Open-access RETORNO SOBRE O TEMA DA NATUREZA E ESPECIFICIDADE DO TRABALHO DOCENTE

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Resumo:

O tema da especificidade e natureza do trabalho docente tem na área da educação uma história que se conta em décadas de reflexões e investigações. Considerando esse longo percurso de estudos e pesquisas interessadas pelo exercício da docência e centrando sua análise em algumas obras fundamentais, o presente artigo tem o objetivo de retomar a literatura de base sobre o tema da especificidade e natureza do trabalho docente e analisar suas aquisições, seus impasses e seus limites. O texto discute os estudos pioneiros de Luiz Pereira e Aparecida Joly Gouveia, as contribuições de Dermeval Saviani e Vitor Paro, bem como as proposições de Maurice Tardif e Claude Lessard. O artigo conclui destacando os avanços que foram obtidos sobre o tema e aponta que junto com o estudo da especificidade do trabalho docente também é importante estudar sua generalidade, situando assim a docência no campo mais vasto dos estudos do trabalho.

Palavras-chave: Trabalho docente; Especificidade do trabalho docente; Epistemologia e trabalho docente

Resumen:

El tema de la especificidad y naturaleza del trabajo docente tiene una historia de décadas de reflexiones e investigaciones. Considerando esta larga trayectoria de estudios e investigaciones interesadas en el ejercicio de la docencia y centrando su análisis en algunos trabajos fundamentales, el presente artículo pretende retomar la literatura básica sobre el tema de la especificidad y naturaleza del trabajo docente y analizar sus adquisiciones, sus impasses y sus límites. El texto discute los estudios pioneros de Luiz Pereira y Aparecida Joly Gouveia, las contribuciones de Dermeval Saviani y Vitor Paro, así como las proposiciones de Maurice Tardif y Claude Lessard. El artículo concluye destacando los avances que se obtuvieron sobre el tema y señala que, junto con el estudio de la especificidad del trabajo docente, es importante estudiar su generalidad, situando la enseñanza en el campo más amplio de los estudios sobre el trabajo.

Palabras clave: Trabajo docente; Especificidad del trabajo docente; Epistemología y trabajo docente

Abstract:

The specificity and nature of teaching work is a theme whose story is told in decades of reflections and investigations. Considering this long journey of studies and researchers interested in teaching and focusing its analysis on some fundamental works, this article aims to resume the basic literature on the specificity and nature of teaching work and analyze its acquisitions, its impasses, and its limits. The text discusses the pioneering studies of Luiz Pereira and Aparecida Joly Gouveia, the contributions of Dermeval Saviani and Vitor Paro, and the propositions of Maurice Tardif and Claude Lessard. The article concludes by highlighting the advances made on the subject and points out that, along with the study of the specificity of teaching work, it is important to study its generality, placing teaching in the broader field of work studies.

Keywords: Teachers’ Work; Specificity of the teachers’ work; Epistemology and Teachers’ work

INTRODUÇÃO

Questão antiga na área da educação, o tema da especificidade e natureza do trabalho docente tem uma história que se conta em décadas de reflexões e investigações. Considerando esse longo percurso de estudos e pesquisas interessadas pelo exercício da docência e centrando sua análise em algumas obras fundamentais, o presente artigo tem o objetivo de retomar a literatura de base sobre o tema da especificidade e natureza do trabalho docente e analisar suas aquisições, seus impasses e seus limites.

Em um primeiro momento, a passagem pelos textos pioneiros de Luíz Pereira e Aparecida Joly Gouveia, ainda na década de 1960, permite uma aproximação inicial ao tema do trabalho docente e suas especificidades. Em seguida, são retomados dois autores especialmente importantes sobre o tema, Dermeval Saviani e Vitor Paro. Ambos os autores buscam pensar o trabalho docente com base no aporte marxiano, elaborando assim uma perspectiva que ilumina diversos aspectos das questões que envolvem a natureza e a especificidade do trabalho docente. No momento seguinte, a concepção de trabalho docente aberta pelos canadenses Maurice Tardif e Claude Lessard é posta em exame. Autores com importante audiência no Brasil, eles pontuam a especificidade do trabalho docente argumentando que este deve ser compreendido como um trabalho interativo. Por fim, o artigo traz uma breve síntese do que foi apresentado e avança algumas reflexões sobre o trabalho e a formação docente.

POR ONDE COMEÇAR?

A pergunta acima evoca a dificuldade em delimitar as balizas capazes de distinguir uma temática de investigação de uma outra. Se isso procede, definir o que se compreende por estudos e pesquisas sobre trabalho docente é algo que se impõe como questão preliminar. O que define um estudo, uma pesquisa, como sendo sobre o trabalho docente? O que o destaca de um vasto conjunto formado pela multidão de temas (currículo, avaliação, etc.) presentes na área da educação? A questão não é banal1. Ela permite, pois, delimitar os contornos de um certo domínio de estudos, sem dúvida em interface com diversos outros - questão típica dos estudos sobre o trabalho, como destacado por Tanguy (1996) - e nominar de modo mais preciso do que se fala.

Iniciemos por recordar que a docência se caracteriza por se constituir em um processo educativo intencional. O trabalho docente é, portanto, “o trabalho que se realiza com a intenção de educar” (OLIVEIRA, 2010, p. 2) e compreende “os sujeitos que atuam no processo educativo nas escolas e em outras instituições de educação, nas suas diversas caracterizações de cargos, funções, tarefas, especialidades e responsabilidades” (idem). Em si, portanto, a formação não é suficiente para se definir a docência e sim o gênero do trabalho que se realiza: uma educadora na educação infantil ou em um assentamento rural pode eventualmente não ser licenciada, mas nos dois casos realiza o trabalho docente. Isto não conflita com o ideal de que no Brasil se preconize a licenciatura como o mais adequado para o exercício do trabalho docente; embora relacionados é importante que não se confunda os registros da análise: uma questão é a definição do gênero do ato, outra é aquilo que cada sociedade determina como sendo o nível de preparação que se deve ter para realizá-lo.

