RESUMO:
Os cursos de formação docente têm priorizado o domínio cognitivo em detrimento do afetivo, com forte componente ético próprio do cotidiano acadêmico. A partir de dilemas éticos constatados no exercício docente, sentimos a necessidade de trazer um panorama dos aspectos abordados pela literatura pertinente ao tema e de alguns códigos de ética docente. A adoção ou não desses códigos é um tema polêmico. Este texto tem o objetivo de trazer à tona essa polêmica como contribuição para a profissionalização dos professores, para que eles sejam capazes de antecipar as situações de dilemas éticos que acontecem na escola, em sua complexidade e contradição, dando a estas um melhor encaminhamento. Com isso, espera-se que o futuro professor esteja mais preparado para o enfrentamento dessas situações no relacionamento com os alunos, os colegas e as instituições. A análise dos dilemas existentes na escola pode resultar em decisões mais justas que considerem, além das perspectivas acadêmicas e institucionais, também os aspectos humanos. Nossa proposta é a de que essa discussão seja amplamente abordada nos cursos de formação docente.
Palavras-chave: Ética; Formação Docente; Códigos de Ética; Valores
RESÚMEN:
Los cursos de formación docente vienen priorizando el dominio cognitivo en detrimento del afectivo, con un fuerte componente ético propio del cotidiano académico. A partir de dilemas éticos constatados en el ejercicio docente, sentimos la necesidad de traer un panorama de los aspectos abordados por la literatura pertinente a la temática y de algunos códigos de ética docente. La adopción o no de esos códigos es un tema polémico. Este texto tiene el objetivo de traer a la luz esa polémica como contribución para la profesionalización de los profesores, para que ellos sean capaces de anticipar las situaciones de dilemas éticos que ocurren en la escuela, en su complejidad y contradicción, dándole a ésas un mejor encaminamiento. Con eso, se espera que el futuro profesor esté más preparado para el enfrentamiento de esas situaciones en la relación con los alumnos, los colegas y las instituciones. El análisis de los dilemas existentes en la escuela puede resultar en decisiones más justas que consideren, además de las perspectivas académicas e institucionales, también los aspectos humanos. Nuestra propuesta es la de que esa discusión sea ampliamente abordada en los cursos de formación docente.
Palabras clave: Ética; Formación Docente; Códigos de Ética; Valores
ABSTRACT:
Teacher training courses have been prioritizing the cognitive domain at the expense of the affective domain with a strong ethical component characteristic of the academic routine. Ethical dilemmas faced in the teaching practice inspired us to bring an overview of aspects addressed by the literature and some codes of ethics for teachers. Adopting these codes or not is a controversial issue. This text aims to bring up this controversy as a contribution to the professionalization of educators, so that they are able to anticipate ethical dilemmas situation at school, in its complexity and contradiction, giving them a better forwarding. Thus, it is expected that future teachers will be prepared to face these situations in students, colleagues and institutions relationship. An analysis of the dilemmas that there are at school can result in more fair decisions which also consider, besides to academic and institutional perspectives, the human aspects. Our proposal is that this discussion shall be broadly covered in teacher training courses.
Keywords: Ethics; Teacher Training; Codes Of Ethics; Values
INTRODUÇÃO
Os problemas (bio)éticos, o equilíbrio e a sustentabilidade ambientais são hoje bastante difundidos na mídia e nas redes sociais, o que gera discussões permanentes e a busca de soluções e caminhos alternativos para as questões enfrentadas. Por outro lado, apesar da importância conferida à educação, as questões do dia a dia da docência raramente são reconhecidas como dilemas éticos.
O trabalho do professor constitui-se em um multifacetado conjunto de atividades que são tradicionalmente reconhecidas por: preparar aulas; participar de equipes de planejamento de organização de trabalhos práticos e avaliação; observar e aconselhar estudantes; dentre outras. Apesar da amplitude das funções de um professor, nem sempre, os profissionais, administradores, estudantes e suas famílias estão esclarecidos sobre as situações dos contextos escolar e acadêmico que podem causar, no docente, perplexidades, incertezas, dúvidas, divergências e controvérsias.
