RESUMO:
O objetivo do trabalho é identificar as influências que os jogos eletrônicos têm sobre a construção da moral e da ética. Diante disso, buscamos captar a singularidade presente na relação que os jogadores estabelecem com o espaço virtual, utilizando como inspiração metodológica a cartografia. Na pesquisa, cinco jovens foram observados e relataram suas experiências com os jogos eletrônicos. A partir disso, identificamos que o jogador leva em conta aspectos éticos de forma diferenciada e propomos o conceito de ciberética, entendida como uma ética presente nos jogos eletrônicos que considera a capacidade do sujeito-jogador de avaliar as regras definidas e orientar o seu comportamento no mundo virtual.
Palavras-chave Jogos Eletrônicos; Desejo; Ética; Ciberética
ABSTRACT:
The objective of the work is to identify the influences that the electronic games have on construction of the moral and the ethics. Ahead of this, we search to catch the present singularity in the relation that the players establish with the virtual space, using as methodology inspiration the cartography. In the research, five young were observed and had told their experiences with the electronic games. From this, we propose the concept of cyberethics, understood as a present ethical procedure in the electronic games that the capacity of the citizen-player considers to evaluate the definite rules and to guide its behavior in the virtual world.
Keywords Electronic Games; Desire; Ethic; Cyberethics
Introdução
Os jogos eletrônicos apresentam-se como multiplicidade de definições, categorias e tipos. Cada jogo apresenta uma especificidade, um elemento de sedução, um design e um universo de possibilidades. Apesar disso, neste trabalho buscamos captar as singularidades presentes na relação que os jogadores estabelecem com esse espaço virtual.
A pesquisa realizada teve como objetivo identificar as influências que os jogos eletrônicos, principalmente os comerciais, têm sobre o processo de desenvolvimento no que se refere à construção da moralidade e da ética. Ao investigar as repercussões dos jogos sobre o jogador e sobre o desenvolvimento da moralidade, tornou-se necessário considerar o modo como o sujeito se relaciona e percebe o jogo, considerando suas experiências, emoções e aprendizagens, ou seja, foi preciso dar conta de um sujeito contextualizado em sua realidade, não apenas considerar a relação sujeito-jogo.
Nesse sentido, partimos do pressuposto que no espaço virtual dos jogos eletrônicos lidamos com princípios éticos, ou uma ciberética, constituídos nesse ambiente. Essa ciberética, por diferenciar-se da ética do mundo cotidiano, coloca em suspensão princípios morais castradores e possibilita a realização fantasmática de desejos. Para tanto, diferenciamos as experiências advindas do cotidiano daquelas vividas no mundo virtual dos jogos eletrônicos, ao mesmo tempo em que as consideramos reais.
O mundo virtual dos jogos é um lugar baseado em aspectos da realidade, sem ser cópia, o que possibilita ao sujeito identificar-se e sentir-se personagem ativo desse espaço. Assim, podemos entender que realidade virtual constitui-se como uma réplica simbólica da realidade (Bret, 1997), mas que, ao mesmo tempo, não se confunde com ela, por isso torna possível a cisão entre a vida cotidiana e o mundo virtual do game.
Aspectos Metodológicos da Pesquisa: contribuições da cartografia
Diante da complexidade apresentada pelo objeto de pesquisa que se constitui no entrelaçamento entre os jogos eletrônicos, as relações estabelecidas pelos sujeitos-jogadores e as questões éticas e morais, uma metodologia plausível para dar conta de tal objeto precisa trabalhar numa perspectiva ampliada, que permita definir trilhas e prever movimentos.
Nesse sentido, a cartografia apresenta-se como um “transmétodo”, “[...] capaz de mapear uma multiplicidade e captar as singularidades. Como se fora desbravar os trajetos transversais dos devires, transitar na trilha do rizoma, numa operação permanente de ir além da captura moral (bom, verdadeiro)” (Lopes, 1996 apud Robinson, 2003, p. 312).
A partir disso, a cartografia dos jogos eletrônicos se produziu por meio de “conceitos, depoimentos e compromissos” (Kirst et al., 2003, p. 98). Os conceitos foram definidos a partir da investigação teórica e do diálogo com os autores e pesquisadores dedicados às temáticas envolvidas neste trabalho. Os depoimentos provieram dos sujeitos envolvidos no campo de pesquisa e do próprio pesquisador, todos comprometidos e envolvidos com o objeto de estudo. Os sujeitos comprometidos com os jogos, buscando diversão, competição, interação e o pesquisador com a composição de um território, visando a identificar suas dobras, suas multiplicidades e singularidades, considerando perceptos e afectos emergidos.
A pesquisa foi submetida e aprovada pelo Comitê de Ética na Pesquisa em Seres Humanos, da Universidade Federal de Santa Catarina, pois envolveu a participação de cinco sujeitos na faixa etária entre 12 e 15 anos, quatro do sexo masculino e um do feminino, que frequentavam o Ensino Fundamental ou Médio. A seleção dos sujeitos foi realizada por meio da indicação de jovens jogadores assíduos por pessoas conhecidas do pesquisador. A partir da indicação, foi feito o contato e o questionamento sobre o interesse do sujeito em participar da pesquisa e posterior solicitação de autorização dos responsáveis.
Além disso, os critérios fundamentais para a participação desses sujeitos foram: o interesse em participar da pesquisa e disponibilidade de tempo; o acesso a um computador ou console de videogame e jogar mais de 3 (três) horas por semana.
A pesquisa foi desenvolvida na residência dos sujeitos, visando a estabelecer um espaço agradável, familiar e de confiança, bem como evitar o deslocamento para outros espaços, por um período de quatro meses sendo realizada pelo menos um visita quinzenalmente a cada sujeito da pesquisa, a qual durava em média uma hora.
