anne Frank”

Information and Reading Mediation: An Analysis of the Book “The Diary of Anne Frank”

RESUMO

Objetivo:

Aborda a importância da leitura do livro “O Diário de Anne Frank” nas ações de mediação da informação e leitura realizadas em bibliotecas com fins educacionais, focando na promoção dos direitos humanos. O estudo visa destacar como essa leitura pode contribuir para a reflexão crítica sobre desafios sociais contemporâneos, como diversidade, inclusão e combate à discriminação.

Método:

Conduziu-se uma pesquisa qualitativa e exploratória com base em uma abordagem interpretativa da mediação da informação, leitura e referência crítica. A pesquisa se fundamentou em uma revisão bibliográfica, centrando-se na obra “O Diário de Anne Frank” e concebendo a informação contida nessa obra como um instrumento de prática emancipatória.

Resultado:

Consiste no agenciamento de ações que incentivem a leitura mundo de forma reflexiva, possibilitando a compreensão do contexto histórico de Anne Frank e sua relevância para as questões sociais contemporâneas, especialmente aquelas relacionadas à diversidade e direitos humanos. Almeja-se a criação de espaços de reflexão com abordagem didática voltados para a análise crítica da obra, visando o cumprimento da função social da leitura nas bibliotecas.

Conclusões:

Entendeu-se de forma interpretativa que a leitura do livro “O Diário de Anne Frank” representa um testemunho histórico com diversas implicações para o público que o interpreta. Trata de uma série de tópicos relevantes que podem ser debatidos no contexto da leitura, contribuindo para a formação de perspectivas individuais e para a promoção dos direitos humanos. A mediação da informação e leitura emerge como uma ferramenta fundamental nas práticas bibliotecárias, possibilitando o estabelecimento de diálogos, a promoção da conscientização e educação nas bibliotecas em prol dos direitos humanos e da reflexão crítica sobre a sociedade contemporânea.

PALAVRAS-CHAVE:
Mediação da Informação; Mediação da leitura; Leitura mundo; Diário de Anne Frank

ABSTRACT

Objective:

This study addresses the importance of reading the book “The Diary of Anne Frank” in the context of information mediation and reading actions carried out in educational libraries, focusing on the promotion of human rights. The study aims to highlight how this reading can contribute to critical reflection on contemporary social challenges, such as diversity, inclusion, and combating discrimination.

Methods:

Qualitative and exploratory research was conducted based on an interpretative approach to information mediation, reading, and critical reference. The research was grounded in a literature review, centered on the work “The Diary of Anne Frank,” conceiving the information contained in this work as an instrument of emancipatory practice.

Results:

It consists of fostering actions that encourage reflective reading, enabling the understanding of Anne Frank's historical context and its relevance to contemporary social issues, especially those related to diversity and human rights. The aim is to create spaces for reflection with a didactic approach focused on the critical analysis of the work, aiming to fulfill the social function of reading in libraries.

Conclusions

It was interpretatively understood that reading “The Diary of Anne Frank” represents a historical testimony with multiple implications for the interpreting audience. It addresses a series of relevant topics that can be discussed in the context of reading, contributing to the formation of individual perspectives and the promotion of human rights. Information mediation and reading emerge as essential tools in library practices, enabling the establishment of dialogues, the promotion of awareness, and education in libraries for the sake of human rights and critical reflection on contemporary society.

KEYWORDS:
Information mediation; Reading mediation; World reading; Anne Frank's Diary

1 INTRODUÇÃO

Segunda Guerra Mundial, um marco histórico permeado por extremismo ideológico e atrocidades, deixa um legado documentado por meio de registros fotográficos, escritos e narrativas orais. Entre os eventos significativos desse período, destaca-se um manuscrito que transcende sua origem, transformando-se em uma obra notável: o “Diário de Anne Frank”.

As crônicas diárias de Anne Frank, que registram sua rotina, descobertas emocionais e conflitos internos e externos, delineiam sua evolução desde uma jovem de 13 anos até uma adolescente de 15. No seu diário, Anne recorre a um pequeno aforismo que postula que “o papel tem mais paciência do que as pessoas” (Frank, 2022, p. 16). Nesse contexto, a autora expressa o desejo de encontrar no diário um confidente capaz de abrigar seus complexos sentimentos, como ilustrado em sua primeira anotação, datada de 12 de junho de 1942: “espero poder contar tudo a você, como nunca pude contar a ninguém, e espero que você seja uma grande fonte de conforto e auxílio” (Frank, 2022, p. 11).

Entretanto, à época, a jovem autora não pôde antever os destinos extraordinários que seu diário seguiria. Esse manuscrito testemunha as experiências de sua família e amigos escondidos em um anexo secreto durante o regime nazista, posteriormente transformando-se em um documento de grande relevância. A saber: a) É reconhecido como objeto documental pelo “Instituut voor Oorlogsdocumentatie” (Instituto para Documentação de Guerra); b) Está inserido na lista dos 100 principais livros do século XX pelo jornal francês “Le Monde” (Le Monde, 1999); c) É integrado no acervo de patrimônio mundial de documentos pelo programa “Memória do Mundo” da Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura (UNESCO, 2009); d) Contribui para o Fundo das Nações Unidas para a Infância (UNICEF).

Essas considerações apontam para a transformação do “Diário de Anne Frank” de um simples diário adolescente para um símbolo da leitura na luta contra a discriminação e na promoção dos direitos humanos das crianças e jovens. Este estudo tem como objetivo abordar a importância da leitura do diário como uma proposta para ações de mediação da informação e leitura nas bibliotecas, com foco na finalidade educacional em prol dos direitos humanos.

A pesquisa adota uma abordagem qualitativa e exploratória, fundamentada em revisão bibliográfica e pesquisa documental, e assume uma perspectiva interpretativa no campo da mediação da informação, leitura e referência crítica. O foco recai sobre o livro “O Diário de Anne Frank,” considerado um instrumento de prática emancipatória.

Portanto, esta pesquisa emprega a "leitura crítica", definida por Paulo Freire como um processo em que "a leitura do mundo sempre precede a leitura da palavra, e a leitura da palavra implica continuar lendo o mundo." (Freire, 1989, p. 11). Este intercâmbio incessante entre mundo e palavra direciona o estudo para contextualizar o legado de Anne Frank, examinando sua relação com as questões contemporâneas de diversidade, inclusão e combate à discriminação.

No contexto discutido, percebe-se a "mediação crítica" como o cerne da mediação da informação, fundamentando-se em princípios de experiência e ação (Almeida Júnior, 2015ALMEIDA JÚNIOR, Oswaldo Francisco de. Mediação da informação: um conceito atualizado. In: BORTOLIN, Sueli; SANTOS NETO, João Arlindo dos; SILVA, Rovilson José da (Orgs.). Mediação oral da informação e da leitura. Londrina-PR: ABECIN, 2015.). Esta abordagem é enriquecida pela "mediação dialética da leitura", caracterizada por Martins (2014MARTINS, Ana Amélia Lage. Mediação e bibliotecas públicas: uma perspectiva dialética. Perspectivas em Ciência da Informação, v. 19, p. 164-185, 2014.) e Martins e Farias (2023) como um espaço de resistência. Tal mediação visa a emancipação dos indivíduos e seu engajamento ativo na transformação da realidade por meio do conhecimento. Nesse contexto, a leitura é compreendida como uma das formas mais eficazes de compreensão do mundo, empregando tanto imagens quanto palavras.

Desse modo, o processo de aprendizado assume uma importância notável entre a juventude, com a obra “O Diário de Anne Frank” frequentemente servindo como o primeiro contato dessa geração pós-guerra com os horrores perpetrados durante o período nazista, como documentado pelo Anne Frank Fonds (2022a). Como base para esta pesquisa, realizou-se a leitura do diário datado de 12 de junho de 1942 a 1º de agosto de 1944, a fim de compreender o contexto cotidiano nele descrito.