Em um exercício com estudantes de pós-graduação, uma das dificuldades que reconhecemos foi identificar um dilema ético a ser analisado. Esse exercício consistia na discussão de um caso ocorrido na Alemanha, acerca de uma infecção causada por bactérias, as quais estariam presentes em um vegetal importado da Espanha. As autoridades alemãs divulgaram um alerta à população para que ela não consumisse o vegetal presumidamente contaminado. Após análises, verificou-se que a hipótese era improcedente, pois a infecção foi provocada por um vegetal produzido na própria Alemanha, causando, assim, grandes prejuízos ao país produtor do vegetal supostamente responsável pela disseminação do microrganismo1, a Espanha.
Quando discutimos o caso para identificação do dilema, os alunos focalizaram as questões geopolíticas e tiveram dificuldade de chegar à questão ética fulcral do caso, ou seja, o seu dilema, qual seja: divulgar uma hipótese de contaminação não confirmada, preservando a saúde dos consumidores, mas com prejuízo ao país produtor; ou esperar o resultado das análises do vegetal suspeito para depois fazer a divulgação, o que poderia aumentar o risco para a saúde dos consumidores, uma vez que eles estariam consumindo um produto contaminado sem saber, mas evitando os prejuízos econômicos e diplomáticos com os produtores espanhóis.
Durante a discussão desse caso, a partir da identificação do dilema, foram apresentados casos similares vividos pelos estudantes, o que nos leva a considerar que tais situações estão presentes no cotidiano deles e, também, da docência, muito embora raramente sejam percebidos e devidamente analisados por ambas as partes.
A atividade docente exige dos professores posicionamentos rápidos, sem que as questões sejam claramente identificadas e ponderadas, levando-os a decisões que podem ter graves consequências. A exemplificação de problemas que, comumente, ocorrem na sala de aula, no ambiente escolar e acadêmico, para os quais não há respostas e percursos claros, resultaria em esforço preventivo na preparação do docente, permitindo-lhe assumir seus valores e crenças e agir de acordo com eles, mesmo considerando que muitos tenham dificuldade em identificar uma situação em que haja um dilema ético.
Segundo Ferreira (2010), a autonomia, ou seja, a possibilidade de tomada de decisão por si só, não garante uma tomada de decisão ética. A ética aplicada só ocorre na relação com o outro, pois requer conhecimento sobre os próprios valores, princípios, normas, identidade. Nessa perspectiva, Haldane (2013) indica a necessidade de distinguir três princípios: Moralidade, Teoria Moral e Metaética. Resumidamente, o autor considera a Moralidade como um corpo de teses morais que expressam certo tipo de preocupação acompanhada de princípios que as justifique. A articulação de tais princípios numa estrutura sistemática é o que constitui a Teoria Moral. Já a Metaética diz respeito ao estatuto lógico das teorias morais. Assim, para o autor, o aspecto central da ética aplicada consiste na aplicação, mais ou menos, sistemática de uma Teoria Moral a problemas morais específicos (Moralidade).
Assim, tratar os dilemas e as decisões éticas que fazem parte da vida profissional docente de forma intuitiva apenas é desconsiderar toda a complexidade que envolve o exercício de tomada de decisão. A ética aplicada, segundo Cortina (2005), consiste na aplicação de princípios éticos, seja na perspectiva utilitarista, kantiana, ou dialógica, averiguando como podem esses princípios ajudar a orientar os diferentes tipos de atividade. Nessa aplicação da ética, é preciso levar em conta que cada tipo de atividade tem suas próprias exigências morais e seus próprios valores específicos. A autora destaca, ainda, que os “eticistas” precisam desenvolver a ética cooperativamente, com os especialistas de cada campo; assim, a ética aplicada é necessariamente interdisciplinar.
Os programas de formação docente, quer seja para a educação básica, quer seja para a superior, têm priorizado o domínio cognitivo, acabando por ignorar questões do domínio afetivo próprio dos cotidianos escolar e acadêmico, muitas delas com forte componente ético. Em estudos sobre a percepção dos professores sobre sua formação acadêmica, a maioria dos pesquisados entende que, ao longo da graduação, há maior ênfase aos aspectos informativos e uma preocupação predominante com a capacitação intelectual e técnica. Somente uma pequena parcela deles entende que os cursos dão maior ênfase aos aspectos formativos e criativos, proporcionando o desenvolvimento de uma consciência mais ética e crítica de mundo (SILVA, 2008).