A aproximação com os sujeitos-jogadores visou identificar como jogos estão inseridos no seu contexto, quais são as dimensões subjetivas envolvidas e quais suas relações com a produção do conhecimento. Isso a partir da compreensão de que a cartografia é um “[...] movimento de resgate da dimensão subjetiva da criação e produção do conhecimento” (Kirst et al., 2003, p. 92).
Inicialmente, o pesquisador assumiu a postura de um cartógrafo, adentrando o mundo dos jogos eletrônicos como um ser ativo, buscando se colocar no lugar de um jogador para compreender as relações que podem ser estabelecidas e os jogos. Assim sendo, o pesquisador jogou sistematicamente pelo menos cinco horas por semana, por um período de seis meses. A partir disso, eram feitos registros sobre a dinâmica dos jogos, a narrativa, as impressões, as sensações e os sentimentos relacionados à interação com os jogos. Essa etapa possibilitou uma aproximação com o universo dos jogos eletrônicos e, juntamente com os referenciais teóricos, permitiu discutir, por meio de entrevistas, as relações estabelecidas pelos jogadores com os jogos eletrônicos e como estes lidam com os aspectos morais apresentados nesses espaços virtuais.
Para delimitação do campo de pesquisa definiu-se um jogo específico para, a partir do mesmo, entender as relações que os sujeitos estabelecem com os jogos eletrônicos. Entretanto, a cartografia resultante não se limita apenas a esse jogo, o mesmo foi simplesmente o ponto de partida. Nesse sentido, optou-se pelo jogo Counter Strike (CS) devido a sua popularidade e por conter questões de interesse como a violência e comportamentos inadequados segundo os princípios éticos de nossa realidade cotidiana.
A pesquisa de campo incluiu observações naturalísticas das relações estabelecidas pelos adolescentes com os jogos eletrônicos, no momento em que jogavam. Estas observações foram feitas junto com os sujeitos, buscando capturar os modos e as linhas que perpassavam a realidade subjetiva construída a partir da interação nos mundos ficcionais criados pelos jogos.
Outro procedimento utilizado foi a realização de entrevistas estruturadas. Quanto à dinâmica das entrevistas, a proposta foi criar vários momentos de interação com os sujeitos e observação destes, visando à familiarização e à criação de um espaço de confiança.
O roteiro da entrevista foi organizado observando as categorias de análise: relação com o personagem do jogo; realidade e virtual, realização dos desejos; ética, valores e conteúdos morais, incluindo a identificação do perfil do sujeito-jogador. Ao mesmo tempo, as questões propostas no roteiro das entrevistas consideraram a opinião, os sentimentos e expressões dos sujeitos-jogadores como referência para discussão dos aspectos éticos e morais em relação ao jogo.
A partir da interação com os sujeitos-jogadores, sobretudo, esta pesquisa criou um espaço de comunicação com os jovens e buscou valorizar a sua cultura, propiciando um espaço mútuo de reflexão e discussão sobre o fenômeno dos games, a partir da aproximação com esse universo partilhado pelos jovens da pesquisa.
Além disso, levou-se em consideração que as relações estabelecidas entre os sujeitos-jogadores e os jogos eletrônicos são singulares e diferentes para cada um. Desse modo, apresentamos nesse trabalho algumas possibilidades de relação, que não podem ser generalizadas. Tendo em vista que também podemos identificar um endereçamento que inclui sujeitos com algumas características específicas, como suporte parental, habilidades técnicas, acesso a cultura digital, domínio e familiaridade com os recursos de comunicação mediada.
Perspectivas e Reflexões Filosóficas e Psicanalíticas sobre a Moral e a Ética
A partir das teorizações de Freud (1997), podemos pensar que o surgimento da civilização humana pautou-se, entre outros aspectos, na coerção e repressão dos instintos humanos, tendo em vista que ele identifica no homem tendências destrutivas, antissociais e anticulturais, as quais podem ser fortes o suficiente para determinar o comportamento de alguns homens.
Para Freud (1940), a ética e a consciência moral não são naturais ou inerentes ao homem e, sim, são criadas na convivência em comunidade para regular os relacionamentos, visando a dominar as forças da natureza e a agressividade humana, bem como garantir a ordem e a sobrevivência.
Nessa mesma direção, Nietzsche (1998) questiona a naturalização da moral como algo que faz parte do ser humano e busca a origem do nosso bem e do nosso mal. Assim, propõe uma crítica aos valores morais.
Os valores morais construídos socialmente permeiam nossas ações e tomadas de decisões no mundo cotidiano no qual vivemos e à sociedade em que convivemos. Entretanto, nos mundos virtuais, essa moral construída e introjetada que, muitas vezes, contraria nossos desejos, pode ficar suspensa quando estamos jogando.
Assim, entendemos a moral em relação ao bem e ao mal em determinada circunstância, tempo e espaço, configurando-se como um conjunto de regras e deveres. Ao mesmo tempo, em nossa breve revisão e elucidação de opções teóricas, cabe citar as definições propostas por Junqueira (2006, p. 28). Para essa autora, a ética investiga os princípios que
[...] determinam, orientam e motivam o comportamento humano e que refletem normas e valores e, por meio desse processo de investigação, procura fundamentar e definir a natureza do Bem e do Mal, bem como propor um método para sua distinção e para a escolha entre um e outro.
Nesse sentido, o comportamento ético consistiria na realização de reflexões sobre os determinantes de nosso comportamento moral. E Junqueira (2006, p. 29) entende moral como um
[...] sistema de leis e de valores estruturados pela ética que pertence a uma determinada cultura e um determinado tempo histórico, que tem como característica principal organizar as relações entre os indivíduos de uma determinada comunidade, definindo e prescrevendo comportamentos.