Seguindo Deolidia Martínez, pode-se avançar a proposição que estudar o trabalho docente compreende o interesse por “estudar o surgimento de um sujeito histórico, sua constituição e posicionamento. O trabalhador da educação, o sujeito que a realiza” (MARTÍNEZ, 2001, p. 3). Sem dúvida seria possível, com base em uma longa tradição de disciplinas que tem o trabalho como objeto de estudo, explorar o que há de sugestivo nesses termos empregados pela autora. Por ora, é oportuno reter que a perspectiva trazida por Deolidia Martínez coloca os docentes e seu trabalho no centro da questão. Essa postura se mostra pertinente, pois evita que qualquer gênero de estudo ou pesquisa em educação repouse sobre a rubrica de investigações sobre trabalho docente, por outro lado é suficientemente aberta e abrangente para acolher diversos temas e abordagens de pesquisa. Seguindo esse raciocínio, os anos de 1960 podem ser situados como os da gênese dos estudos sobre o trabalho docente no Brasil, notadamente com as pesquisas de Luíz Pereira e de Aparecida Joly Gouveia.

Salvo exceções, como em Hypolito (1997), ambos os autores são comumente esquecidos na discussão acadêmica sobre o trabalho docente. Para abordar o trabalho docente, comumente se prefere saltar direto para o cenário brasileiro dos anos 1970/1980, momento de efervescência política com a perspectiva de redemocratização, de luta sindical e de avanço da institucionalização da pós-graduação em educação. A contribuição de Luíz Pereira e a de Aparecida Joly Gouveia, no entanto, precede esse período e não é negligenciável.

Professor de sociologia na USP, Luiz Pereira (1933-1985) fazia parte do grupo de pesquisadores próximos a Florestan Fernandes, então professor titular da cadeira de sociologia e figura que marcou toda uma geração de intelectuais no Brasil. Naquele momento, anos 1950 e 1960, a questão do trabalho, do desenvolvimento e do, assim chamado, atraso do Brasil diante de um mundo que se modernizava, eram os problemas fundamentais a serem considerados e mobilizava aquele grupo de pesquisadores. Tendo formação inicial em pedagogia, Luiz Pereira será convidado a investigar o tema da educação, assumindo no ano de 1963 a condição de docente na Universidade de São Paulo2. Entre suas publicações vale especialmente destacar uma mais antiga, resultante da pesquisa realizada em sua tese de doutorado defendida em 1961, sob orientação de Florestan Fernandes. Trata-se do livro O magistério primário numa sociedade de classes, publicado em 1969 pela editora Pioneira, e que guarda o mesmo título da tese.

Interessado pelo tema do desenvolvimento nacional e pelas relações entre urbanização e industrialização na sociedade brasileira, Pereira (1969) discute a temática trabalho e mulher, conforme seus próprios termos, para nela destacar um campo profissional específico: o magistério no setor público da rede estadual em São Paulo. Na obra, Luiz Pereira mostra que naquele momento de nosso contexto social o magistério se tornou um importante espaço de profissionalização para as mulheres diante de uma sociedade que se modernizava. Essa profissionalização é assimilada a uma especialização - daí que ele se interroga pela formação das professoras nas escolas normais - e entrada no âmbito do trabalho assalariado, no que o autor evidencia as tensões entre as formas tradicionais e as modernas, o ambiente doméstico e o espaço profissional, a disposição burocrática da escola e a sociabilidade docente etc.

Sem dúvida, pode-se considerar que a obra O magistério primário numa sociedade de classes possui elementos datados e, pois, carrega os limites de seu tempo - momentos iniciais da sociologia do trabalho e da sociologia da educação em nosso país. Não se vai encontrar nela uma refinada teorização sobre trabalho e gênero, sobre a divisão sexual do trabalho, sobre a noção de profissionalização etc. Mas, por outro lado, vai-se encontrar um estudo robusto - e um dos pioneiros - sobre a feminização do magistério e vai-se encontrar uma análise que evidencia nas situações concretas as desigualdades entre o trabalho do homem e o da mulher. Considerando o conjunto da rede de ensino e os dados estatísticos, Luiz Pereira constata que as mulheres correspondem a 93% dos postos de ensino ocupados, mas no exercício de direção de grupo escolar elas correspondem a 32%, na inspetoria apenas 5,9% e na posição de delegado de ensino tão somente 2,2%. Nesses termos registra que, “não obstante serem esmagadora maioria dentre os ocupantes de cargos remunerados deste sistema, as mulheres se encontram em minoria nos estratos detentores de maior poder” (PEREIRA, 1969, p. 30)

Há também ali a identificação de aspectos que, numa longa duração, parecem marcar o modo de organização do trabalho docente no Brasil. Destaca-se em especial o fato de o autor evidenciar que desde o final dos anos 1950 a condição de trabalho no magistério impunha às professoras lecionar em várias redes de ensino, dividindo sua jornada de trabalho semanal entre a rede de ensino municipal, estadual e a privada. Questões, como se depreende, de grande atualidade. As pesquisas de Aparecida Joly Gouveia são também a esse respeito muito pertinentes, como se verá a seguir.

Aparecida Joly Gouveia (1919-1998) foi docente de sociologia na Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da USP (FFLCH/USP). Sua tese, resultante dos estudos no departamento de sociologia da Universidade de Chicago entre 1955 e 1962, será publicada em livro no ano de 1965 com o título Professoras de amanhã: um estudo de escolha ocupacional (GOUVEIA, 1970).

Socióloga interessada pelos temas da educação, sua tese é um exemplo do que compreende uma rigorosa pesquisa quantitativa na área das ciências humanas: considerando escolas do estado de São Paulo e de Minas Gerais, a pesquisa envolve a análise das respostas de 1.448 mulheres que no ano de 1960 frequentavam 23 escolas normais, cujo intuito da investigação era conhecer as decisões de escolha vocacional das normalistas. Essa pesquisa, realizada há quase sessenta anos, apresenta ainda hoje resultados importantes para o conhecimento das especificidades do magistério como campo profissional de trabalho.