Várias áreas profissionais possuem códigos de ética próprios, porém, no que se refere à docência, quando presentes, eles são vinculados às instituições nas quais o professor exerce sua profissão, diferentemente de outras profissões, as quais os têm de forma própria, sem vínculo institucional. Em tempos de compliance2, cabe indagar se esse recurso não teria um forte componente ético-moral. Assim sendo, ressaltamos que, ao discutirmos aspectos éticos do cotidiano docente, queremos sair do território da legalidade e refletir sobre a legitimidade das discussões aqui empreendidas.
São raros os pesquisadores que têm sido desafiados, ou mesmo dedicados, em seus estudos, a considerar os problemas éticos inerentes à profissão docente. Um deles é Denisova-Schmidt (2016), que, em sua pesquisa, destaca o desafio de manutenção da integridade acadêmica frente a situações recorrentes, tais como: fraudes na frequência às aulas; substituição indevida por colegas, ou pessoas estranhas, na realização de provas, ou trabalhos; plágio; uso de propina para facilitar admissão em programas de cursos; obtenção de cópias antecipadas de exames e provas; utilização de materiais, ou ferramentas, não autorizados durante exames; obtenção de monografias, ou outros documentos, pela internet; apresentação de documentação falsa, dentre outras. Revela-se, assim, a pertinência da integridade acadêmica como um dilema ético atual.
A partir de um conjunto de dilemas éticos constatados no exercício docente, sentimos a necessidade de trazer um panorama dos aspectos abordados pela literatura e pelos códigos de ética docentes. A implantação, ou não, desses códigos é um tema controvertido. Assim, este texto tem o objetivo de trazer à tona essa polêmica, como contribuição para a formação de educadores.
O QUE DIZEM ALGUNS AUTORES
Rotineiramente, tomamos decisões éticas conscientes, ou não, baseadas em nossos valores, contudo, muitas vezes, elas não são claramente por nós identificadas. Diante de um pluralismo da sociedade, que recai também sobre aspectos éticos e morais, é de se esperar que muitos não compartilhem dos mesmos valores, ou seja, alguns discordarão de nossas decisões, o que pode levar a situações de conflito. No entanto, de acordo com Cortina (2005, p. 36), a abordagem ético-moral pode ser “uma aptidão para a solução pacífica dos conflitos”. A origem do conflito está na desarmonia dos fins subjetivos do indivíduo com os do grupo social e nos interesses antagônicos dos diferentes grupos sociais, assim, “a novidade consistiria em situar o âmbito moral preferencialmente no da solução de conflitos de ação, seja no nível individual, seja no nível coletivo” (CORTINA, 2005, p. 37). Ademais, Ferreira (2010) acrescenta que o conflito faz parte da condição humana, constituindo-se como “um doloroso processo de pensar a diferença como possibilidade” (CORTINA, 2005, p. 28-29).
Considerando-se que não há respostas prontas para as complicadas situações enfrentadas por um professor, no exercício de sua profissão, o que se lhe pode oferecer são formas de pensar nas implicações das tomadas de decisão.
Cabe destacar aqui que nem todas as questões éticas são dilemas éticos. Segundo Anderson (2001), os indivíduos envolvem-se em atos claramente ilegais, ou antiéticos, como, por exemplo, mentir, roubar ou falsificar documentos. Nesse sentido, o caso de um professor que descarta as avaliações negativas dos seus estudantes e apresenta apenas as positivas é exemplo de um ato antiético. O dilema dessa situação deve ter ocorrido antes, quando o professor ponderou: submeter todas as avaliações, ou descartar as negativas a fim de ser melhor avaliado pela comissão de promoção e estabilidade na instituição?. Assim, a decisão antiética do professor, ao excluir as avaliações negativas, pode ter ocorrido depois de ele levar em consideração a sua condição de pai de família, com o intuito de preservar seu emprego. Sobre essa situação, Anderson (2001, p. 309, tradução nossa) destaca que:
Em termos de maior bem ou a coisa “certa” a fazer, seria fácil racionalizar que o sustento de uma família poderia ser tão correto, e possivelmente mais “certo”, do que ser ético nesta situação. Afinal de contas, pode-se argumentar que ninguém seria prejudicado por deixar de relatar comentários cáusticos de alguns estudantes descontentes.3
Reiterando esse argumento, é importante dizer que o dilema implica numa escolha entre duas ou mais alternativas igualmente equilibradas para a solução de um problema ético. Os dilemas são problemas espinhosos, sem caminhos claros, que colocam o indivíduo numa situação de incerteza. Eles só ocorrem quando a realidade coloca sob suspeita os princípios que o sujeito considerou fundamentais para sua vida, ou seja, quando há a necessidade de escolher entre dois ou mais princípios e valores considerados imutáveis e fundamentais ao exercício de sua autonomia (FERREIRA, 2010). Os dilemas podem surgir em vários contextos, dentre eles, o profissional. É frequente que a pessoa se debata entre uma opção racional (aquilo que deve fazer) e uma opção emocional (aquilo que quer fazer).