As concepções apresentadas por Junqueira são importantes para compreender e transpor a ética da vida cotidiana para o mundo virtual, pois a ética do jogo ou a ciberética também determina e orienta o comportamento humano nesse mundo. Ao mesmo tempo em que temos comportamentos e ações realizadas no mundo virtual, motivados e orientados pela ciberética, temos interações relacionadas ao universo dos games que podem ultrapassar as fronteiras da realidade virtual, por exemplo, quando temos comunidades de jogadores e interações mediadas ou presenciais relacionadas a um jogo, seja para trocar dicas, participar de campeonatos ou partilhar experiências. Essas interações envolvem uma cultura que se faz presente na realidade e particulariza um grupo com interesses e experiências próximas.
Nas duas situações, a vivência de experiências nos mundos virtuais dos jogos e a participação em uma comunidade de jogadores, temos as regras do jogo e de convivência estabelecidas pelos jogos e jogadores, ambas configuradas como um sistema de leis e valores influenciados pela cultura e contexto histórico dos jogadores. Desse modo, o consumo e aspectos financeiros podem se fazer presentes, como em situações nas quais jogadores acumulam pontos em jogos e vendem na Internet. Assim, temos a ação no mundo virtual impregnada de valores e propósitos relacionados à vida cotidiana e que ganham novas funções que escapam da concepção do jogo ser uma atividade livre e desinteressada descrita por Huizinga (1993).
Assim, nessa concepção de moral que determina, orienta e motiva comportamentos, temos presente a ideia das leis como proibição daquilo que o ser humano poderia fazer. A partir dessas leis, segundo a psicanálise, teríamos a consciência moral, que faz com que os homens obedeçam, então, a essas leis (Junqueira, 2006).
Nesse sentido, o Superego é a instância proposta por Freud que “[...] representa a moral social do indivíduo, como aquele que baseado em um ideal de ego vigia e censura o ego” (Junqueira; Coelho Junior, 2005, p. 108).
Todavia, há caminhos neste trabalho para o entendimento de uma ética que vai além do dever e da reverência às leis morais. A ética é “[...] uma tipologia dos modos de existência imanentes, [que] substitui a moral, a qual se relaciona sempre com a existência de valores transcendentes. [...] A oposição dos valores (Bem/Mal) é substituída pela diferença qualitativa dos modos de existência (bom/mau)” (Deleuze, 2002, p. 29).
Para Deleuze (2002, p. 30), a lei moral é “[...] um dever, a obediência é o seu único efeito e sua única finalidade [...] não nos traz conhecimento algum, não dá nada a conhecer”. Sob essa perspectiva, o autor descreve que a lei é sempre “[...] a instância transcendente que determina a oposição dos valores Bem/Mal, mas o conhecimento é sempre a potência imanente que determina a diferença qualitativa dos modos de existência bom/mau” (Deleuze, 2002, p. 31).
A partir da explanação sobre o conceito de ética e moral, em nosso trabalho, partimos do entendimento da moral como a relação entre o bem e o mal, o certo e o errado, definida dentro de um contexto social e cultural, introjetada no sujeito a partir dos processos socializadores e educacionais. A ética transcende a moral, inclui o sujeito e as suas vivências, enquanto um processo autônomo, que orienta o modo de existência dos sujeitos, incluindo princípios universais e a consciência.
Ser ético supõe a capacidade de avaliar as situações, colocar-se no lugar do outro, o respeito mútuo, bem como os princípios de justiça; por não ser regido, o fato de ser ético considera o contexto e as razões, exigindo uma postura ativa, reflexiva e consciente do sujeito. A ética envolve o raciocínio, a reflexão e um fazer consciente relacionado ao modo de existência.
A introjeção dos valores, a partir da educação e o seu registro na memória, fazem com que o próprio homem regule o seu comportamento, sem envolver a reflexão e análise qualitativa de seu modo de existência. E, quando algum valor é burlado, a responsabilidade e a pré-concepção de que o homem é confiável gera o sentimento de culpa, muitas vezes sem se ter clareza sobre suas consequências e conhecimento, pois o que está em destaque na vivência é a lei moral e não a ética..
A partir da noção da moral como dever que busca a obediência, Nietzsche (1998, p. 59) afirma que o homem é um “[...] ser que mede valores, valora e mede, como o ‘animal avaliador’”. Segundo esse mesmo autor (1998), os sacerdotes ascéticos direcionam a culpa para si, “somente você é culpado de si” (p. 117) e o ressentimento volta-se também para si, isso nos torna doentes e aproveita-se de nossos instintos para o autodisciplinamento e a autovigilância. Somos questionados constantemente por um ideal do eu, que cria uma imagem ideal de quem deveríamos ser, uma imagem do eu do Bem. Esse ideal foi construído para nós e introjetado, funcionando como um controle interno e uma unidade de medida subjetiva. E, de acordo com Nietzsche (1998, p. 72), o que se consegue com isso é “[...] o acréscimo do medo, a intensificação da prudência, o controle dos desejos: assim o castigo doma o homem, mas não o torna ‘melhor’”.
Nesse cenário de forças muitas vezes opostas, com as quais o ser humano precisa lidar para, ao mesmo tempo, realizar-se, dar vazão aos seus desejos, não se sentir culpado observando os princípios morais, é necessário encontrar espaços de regulação e equilíbrio.
Desde que somos inscritos no mundo, somos bombardeados e submetidos a valores e normas que regulam nosso comportamento. Os valores morais atordoam-nos e geram culpa; somos limitados na nossa capacidade de ser e colocar o corpo no seu limite para viver. Assim, no sentimento de vazio que nos engole, vivemos em busca de uma ilusão, da promessa de um futuro ou, ainda, inscrevemo-nos num espaço virtual para a realização de experiências fantasmagóricas, na busca por dar vazão aos instintos e energias reprimidas.