Uma das conclusões importantes da referida pesquisa está na identificação de que entre aquelas mulheres estudantes tão somente a menor parte delas projetava de fato ser professora em uma escola, “apenas um terço [das estudantes] realmente aspira ao trabalho de professora” (GOUVEIA, 1970, p. 31). Esse dado é especialmente relevante, sobretudo quando considerado em conjunto com outro aspecto revelado pela autora: o fato de que entre 1940 e 1958 o percentual de professoras leigas lecionando em escolas primárias havia subido de 38% para 47%.

Merece também ser destacado que a autora registra uma importante mudança na composição social daquelas que se inscrevem no curso normal: ela identifica correlação entre a origem social e a propensão à escolha do magistério, dentro dela assinalando uma sorte de inversão de sinal naquela sociedade que se industrializava nos anos de 1960. Conforme a autora, “o desejo de ser professora mostrou-se mais frequente entre as normalistas provenientes de famílias operárias do que entre as oriundas do estrato médio-alto”, isto é, “filhas de profissionais liberais e equivalentes” (GOUVEIA, 1970, p. 120). Constatação essa não sem relação com pesquisas que no tempo presente mostram que nas escolas de Ensino Médio os alunos com melhores desempenhos não optam pelas licenciaturas quando projetam seu futuro na universidade (cf. TARTUCE, NUNES, ALMEIDA, 2010). Novamente, questões difíceis que interrogam o passado, o presente e o futuro do exercício profissional da docência no Brasil.

Como se verifica, as pesquisas acima, mesmo com seus limites, dizem ainda hoje sobre o trabalho dos professores e professoras do Brasil. Junto com os estudos de Josildeth da Silva Gomes e os de Maria Cristina Aranha Bruschini - autoras que merecem ser lembradas, embora não seja possível comentar suas contribuições no limite deste texto - temos os capítulos iniciais dos estudos sobre o trabalho docente no Brasil.

Capítulos esses que do ponto de vista teórico e metodológico, foram fundados sobre uma literatura sociológica dispersa e em voga naquele período. Era momento de presença importante da teoria social funcionalista no meio acadêmico internacional - como testemunha o recurso às obras de Talcott Parsons e às de Robert Merton, tanto em Luiz Pereira como em Joly Gouveia. Mas, sobretudo, em se tratando da teorização que de fato marcará o início das pesquisas feitas por sociólogos e antropólogos brasileiros interessados no tema da escola e de seus agentes, os fundamentos estavam em Émile Durkheim, Max Weber, Karl Mannheim, além de outros autores europeus e estadunidenses3.

Não é sem pertinência observar que a perspectiva marxista, importante no âmbito das ciências humanas e sociais, não se faz presente com força nesse momento dos anos 1940 e início dos anos 1960. O marxismo não é no ponto de partida algo acadêmico, mas ligado à prática de partidos políticos, como o Partido Comunista Brasileiro, e movimentos sociais. Todavia, o marxismo se fará presente no meio acadêmico posteriormente, em especial com Antônio Cândido, nos estudos literários, e com Florestan Fernandes, na sociologia, sobretudo a partir dos anos de 1960. Luiz Pereira, autor que como vimos foi importante na interlocução entre a área da sociologia e a área da educação, irá incorporar com mais propriedade Karl Marx e os autores marxistas em suas produções subsequentes, como em Trabalho e desenvolvimento no Brasil, publicado em 1965, pois nada ligado à tradição marxista se faz presente em O magistério primário em uma sociedade de classes.

Nesse momento inicial dos estudos sobre o trabalho docente são os pesquisadores ligados à USP, em especial na sociologia e na antropologia, que comandam a interlocução com a área da educação. Todavia, no período seguinte, no último quartel dos anos 1970 e nos anos 1980, uma outra instituição acadêmica também ocupará importante lugar no debate sobre as especificidades da docência: a Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC/SP), notadamente com a figura de Dermeval Saviani. Esse é o assunto da próxima seção.

ESPECIFICIDADE E NATUREZA DO TRABALHO DOCENTE

Os anos 1970 marcam o início da pós-graduação em educação na PUC/SP, sendo que o curso de doutorado terá sua primeira turma em 1977, tendo à frente Dermeval Saviani como coordenador do curso. O Programa de Pós-Graduação em Educação da PUC/SP será responsável pela formação de diversos pesquisadores que marcarão importante presença na área da educação no Brasil, como por exemplo Luiz Antônio Cunha, José Carlos Libâneo, Paolo Nosella, Carlos Roberto Jamil Cury, Guiomar Namo de Mello, Vitor Henrique Paro, Lucília Regina de Souza Machado, Acácia Kuenzer, Selma Garrido Pimenta, Gaudêncio Frigotto, entre outros.

Egresso da instituição, depois docente pesquisador, Saviani será ali uma figura maior, tanto pelo trabalho de formação na pós-graduação - tendo sido orientador de vários dos pesquisadores anteriormente mencionados - como por sua contribuição intelectual para a educação brasileira. Aqui nos interessamos especialmente por um artigo escrito em 1981, na ocasião de um debate promovido pela associação de docentes da PUC/SP, no qual Saviani (1984) avança algumas proposições sobre o trabalho docente valendo-se dos epítetos - a expressão é de Schwartz (1988) - que Marx utiliza para pensar o trabalho.