Anderson (2001) propõe uma abordagem lógica para enfrentar os dilemas éticos da docência. O primeiro passo é a identificação dos próprios valores do educador. Para tanto, a autora propõe duas perguntas: ao violarmos certos valores, nos sentiremos tristes ou culpados?; quais valores consideramos mais importantes?.
A partir disso, podemos identificar que os professores tendem a construir estereótipos sobre os alunos, envolvendo uma carga expressiva de preconceitos. Assim sendo, os docentes têm suas preferências para trabalhar com certos “tipos” de alunos. Mas, eles devem lembrar que todos, indistintamente, merecem respeito e dedicação. Nesse sentido, segundo Anderson (2001), o princípio singular que deve guiar todas as posturas e decisões dos professores é o “respeito básico” pelos estudantes, lembrando que estes são diferentes entre si, não só em relação à idade, ao nível intelectual, à vontade de aprender, mas também em honestidade e integridade. Dessa forma, é um dever do docente não se deixar influenciar por posturas predeterminadas. Enfim, a análise dos próprios preconceitos, com relação ao gênero e às diversidades humana e cultural, pode levar à melhoria da conduta de todos os envolvidos no processo educativo.
Anderson (2001) categoriza as tomadas de decisão como posturas “absolutistas” ou “relativistas”. Para a autora, o educador que respeita as regras sem considerar a possibilidade de mudá-las, ou da existência de exceções, independentemente do contexto, é absolutista, com argumentos baseados unicamente na justiça. Na visão de Kohlberg (1984), esse educador estaria num estágio caracterizado pela manutenção da ordem. A atitude não é somente a de conformidade mas também a de lealdade para com as expectativas da ordem social. Trata-se de manter, sustentar e justificar ativamente essa ordem, num certo tipo de legalismo. Por outro lado, os relativistas levam em conta o contexto e as circunstâncias individuais para decidir. Pode ser que o relativista esteja próximo de decisões baseadas em princípios, sendo caracterizado por Kohlberg (1984) como o nível pós-convencional. Nesse nível, há uma clara consciência da relatividade dos valores pessoais e uma ênfase nas regras procedimentais na busca do consenso, sendo que essas regras devem ser respeitadas porque fazem parte do contrato social. Nesse sentido, a perspectiva sociomoral adotada pelo sujeito é a da prioridade relativa do indivíduo em relação ao social, considerando os pontos de vista moral e legal, porém reconhecendo que, às vezes, eles se chocam e não se integram facilmente.
Kohlberg (1984) prosseguiu os estudos de Piaget (1996), abordando o raciocínio moral em adolescentes e adultos jovens. Como Piaget (1996), Kohlberg (1984) aponta uma sequência invariante de seis estágios morais, em três grandes níveis de moralidade: o pré-convencional, o convencional e o pós-convencional. Para ele, a estruturação da consciência moral ocorre em patamares cada vez mais elevados e equilibrados, decorrentes da interação do indivíduo com o seu meio. O autor considerava a existência de um conjunto de princípios morais que são aceitos como válidos e universais, independentemente das culturas específicas.
Cabe destacar que tratar todos os estudantes com uma atitude de respeito básico deve ser o início de uma postura ética docente, porém isso não é suficiente para resolver os dilemas éticos da docência. A coragem e o senso de dever são exigências essenciais para o exercício ético de qualquer atividade escolar e acadêmica.
Porém, o que não se pode desconsiderar é o poder que o professor tem e como suas ações afetam a vida dos estudantes, tanto pelas palavras quanto pelas atitudes. Nesse caso, além do respeito básico aos estudantes, a fim de o docente não abusar desse poder, há outros princípios que podem ser aplicados quando ele é confrontado com dilemas e problemas éticos. Tais princípios são: autonomia, beneficência e justiça, e relacionam-se com a corrente teórica tradicional da Bioética, chamada “principialismo” 4, emergente da preocupação com o controle social da pesquisa em seres humanos.