De outro modo, sofremos porque somos ignorantes das causas e reduzidos ao consciente dos acontecimentos logo, consequentemente, condenados a sofrer os efeitos, sem conhecer as causas. Assim, para acalmar a consciência, são adotadas três ilusões: a ilusão das causas finais - a consciência provoca uma inversão e toma os efeitos como as causas; a ilusão dos decretos livres - a partir dessa inversão toma a si como causa primeira e invoca o seu poder sobre o corpo; ilusão teológica - quando não se pode imaginar como a causa primeira, invoca-se um Deus “[...] dotado de entendimento e vontade, operando por causas finais ou decretos livres, para preparar o homem para um mundo na medida de sua glória e dos seus castigos” (Deleuze, 2002, p. 26).
Quando pensamos nos jogos eletrônicos e no mundo virtual, podemos sugerir uma outra ilusão: a ilusão do virtual que substitui a ilusão teológica, pois nesses mundos Deus não está presente, constitui-se como um mundo paralelo, no qual as causas e efeitos são restritas a ele, o que nele é feito não gera culpa e não se submete à moral, pois se separa da realidade. Nesse mundo paralelo Deus é substituído em certa instância por quem concebe e projeta o jogo, pois este propõe regras, define os cenários e as possibilidades de ações, configurando graus de liberdade. Porém, escapa às determinações de alguém, a possibilidade escolha do jogo, o que captura o sujeito, o significado, as emoções e o envolvimento do jogador que constitui vivências virtuais particulares.
Cartografia dos Jogos Eletrônicos: percepções e discursos
Atuar em um jogo de primeira pessoa de atirar, em uma situação de combate, e matar os adversários não tem o mesmo impacto que se pode imaginar na vida cotidiana. Essas ações amorais, segundo nossos pressupostos morais da vida cotidiana, ganham outro sentido relacionado ao cumprimento de uma missão, podemos reiniciar e parar o jogo em qualquer momento e as consequências estão restritas ao jogo.
De acordo com Meneghetti (2006, p. 4), os jogos de atirar em primeira pessoa, como o CS, proporcionam “[...] virtualmente, uma das emoções mais intensas que o ser humano poderia experimentar - a última fronteira do limite social, moral e ético - que é matar ou ter a própria vida subtraída por alguém”. De modo geral, a vida ganha outro sentido no jogo e matar, nesse espaço virtual, passa a ser apenas um procedimento necessário para cumprir a missão e ganhar. Pareceu-nos claro que, nesse espaço, não podemos pensar em princípios morais, tendo em vista que cada jogo tem suas regras e leis. Operam no jogo questões éticas relacionadas exclusivamente a esse espaço virtual, o que envolve a capacidade de optar, tomar uma decisão e comportar-se de modo a cumprir as missões do jogo, considerando as regras definidas pelo jogo.
Apesar de identificarmos valores que são favoráveis ao desenvolvimento da moralidade, como a cooperação com o grupo no qual se faz parte ou libertar reféns, estes valores têm sentidos e significados diferentes daqueles da vida cotidiana, pois são também estratégias para atingir uma meta do jogo.
Por isso, o morrer e o matar no jogo ganham outro sentido, pois fazem parte de estratégias para vencer o jogo cumprindo a missão estipulada. Assim, a forma como lidamos com essa temática não ganha a profundidade da vida cotidiana. Do mesmo modo que matar na vida mundana não tem o mesmo sentido e significados para as pessoas, dependendo da cultura e da história de vida, bem como o motivo pelo qual se mata, essa ação pode ganhar diferentes sentidos.
A noção de morte enquanto passagem sem volta, partilhada na vida mundana e pregada pelo catolicismo, no jogo, torna-se a possibilidade de um retorno sem fim de maneira quase imediata. Ao morrer no jogo, basta iniciar uma nova partida. De maneira similar, quando se mata um outro avatar, este pode ganhar sua vida na outra partida. Sabe-se que aquilo é apenas uma ficção e que pode não ter consequências concretas na vida cotidiana.
Assim, nos tornamos humanos-deuses, com poderes que não podemos nem pensar em ter na vida cotidiana, como controle sobre o nosso reviver nesse planeta. Dessa forma, lidar com questões profundas de nosso mundo torna-se divertido e simples no espaço virtual.
A partir da cartografia construída também pelas vivências do pesquisador, podemos afirmar que CS é um jogo simples que não exige a leitura de uma manual ou uma explicação de como jogar, pois as ações mais comuns eram caminhar e atirar. A grande questão era como ganhar mais habilidade nas ações de combate para vencer o desafio dentro tempo.
Durante as partidas, destaca-se que atuar em uma situação de combate e matar os adversários não tinha o mesmo impacto que poderíamos imaginar na vida cotidiana. Essas ações amorais, segundo nossos pressupostos morais da vida cotidiana, ganhavam outro sentido relacionado ao cumprimento de uma missão e exercício para aprimoramento das habilidades motoras e estratégicas relacionadas às ações previstas no jogo.
Nos jogos nos tornamos personagens do mundo virtual e, a partir dos diálogos estabelecidos com os jovens, encontramos diferentes formas de se relacionar com o personagem, sem que pudéssemos identificar reflexos sobre a forma como o sujeito lidava com as regras do jogo ou como essas práticas intervinham em seu comportamento na vida cotidiana. Tendo em vista que para todos os jovens o virtual não se confundia com a realidade e, mesmo ele se colocando dentro do jogo, tinham clareza de que aquelas vivências não passavam de uma ficção.
Nesse sentido, Dark Vader1 afirma: “[...] eu faço como se eu tivesse dentro do jogo”. Assim, ele se imagina como o próprio personagem, diferentemente de Kakashi que não se imagina no jogo e sim no controle do personagem.