Intitulado Trabalhadores em educação e crise na universidade, o texto discute inicialmente o sentido de crise na área da educação e depois busca refletir sobre o caso da universidade. Nesse movimento Saviani indaga sobre o que significa a expressão “trabalhadores em educação” - eis o ponto que nos interessa. Problematizando as aproximações entre os intelectuais e os demais trabalhadores explorados pelo capitalismo, Saviani aponta que isto por vezes leva à polêmica, pois vai-se dizer que os trabalhadores intelectuais são, então, trabalhadores produtivos. “E aí vem o problema das relações entre trabalho produtivo e trabalho não produtivo” (SAVIANI, 1984, p. 78). Depois de mostrar que não se deve confundir trabalho produtivo com o que produz bens materiais ou com o que produz coisas úteis, em oposição a um trabalho que produziria coisas supérfluas, ele registra que “o que diferencia, propriamente, o trabalho produtivo do improdutivo é o fato de gerar mais-valia4 […]. Nesse sentido, mesmo o trabalho não material pode ser produtivo” (SAVIANI, 1984, p. 79). Aqui Saviani segue Marx de perto, a forma do produto do trabalho parece não importar: “trabalho produtivo é uma determinação do trabalho que em si e para si não tem absolutamente nada a ver com o conteúdo determinado do trabalho” (MARX, 1985, p. 115).

Com esse aspecto em mente, Saviani observa que buscar compreender o significado do trabalho em educação com o par trabalho produtivo / trabalho improdutivo é uma empreitada equivocada5. Isto porque, na situação real, “nós poderemos ter tanto um trabalho na educação que gera mais-valia, como um trabalho na educação que não gera mais-valia” (SAVIANI, 1984, p. 79). Para ele faz mais sentido pensar a contraposição entre trabalho material e não-material, situando neste último o trabalho docente. Para isso ele recorre a um trecho do Capítulo VI inédito de O Capital onde o tema é diretamente abordado por Marx. Vale a pena retomar os referidos trechos. Neles, após seguir distinguindo e problematizando as noções de trabalho produtivo e improdutivo, Marx chega à questão da forma:

No caso da produção não material, mesmo quando efetivadas com vistas exclusivamente à troca e mesmo que crie mercadorias, existem duas possibilidades:

  1. ) O seu resultado são mercadorias que existem independentemente de seu produtor, ou seja, podem circular como mercadorias no intervalo entre a produção e o consumo; por exemplo, livros, quadros, todos os produtos artísticos que existem separadamente da atividade artística de seu criador e executante. A produção capitalista só se pode aplicar aqui de maneira muito limitada [...].

  2. ) O produto não é separável do ato da produção. Também aqui o modo capitalista de produção só tem lugar de maneira limitada, e só pode tê-lo, devido à natureza da coisa, em algumas esferas. (necessito do médico e não de seu menino de recados.). Nas instituições de ensino, por exemplo, para o empresário da fábrica de conhecimentos os docentes podem ser meros assalariados. Casos similares não devem ser tidos em conta quando se analisa o conjunto da produção capitalista. (MARX, 1985, p. 119-120)

Retendo esse trecho dos escritos de Marx, Saviani observa que a docência deve ser situada naquilo que estabelece a segunda possibilidade: um tipo de produção não-material no qual o produto não é separável do ato de sua produção. Em suas palavras:

A atividade de ensino, a aula, por exemplo, é alguma coisa que supõe ao mesmo tempo a presença do professor e a presença do aluno. Ou seja, o ato de dar aula é inseparável da produção desse ato e do consumo desse ato. A aula é, pois, produzida e consumida ao mesmo tempo: produzida pelo professor e consumida pelos alunos. Consequentemente, “pela própria natureza da coisa”, isto é, em razão da característica específica inerente ao ato pedagógico, o modo de produção capitalista não se dá, aí, senão em algumas esferas. (SAVIANI, 1981, p. 81)

Há, como se nota, dois aspectos do problema em jogo. O primeiro é a definição do próprio ao trabalho docente, em que Saviani pensa o ato de lecionar como unidade no qual se efetiva a produção e o consumo do que, conforme ele, é produzido pelo professor: a aula. Portanto, algo bem diferente da produção cujo resultante é um produto material que pode ser, assim, separado do seu produtor e circular como tal em outra esfera, engendrando assim uma decalagem temporal entre produção e consumo: por exemplo, as camisas feitas pelas operárias de uma empresa em Ribeirão Preto são vendidas como tais em uma loja na capital do Rio de janeiro.

O outro aspecto do problema diz respeito à forma (material ou não-material) do produto do trabalho e sua implicação para a exploração capitalista. Saviani compreende que a forma importa6. Então, não obstante abordar o problema apenas em sua face mais evidente e circunscrita ao referido trecho do texto de Marx, ele retém o essencial da questão. O fato de o trabalho docente ser um trabalho não-material e o fato de que o realizado no ato docente é produzido e consumido no desenrolar desse ato, coloca alguma dificuldade para a efetivação da exploração capitalista.

Saviani tem claro que esse trabalho pode ser tensionado a entrar em lógicas de mercado - “por exemplo, como os chamados pacotes pedagógicos” (SAVIANI, 1984, p. 81) - mas observa, corretamente, que uma tal generalização entraria em contradição com a própria natureza do processo educativo. Ele está dizendo, em suma, que o processo educativo poderia se degradar. Vejamos agora um outro autor que, se apoiando nas reflexões de Saviani, aponta também sua contribuição ao tema da natureza e especificidade do trabalho docente, Vitor Henrique Paro.

Egresso da PUC/SP sob orientação de Bernardete Gatti, ele publica em 1986, no mesmo ano de defesa de sua tese e com o mesmo título, o livro Administração escolar: introdução crítica (PARO, 2005). Obra por mais de um título importante, ela se dispõe a análise crítica da administração escolar, retomando para isso o quadro geral no qual a própria ideia de administração em geral se constitui, no que o autor examina as proposições dos teóricos no campo da administração, suas contribuições e limites, diante da escola situada em nosso modelo societal. A obra argumenta pela importância da administração escolar para que a instituição escolar cumpra suas finalidades sociais. Globalmente de grande pertinência, a obra possui também aspectos datados cujas implicações para pensar o trabalho na área da educação não são sem relevância7. Nos limitaremos, no entanto, ao objeto de nossas reflexões no texto: a discussão sobre a natureza e a especificidade do trabalho docente. Em relação ao que foi pontuado por Saviani, Vitor Paro avança aspectos importantes.