A “autonomia” não possui um conceito unívoco. Muitas ideias constituem esse conceito sob a perspectiva filosófica adotada, necessitando refiná-la à própria luz. O indivíduo autônomo, segundo Beauchamp e Childress (2002), é capaz de agir livremente de acordo com um plano escolhido por ele mesmo, com conhecimento de causa e sem coação externa. O respeito à autonomia das pessoas está tão profundamente inserido na moralidade comum quanto qualquer outro princípio. Além desses autores, Ferreira (2010, p. 27), ao discutir a ética aplicada, afirma que “o sujeito é autônomo quando, ao deparar com normas já estabelecidas, interioriza-as e, ao refletir sobre as possíveis consequências de suas decisões, faz escolhas”.
Anderson (2001) destaca o cuidado que o professor deve ter para não impor seus pontos de vista, seus valores ou suas preferências aos estudantes, sem contar sua potencial capacidade de coação. O poder exercido pelo professor pode minimizar a autonomia do aluno, a qual deve ser respeitada.
No princípio da “beneficência”, o “principialismo” rechaça a ideia clássica da beneficência como sendo caridade e considera esta como uma obrigação. Nesse sentido, maximizar os benefícios de uma ação, minimizando seus possíveis riscos, constitui-se uma das características da “beneficência”. Beauchamp e Childress (2002) estabelecem que a ação beneficente deve ser entendida num sentido mais amplo, de modo que inclua todas as formas de ação que tenham o propósito de beneficiar outras pessoas. Como exemplo, no contexto acadêmico e de sala de aula, as críticas construtivas são mais úteis que as críticas destrutivas. Se houver dilemas onde nem sempre é possível fazer o bem, é mister escolher a opção que produza o menor dano possível.
Beauchamp e Childress (2002) diferenciam “beneficência” de “não maleficência”. Assim, consideram a “não maleficência” como o ato de não causar danos, ou a obrigação de não infligir dano intencionalmente, destacando-a como um imperativo. Exemplo disso está no fato de que a autoestima e paciência dos professores são sempre testadas quando os estudantes lhes dizem coisas desagradáveis, ou fazem-lhes acusações, nesse momento, como aponta Anderson (2001), o docente não deve, deliberadamente, atacar ou “pagar com a mesma moeda”.
Por “justiça”, o “principialismo bioético” entende como sendo a “imparcialidade na distribuição dos riscos e benefícios”, ou seja, “os iguais devem ser tratados igualmente e os desiguais desigualmente” (BEAUCHAMP; CHILDRESS, 2002, p. 352), destacando-se, assim, a equidade. Dessa forma, o princípio de justiça é o que nos obriga a garantir a distribuição justa, equitativa e universal dos benefícios de uma ação, ou seja, é a justiça entendida como um tratamento justo, considerando aquilo que é devido às pessoas. Tais aspectos têm implicações diretas para as situações em sala de aula, uma vez que os estudantes querem tratamento justo e não querem colegas que tenham tratamento especial ou privilégios. Os alunos não aceitam que, por exemplo, numa atividade em grupo, aquele que não trabalhou e os que trabalharam tenham a mesma nota. Eles esperam regras para administrarem o seu comportamento e são mais sensíveis em relação à iniquidade em suas várias formas (ANDERSON, 2001).
O último e essencial princípio, que pode ser aplicado quando somos confrontados com dilemas éticos, é a “veracidade”, sem o qual não há possibilidade que um educador seja visto como um indivíduo ético. Muito embora haja várias interpretações do que seja a “verdade”, impõe-se aqui um compromisso, diferenciando, assim, o que vimos do que pensamos ou acreditamos, evitando-se que um fato se torne distorcido ou deturpado. Anderson (2001) vai além, afirmando que prometer algo que não podemos cumprir é também semelhante a mentir, portanto antiético. A honestidade é a melhor postura, mesmo que seja embaraçosa, ou até mesmo dolorosa.
Esses princípios podem apontar para o conceito de competência do juízo moral, formulado em 1964, por Lawrence Kohlberg, que o define como “a capacidade de tomar decisões e julgar moralmente baseado em princípios internos e agir de acordo com tais juízos” (LIND, 2018, p. 1). Para Lind (2018), competência moral é a ponte entre as boas intenções morais e o comportamento moral.