Além disso, fontes de informações adicionais foram rastreadas em sítios oficiais detentores dos direitos autorais da autora, a saber: “Anne Frank Fonds” e “Anne Frank House”. Otto Frank fala sobre o crescente interesse pelo diário de Anne Frank e o motivo pelo qual cativa tantos leitores ao redor do mundo: “Certa vez perguntei ao meu editor por que ele achava que o diário era lido por tantas pessoas. Ele sentiu que o diário cobria tantas áreas da vida que cada leitor encontrava nele algo que o afetava pessoalmente.” (Otto, Frank, 1968).

A pesquisa também utiliza o (United States Holocaust Memorial Museum”, 2023a), um sítio sediado nos Estados Unidos, dedicado à disseminação de materiais e documentos relacionados ao Holocausto, com o objetivo de inspirar cidadãos e líderes do mundo inteiro a combater o ódio, prevenir o genocídio e promover a dignidade humana.

Para uma compreensão mais aprofundada do contexto histórico, a obra do historiador Richard Evans, composta por “A Chegada do Terceiro Reich” (2014aEVANS, Richard J. A chegada do Terceiro Reich. 2. ed. São Paulo: Planeta, 2014a.), “O Terceiro Reich no Poder” (2014b) e “O Terceiro Reich em Guerra” (2012), é referenciada. Essas obras fornecem uma análise abrangente do período de guerra, com as informações pertinentes ao presente estudo extraídas delas.

A partir do entendimento da narrativa histórica e da missão social do diário de Anne Frank, esta pesquisa baseia-se na análise da temática da leitura e sua relevância na construção social dos indivíduos. Nesse contexto, emerge a percepção de que o ambiente da biblioteca pode se consolidar como um espaço de diálogo e discussões, mediado pela prática da leitura. Essa abordagem encontra respaldo nas teorias da mediação da informação de Almeida Júnior (2007ALMEIDA JÚNIOR, Oswaldo Francisco de. Leitura, mediação e apropriação da informação. In: SANTOS, Jussara Pereira (Org.). A leitura como prática pedagógica na formação do profissional da informação. Rio de Janeiro: Fundação Biblioteca Nacional, 2007. 168p. p.33-45., 2015) e na mediação da leitura de Almeida Júnior e Bortolin (2008) e Bortolin (2010).

2 ANNE FRANK: “ACONTECEU TANTA COISA QUE É COMO SE O MUNDO INTEIRO ESTIVESSE VIRADO DE CABEÇA PARA BAIXO”

Em 12 de junho de 1929, na Alemanha, nasceu Annelies Marie Frank, conhecida como Anne Frank. Uma jovem de ascendência judaica, cuja vida foi marcada desde a infância pela opressão e o medo devido à sua afiliação ao povo judeu.

O símbolo dessa opressão, que posteriormente se revelou como o regime nazista, estava associado ao Partido Nacional-Socialista dos Trabalhadores Alemães (NSDAP), liderado por Adolf Hitler. Em 30 de janeiro de 1933, Hitler foi nomeado Chanceler alemão pelo presidente Hindenburg e, por meio de um decreto-lei, adquiriu poderes significativos. No ano subsequente, com a morte do presidente, Hitler ascendeu ao poder, tornando-se líder supremo, adotando o título de Führer (Caetano, 2010CAETANO, Tiago Lemanczuk Fraga. Meikampf e o ideário nazista. Consilium Revista Eletrônica de Direito, Brasília,v. 1, n. 4, maio/ago. 2010. Disponível em: www.unieuro.edu.br/sitenovo/revistas/downloads/consilium_04_01.pdf Acesso em: 31 jan. 2023.
www.unieuro.edu.br/sitenovo/revistas/dow...
; Evans, 2014aEVANS, Richard J. A chegada do Terceiro Reich. 2. ed. São Paulo: Planeta, 2014a.).

O regime nazista, ao assumir o poder, promoveu uma retórica fortemente “antissemita, o que marcou o início da disseminação global da propaganda nazista. Essa ideologia se manifestou por meio de ações fundamentadas em elementos como antissemitismo, pangermanismo, eugenia e a chamada higiene racial, acompanhadas por uma clara hostilidade em relação à democracia e ao modernismo cultural.

Uma das ações proeminentes desse regime foi a segregação de grupos étnicos que não eram considerados “arianos”1 1 Ser ariano trata-se da ideologia acreditada por Hitler, na qual era defendida a pureza racial, ou seja, a não mistura de raças, acreditava-se que o verdadeiro alemão descendia do povo indo-iraniano, “esta, que originaria a separação de classes, foi à base inspiradora dos defensores do arianismo. O sangue agora seria o fator comprobatório para pertencer à classe do verdadeiro alemão (Couto, 2009). , bem como daqueles que se opunham ao novo governo. Isso resultou na segregação de diversos segmentos sociais, incluindo judeus, ciganos, testemunhas de Jeová, comunistas e homossexuais (Evans, 2014aEVANS, Richard J. A chegada do Terceiro Reich. 2. ed. São Paulo: Planeta, 2014a.; Friedlander, 2009FRIEDLANDER, Saul. Nazi Germany and the Jews, 1933-1945.New York: Harper Perennial, 2009.).

Conforme enfatiza Couto (2009COUTO, Sergio Pereira. Os segredos do Nazismo: vol. 1. São Paulo: Universo dos Livros, 2009.):

Esta “pureza”, que originaria a separação de classes, foi à base inspiradora dos defensores do arianismo [...] O sangue agora seria o fator comprobatório para pertencer à classe do verdadeiro alemão. O ariano, para os nazistas, seria conduzido seriamente pelos nazistas quando Hitler, após sua chegada ao poder, teve a iniciativa de criar leis que dividissem a sociedade alemã em raças (Couto, 2009COUTO, Sergio Pereira. Os segredos do Nazismo: vol. 1. São Paulo: Universo dos Livros, 2009., p. 20).

A necessidade de emigrar da Alemanha, devido às políticas de segregação racial que afetaram Anne Frank, nascida em território alemão como filha de Otto Frank e Edith Frank, juntamente com sua irmã mais velha, Margot Frank, resultou em sua mudança para a cidade de Amsterdã, conhecida como a capital da Holanda. A autora do diário registrou a transição de sua família para o país vizinho em uma entrada datada de 20 de junho de 1942, na qual esboçou um resumo sucinto de sua história de vida: “Morei em Frankfurt até completar 4 anos. Como éramos judeus, meu pai emigrou para a Holanda em 1933, quando se tornou diretor-administrativo da ‘Dutch Opekta Company’, que fabrica produtos para fazer geleia.” (Frank, 2022, p. 17).

A mudança de residência em 1933, conforme destacado por Anne Frank, pode ser atribuída às políticas discriminatórias adotadas pelos nazistas que visavam diretamente os judeus. Esse deslocamento é coerente com a série de decretos promulgados pelos nazistas após sua chegada ao poder, notadamente as “Leis de Nuremberg”, que autorizaram a perseguição dos judeus, incluindo o boicote a estabelecimentos judaicos e a proibição dos judeus de ocuparem cargos no serviço público, em universidades, no magistério, no Judiciário e em outras instituições financiadas pelo Estado.

A investida nazista sobre os judeus nos primeiros meses de 1933 foi o primeiro passo de um processo mais longo para removê-los da sociedade alemã [...] excluir os judeus da economia, dos meios de comunicação, do emprego estatal e das classes profissionais era, assim, uma parte essencial do processo de redimir e purificar a raça alemã (Evans, 2014aEVANS, Richard J. A chegada do Terceiro Reich. 2. ed. São Paulo: Planeta, 2014a., p. 529).

A discriminação direcionada aos judeus não se restringiu apenas aos adultos; ela também impactou crianças e jovens. À medida que o regime nazista consolidava seu domínio, as restrições tornaram-se mais rigorosas, especialmente em relação à população judaica. Como resultado, foi imposta a proibição de acesso a escolas e universidades, bem como a participação em atividades culturais, tais como cinema, teatro e eventos esportivos. Além disso, em várias localidades, os judeus foram proibidos de entrar em áreas designadas como “arianas” (United States Holocaust Memorial Museum, 2023b).