Sobre o tema em questão, duas são as publicações de referência do autor. A primeira é a já mencionada obra de 1986, a segunda é um texto escrito na ocasião do concurso para o professor na Faculdade de Educação da USP em 1993, intitulado A natureza do trabalho pedagógico. O referido texto foi publicado em uma coletânea no ano de 1997 (cf. PARO, 2010). Em ambas as publicações o autor procura desdobrar os apontamentos de Saviani e, também, refletir sobre o trabalho docente considerando os elementos do processo de trabalho descritos por Marx no capítulo cinco do livro 1 de O Capital. Essa perspectiva de análise aberta por Vitor Paro traz ricas reflexões sobre o trabalho docente, pois permite considerar o lugar do aluno no processo de trabalho e repensar a noção de produto do trabalho pedagógico avançada por Saviani.

No livro 1 de O Capital, antes de passar à análise da forma propriamente capitalista de produção, Marx apresenta os componentes que integram o processo de trabalho: “Os momentos simples do processo de trabalho são, em primeiro lugar, a atividade orientada a um fim, ou o trabalho propriamente dito; em segundo lugar, seu objeto e, em terceiro, seus meios” (MARX, 2017, p. 256). Vitor Paro retoma ao seu modo descritivamente esses elementos para estabelecer sua argumentação8. Ele destaca inicialmente o papel do educando no processo de trabalho propriamente pedagógico. O educando aparece como objeto no âmbito do processo de trabalho, mas igualmente como sujeito: “é próprio da atividade educativa o fato de ela não poder realizar-se a não ser com a participação do aluno. Essa participação se dá na medida em que o aluno entra no processo ao mesmo tempo como objeto e como sujeito da educação” (PARO, 2005, p. 141).

Desdobrando sua argumentação, Vitor Paro traz outra indicação importante, agora sobre o conceito de produto da educação escolar. Isto é, o que, pois, produz o trabalho pedagógico? Aqui ele reencontra a proposição de Saviani a respeito da aula como produto do trabalho pedagógico e a considera redutora: “A aula, porém, é apenas uma atividade, ou o próprio processo através do qual se buscam determinados resultados” (PARO, 2005, p. 144). Recordando que a educação é um processo de apropriação do saber historicamente acumulado (conhecimentos, atitudes, valores, habilidades, técnicas...) e que a instituição escolar tem papel fundamental em promover o acesso a esse saber, o autor observa que a consideração do produto do trabalho pedagógico não pode se restringir ao ato de aprender.

Esse aprender é, na realidade, a apropriação de um saber, “algo que que permanece para além do ato de produção que se dá na sala de aulas” (PARO, 2005, p. 144). Se o aluno sai do processo diferente do que entrou, isto não é outra coisa que a efetivação do trabalho pedagógico: “Essa diferença, que não é simples acréscimo, já que supõe uma real transformação na personalidade viva do educando, é que se constitui no efetivo produto do processo pedagógico escolar” (idem).

Nesses termos, recuperando a proposição de Saviani que concebia a inseparabilidade entre a aula produzida pelo professor e seu consumo pelo aluno, Vitor Paro anota que “tal consumo não se dá apenas imediatamente, mas se prolonga para além do ato de produção, por toda a vida do indivíduo” (PARO, 2005, p. 145). Disto resulta que se pode, sim, conceber a separação temporal do resultante do trabalho pedagógico. Porém, tal separação não é absoluta: parte dos processos de apropriação tem curso durante a aula, parte se constitui ao longo do tempo de escolarização do indivíduo, se manifestando, por exemplo, quando uma pessoa procura emprego, ela está alfabetizada e isto é um requisito para aquele posto de trabalho.

Um terceiro aspecto destacado por Vitor Paro concerne à natureza do saber envolvido no processo educativo escolar. Ele trata de dois gêneros de saber. Um deles poderia - embora conforme o autor sem a radicalidade do que se passa na produção material - ser concebido numa instância para ser executado em outra. É a forma capitalista que impulsiona isso ao se apropriar do saber, explica o autor. De todo modo, com essa separação, na produção material “o saber (enquanto saber fazer) não precisa estar presente” (PARO, 2005, p. 34). No caso do trabalho pedagógico, esse saber fazer se consubstancia corporificando-se nas técnicas e métodos de ensino, mas também aí, diz o autor, “pode ser apropriado pelo capital porque ele não precisa estar presente no processo de produção, já que o trabalho humano tem a peculiaridade de poder ser concebido em um momento e executado em outro, ser concebido por uns e executado por outros” (PARO, 2005, p. 34). Constatação sem dúvida paradoxal do autor, pois assume aquilo que critica. Talvez Vitor Paro tenha aqui conferido demasiado crédito às proposições do taylorismo, seguramente induzido pela base teórica que apoia suas análises sobre a administração capitalista.

Se o saber, enquanto saber-fazer, tem tal estatuto na argumentação do autor, ele contrasta com outro tipo de saber que também comparece no processo pedagógico. Trata-se do saber historicamente acumulado, isto é, “saber enquanto saber ‘que se passa’, ou seja, do saber historicamente produzido e que é objeto de apropriação pelo educando” (PARO, 2010, p. 35, destaques efetuados pelo autor). Para Vitor Paro este saber tem como característica não ser meramente instrumental, funcionando como matéria-prima no processo pedagógico. Resulta daí seu argumento pela posição central desse saber no debate sobre a aplicação ou não do modo de produção capitalista na escola: esse saber “se apresenta também como objeto de trabalho e, como tal, é inalienável do ato de produção”, por conseguinte “não pode ser expropriado do trabalhador, sob pena de descaracterizar-se o próprio processo pedagógico” (PARO, 2005, p. 148).