Para Piaget (1996), as relações interpessoais têm um papel central no desenvolvimento da personalidade moral do indivíduo. Tais relações podem ser marcadas por um respeito unilateral, decorrendo na moral da coação, ou por um respeito mútuo, fruto de relações entre iguais, característico da moral da cooperação. A moral da coação e moral da cooperação correspondem aos estágios heterônomos e autônomos, respectivamente.
É importante destacar que o clima afetivo institucional, direta e indiretamente, influencia o desenvolvimento da competência moral dos profissionais. Em nosso caso, o ambiente da formação inicial docente pode contribuir para o desenvolvimento de tal competência e para o exercício de tomada de decisão.
Como Piaget (1996), Kohlberg (1984) afirma que as propriedades afetiva e cognitiva são distintas, mas são aspectos inseparáveis do comportamento moral. Para ele, o ato moral não pode ser definido por critérios puramente cognitivos ou motivacionais.
O QUE DIZEM ALGUNS CÓDIGOS DE ÉTICA
A complexidade multifacetada da atividade docente é objeto de códigos de ética que assumem formas diversas na estrutura, no conteúdo e na função.
A fim de verificar como os códigos de ética docentes se apresentam em diferentes países, um breve levantamento foi realizado daqueles códigos disponíveis na versão on-line, em português, inglês e espanhol. Foram encontrados documentos de diferentes países (Estados Unidos, Nova Zelândia, Peru, Brasil, Malta), na forma de diretrizes gerais, manuais e documentos legais, em sites governamentais, de associações profissionais e de universidades.
Os Quadros 1 e 2 apresentam os princípios e as obrigações dos códigos de ética de associações docentes e governamentais citados nos documentos pesquisados. A organização geral desses documentos revela uma ampla variedade de relacionamentos: com alunos, com colegas, com as instituições à quais se vinculam, com os sistemas educacionais, com as famílias e a sociedade.
Normas, obrigações e princípios apresentados por códigos de ética de associações docentes, em diferentes países
Normas, obrigações e princípios apresentados por códigos de ética governamentais, em diferentes países
A análise desses documentos permite a identificação de algumas tendências comuns. Alguns dos códigos estabelecem princípios e padrões para avaliar a conduta dos educadores, que, em casos extremos, podem levar até à exclusão do profissional e perda de seu certificado para lecionar.
Dependendo da sua origem, os códigos de ética têm características diferentes. Os das instituições governamentais são rígidos e estipulam sanções aos infratores. Já os das associações profissionais têm um caráter educativo e buscam manter um padrão técnico e acadêmico. Alguns, como o código de ética para professores certificados da Nova Zelândia, determinam que os professores devem obedecer à lei. É interessante notar a preocupação com a inclusão do povo Maori no sistema, ilustrada pela menção dos nativos. Esse código indica também que o professor precisa buscar desenvolvimento profissional contínuo e auxiliar os professores principiantes. Este último aspecto aponta para a “mentoria” - tema recorrente nas discussões, no Brasil, sobre a formação, o desenvolvimento e a permanência profissional dos docentes iniciantes (TANCREDI; REALI; MIZUKAMI, 2008).
O Departamento de Educação da Flórida apresenta, além de princípios éticos, medidas disciplinares para os comportamentos fora dos padrões estabelecidos. Enfatiza a necessidade de garantir ao aluno a independência de ação na busca do aprendizado e o acesso a diferentes pontos de vista, além de provê-lo de informação bem selecionada e relevante de forma a atender, com qualidade, aos objetivos do curso.
Certos códigos, como o da Georgia Professional Standards Comission (Comissão de Padrões Profissionais da Geórgia), refletem a preocupação com a garantia dos procedimentos técnicos legitimados pelos próprios profissionais. Outros, como o da University of State of New York (Universidade do Estado de Nova York), têm como função orientar o trabalho dos educadores, incentivando o desenvolvimento intelectual e ético dos alunos, do educador e dos colegas, mantendo um clima de respeito, diversidade e confidencialidade.
A National Association of State of Directors of Teachers Education and Certification (NASDTEC) (Associação Nacional do Estado de Diretores de Educação e Certificação de Professores) introduziu, em seu documento preparado em 2015, a preocupação com o uso ético da tecnologia, tópico que, seguramente, passará a ser fonte crescente de problemas para os educadores. O uso de equipamentos eletrônicos em sala de aula é tido como fonte de distração e da possibilidade de plágio, sendo mencionados como origem permanente de conflitos, como apontado por Denisova-Schmidt (2016). Além disso, essa Associação reforça a necessidade de atualização sobre as decisões e os princípios éticos provenientes de fontes significativas, incluindo instituições e organizações profissionais, para o desenvolvimento da qualidade e a garantia da eficiência profissional.