Porém, Goku faz menção ao fato de que a relação que estabelece com o personagem pode ser influenciada pela quantidade de tempo que se permanece jogando, pois ele imagina que é o personagem, porque fica jogando tanto tempo que acaba se envolvendo, “[...] às vezes parece que deixamos de viver aqui e passamos a viver naquele mundo. No momento que jogo imagino que estou lá dentro”.
Além disso, exploramos a maneira como a escolha do personagem é feita e identificamos que essa escolha considera preferências pessoais relacionados aos utensílios utilizados pelo personagem e à aparência física do mesmo. Segundo Dark Vader, “[...] eu escolho o personagem que eu gosto, no RPG eu gosto dos que usam espada, magia e arco-flexa. Acho legal e são mais fortes”. Do mesmo modo, Goku escolhe o personagem, geralmente, considerando “[...] quem é o mais forte e o que dá mais vantagem na partida”. Assim, é importante que o personagem tenha atributos que favoreçam o bom desempenho no jogo, bem como atenda a alguns aspectos que são considerados pelos jovens: a caracterização, o tipo de arma utilizada pelo personagem e o perfil físico.
No CS, além do personagem, é preciso escolher de que lado se está, se dos terroristas ou dos Contra-Terroristas (CTs), ou seja, se estamos do lado do bem ou do mal. Os sujeitos de nossa pesquisa preferem estar como CT, tanto porque estão combatendo bandidos, como porque julgam que são mais fortes e sempre vencem, porém não identificamos aversão ou preconceito com relação a assumir o papel de terroristas no jogo.
Se utilizarmos como base os referenciais morais presentes em nossa sociedade, poderíamos optar apenas por ser o CT, entretanto, identificamos que os jovens atuam como terroristas, desprendendo-se dos valores e dilemas morais da realidade.
Segundo Dark Vader:
[...] eu quase nunca jogo como terrorista. Porque terrorista tem que armar bomba e não tem tantas armas legais e o CT tem que desarmar a bomba a tempo o que é mais tático. Gosto mais de desarmar e tem um tempo para eu matar todos os terrorista e conseguir desarmar a bomba, porque se não eu perco... perco não. E se perco, perco só aquela rodada porque têm várias.
A partir dessa resposta, observamos que na decisão sobre em qual lado se deve joga não são consideradas questões morais e sim preferências pessoais e os aspectos táticos relacionados ao jogo.
Porém, em outro momento de interação, Dark Vader afirma que “[...] no CS eu sou o contra-terrorista, porque eu acho que é menos ruim que ser terrorista, aí é como se eu fosse um policial matando bandido”. Aqui identificamos um juízo de valor, pois ser bandido não é algo esperado socialmente. Assim, Dark Vader faz uso dos valores morais para escolher seu personagem; possivelmente, ser CT justifica para si, de algum modo, o fato de ter que matar, mesmo que em um espaço virtual de ficção. Isso se relaciona até mesmo à forma como Dark Vader se relaciona com o personagem “[...] eu imagino que sou eu, como se aquilo fosse meu e eu pudesse fazer coisas no jogo” e ainda imagina que os personagens equivalem a pessoas do mundo cotidiano. Para ele, o contra-terrorista é como “um cara no mundo, que quer acabar com os bandidos”. Logo, se é ele quem está no jogo, é preciso fazer escolhas considerando, adaptando ou burlando seus referenciais éticos.
Aqui temos a ciberética influenciada por questões éticas presentes na realidade, mais densa eticamente que o mundo virtual. Assim, a tendência é que tenhamos a passagem de valores e aspectos éticos da realidade para o mundo virtual.
Apesar desse aspecto moral, o argumento e a justificativa mais relevante refere-se à própria estratégia do jogo, como destaca Kakashi, que escolhe ser “[...] contra-terrorista, porque a arma deles são as melhores e eles sempre vencem. O visual é melhor. Além dos equipamentos tem... coisas tipo equipamento para desarmar a bomba”. Nesse sentido, não evidenciamos aspectos morais nessa escolha, são evidenciados fatores relacionados ao jogo e à estratégia utilizada. Além disso, ele afirma que costuma deixar o jogo na opção de autoescolha, em que o sistema define de que lado ele estará no jogo e Gign também não demonstra importar-se de qual lado está, chegando a permitir que o jogo o defina. Para ele, ao mudar de lado, o que modifica é apenas a missão no jogo. Assim sendo, não evidenciamos um julgamento moral entre o que é certo e errado nos grupo definidos pelo jogo.
Por outro lado, Kakashi, ao se imaginar no comando do jogo, justifica a ação de matar praticada por sua personagem, algo que convencionalmente não é certo, afirmando que “[...] no CS eu não me imagino matando ninguém, é como se eu tivesse controlando”.
Quando temos aspectos morais presentes na escolha do lado que se está (terrorista ou CT) ou na avaliação dos comportamentos desempenhados no jogo, revelam-se valores da realidade repercutindo sobre o virtual, porém sobressai que as escolhas são feitas considerando os desafios e as possibilidades de vencer.
Essas diferentes perspectivas não nos permitem pensar em uma moral do jogo, pois toda moral “[...] é composta por regras e princípios” (La Taille, 2007, p. 37). E quando lidamos com regras podemos não conhecer as razões de ser, pois elas apenas nos informam sobre os deveres, ou seja, o que deve ser feito. No jogo, o sujeito faz escolhas, define estratégias, pode burlar regras e assumir diferentes papéis.
Assim, evidencia-se a perspectiva ética, definida por Deleuze (2002), como um modo de existência imanente que substitui a moral, pois desarticula o sistema de julgamento e considera qualidades nos modos de existências possíveis.