Dessas duas formas nas quais o saber se apresenta no trabalho pedagógico - saber enquanto saber-fazer e enquanto saber que se passa - descritas por Vitor Paro, a que ele considera inalienável sob pena de descaracterização do trabalho pedagógico é a segunda, o saber que se passa, saber que, conforme o autor, precisa necessariamente estar em posse do docente para que ele possa efetivar o trabalho pedagógico.

De nossa parte, julgamos pertinente efetuar um pequeno reparo a esse respeito: embora tensionado nessa direção, o saber-fazer também não é alienável. As técnicas, metodologias etc. podem ser concebidas por outros, mas esse exercício de concepção inscrito nas escalas de poder da hierarquia institucional de modo algum é suficiente para realizar o que precisa ser realizado na escola, na sala de aula. Nunca foi. Nem mesmo foi nas fábricas taylorizadas, como demonstrado em décadas de pesquisa em ergonomia (cf. DANIELLOU, LAVILLE, TEIGER, 1989). A questão, então, no que foi anteriormente nomeado de saber enquanto saber-fazer, talvez seja considerar em conjunto as técnicas, as metodologias de ensino etc. e o que as coloca em movimento nas situações concretas.

Ora, por distantes que estejam da sala de aula uma secretária de educação ou um diretor de escola, definindo ex-ante o livro a ser utilizado, o método pedagógico, o sequenciamento no semestre... nada do que foi definido ganha movimento por si. É a atividade humana de trabalho que - individual e coletivamente - encadeia tudo isso, lhe confere forma e coerência, arrancando consignas, dispositivos e objetos técnicos de sua inércia. O saber enquanto saber-fazer comporta, assim, métodos, técnicas de ensino etc. e também o conjunto do que a atividade de trabalho docente mobiliza (interfaces com o coletivo, saberes formais, memória, corpo...) para realizar o que precisa ser realizado.

Tal como acabamos de redefini-lo, o saber-fazer deve ser pensado juntamente com o domínio do saber que se passa. Nosso argumento é de que ambos são importantes e ambos são tensionados em direção à sua descaracterização. Vejamos agora uma outra perspectiva de análise sobre as especificidades do trabalho docente: a noção de trabalho docente como trabalho interativo.

O TRABALHO DOCENTE COMO PROFISSÃO DE INTERAÇÕES HUMANAS

Dois autores da área da educação trouxeram uma perspectiva de análise sobre a especificidade do trabalho docente que merece nota. Trata-se dos canadenses Maurice Tardif e Claude Lessard. Em duas obras, uma publicada em 1999 e outra em 2005, os autores avançam uma minuciosa análise do trabalho no âmbito das escolas, enfatizando a dimensão interativa do exercício profissional docente. As mencionadas obras correspondem a Le travail enseignant au quotidien: contribution à l’étude du travail dans les métiers et les professions d’interactions humaines. Laval: Presses de l’Université de Laval, 1999; e a publicação intitulada O trabalho docente: elementos para uma teoria da docência como profissão de interações humanas. Petrópolis: Vozes, 2005. Dessas duas obras apenas a segunda obra foi publicada no Brasil, publicação esta que contém várias seções derivadas da obra publicada em 1999, que é bem mais extensa.

Para os autores, a docência como profissão se define pela ação sobre e com outro ser humano. A docência deve ser “compreendida como uma forma particular de trabalho sobre o humano, ou seja, uma atividade em que o trabalhador se dedica ao seu ‘objeto’ de trabalho, que é justamente um outro ser humano, no modo fundamental da interação humana” (TARDIF e LESSARD, 2005, p. 8). Diversas outras profissões têm essa característica - assistente social, cuidados de idosos, medicina, enfermagem etc. - que têm se revelado, conforme os autores, mais e mais centrais no mundo contemporâneo no qual o setor terciário se expande e tende a declinar o número de trabalhadores mobilizados na produção industrial.

Em que pese, porém, a crescente importância das profissões interativas, a pesquisa acadêmica e o imaginário social sobre o trabalho restariam fixados no trabalho industrial: “o trabalho industrial produtor de bens materiais é o paradigma do trabalho”, ele “estende sua hegemonia teórica e prática às demais atividades humanas” e nele “as posições centrais são ocupadas pelos detentores (capitalistas) e os produtores (operários) de riquezas materiais”, em suma “o sistema produtivo é o coração da sociedade e das relações sociais” (TARDIF, LESSARD, 2005, p. 16). Nessa linha de interpretação, dizem os autores, que no âmbito da sociologia é uma decorrência conceber o trabalho docente nos termos de trabalho improdutivo, de agentes da reprodução da força de trabalho necessária à manutenção e desenvolvimento do capitalismo ou agentes da reprodução sociocultural. Mas, sobretudo, o trabalho docente parece ser visto como algo secundário em relação ao paradigma do trabalho industrial produtor de bens materiais.

Essa condição de grupo profissional secundário é para os autores insustentável. As sociedades modernas colocaram a instituição social escola no coração de sua constituição, “o ensino no meio escolar representa desde aproximadamente três séculos o modo dominante de socialização e formação em nossas sociedades modernas” (TARDIF, LESSARD, 1999, p. 11). Segundo os autores, são mais de 60 milhões de professores trabalhando no mundo em condições organizacionais, salariais e culturais muito diferentes, mas que ao mesmo tempo desenvolvem seu trabalho numa instituição com traços bastante estáveis, repousando, por exemplo, em um modelo celular de trabalho (a sala de aula), premidos a deslanchar um programa de ensino durante determinado tempo, sujeitos ao controle burocrático e suas exigências crescentes etc.

Assim, chamando atenção para a relevância das profissões fundadas no trabalho interativo e especialmente destacando o trabalho docente, Tardif e Lessard (1999) buscam reorientar o debate: o trabalho no ensino não pode se configurar como algo menor em relação às outras formas laborais. A via que escolhem como fundamental a ser enfatizada nessa mudança de perspectiva é a de se conceber a docência como trabalho interativo.