O National Education Association (NEA) (Associação de Educação Nacional) estabelece pelo menos dois tipos de compromisso: com o estudante e com a profissão. Com relação ao primeiro, sugere não suprimir deliberadamente ou distorcer os conteúdos do ensino relevante ao progresso do aluno, além de protegê-lo de condições prejudiciais à saúde e ao aprendizado. Propõe, também, evitar colocar o estudante em situações de embaraço ou depreciação, seja pela exclusão, negação de benefícios, oferta ou obtenção de vantagens pessoais. No que se refere ao segundo, a Associação tem o compromisso de atender à diversidade de formas de aprendizado dos alunos e de selecionar conteúdos provenientes de diferentes fontes, enfatizando a necessidade constante de aperfeiçoamento do aluno, para seu crescimento profissional.
Os códigos chamam a atenção para a necessidade da honestidade na apresentação das próprias qualificações docentes e na cooperação com os companheiros, para garantir o sucesso no aprendizado dos alunos. A liberdade de escolha de ideologias e conteúdos e o impedimento de ações que violam a integridade profissional estão presentes em muitos dos documentos apresentados acima.
Capítulos especiais desses documentos são dedicados à importância da participação das famílias e da comunidade nas relações escolares, a fim de transmitir informações sobre os estudantes e garantir o respeito pelas diferentes culturas presentes nas turmas.
É importante notar a identificação de princípios e valores nos códigos apresentados pelos documentos, tais como: responsabilidade, honestidade, confiança, comprometimento, integridade, respeito, verdade, confidencialidade, justiça e equidade, alguns deles apontados por Anderson (2001) e Beauchamp e Childress (2002), em seus estudos. Além desses códigos, espera-se que os docentes focalizem a aprendizagem dos alunos, valorizando seu potencial e, para tanto, mantendo um ambiente desafiador para eles.
A inexistência de códigos de ética do profissional docente no Brasil deve ser discutida na comunidade acadêmica e tratada, também, como um dos conteúdos a serem abordados na formação de professores.
Veiga et al. (2005), ao tratar da profissionalização docente, destaca que os códigos de ética podem limitar a liberdade individual e favorecer as ações de vigilância e controle por parte de entidades profissionais, como ocorre em outras profissões. Por outro lado, a autora afirma que as reflexões sobre a ética profissional expressam uma conquista de identidade da profissão. Assim, os códigos de ética devem ser um meio e não um fim em si mesmo, identificando valores e princípios que norteiem a atividade docente.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Decorrente do apresentado, espera-se que o futuro professor esteja preparado para o enfrentamento de situações dilemáticas no relacionamento com os alunos, os colegas e as instituições. Assim, pretendemos que este texto contribua para a construção de um ambiente de formação inicial docente que seja mais antecipatório sobre o que acontece na escola, em sua complexidade e contradição. A análise dos dilemas existentes na escola pode resultar em decisões mais justas que considerem, além das perspectivas acadêmicas e institucionais, também os aspectos humanos.
Cabe destacar que a maioria dos códigos de ética analisados tem uma abordagem baseada em princípios e valores que podem favorecer um posicionamento próximo de uma postura relativista. A identificação dos princípios e valores subjacentes aos códigos de ética é uma forma de abordar o desenvolvimento do senso moral. Nesse aspecto, trazer a análise e a discussão desses códigos para os cursos de formação de professores seria uma contribuição para o ensino e a aprendizagem de valores fundamentais e inerentes à profissão docente. Kohlberg (1984) e Piaget (1996) destacam que os ambientes de discussão, de forma dialógica e democrática, favorecem o alcance de estágios mais autônomos do desenvolvimento do senso moral.
É essencial que o tema do código de ética passe a fazer parte do currículo da formação de professores. Para tanto, a existência de um código de ética profissional, segundo alguns, seria um elemento provocador da discussão, pois, além de conhecê-lo, os envolvidos contribuiriam para seu permanente aperfeiçoamento; segundo outros, a existência de um código provocaria um engessamento do tema com regras rígidas que não permitiriam sua discussão.