O avanço do nazismo foi acompanhado pela intensificação das leis discriminatórias e pela expansão territorial por meio de invasões. Em 1º de setembro de 1939, a Polônia foi invadida, marcando o início da Segunda Guerra Mundial. Em 10 de maio de 1940, a Holanda foi ocupada (Evans, 2012EVANS, Richard J. O Terceiro Reich em guerra. São Paulo: Planeta, 2012.).

Gradualmente, os invasores implementaram regulamentos que tornaram a vida dos judeus ainda mais desafiadora. Em algumas localidades, áreas como parques, cinemas e lojas não judaicas foram interditadas aos judeus. Devido a essas restrições, Anne viu drasticamente limitadas suas opções de lugares para frequentar. O pai de Anne perdeu seu negócio, uma vez que a legislação já não permitia que judeus fossem proprietários de empresas. Todas as crianças judias, incluindo Anne, foram compelidas a frequentar escolas judaicas separadas (Anne Frank House, 2022FRANK, Anne. O diário de Anne Frank. Rio de Janeiro: Record, 2022.a).

Anne relata, em 20 de junho de 1942, que sua vida estava repleta de ansiedade devido à preocupação com parentes que ainda se encontravam na Alemanha, sofrendo sob as leis de Hitler que atingiam aos judeus (Frank, 2022FRANK, Anne. O diário de Anne Frank. Rio de Janeiro: Record, 2022.). A jovem observa que, a partir de 1940, os momentos de tranquilidade tornaram-se raros devido à perseguição nazista na Holanda.

Após maio de 1940 [...] nossa liberdade foi gravemente restringida com uma série de decretos antissemitas: os judeus deveriam usar uma estrela amarela; os judeus eram proibidos de andar nos bondes; os judeus eram proibidos de andar de carro, mesmo em seus próprios carros; os judeus eram proibidos de sair às ruas entre oito da noite e seis da manhã [...] os judeus eram proibidos de visitar casas de cristão; os judeus deveriam frequentar escolas judias etc (Frank, 2022FRANK, Anne. O diário de Anne Frank. Rio de Janeiro: Record, 2022., p. 18).

Apesar da opressão que afetava a comunidade judaica na Holanda, a família Frank dedicava-se a buscar uma vida normal para suas filhas, Anne e Margot. Mesmo diante da crescente repressão, Anne procurava vivenciar experiências típicas da adolescência, desfrutando de momentos com seus amigos e aproveitando os poucos locais e períodos ainda acessíveis aos judeus.

Em um desses passeios, ocorrido em 5 de julho de 1940, Anne compartilhou um breve diálogo com seu pai, no qual ele a aconselhou a viver sua vida “sem preocupações enquanto ainda fosse possível.” (Frank, 2022FRANK, Anne. O diário de Anne Frank. Rio de Janeiro: Record, 2022., p. 28).

O termo “possível” encerrava consigo a carga de medo e apreensão em relação ao que o futuro reservava, um temor que Anne expressou ao relatar: “[...] fiquei tão apavorada [...] ah, que essas palavras sombrias demorem o máximo de tempo possível para se tornarem verdade.” (Frank, 2022FRANK, Anne. O diário de Anne Frank. Rio de Janeiro: Record, 2022., p. 28).

Seu pai, ciente da crescente ameaça nazista, previu que em breve teriam que se ocultar para escapar da perseguição. Otto Frank, então, explicou a Anne a razão subjacente a essa necessidade iminente:

Você sabe que há mais de um ano estamos levando roupas, comida e móveis para outras pessoas. Não queremos que nossos pertences sejam apanhados pelos alemães. E também não queremos cair nas garras deles. Por isso, vamos embora por vontade própria, sem esperar que eles nos levem (Frank, 2022FRANK, Anne. O diário de Anne Frank. Rio de Janeiro: Record, 2022., p. 28).

Após a conversa com seu pai, Anne Frank retoma seu diário após um intervalo de três dias, a partir da última anotação registrada. Nesse breve lapso temporal, ocorre uma reviravolta substancial na vida da jovem. Como descrito pela autora no dia 8 de julho de 1942, “aconteceu tanta coisa que é como se o mundo inteiro estivesse virado de cabeça para baixo” (Frank, 2022, p. 29).

A referida reviravolta consiste na decisão da família Frank de se ocultar dos alemães, refugiando-se no “anexo secreto” que fazia parte das instalações do “Dutch Opekta”, onde Otto Frank ocupava o cargo de diretor-administrativo. Esse esconderijo situava-se no endereço Prinsengracht 263, em Amsterdã. Otto Frank transportou uma série de objetos e roupas para o anexo, adaptando-o da melhor forma possível para permitir à sua família viver com uma medida de tranquilidade, resguardada do perigo imposto pelo regime nazista.

O ponto culminante que precipitou a decisão de se refugiar no “anexo secreto” foi a chegada de uma convocação, emitida pelos nazistas, convocando Margot para se apresentar em um campo de trabalhos forçados (Anne Frank House, 2022FRANK, Anne. O diário de Anne Frank. Rio de Janeiro: Record, 2022.c).

A partir do momento em que as convocações começaram a ser disseminadas nas áreas sob ocupação nazista, os judeus passaram a ser tratados como escravos e submetidos a condições de exploração extrema no contexto de trabalho forçado, visando ao benefício financeiro do sistema de guerra alemão.

A escassez de mão de obra alemã levou a um aumento da utilização de prisioneiros como trabalhadores nas fábricas alemãs. Notadamente em 1943 e 1944, surgiram centenas de campos de trabalho escravo nas proximidades das fábricas alemãs, nos quais as condições de vida se assemelhavam a senzalas (United States Holocaust..., 2023b).

A família Frank, escondida no “anexo secreto,” preparou-se para acolher outra família, os van Pels, composta por Auguste van Pels, Hermann van Pels e o filho Peter van Pels. Anne descreveu a razão que motivou a chegada dos van Pels em 14 de agosto de 1942: “os alemães enviaram convocações para todos os lados, causando grande preocupação, e por isso eles julgaram que seria mais seguro sair um dia antes do que esperar um dia a mais” (Frank, 2022, p. 39).

Com a escalada das convocações direcionadas aos judeus, o senhor Albert Dussel é incluído no grupo já existente no “anexo secreto,” elevando o total de pessoas ocultas para oito. Nesse cenário, passam a viver na clandestinidade, em flagrante contravenção das leis nazistas, que os forçam a evitar sair em público, a minimizar a produção de ruídos, a depender de terceiros para obtenção de suprimentos e a viverem atemorizados pela possibilidade de delação e subsequente captura. Anne, em algumas ocasiões, manifesta seu medo, como no dia 28 de setembro de 1942, quando registra que “não poder sair me deixa mais chateada do que posso expressar, e sinto-me apavorada com a possibilidade de nosso esconderijo ser descoberto e sermos mortos a tiros” (Frank, 2022FRANK, Anne. O diário de Anne Frank. Rio de Janeiro: Record, 2022., p. 37).

Anne Frank passa a retratar sua vida cotidiana junto aos demais ocupantes do anexo, oscilando entre momentos de tensão e ocasiões mais descontraídas. Procura ocupar o tempo e afastar pensamentos relativos à perseguição nazista, o que ocorre mediante tarefas de limpeza, atividades de estudo, conversas com outros ocupantes e, não menos relevante, a escrita de seu diário.

Entretanto, o medo se mantém como um elemento preponderante em seus registros, como evidenciado em seu relato no dia 1º de outubro de 1942:

Ontem tive um medo terrível. Às oitos horas, a campainha da porta tocou de repente. Só pude pensar que alguém estava vindo nos pegar, você sabe de quem estou falando. Mas me acalmei quando todo mundo jurou que deveriam ser moleques ou o carteiro (Frank, 2022FRANK, Anne. O diário de Anne Frank. Rio de Janeiro: Record, 2022., p. 58).