O quadro abaixo ajuda a compreender a proposição dos autores. Ele permite efetuar a comparação entre a natureza do trabalho industrial e a do trabalho sobre os seres humanos quanto ao gênero de interações com o objeto.

Quadro 1
- Comparação entre o trabalho industrial e o trabalho docente no âmbito das interações com o objeto de trabalho

Reencontramos no quadro acima uma questão que na seção anterior havia sido bem identificada por Vitor Paro: considerando os elementos do processo de trabalho, o aluno aparece como objeto e como sujeito no trabalho pedagógico (PARO, 2005). Tardif e Lessard (2005), contudo, levam esse aspecto bem mais longe, fazendo da própria relação com o outro no processo de trabalho o ponto central de sua argumentação. Levantam, assim, uma questão epistemológica relativa à concepção marxista, indagando se ela não permanece aprisionada na tradicional oposição sujeito/objeto e a fortiori na oposição trabalhador/matéria. Essa oposição “não se torna, por sua vez, inoperante ou, pelo menos, profundamente redutiva quando o objeto de trabalho é um outro sujeito?” (TARDIF, LESSARD, 2005, p. 29). Em surdina, Maurice Tardif e Claude Lessard repercutem aqui as reflexões do filósofo J. Habermas.

Autor de Teoria da ação comunicativa (1987), Habermas desde obras mais antigas, como em Conhecimento e interesse, publicada em 1973, aponta que o horizonte de análise de Marx é limitado - “Marx reduz o curso da reflexão ao nível do agir instrumental” (HABERMAS, 1982, p. 60) - e que por isso um outro referente lhe escapa: Marx “não pode flagrar dominação e ideologia como uma comunicação distorcida porque pressupôs que os homens se distinguem dos animais no dia em que começaram a produzir seus meios de subsistência” (idem, p. 295). A interpretação que faz Habermas da obra de Marx apresenta muitos problemas. Retornaremos sobre esse ponto ao final da seção.

A problemática em jogo na argumentação dos autores é evidenciada pela discrepância entre as oposições descritas no quadro 1. Com efeito, a diferença entre trabalhar sobre um objeto e trabalhar sobre e com um ser humano ganham distinções importantes: se um é passível de obtenção em série, o outro não; se um é homogêneo, o outro não; se um é determinado, o outro possui uma parte de indeterminação e possui, também, autodeterminação; se um envolve uma relação técnica de manipulação e produção, o outro comporta uma relação multidimensional (jurídica, normativa, emocional, ética etc.); se no trabalho sobre o objeto material o trabalhador controla diretamente o objeto, quando se trata do trabalho interativo é preciso a colaboração do objeto, objeto esse que nunca será totalmente controlado pelo trabalhador. As diferenças também se sobressaem no tocante às tecnologias empregadas: se num caso temos dispositivos materiais que engendram efeitos materiais, no outro temos tecnologias muitas vezes invisíveis, simbólicas, que engendram crenças e práticas; de um lado friccionar, triar, reunir, amontoar... e de outro afagar, ameaçar, entusiasmar, fascinar etc.

No plano comparativo, as diferenças entre o trabalho interativo e o trabalho industrial material não deixam dúvidas de que a natureza dos processos em jogo é completamente distinta. Resta, todavia, saber como os autores buscam compreender o trabalho docente nas escolas a partir de tal perspectiva. Que evidências há de que a interação é o eixo central pelo qual transita a organização do trabalho pedagógico da escola? Para dar provimento ao seu argumento, Tardif e Lessard (1999) vão inicialmente retomar a concepção ecológica da classe proposta por Walter Doyle, professor da Universidade do Arizona, em uma pesquisa publicada em 1986.

Conforme Doyle (1986), os eventos que têm curso durante uma aula podem ser descritos a partir das seguintes categorias: multiplicidade (numa aula têm lugar diversos eventos ao mesmo tempo e em um período curto), imediatez (os eventos durante a aula ocorrem repentinamente, sem anúncios prévios, exigindo ações/respostas imediatas que fazem o tempo de reação do professor ser o mínimo), rapidez (diz sobre a sucessão e o encadeamento do fluxo de acontecimentos durante a aula, Doyle observa, por exemplo, que comportamentos perturbadores ocorrem a cada 3,75 min, exigindo do professor intervir - um olhar, um gesto etc. - para manter seu propósito da aula), imprevisibilidade (ao longo da aula acontecimentos inesperados surgem e modificam em vários graus o plano inicial), visibilidade (a aula é uma atividade pública desenvolvida diante a turma - de cujos olhos o professor não pode se esconder), historicidade (diz sobre a dimensão temporal na qual se inscreve a interação entre professores e alunos - diária, semanal, ao longo do semestre - e no qual eventos condicionam os momentos seguintes).

Maurice Tardif e Claude Lessard vão reter esses aspectos da pesquisa desenvolvida por Doyle, mas observam que essas categorias estão todas em nível descritivo, carecendo, pois, do fundamento que as explique. Os autores perguntam: “o que permite que os acontecimentos da classe sejam descritos com a ajuda da categorização ecológica?” (TARDIF, LESSARD, 2005, p. 234). Para eles, a dinâmica descrita por Doyle (1986) ocorre porque o trabalho na classe é um processo interativo e de significação.

Significação porque, apontam Tardif e Lessard (2005), toda ação social é voltada em direção ao outro - esteja ele presente ou não - e tal constatação está vinculada à problemática da linguagem, da comunicação entre os agentes, dizem os autores se apoiando em J. Habermas. Eles destacam que a linguagem estabelece terreno comum entre os agentes, sendo partilhada pelos diferentes atores que mobilizam recursos simbólicos e linguísticos coletivos. Nessa perspectiva, considerando a sala de aula, “num contexto social de comunicação, pode-se falar da significação das interações” (TARDIF, LESSARD, 2005, p. 249).