Outro aspecto investigado refere-se à relação que o jogador estabelece com o espaço virtual. Espaço que se relaciona com os jogos eletrônicos, porque as ações dos jogadores nesse espaço existem em potência, mas não em ato. Partimos da consideração de Levy (1999, p. 47) de que “[...] é virtual toda entidade desterritorializada, capaz de gerar diversas manifestações concretas em diferentes momentos e locais determinados, sem contudo estar ela mesma presa a um lugar ou tempo em particular”.
Desse modo, o virtual permite outras relações com o tempo, que não o cronológico. Assim, é possível experimentar vivências intensivas e repetitivas. Podemos matar sem sofrer as penas da vida cotidiana, morrer e viver, envelhecer e rejuvenescer.
De acordo com Dark Vader, podemos fazer coisas ruins, segundo nossos valores morais e éticos, pois “[...] mesmo a coisa sendo ruim, estamos no virtual, então não acontece nada, na vida cotidiana se matamos uma pessoa tu pode ir preso. Ah! E pode morrer também”. Isso porque, segundo Levy (1996), a virtualização fluidifica as distinções e aumenta o grau de liberdade. Assim, permite viver coisas que não podemos na vida cotidiana.
No que se refere à borda entre a realidade e o virtual, os jovens revelam distinguir muito bem esses limites. Não revelaram confusão entre esses mundos. Segundo Dark Vader, “[...] no jogo pode porque é no virtual, porque não acontece nada se tu matar um bonequinho virtual, mas se tu mata alguém na vida cotidiana tem consequências. E no jogo tu mata, morre e volta”.
Segundo Kakashi, podemos fazer coisas ruins no jogo “[...] porque é uma ficção, no jogo podemos fazer o que quiser, na vida real há leis”. Nessa fala temos a diferenciação entre as leis da realidade e as regras do jogo, que não precisam obedecer e orientar-se pelos valores e regras de nosso mundo. Há um descolamento entre os conteúdos morais e éticos da realidade e os jovens identificam essa diferença, porque conseguem se descolar de seus valores e libertar-se dentro do mundo virtual.
Além disso, encontramos a forte concepção dos sujeitos-jogadores de que o virtual é uma mentira, justamente em oposição à realidade e à verdade. Esse descolamento acaba por autorizar comportamentos antiéticos e amorais nos jogos, porque lá eles também são mentiras, ou seja, não existem para o mundo cotidiano, pelo menos concreta e fisicamente. De acordo com Kakashi: “Normalmente no jogo tem coisas que você nunca viu, por isso você sabe que não é real. É legal imaginar coisas diferentes. Mas não tem nada a ver com a vida real”.
Essas mentiras criam um campo para a produção de impessoalidades singulares, concepção resgatada de Birman (2000), que evidencia a despersonalização do sujeito no mundo virtual, desviculando-o de seu eu real, mas que, ao mesmo tempo, carrega e é influenciado pelas experiências, características e suas marcas, que tornam essa impessoalidade singular. Contraditoriamente, ao mesmo tempo em que temos a despersonalização do sujeito no virtual, este assume um personagem que pode distanciar-se ou aproxima-se de seu eu real, e de alguma forma torna-o singular, pois é uma extensão de si mesmo no mundo virtual. Entretanto, essa extensão de si não é o seu eu do mundo cotidiano fora dos jogos.
Kakashi percebe que o que acontece dentro do jogo não o pode atingir, por isso não tem medo de coisas que teria na vida cotidiana, como assalto. E Lara, quando questionada sobre a diferenciação entre a realidade e o virtual, chega a expor seu conflito com a mãe, por esta acreditar que o virtual pode se confundir com a realidade. Lara tem clareza com relação a essa diferenciação “[...] porque é de mentirinha, é só no computador. Eu sei que é diferente, minha mãe não entende porque a gente gosta disso, mas já falei pra ela que é só diversão, como brincadeira polícia e bandido na rua. Ninguém se machuca de verdade”.
O virtual cria uma realidade intensiva e ficcional, permitindo viver emoções e sensações que não têm consequências concretas para a vida cotidiana como morrer, machucar-se, ser preso.
Ao avaliar os aspectos negativos, segundo os princípios morais da realidade, os jovens afirmam, principalmente, que não é moralmente correto: matar; armar bomba e fazer reféns.
Além disso, com relação ao que julgam não ser certo no jogo ou o que poderia ser melhor, apontam questões como o fato de que o jogo “[...] devia ter outras opções que não só matar, tipo dá uns corretivos, prender, algo assim” (Dark Vader).
A temática matar é o principal dilema moral presente no CS e quando questionamos os jovens sobre o que eles acham de matar na vida cotidiana, tivemos respostas como a de Dark Vader: “Na vida real? Eu acho que se for bandido até que ele merece. Ele matou alguém. Mas se alguém ganha um tiro sem saber daí é injustiça. Só vale se a pessoa merecer muito”. Essa resposta revela que não está em jogo apenas o que é certo ou errado, a lei, e sim os princípios de justiça, os motivos, ou seja, evidencia-se uma reflexão acerca da situação, observando as questões éticas.
Goku revela aversão e tem clareza de que matar é algo errado, para ele “[...] matar na vida cotidiana é uma coisa absurda, pois ninguém tem direito de tirar a vida de uma outra pessoa”. E, para ele, matar no jogo “[...] faz parte da estratégia e a gente gosta de fazer isso no jogo porque deve ter alguma coisa do inconsciente”.
A concepção sobre o que seja matar no jogo não obedece aos aspectos éticos e morais da realidade, pois, no jogo, morrer e matar vincula-se a outra dimensão que o distingue do que isso significa na realidade. Para todos os jovens entrevistados, matar no jogo relaciona-se ao desafio e a ganhar o jogo, quase não encontramos referências a preceitos morais ou julgamento de que esse ato seja errado.