Os campos de concentração foram estabelecidos em uma ampla gama de territórios sob ocupação nazista, bem como na própria Alemanha, com a finalidade de confinar indivíduos considerados como “elementos de oposição” e “adversários políticos”. Esses locais eram caracterizados por condições de higiene precárias e apresentavam índices de mortalidade substancialmente elevados (Evans, 2014aEVANS, Richard J. A chegada do Terceiro Reich. 2. ed. São Paulo: Planeta, 2014a.).

Um exemplo representativo desses campos é o campo de Westerbork, o qual se notabilizou por suas instalações precárias e pelo tratamento desumano dispensado aos prisioneiros. Segundo informações do site “Herinneringscentrum kamp westerbork” (2020, online), essa instalação recebeu o macabro epíteto de “porta de entrada para o Inferno”. Atualmente, ele foi transformado em um museu da Segunda Guerra Mundial. O propósito original desse campo era servir como um centro de trânsito, destinado a reunir prisioneiros para posteriormente transportá-los para outros campos de concentração, notadamente Auschwitz e Sobibor.

Deve ser terrível em Westerbork. As pessoas não têm praticamente nada para comer e menos para beber, já que só existe água uma hora por dia, e há somente um banheiro e uma pia para vários milhares de pessoas. Homens e mulheres dormem no mesmo cômodo, e as mulheres e crianças costumam ter as cabeças raspadas (Frank, 2022FRANK, Anne. O diário de Anne Frank. Rio de Janeiro: Record, 2022., p. 64).

Anne registra em seu diário essas dolorosas e desoladoras narrativas acerca do campo de concentração e do temor constante de ser apreendida. A jovem, juntamente com seus companheiros, viveu esse angustiante episódio na manhã de 4 de agosto de 1944, quando um contingente de policiais holandeses, sob o comando de um sargento nazista, em resposta a uma denúncia telefônica, realizou uma incursão nas instalações da Opekta em busca de “judeus ocultos” e efetuou a invasão do anexo secreto.

Depois de presos, os oitos moradores do anexo secreto foram levados primeiro para uma prisão em Amsterdã e depois transferidos para Westerbork, campo de triagem dos judeus no norte da Holanda. Em 3 de setembro de 1944, foram deportados e chegaram três dias depois em Auschwitz (Polônia) (Frank, 2022FRANK, Anne. O diário de Anne Frank. Rio de Janeiro: Record, 2022., p.348).

Anne Frank e sua irmã Margot foram transferidas para o campo de concentração de Bergen-Belsen no início de novembro de 1944, enquanto seus pais permaneceram em Auschwitz. As condições em Bergen-Belsen eram igualmente desoladoras, caracterizadas pela escassez de alimentos, clima frio e úmido, além da propagação de doenças contagiosas. Em 1945, tanto Anne quanto Margot contraíram tifo, o que culminou com o falecimento de ambas no mesmo ano (Anne Frank House, 2022d).

Lamentavelmente, os anseios de liberdade que Anne Frank tanto almejava para o período pós-guerra não puderam ser concretizados. Ela nutria o mais profundo desejo de tornar-se “uma grande escritora famosa” e almejava realizar uma contribuição significativa à sociedade (Frank, 2022, p. 304). No entanto, embora sua vida tenha sido ceifada, seu legado perdura por meio do diário que deixou. Esse diário, que abarca registros de suas experiências e reflexões, atua como um veículo para a realização póstuma desse desejo, conferindo-lhe relevância duradoura e impacto cultural.

Na seção subsequente, examina-se o impacto que seus escritos tiveram no cenário editorial e sua contribuição para a conscientização social, destacando a importância de sua obra na literatura mundial e na sensibilização acerca dos horrores do Holocausto.

3 A PUBLICAÇÃO DA OBRA “O DIÁRIO DE ANNE FRANK”: IMAGINE COMO SERIA INTERESSANTE SE EU PUBLICASSE UM ROMANCE SOBRE O ANEXO SECRETO

A narrativa de Otto Frank sobre o dia trágico em que o anexo secreto foi descoberto e seus ocupantes foram capturados pelos nazistas revela que as pessoas escondidas foram obrigadas a entregar seus pertences. O sargento nazista Karl Josef Silberbauer, que liderava a ação, pegou a pasta de Otto, contendo os papéis do diário de Anne, e a atirou ao chão para confiscar os objetos. Os papéis se espalharam pelo assoalho de madeira enquanto o grupo se preparava para a prisão (Anne Frank House, 2022d).

Miep Gies e Bep Voskuijl, que trabalhavam na Opekta, subiram ao esconderijo logo após a partida dos Franks e dos van Pels e encontraram os papéis de Anne espalhados pelo chão. Como ela mesma descreve, “mais tarde, Bep e eu subimos para os quartos dos Frank. Vimos os papéis do diário de Anne espalhados pelo chão. Bep e eu pegamos os papéis e os levamos para o escritório” (Anne Frank House, 2022e).

Após o fim da guerra, Otto Frank, o único dos oito prisioneiros que sobreviveu aos campos de concentração, retornou a Amsterdã. A secretária Miep, que guardara o diário em sua gaveta de escritório com a intenção de entregá-lo a Anne após a guerra, agora entregou os escritos a Otto Frank. Mais tarde, a Cruz Vermelha confirmou a morte de Anne em agosto de 1945 (Anne Frank Fonds, 2022b; Anne Frank House, 2022f).

Figura 1
Os escritos de Anne Frank no seu diário

Durante os dois anos em que estiveram ocultos no anexo, Anne Frank encontrou no diário, ou “nos diários”, sua companhia para evitar a sensação de asfixia e para expressar seus sentimentos. Devido à extensão do período de seu confinamento, Anne também recorreu a folhas e cadernos adicionais para documentar suas experiências, como ilustrado na figura 2 abaixo:

Figura 2
Manuscritos originais de Anne Frank

Após assumir a posse do diário, Otto Frank iniciou a leitura e notou o desejo de Anne de publicar seu diário após a guerra, registrado em 29 de março de 1944: “Imagine como seria interessante se eu publicasse um romance sobre o anexo secreto [...] dez anos depois da guerra, as pessoas achariam interessante ler sobre como vivemos” (Frank, 2022, p. 254). O desejo da jovem de se tornar uma escritora reconhecida e de publicar um livro foi cumprido, iniciando o processo de reorganização de seus escritos.

Otto Frank, em seguida, leu o diário e consultou um casal de editores-historiadores para revisar os textos, adaptando trechos mais íntimos de Anne para corresponder às normas da época, que eram mais conservadoras. Um dos editores que contribuiu para esse processo escreveu sobre o diário no jornal Het Parool, despertando o interesse de uma editora em Amsterdã (Anne Frank Fonds, 2022d).

A primeira edição do Diário de Anne Frank foi publicada em holandês em 25 de junho de 1947, sob o título “Het Achterhuis: Dagboekbrieven van 12 de junho de 1942 a 1 de agosto de 1944” (O Anexo Secreto). Essa edição continha os escritos de Anne do período de 12 de junho de 1942 a 1º de agosto de 1944 e foi impressa em 3.000 cópias. A obra logo se tornou um sucesso de vendas, resultando em oito edições subsequentes. A editora francesa Calman-Lévy traduziu e publicou o livro em 1950 com o título “Le Journal d'Anne Frank” (Anne Frank Fonds, 2022e).

A disseminação do diário além das fronteiras europeias começou quando o jornalista americano Meyer Levin leu a versão impressa e entrou em contato com Otto Frank para auxiliá-lo na busca por uma editora que publicasse a obra em inglês. Essa colaboração representou um marco crucial na difusão do diário ao redor do mundo.

O projeto deu certo e, em 1952, “O diário de uma jovem” foi publicado pelas editoras Doubleday (EUA) e Vallentine, Mitchell & Co. Ltd. (Grã-Bretanha). Eleanor Roosevelt, ex-primeira-dama dos Estados Unidos, havia escrito o prefácio. O livro se tornou um best-seller, principalmente por causa das críticas bem colocadas de Meyer Levin. Três edições foram publicadas em rápida sucessão (Anne Frank Fonds, 2022FRANK, Anne. O diário de Anne Frank. Rio de Janeiro: Record, 2022.d).