De qualquer modo, pensamos que os estudantes devem ser prevenidos de que as relações acadêmicas não se limitam a exposições de conteúdos, demonstrações e trabalhos práticos, elas envolvem, também, outras responsabilidades resultantes dos problemas que surgem e do impacto das decisões sobre alunos, colegas e instituições.
Nos cursos de graduação, os professores devem incentivar os estudantes a coletarem exemplos de casos dilemáticos, a relatá-los em aula e a promover o diálogo acerca do que configura um dilema e das possíveis consequências de decisões alternativas. Nesse sentido, criam-se momentos de reflexão que podem contribuir para a preparação, prevenção e criação de um repertório de possíveis questões que possam surgir, as quais se constituem em momentos que podem abalar as crenças pessoais dos futuros professores. Segundo Tardif (2000), são esses saberes pessoais que acabam norteando a prática profissional, pois os futuros professores não têm sido capazes de relacionar os saberes acadêmicos com a prática docente.
Para que as discussões atinjam esses objetivos, é essencial o estabelecimento de um clima de livre participação, em que os envolvidos tenham liberdade de expressar divergências, controvérsias e dúvidas, sem o receio de censura ou retaliação. Por isso, nossa proposta é discutir amplamente, nos cursos de graduação, as implicações da existência, ou não, de códigos de ética para os educadores.
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Disponível em: https://noticias.uol.com.br/internacional/ultimas-noticias/2011/05/31/surto-de-infeccao-causado-por-pepino-provoca-a-16-morte-na-europa.htm. Acesso em: 2 dez. 2017.
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2
“O termo compliance tem origem no verbo em inglês to comply, que significa agir de acordo com uma regra, uma instrução interna, ou seja, estar em ‘compliance’ é estar em conformidade com leis e regulamentos externos e internos”. Disponível em: http://michaellira.jusbrasil.com.br/artigos/112396364/o-que-e-compliance-e-como-o-profissional-da-area-deve-atuar. Acesso em: 17 jun. 2018.
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3
Texto original: “In terms of the greatest good or the ‘right’ thing to do, it would be easy to rationalize that feeding one’s family could be as right, and possibly more right, than being ethical in this situation. After all, one could argue, no one would be harmed by failing to report some caustic comments from a few disgruntled students”.
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4
O “principialismo” teve também como representantes Beauchamp e Childress (1979), os quais publicaram uma obra de referência em que retrabalharam os três princípios em “quatro”, distinguindo beneficência e não maleficência, tornando-se na principal fundamentação teórica da bioética, considerada uma ética aplicada.
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5
Disponível em: https://www.aaeteachers.org/index.php/about-us/aae-code-of-ethics. Acesso em: 27 set. 2017.
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5
Disponível em: http://www.nasdtec.net/?page=MCEE_Doc. Acesso em: 27 set. 2017.
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Disponível em: http://www.nea.org/home/30442.htm. Acesso em: 15 fev. 2017.
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8
Disponível em: http://www.nysed.gov/content/code-ethics. Acesso em: 15 fev. 2017.
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9
Disponível em: https://www.gapsc.com/Ethics/CodeOfEthics.aspx. Acesso em: 16 fev. 2017.
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Disponível em: https://educationcouncil.org.nz/content/code-of-ethics-certificated-teachers-0. Acesso em: 16 fev. 2017.
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Disponível em: https://www.insper.edu.br/institucional/o-insper/codigo-de-etica-e-conduta/. Acesso em: 15 fev. 2017.
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Disponível em: http://www.ctteam.org/df/resources/Module5_Manual.pdf. Acesso em: 15 fev. 2017.
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Disponível em: http://www.ctteam.org/df/resources/Module5_Workbook.pdf. Acesso em: 15 fev. 2017.
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Disponível em: http://www.waterbury.k12.ct.us/userfiles/3/my%20files/2015_hr/module%205%20scenarios%20nto%202015.pdf?id=544776. Acesso em: 15 fev. 2017.
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Disponível em: http://www.fldoe.org/teaching/professional-practices/code-of-ethics-principles-of-professio .stml. Acesso em: 15 fev. 2017.
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Disponível em: https://education.gov.mt/en/Ministry/Documents/New%20Code%20of%20Ethics%20Doc %20EN.pdf. Acesso em: 15 fev. 2017.
Datas de Publicação
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Publicação nesta coleção
12 Jun 2020 -
Data do Fascículo
2020
Histórico
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Recebido
10 Out 2018 -
Aceito
11 Mar 2019