Entretanto, ainda encontramos julgamentos influenciados pelos valores morais presentes em nossa realidade sociocultural, como na fala de Lara que expressa: “[...] no CS eu só mato quando tô em perigo, pra sobreviver, senão eles me matam e não consigo cumprir a missão”. Assim, revela-se um senso de proteção da vida e o matar como algo ruim, evidencia-se uma opção por não matar quando isso não é estratégico no jogo. Não é um matar por matar, mas um matar para cumprir a missão.
De outro modo, os jovens destacam que o que é certo no CS e que poderia ser aplicado na vida cotidiana é o senso de grupo, a cooperação, o trabalho coletivo.
Nesse sentido, Smith (2006) defende que os jogos de multijogadores não são apenas arenas da expressão ou experimentação pessoal, mas oferecem possibilidades para compreensão da cooperação como forma de manutenção de bens coletivos. Do mesmo modo, esse pesquisador discute que tais jogos de múltiplos jogadores criam um número de dilemas sociais que podem ser compreendidos e resolvidos usando o conhecimento derivado dos estudos das comunidades da vida cotidiana.
A partir dos discursos dos sujeitos-jogadores, evidenciamos que os conteúdos morais mais relevantes no CS referem-se ao matar como o errado ou ruim, mas que não tem o mesmo significado que na realidade, e o trabalho em equipe como certo e bom, enquanto um exercício para a vida cotidiana.
Por uma Ciberética dos Jogos Eletrônicos
A palavra cibernética tem origem grega kybernetike que significa aproximadamente pilotagem. Mais especificamente, o prefixo ciber, também de origem grega, significa comandar.
Assim, podemos nos apropriar da palavra cibernética e atualizá-la para o plano dos jogos eletrônicos e da ética, como uma ciberética, como um modo de governo da extensão do sujeito no mundo virtual.
Esse conceito é proposto a partir de totalidades fragmentárias que não tem a intenção de se ajustar umas às outras. Assim, chegamos a conceitos singulares que não se tornam universais, justamente por considerar o modo individual que cada sujeito-jogador interage com o jogo eletrônico.
Para compreender as relações éticas do jogo eletrônico é preciso considerar a maneira particular que cada sujeito-jogador organiza os conteúdos do jogo e suas questões éticas, ou seja, como ele as significa e como lida com os conteúdos presentes no jogo. De modo geral, durante a pesquisa, consideramos os modelos que organizavam os saberes e os comportamentos relacionados aos jogos de cada sujeito-jogador. Essa perspectiva justifica-se, por exemplo, porque os jovens de nossa pesquisa lidam com o valor da morte no jogo de forma diferente, alguns matam só quando é necessário e estratégico no jogo, outros matam por diversão. Mesmo que em ambos os casos o ato de matar não tenha o mesmo significado e implicação que na realidade, temos posturas ciberéticas diferenciadas.
Por isso, enfatizamos o modo como cada sujeito se relaciona com os jogos e significa seus conteúdos, pois cada um que se inclui nesse processo leva suas experiências, conhecimentos, emoções; mesmo que estas não tenham um papel central, constituem o pano de fundo do comportamento no mundo virtual.
Porém, o caminho inverso passa pelo filtro ético da realidade. Os jovens de nossa pesquisa não transferem diretamente os valores recompensados no jogo, como sequestrar ou matar pessoas, como uma experiência e um saber que possam ser aplicados na realidade. Tanto porque na vida cotidiana lidamos com uma ética diferenciada, como por ter bem delimitada a borda entre a realidade e o virtual. Assim, podemos ter conhecimentos construídos a partir dos jogos virtuais aplicados na realidade, mas estes passam pelo filtro ético do sujeito.
Precisamos, também, considerar que, no universo dos jogos eletrônicos, não podemos trabalhar com a ideia da moral enquanto um conjunto de regras e leis, pois estas se modificam de um jogo para outro. A narrativa e o próprio tipo de jogo vão definir as regras que compõem uma moral singular. Por isso, precisamos pensar em uma ciberética, como uma ética dos jogos eletrônicos que consideram a capacidade do sujeito-jogador de avaliar as regras definidas e orientar o seu comportamento no mundo virtual. Essa capacidade envolve a avaliação das situações, a consideração dos elementos dos jogos e podem ignorar a moral da realidade. A ciberética se aplica ao universo dos jogos eletrônicos, por isso não se confunde com o mundo cotidiano.
Esse conceito de ciberética retoma a autonomia do sujeito no mundo virtual, enquanto um ser capaz de colocar-se, julgar as situações apresentadas e agir considerando as diferentes variáveis implicadas em cada situação do jogo.
Assim, ser ciberético implica avaliar as situações apresentadas, considerando suas regras, as possibilidades, as estratégias e o desafio a ser vencido, bem como o contexto virtual para adotar uma postura ao longo do jogo.
De certa forma, a ciberética evoca uma compreensão lógica e coerente para autogoverno, visando a vencer os desafios do jogo, e não depende de uma autoridade externa, pois pressupõe a autonomia do sujeito-jogador. Entretanto, ao invés do valor estar na moral, ele passa a concentrar-se no autogoverno e nas estratégias para superar os desafios do jogo.
E, do mesmo modo, matar no jogo ganha o sentido de estratégia para vencer, transforma-se em uma ação que se difere do matar na vida cotidiana. Nesse sentido, Lovadine (2008, s/p) afirma que “[...] matar um personagem - ou seja, uma figura completamente desprovida de qualidades e faculdades existenciais -, seja pela forma mais cruel que possa existir, é um ato vazio em todos os campos do pensamento”. Por isso, não é possível avaliar esse comportamento sob parâmetros éticos da realidade, pois essa ética não dá conta de abarcar a especificidade do âmbito ficcional e virtual do jogo eletrônico.