Após a tradução para o inglês, o diário de Anne Frank ultrapassou as barreiras linguísticas, sendo amplamente traduzido e publicado por diversas editoras. No período de 1955 a 1957, ocorreram 15 edições do “Diário de Anne Frank” em várias partes do mundo, abrangendo países como Holanda, Grã-Bretanha, Alemanha, França, Estados Unidos, Canadá, Noruega, Dinamarca, Suécia, Japão, Israel, Itália, Hungria, Finlândia e Espanha.

Essa disseminação global do diário contribuiu significativamente para o uso da literatura como um meio de aumentar a conscientização pública acerca do Holocausto, solidificando o status do “Diário de Anne Frank” como uma das primeiras obras a cumprir esse papel (Anne Frank Fonds, 2022FRANK, Anne. O diário de Anne Frank. Rio de Janeiro: Record, 2022.g).

Figura 3
Seleções de edições do diário publicados em diferentes línguas

O “Diário de Anne Frank” foi objeto de tradução para mais de 70 idiomas, estabelecendo-se como um testemunho de profunda significância contemporânea e consolidando sua posição como um clássico da literatura do século XX.

Desde sua publicação, inúmeros estudantes, inseridos no contexto educacional, tiveram a oportunidade de imergir na leitura do diário de Anne Frank e estudá-lo no ambiente acadêmico (Anne Frank Fonds, 2022FRANK, Anne. O diário de Anne Frank. Rio de Janeiro: Record, 2022.f).

A influência da obra transcendeu o universo da escrita, motivando sua adaptação para o cinema sob diferentes direções de produção, encenações teatrais e sua representação em variados formatos literários, incluindo edições de bolso e, mais recentemente, em formato de quadrinhos. É pertinente ressaltar, conforme delineado pelo Anne Frank Fonds (2022FRANK, Anne. O diário de Anne Frank. Rio de Janeiro: Record, 2022.g), que a concepção desse projeto gráfico de adaptação para quadrinhos emergiu da colaboração entre o roteirista e cineasta Ari Folman e o ilustrador David Polonsky.

O propósito subjacente a essa iniciativa foi conferir ao diário uma maior acessibilidade e compreensibilidade para um público que demonstra afinidade com este formato de leitura, ao mesmo tempo em que mantém um compromisso com a preservação da fidelidade à contextualização histórica e social original na qual a obra foi concebida.

Figura 4
O diário gráfico produzido por Ari Folman e David Polonsky

As diversas abordagens para a leitura do diário, quer sejam por meio de relatos tradicionais ou formatos gráficos, convocam diferentes segmentos de leitores a uma reflexão sobre o evento que ceifou vidas e continua a reverberar nas diversas representações sociais contemporâneas. O diário celebrou seu septuagésimo quinto aniversário em 2022, marcando 75 anos desde sua publicação inaugural em 1947.

Com a realização do desejo de Anne Frank de se tornar uma escritora, esse marco póstumo foi concretizado. Alinhado com a vontade de seu pai de promover a publicação dos escritos de Anne, visando a exposição do horror inerente ao genocídio perpetrado pelo regime nacional-socialista, o objetivo predominante consistia em fomentar a conscientização social por meio da leitura. Essa conscientização tinha como propósito estimular o diálogo e o debate acerca dos dilemas que a humanidade enfrenta no contexto das várias formas de discriminação e na promoção dos direitos humanos.

A fundação Anne Frank, estabelecida por Otto Frank em 1963, detém os direitos autorais da imagem e do diário de Anne Frank e de sua família desde 1980, após o falecimento do pai. Otto Frank designou a fundação como seu herdeiro universal e sucessor legal, orientando-a para a disseminação e exploração global do diário de Anne Frank. O Fundo Anne Frank utiliza os proventos derivados do diário e de suas licenças para fins beneméritos, educação e pesquisa científica (Anne Frank Fonds, 2022b, online).

Essa instituição oferece uma narrativa completa da história de Anne Frank, incluindo detalhes sobre os membros da família de Anne Frank e a evolução do Diário ao longo do tempo. O museu Anne Frank em Amsterdã, o local onde a família de Anne Frank e outros se esconderam durante a Segunda Guerra Mundial, foi estabelecido em 3 de maio de 1957, em colaboração com Otto Frank, tornando-se uma organização sem fins lucrativos.

Esse museu proporciona uma visão abrangente da vida e contexto de Anne Frank, destacando sua relação com o panorama da Segunda Guerra Mundial. Além disso, cumpre uma missão educativa ao oferecer visitas presenciais e virtuais para que o público possa explorar o anexo secreto, enquanto também disponibiliza material educacional com o objetivo de estimular a reflexão dos jovens sobre a exclusão e a discriminação.

4 MEDIAÇÃO DA INFORMAÇÃO E DA LEITURA: A CONCEPÇÃO DE INTERFERÊNCIA NO MUNDO

O verbo “mediar” envolve, em sua definição clássica, a ação de ocupar um espaço intermediário nas relações humanas com o objetivo de manter o equilíbrio entre as partes envolvidas. Essa interpretação inicial é frequentemente associada a uma abordagem técnica e rígida na qual a mediação é vista como um meio de resolver problemas ou simplesmente transmitir e receber informações.

No entanto, é importante ressaltar que a semântica e os resultados da mediação são mais complexos do que essa concepção simplista sugere. Atualmente, o termo “mediar” abrange diversas experiências que transcendem o papel de mero intermediário nas relações interpessoais, envolvendo nuances contextuais e circunstanciais que vão além de simplesmente servir como um meio de comunicação (Perez; Trindade, 2020PEREZ, Clotilde; TRINDADE, Eneus (Orgs.). Mediações: perspectivas plurais. Barueri, SP: Estação das letras e Cores, 2020.).

A mediação, nesse contexto mais amplo, engloba uma variedade de formas de linguagem que se manifestam na realidade. Isso inclui a multiplicidade de elementos presentes nos contextos socioculturais, que são manifestações das diferentes comunidades, bem como as percepções relacionadas às interações humanas.

Essa perspectiva se relaciona com a abordagem proposta por Almeida Júnior (2015ALMEIDA JÚNIOR, Oswaldo Francisco de. Mediação da informação: um conceito atualizado. In: BORTOLIN, Sueli; SANTOS NETO, João Arlindo dos; SILVA, Rovilson José da (Orgs.). Mediação oral da informação e da leitura. Londrina-PR: ABECIN, 2015.) sobre a mediação da informação e como o conhecimento é construído por meio do ato de mediar. Nesse processo, as experiências de vida relatadas por pessoas próximas, biógrafos, depoentes e testemunhas de períodos históricos específicos, juntamente com a coleta de informações, desempenham um papel significativo na construção do conjunto de conhecimentos.

As informações que recebemos do mundo, sejam elas mediadas por terceiros ou sensoriais [...] nos levam a um entendimento, mesmo que inconsciente, desse mundo. Entendemos, aceitamos e nos posicionamos contrários, fazemos críticas, apoiamos ações, seguimos tendencias sempre com base nas análises que nos permite relação com o mundo (Almeida Júnior, 2015ALMEIDA JÚNIOR, Oswaldo Francisco de. Mediação da informação: um conceito atualizado. In: BORTOLIN, Sueli; SANTOS NETO, João Arlindo dos; SILVA, Rovilson José da (Orgs.). Mediação oral da informação e da leitura. Londrina-PR: ABECIN, 2015., p. 12).

Para que a mediação seja eficaz, torna-se imperativo o exame crítico das experiências vivenciadas pelos sujeitos participantes da ação. Como tais indivíduos percebem e sentem os acontecimentos devem ser objeto de análise minuciosa por parte do mediador, que emprega a escuta atenta e a observação criteriosa como ferramentas primordiais.

Dessa forma, as observações realizam-se especialmente nas interações com outros indivíduos, quando as diferenças de opiniões e as distintas percepções do mundo à sua volta guiam tais trocas. A constituição dessas relações de perspectivas sobre o mundo frequentemente dá origem a conflitos que, por sua vez, contribuem significativamente para o desenvolvimento do pensamento crítico, tanto no âmbito individual quanto no coletivo.

Almeida Júnior (2015ALMEIDA JÚNIOR, Oswaldo Francisco de. Mediação da informação: um conceito atualizado. In: BORTOLIN, Sueli; SANTOS NETO, João Arlindo dos; SILVA, Rovilson José da (Orgs.). Mediação oral da informação e da leitura. Londrina-PR: ABECIN, 2015.) enfatiza a importância da perspectiva alheia na construção do autoconhecimento. Embora o outro possua uma compreensão do mundo fundamentada em sua própria tradição, seu olhar desempenha um papel crucial na formação do pensamento do indivíduo com o qual se relaciona. Essa relação, que parte do subjetivo em direção ao intersubjetivo, do individual para o coletivo, permite a comparação de diferentes visões de mundo e a elaboração de inferências sobre o tema discutido. Em resumo, nosso conhecimento é construído de forma mediada, e da mesma maneira, atuamos como mediadores na construção do conhecimento dos outros (Almeida Júnior, 2015, p. 11).

A leitura e a realidade estão intrinsecamente interligadas, configurando um processo dinâmico no qual a linguagem e o mundo se entrelaçam. É indubitável que a leitura desempenha um papel fundamental na aquisição de conhecimento. Failla (2021FAILLA, Zoara (org.). Retratos da leitura no Brasil. Rio de Janeiro: Sextante, 2021.) a considera a ferramenta primordial tanto para a aprendizagem quanto para uma educação de qualidade e a plena cidadania. Ela é também vista como condição essencial para o desenvolvimento humano e social de uma nação.

Sob a influência da visão freiriana, Almeida Júnior (2007ALMEIDA JÚNIOR, Oswaldo Francisco de. Leitura, mediação e apropriação da informação. In: SANTOS, Jussara Pereira (Org.). A leitura como prática pedagógica na formação do profissional da informação. Rio de Janeiro: Fundação Biblioteca Nacional, 2007. 168p. p.33-45.) compreende que:

Ler é o processo que permite a relação entre nós e o mundo; a leitura nos proporciona o conhecimento; a realidade só se apresenta integralmente por meio da leitura; ler é se apropriar do acervo de conhecimentos e experiências da humanidade; ler é se nutrir da tradição e da memória do homem; a leitura permite ser o outro, estar no outro; ler é se apropriar de um dos mais importantes instrumentos de opressão, a escrita (Almeida Júnior, 2007ALMEIDA JÚNIOR, Oswaldo Francisco de. Leitura, mediação e apropriação da informação. In: SANTOS, Jussara Pereira (Org.). A leitura como prática pedagógica na formação do profissional da informação. Rio de Janeiro: Fundação Biblioteca Nacional, 2007. 168p. p.33-45., p. 33).

A leitura representa o meio pelo qual as pessoas direcionam suas ações e desenvolvem suas perspectivas sobre o mundo circundante. Conforme enfatizado por Failla (2021FAILLA, Zoara (org.). Retratos da leitura no Brasil. Rio de Janeiro: Sextante, 2021.), a leitura possui a capacidade de transformar, informar, emocionar e promover a inclusão, aproximando-nos da humanidade em diversas temporalidades, locais, sentidos, culturas e emoções (Failla, 2021). Com base nessa premissa, o conceito de mediação da leitura é apresentado.

Segundo Bortolin (2010BORTOLIN, Sueli. Mediação oral da literatura: a voz dos bibliotecários lendo ou narrando. 2010. 232 f. Tese (Doutorado em Ciência da Informação) - Universidade Estadual Paulista Júlio Mesquita Filho (UNESP), São Paulo, 2010. Disponível em: https://repositorio.unesp.br/handle/11449/103349. Acesso em: 08 mar. 2023.
https://repositorio.unesp.br/handle/1144...
), a mediação da leitura concentra-se no contexto do texto literário. A autora define a mediação de leitura literária como uma interferência, seja de maneira casual ou planejada, destinada a motivar o leitor a explorar a literatura em diferentes formatos e linguagens (Bortolin, 2010, p. 115).

À medida que nos envolvemos com a literatura, o mediador pode possibilitar uma maior autoconsciência no leitor e, ao mesmo tempo, proporcionar novas perspectivas sobre o mundo. Segundo a autora, a literatura é uma forma de expressão que oferece oportunidades de conhecimento e insights sobre a sociedade em diferentes épocas, além de servir como fonte de prazer e entretenimento para o leitor (Bortolin, 2010BORTOLIN, Sueli. Mediação oral da literatura: a voz dos bibliotecários lendo ou narrando. 2010. 232 f. Tese (Doutorado em Ciência da Informação) - Universidade Estadual Paulista Júlio Mesquita Filho (UNESP), São Paulo, 2010. Disponível em: https://repositorio.unesp.br/handle/11449/103349. Acesso em: 08 mar. 2023.
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, p. 107).

Bortolin (2010BORTOLIN, Sueli. Mediação oral da literatura: a voz dos bibliotecários lendo ou narrando. 2010. 232 f. Tese (Doutorado em Ciência da Informação) - Universidade Estadual Paulista Júlio Mesquita Filho (UNESP), São Paulo, 2010. Disponível em: https://repositorio.unesp.br/handle/11449/103349. Acesso em: 08 mar. 2023.
https://repositorio.unesp.br/handle/1144...
) argumenta que a mediação da leitura exige engajamento, pois, ao utilizar a oralidade, o mediador conquista a confiança dos leitores, aprende com eles novas perspectivas e contribui para a transformação do ambiente. As emoções despertadas pela literatura, portanto, representam uma construção que favorece a interação por meio da leitura.

As bibliotecas desempenham um papel crucial neste contexto, uma vez que não apenas incentivam a leitura, mas também promovem conversas e debates coletivos por meio dela. Conforme o próprio estudo defende, a obra “O diário de Anne Frank” medeia sentidos em prol da humanidade, no enfrentamento de dilemas contemporâneos, sobretudo os ligados aos regimes de opressão, não servindo apenas como uma introdução inicial à história do nazismo. Por isso, é fundamental que os debates, diálogos e a conscientização sejam estimulados no ambiente da biblioteca. A criação desses espaços de reflexão com abordagem didática voltados para a análise crítica da obra de Anne, pode visar o cumprimento da função social da leitura, uma iniciativa que pode ser implementada em diversos locais de mediação da leitura, não se limitando exclusivamente às bibliotecas.

Por exemplo, além das bibliotecas, tais espaços poderiam ser estabelecidos em escolas, universidades, centros culturais ou comunitários. Eles poderiam ser conduzidos por educadores, bibliotecários, líderes comunitários ou outros profissionais capacitados, que poderiam facilitar discussões e atividades que promovam uma análise crítica da obra de forma interativa e participativa. A mediação da informação é o meio pelo qual essa prática pode ser eficazmente realizada nesses espaços. O bibliotecário, em parceria com os usuários, desempenha um papel vital na apropriação do ambiente da biblioteca, promovendo o valor do diálogo, do debate e da experiência compartilhada por meio da leitura.

A mediação da informação e da leitura contemporânea transcende a mera função de ponte, na qual o bibliotecário age como um simples fornecedor de informações. Pelo contrário, o profissional da informação deve fundamentar suas práticas na necessidade informacional no contexto da comunidade, promovendo a troca de experiências e a sociabilidade cultural.

Essas abordagens com os usuários devem ultrapassar o simples atendimento de referência e estender-se à criação de ideias e promoção da apropriação do espaço da biblioteca. Leituras, sejam elas de livros, imagens ou filmes, devem ser abordadas de forma coletiva, tanto pelo bibliotecário quanto pelos usuários, para que sejam discutidas, interpretadas, apreendidas e compartilhadas em uma troca de experiências enriquecedora e esclarecedora.