Ao imergir no jogo, o sujeito faz julgamentos que podem levar em consideração suas experiências, conhecimentos e sentimentos do mundo cotidiano. Porém, sua decisão leva em consideração que a ação se dá em um mundo virtual, no qual as leis e consequências são diferenciadas da realidade e, por isso, é possível agir de forma considerada por si mesmo como amoral e segundo os parâmetros da realidade social no qual ele (sujeito) está inserido.
Entre o jogo eletrônico e o mundo cotidiano, temos uma borda que separa a realidade do virtual, similar à membrana celular que separa o meio intracelular do meio extracelular e que possui uma permeabilidade seletiva, ou seja, permite a entrada e a saída de determinadas substâncias. Assim, a célula pode ter uma composição química diferente de seu meio. Considerando nosso objeto de investigação, podemos pensar que o meio externo seria a realidade e a célula seria o jogo eletrônico, sendo que ambos não possuem a mesma composição ética, ou seja, de um lado temos a ética e, de outro, a ciberética.
Além disso, a realidade tende a transferir seus valores para o mundo virtual, por ser ela mais densa. E a transferência de valores do virtual para a realidade passa pela permeabilidade seletiva que, em nosso contexto, seria a ética; salvo quando temos um esvaziamento ético e moral, que torna menos denso e consistente o plano da realidade.
Os aspectos éticos, quando transportados pela borda entre a realidade e o virtual, são transformados e adaptados para o contexto do jogo, transformando-se em aspectos ciberéticos. Chegamos a essa ideia de que a realidade é mais densa, pois nossos sujeitos-jogadores, em várias situações, consideram alguns aspectos éticos para tomar decisões no jogo, mas temos clareza que essa ética aplicada ao mundo virtual não tem a mesma intensidade que na realidade.
Porém, quando valores, mesmo que contrários aos preceitos morais do mundo cotidiano, são apropriados pelo sujeito e refletem em seu comportamento, isso não é consequência direta do jogo e sim de um sujeito social esvaziado de valores.
O meio menos denso eticamente do espaço virtual, em detrimento da ciberética, é que permite a sublimação para aliviar as tensões instituais do ser humano, as quais exercem pressão para a satisfação dos desejos. Considerando que para Freud (1990, p. 99) a sublimação é “[...] um determinado tipo de modificação da finalidade e de mudança do objeto, no qual se levam em conta nossos valores sociais”, é possível realizar desejos fantasmaticamente no mundo virtual, pois as vivências virtuais podem configurar-se como objetos de sublimação.
Logo, mesmo que os valores sociais prescrevam que não é correto matar, atirar, brigar, por exemplo, esses comportamentos podem ser vividos no mundo virtual dos jogos eletrônicos, como no CS, transformando o objeto que sai da esfera da realidade e passa a virtualidade.
Dessa forma, a energia pulsional pode ser reorientada a outros objetos que substituem o seu investimento inicial, como, por exemplo, a energia pulsional não correspondida, que é dirigida a um homem, pode ser reorientada para o consumo de alimentos. Do mesmo modo que a energia pulsional da agressividade de thanatos pode ser reorientada para o jogo eletrônico.
Assim, a ciberética viabiliza que os desejos dos sujeitos-jogadores sejam satisfeitos fantasmaticamente e de forma mais imediata, por sua consistência menos densa moralmente e pelos agenciamentos de possíveis.
Esses agenciamentos criados pela desterritorialização da ética, provocados pelas multiplicidades de fragmentos, pelas linhas de fuga e descodificações realizadas ao longo do trabalho, dão novos sentidos aos aspectos éticos e morais nos espaços virtuais dos jogos eletrônicos, os quais produzem vias do desejo, capazes de sublimar a energia pulsional para realizações virtuais, reduzindo a pressão exercida pelas pulsões e a sensação de desprazer.
Considerações Finais
O trabalho realizado permitiu ponderar que os comportamentos dos jogadores não podem ser investigados de forma isolada, como se fossem uma relação simples de causa e consequência, ou seja, se a criança joga um jogo eletrônico de matar vai, necessariamente, acreditar que é certo matar.
Além disso, abordamos o conceito de ciberética para reforçar que as regras e a moral nos jogos eletrônicos possuem sentidos e significados distintos da realidade cotidiana.
Para tanto, percorrermos uma trajetória referencial sobre o desenvolvimento da moral que deixa explícito o papel do social, na apreensão dos valores morais pelo sujeito e na construção de postura ética. E que o jogo configura-se com mais um elemento dessa rede complexa e não pode ser considerado determinante único de comportamentos agressivos e violentos.
Quando a temática é o jogo e a postura ética do sujeito, os adultos mediadores continuam tendo papel importante em transmitir as regras e discutir os temas trazidos pelos jogos, reforçando as suas características enquanto cenário ficcional e diferenciado da realidade, bem como devem impor limites com relação ao tempo que o jovem passa jogando.
Diante disso, os pais e a escola têm o papel de educar moralmente a criança e contribuir, sobretudo, para o desenvolvimento de uma postura ética, por meio do diálogo, discussão de situações e dilemas, exercícios de empatia, entre outras interações que o convívio familiar e escolar pode proporcionar.
Essa postura dos pais e da escola tende a oferecer suporte para a criança consolidar a ética, o que reforçaria a borda entre a realidade e o virtual e os filtros éticos sobre o que pode ser aplicado na realidade e aquilo que fica restrito ao jogo. Assim, teríamos o exercício da ciberética sendo alimentado pela ética do sujeito, sem confundir-se com ela.
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Datas de Publicação
-
Publicação nesta coleção
Abr 2012
Histórico
-
Recebido
01 Set 2010 -
Aceito
01 Jul 2011