4.1 Leitura mundo para uma mediação crítica: o Diário de Anne Frank

A leitura do diário de Anne Frank está inicialmente associada ao contexto histórico e social da época em que foi escrito. O diário descreve as apreensões, angústias e medos de ser capturada, bem como o comportamento opressivo do regime nazista. Essas observações permitem ao leitor colocar-se no lugar da jovem Anne e compreender a brutalidade do período histórico em que ela viveu.

No entanto, os escritos de Anne Frank abrem espaço para uma análise mais profunda que transcende a mera compreensão superficial do contexto histórico. Eles oferecem material para reflexões contemporâneas. O conteúdo do diário de Anne Frank ecoa a famosa frase do filósofo George Santayana: “Aqueles que não conseguem lembrar o passado estão condenados a repeti-lo” (Santayana, 1906, p. 284).

Hannah Arendt (1999ARENDT, Hannah. Eichmann em Jerusalém: um relato sobre a banalidade do mal. São Paulo: Companhia das Letras, 1999.) propõe uma compreensão do contexto que vai além de uma mera visão emocional do passado como um conjunto de fatos. Ela destaca a importância de traçar distinções claras entre o pensamento movido pelo sentimentalismo e a reflexão crítica diante das atrocidades da Segunda Guerra Mundial.

Arendt (1999ARENDT, Hannah. Eichmann em Jerusalém: um relato sobre a banalidade do mal. São Paulo: Companhia das Letras, 1999.) argumenta que, embora os alemães tenham experimentado sentimento de culpa em relação aos atos do regime nazista, isso não passou de um sentimentalismo superficial. Ela salienta a necessidade de ações concretas baseadas na reflexão sobre o passado e em uma análise crítica dos problemas que continuam a afetar a sociedade contemporânea. Conforme Arendt explica:

Por ocasião de todo o barulho com o Diário de Anne Frank e do julgamento de Eichmann - nos brindam com explosões histéricas de sentimento de culpa não estão cambaleando sob o peso do passado, da culpa de seus pais; ao contrário, estão tentando escapar de problemas sempre presentes e reais por meio de um sentimentalismo barato (Arendt, 1999ARENDT, Hannah. Eichmann em Jerusalém: um relato sobre a banalidade do mal. São Paulo: Companhia das Letras, 1999., p. 273).

O resgate do passado não se limita apenas à narração dos eventos históricos; vai além. A narrativa desempenha um papel crucial na capacidade de adotar uma abordagem crítica, possibilitando a reflexão sobre questões do passado que continuam exercendo influência sobre as ações contemporâneas. Nesse sentido, a leitura do passado, à luz do presente, é essencial para estimular a reflexão crítica e contribuir para ações futuras destinadas a combater as discriminações sociais.

Arendt (1999ARENDT, Hannah. Eichmann em Jerusalém: um relato sobre a banalidade do mal. São Paulo: Companhia das Letras, 1999.) destaca a importância da reflexão, especialmente no que diz respeito às ações do regime nazista. Otto Frank, por sua vez, compreendeu essa necessidade de reflexão e, ao divulgar o diário de sua filha Anne Frank, comprometeu-se com a sociedade por meio da leitura. Ele aspirava a uma sociedade cosmopolita, livre de preconceitos e discriminações, dedicando seu apoio, especialmente, a iniciativas relacionadas à paz, juventude e diálogo, enquanto defendia veementemente os direitos humanos e se opunha a qualquer forma de discriminação, racismo ou antissemitismo (Anne Frank Fonds, 2023c).

A leitura do diário de Anne Frank, portanto, proporciona uma oportunidade para a reflexão social, abordando temas ainda presentes na atualidade, como preconceitos, estereótipos e discriminações sociais e raciais, bem como a exclusão e a perseguição a minorias, entre outros. Desse modo, a discussão em torno do diário de Anne Frank torna-se relevante na promoção da leitura, direcionando o foco para interpretações narrativas que ampliam a compreensão do mundo.

De acordo com Paulo Freire (1989FREIRE, Paulo. A importância do ato de ler: em três artigos que se completam. São Paulo: Autores Associados: Cortez, 1989.), a relação entre a leitura do mundo e a leitura da palavra é estabelecida quando o leitor se envolve profundamente com o texto, indo além das palavras e contextualizando o que está sendo apresentado. Dessa forma, a leitura permite uma imersão nas experiências dos acontecimentos narrados, proporcionando uma compreensão mais profunda.

Se o leitor adotar uma abordagem de “palavramundo”, transcende o papel de mero observador passivo e assume a posição de protagonista nas experiências proporcionadas pela leitura. Por exemplo, ao ler sobre o medo de Anne Frank de ser capturada, o leitor pode relacionar essa experiência com o contexto da sociedade judaica da época, bem como com outros grupos marginalizados que enfrentavam o medo da perseguição pelos nazistas.

Além disso, a leitura permite ao leitor relacionar suas próprias experiências com os diversos elementos de representação presentes na narrativa, estabelecendo pontes entre o passado e o presente. O leitor evolui de uma posição de observador que testemunha os eventos descritos no livro, como no caso do diário de Anne Frank, para se tornar um observador ativo e crítico de seu próprio tempo.

Nesse contexto, Anne Frank também personifica o mundo das palavras, aproximando o leitor de sua realidade. Por exemplo, ela descreve vividamente o anexo secreto e sua rotina de vida escondida do mundo exterior. A leitura desempenha, portanto, um papel significativo na capacidade de reviver experiências e refletir sobre elas quando compartilhada por meio da interação entre o “eu” e o “outro”. O indivíduo transita do reino do subjetivo para a esfera da intersubjetividade. As zonas de intersubjetividade, conforme descritas por Freire (2011FREIRE, Paulo. Pedagogia do oprimido. rev. e atual. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 2011.), são locais de encontro e reconhecimento das consciências, bem como de autorreconhecimento.

Os “textos”, as “palavras”, as “letras” daquele contexto - em cuja percepção experimentava e, quanto mais o fazia, mais aumentava a capacidade de perceber - se encarnavam numa série de coisas, de objetos, de sinais, cuja compreensão eu ia apreendendo no meu trato com eles nas minhas relações com meus irmãos mais velhos e com meus pais (Freire, 1989FREIRE, Paulo. A importância do ato de ler: em três artigos que se completam. São Paulo: Autores Associados: Cortez, 1989., p. 12).

A relação estabelecida com outras pessoas em relação às nossas experiências, especialmente aquelas que envolvem a mediação da informação por meio da leitura, tem suas raízes no contexto da consciência educacional e nas tradições e experiências culturais compartilhadas. Essa relação se desenvolve por meio de trocas, interações e conexões com o mundo ao nosso redor, por exemplo, a relação com as bibliotecas se torna fundamental, ou seja, elas são um espaço propício à construção das experiências individuais desempenhando também um papel fundamental no processo de desenvolvimento cognitivo de cada pessoa contribuindo para o acúmulo de conhecimento coletivo (Freitas, 2012FREITAS, Vera Aparecida de Lucas. Mediação: estratégia facilitadora da compreensão leitora. In: BORTONI-RICARDO, Stella Maris et al. (Orgs.). Leitura e mediação pedagógica. São Paulo: Parábola Editorial, 2012.).

A ação mediadora da experiência intersubjetiva evidencia as diversas partes envolvidas nessa prática, uma vez que cada indivíduo carrega consigo seu conjunto de “habitus” e tradições, que são moldadas pelas culturas, valores, lógicas contextuais e circunstanciais que os cercam. O envolvimento com a intersubjetividade está alinhado com o propósito de mediar a informação. A leitura, ao desempenhar esse papel mediador, tem o potencial de ampliar a esfera da visibilidade e do debate público, proporcionando a oportunidade de explorar e experimentar as relações com outros sujeitos.

Nesse contexto, o estudo do diário de Anne Frank pode servir como orientação para ações de mediação, especialmente aquelas relacionadas a projetos educacionais em ambientes como escolas e bibliotecas. Tais ações têm como foco principal a abordagem de temas relacionados ao combate à discriminação e à promoção do respeito pela diversidade. Portanto, o diário de Anne Frank se configura como um recurso educacional que estimula o desenvolvimento do pensamento crítico.

Lições valiosas podem ser extraídas das atividades de leitura do diário da jovem no contexto educacional, conforme detalhadas nos sites da Anne Frank Fonds (2022FRANK, Anne. O diário de Anne Frank. Rio de Janeiro: Record, 2022.c) e do Anne Frank House (2022a). Essas lições têm o intuito de fomentar o diálogo coletivo em relação a questões relacionadas à diversidade e à identidade. Elas abrangem:

  1. A análise da autopercepção e da percepção dos outros, promovendo uma reflexão sobre a multiplicidade de identidades que as pessoas possuem e a importância de abordar a diversidade de maneira construtiva;

  2. A compreensão das complexas questões envolvendo preconceito e discriminação, bem como a identificação das manifestações desses problemas, como o antissemitismo, o racismo e outras formas de discriminação que afetam os jovens;

  3. O estabelecimento de um diálogo com as narrativas de indivíduos de diferentes épocas, evidenciando que, embora a discriminação seja um problema histórico, é algo que pode ser combatido e analisado, especialmente no contexto complexo da Internet, no que diz respeito à disseminação de propaganda, estereótipos, preconceitos e discurso de ódio.

Essas lições contribuem para uma compreensão mais ampla da construção social da identidade humana, conforme destacado por Otto Frank ao se referir ao diário de Anne.

Espero que o livro de Anne tenha um efeito no resto de sua vida para que, na medida do possível em suas próprias circunstâncias, você trabalhará pela unidade e pela paz [...] não podemos mais mudar o que aconteceu. A única coisa que podemos fazer é aprender com o passado e perceber o que significa discriminação e perseguição de pessoas inocentes (Frank, 1970FRANK, Otto. Otto Frank’s mission: Education as the key to a better world. 1970. Disponível em: https://www.annefrank.org/en/about-us/what-we-do/otto-franks-mission/. Acesso em: 17 mar. 2023.
https://www.annefrank.org/en/about-us/wh...
, p.1).

Nesse contexto, a formação social do ser humano desempenha um papel crucial na compreensão de como a sociedade exerce influência sobre o comportamento, as crenças e os valores individuais. Essa formação se concretiza por meio do processo de socialização e da interpretação do mundo, do aprendizado e da internalização de valores culturais, bem como das experiências vivenciadas em diversas situações, como no caso da obra “O Diário de Anne Frank.”

A construção social, em particular o ato de leitura, exerce uma influência significativa na maneira pela qual as pessoas desenvolvem sua autoimagem e suas interações com os outros. A publicação do livro de Anne Frank e sua subsequente divulgação desempenham um papel fundamental na transformação social, uma vez que possibilitam a manutenção da consciência das atrocidades do passado no presente. Além disso, contribuem para a formação de novos princípios e valores que promovem a justiça social, a igualdade e a inclusão. Compreender a relevância da construção social do ser humano por meio da leitura é essencial para a construção de uma sociedade mais justa e democrática.

5 CONSIDERAÇÕES FINAIS

A pesquisa contribuiu procurando abordar a importância da leitura do livro intitulado “O Diário de Anne Frank” no contexto das ações de mediação da informação e leitura realizadas em bibliotecas com fins educacionais, em prol dos direitos humanos. No decorrer desta pesquisa, tornou-se evidente que a leitura do diário de Anne Frank não se limita à mera recordação do passado, mas desempenha um papel central ao instigar o leitor a refletir criticamente sobre o presente. Este livro, narrado por uma jovem entre os 13 e 15 anos, aborda questões profundas e bem definidas, com o potencial de afetar o leitor tanto no nível subjetivo quanto ao inspirar a troca de ideias sobre questões sociais que culminam em ações intersubjetivas.

A presente pesquisa explorou diversas abordagens à leitura do diário, revelando que a cada nova interpretação dos trechos narrados na obra, emergem novas curiosidades, reflexões e questionamentos que não estavam presentes nas leituras iniciais. Cada nova leitura proporciona uma perspectiva fresca, desvendando aspectos culturais e sociais que se relacionam com questões contemporâneas, tais como a discriminação racial, segregação, exclusão social e a perda da infância e juventude.

Deste modo, este processo de leitura configura-se como um círculo hermenêutico, no qual cada nova leitura nos conduz a horizontes anteriormente inexplorados. A leitura do diário não apenas enriquece a compreensão individual, mas também pode estimular uma interpretação coletiva, fundamentada no diálogo e no debate sobre questões sociais que afetam os leitores em suas interpretações pessoais.

Como exemplificado pelo diário de Anne Frank, um testemunho histórico repleto de implicações para o público que o interpreta, a obra abrange uma ampla gama de tópicos que podem ser debatidos e serve ao propósito social da leitura. A mediação da informação emerge como uma ferramenta valiosa para estabelecer relações dialógicas e envolver o público na conscientização e educação no contexto da biblioteca.

É evidente a importância da mediação da informação nas bibliotecas, uma vez que uma de suas funções primordiais, conforme delineado por Almeida Júnior e Bortolin (2008), reside na promoção da leitura, buscando instigar a todos, independentemente da faixa etária, o estímulo à leitura e ao aprendizado.

Portanto, é fundamental que a mediação da informação envolva práticas dialógicas, compartilhamento de experiências e debates entre indivíduos, abarcando tanto a leitura textual quanto a interpretação do contexto que envolve o diário, em conformidade com o conceito de “palavramundo” preconizado por Paulo Freire (1989FREIRE, Paulo. A importância do ato de ler: em três artigos que se completam. São Paulo: Autores Associados: Cortez, 1989.), que enfatiza a dimensão dialógica e experiencial da leitura com os sujeitos envolvidos.

Assim, o “Diário de Anne Frank” se revela como um recurso didático primoroso para a mediação da informação por meio da leitura, possibilitando ao público a compreensão dos eventos relativos à Segunda Guerra Mundial, promovendo a reflexão sobre a discriminação social e a defesa dos direitos das crianças e adolescentes. Além disso, proporciona espaço para discussões e a identificação sensível dos leitores com as experiências narradas.

REFERÊNCIAS

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  • ALMEIDA JÚNIOR, Oswaldo Francisco de; BORTOLIN, Sueli. Mediação da informação e da leitura. In: Terezinha Elizabeth da Silva. (Org.). Interdisciplinaridade e transversalidade em Ciência da Informação. Recife: Néctar, 2008.
  • ALMEIDA JÚNIOR, Oswaldo Francisco de. Mediação da informação: um conceito atualizado. In: BORTOLIN, Sueli; SANTOS NETO, João Arlindo dos; SILVA, Rovilson José da (Orgs.). Mediação oral da informação e da leitura. Londrina-PR: ABECIN, 2015.
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  • FINANCIAMENTO

    Não se aplica.
  • 1
    Ser ariano trata-se da ideologia acreditada por Hitler, na qual era defendida a pureza racial, ou seja, a não mistura de raças, acreditava-se que o verdadeiro alemão descendia do povo indo-iraniano, “esta, que originaria a separação de classes, foi à base inspiradora dos defensores do arianismo. O sangue agora seria o fator comprobatório para pertencer à classe do verdadeiro alemão (Couto, 2009).
  • CONSENTIMENTO DE USO DE IMAGEM

    Não se aplica.
  • APROVAÇÃO DE COMITÊ DE ÉTICA EM PESQUISA

    Não se aplica.
  • PUBLISHER

    Universidade Federal de Santa Catarina. Programa de Pós-graduação em Ciência da Informação. Publicação no Portal de Periódicos UFSC. As ideias expressadas neste artigo são de responsabilidade de seus autores, não representando, necessariamente, a opinião dos editores ou da universidade.

Editado por

EDITORES

Edgar Bisset Alvarez, Genilson Geraldo, Jônatas Edison da Silva, Mayara Madeira Trevisol, Edna Karina da Silva Lira e Luan Soares Silva.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    30 Ago 2024
  • Data do Fascículo
    2024

Histórico

  • Recebido
    23 Jan 2024
  • Aceito
    30 Abr 2024
  • Publicado
    05 Jul 2024
Creative Common - by 4.0
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