Interativo porque, dizem os autores, o ato profissional mais elementar do docente é o de entrar numa sala de aula e colocar em marcha um programa de interações com os alunos. Esse gênero de interação não é uma ação acessória ou uma iniciativa suplementar do docente, bem ao contrário, “constituem, por assim dizer, o espaço - no sentido do espaço marinho ou aéreo - no qual ele penetra para trabalhar” (TARDIF, LESSARD, 2005, p. 235). Na sequência do texto, tendo em vista dar substância aos seus argumentos, os autores trazem um extrato do material recolhido em suas pesquisas. O extrato se refere ao trabalho em sala de aula de uma professora dos anos iniciais. Vejamos um trecho dele:

“Vamos sentar. Alguém já terminou os exercícios de matemática? Vamos terminar os exercícios”. Ester, pare de conversar. Ela caminha entre as carteiras e olha os exercícios que os alunos fazem. Corrige e faz comentários. “Silvano, pode fechar a porta, por favor? Samuel, está demorando muito, todo mundo já terminou, menos você? Quem sabe onde fica a biblioteca? (ninguém responde). Silvano, o que há com você?” Em seguida ela sai do local por alguns instantes deixando os alunos fazendo seus exercícios. Volta, fecha a porta, senta-se à mesa e continua as correções. Levanta-se novamente, folheia os cadernos de matemática e começa a escrever no quadro. Olha o grupo. “Jonathan, o que você está esperando?”. Jonathan responde que já terminou. Ela lhe pede que venha mostrar seu caderno e o examina. “Você vai me refazer tudo isso aqui”. Ela volta a escrever no quadro. “Você terminou Hugo? Não?” [...]. (TARDIF, LESSARD, 2005, p. 235)

Esse extrato é em sua origem bastante longo. Os autores vão trabalhá-lo de diferentes modos nos momentos seguintes da obra. O principal aspecto a ser retido dele é que ele traz de modo cristalino como e em que medida a interação é um aspecto cardinal do trabalho na classe: professor e aluno, aluno e professor, alunos com alunos. Como dizem Tardif e Lessard, “ensinar é um trabalho interativo” (2005, p. 235).

O que dizer das proposições de Maurice Tardif e Claude Lessard? Em torno do tema da especificidade do trabalho docente duas parecem ser as contribuições fundamentais dos autores. A primeira delas diz respeito à produção de conhecimento sobre os docentes e seu trabalho. O leitor e a leitora perceberam certamente como a análise empreendida pelos autores entra, por assim dizer, na escola e na classe. Essa entrada não é excessivamente focalizada, os autores estão longe de uma postura solipsista e longe de análises que ignoram aspectos estruturais (implicações do neoliberalismo, pressão mercantil sobre a instituição escolar etc.).

O que eles pretendem - sem desconsiderar a importância de pesquisas que abordam o quadro mais geral no qual a docência se desenvolve - é construir um programa de pesquisa que apreenda a docência a partir de baixo, “privilegiando mais o estudo do que os docentes fazem e não tanto prescrições a respeito do que deveriam ou não fazer” (TARDIF, LESSARD, 2005, p. 37). Assim procedendo, os autores contornam uma dificuldade comum na área da educação, a perspectiva moralizante ou normativa quanto ao trabalho docente, se propondo a estudar o exercício profissional do magistério como se estudam as demais formas de trabalho - o que envolve incorporar as contribuições das disciplinas que tem o trabalho como objeto de estudos, como a sociologia do trabalho, a psicologia do trabalho, a ergonomia da atividade etc. Nessa direção, Maurice Tardif e Claude Lessard acompanham o mesmo propósito de outros estudiosos do trabalho docente, como Durand (1996) e Amigues (2003). Esse programa de pesquisa nos parece consistente.

Também nos parece consistente a concepção do ensino como trabalho interativo. Essa é a segunda contribuição de Maurice Tardif e Claude Lessard que julgamos pertinente. Ela parece jogar luz sobre aspectos centrais que configuram o saber docente em sala de aula, mas também quanto ao trabalho pedagógico da escola como um todo. O ensino, como processo no qual tem curso a apropriação dos saberes historicamente constituídos pela humanidade, ganha um patamar de análise à altura da tarefa a ser realizada, pois leva na devida conta a complexidade do “objeto” a qual se destina o trabalho docente e a complexidade da dinâmica instaurada.

Todavia, se a direção apontada pelos autores se mostra pertinente, a via escolhida apresenta problemas importantes. As escolhas efetuadas na abordagem teórica da questão em discussão - o trabalho docente e sua especificidade como trabalho sobre e com outro ser humano - parecem se mostrar aquém da exigência posta. Fundando a dimensão interativa do trabalho docente na teoria da ação comunicativa de Habermas (1987), eles esbarram nos limites desse autor para pensar o trabalho e, também, o caractere social da linguagem9.

Não obstante, analisar e dar consequências ao trabalho docente compreendendo que este é um trabalho interativo, trabalho esse típico das profissões com alto investimento afetivo, trabalho que faz uso da personalidade do trabalhador - esta transforma-se numa ferramenta de trabalho, como bem destacam os próprios autores - e que se realiza numa complexa dinâmica entre os participantes do processo de trabalho, não exige as teses habermasianas. De outra parte, considerar o importante lugar da linguagem - as trocas linguageiras, como dizem os linguistas - no exercício da docência também não exige seguir a perspectiva de Habermas, como testemunham o conjunto de estudos publicados em uma importante obra sobre as relações entre trabalho e linguagem (cf. SOUZA-E-SILVA, FAÏTA, 2002).

Por fim, vale acrescentar que esses apontamentos críticos nada têm de dogmáticos e não estão endereçados a excluir um autor no ponto de partida por sua filiação epistemológica. Como alguns estudiosos já bem evidenciaram, a cumulatividade do conhecimento não exige a unificação dos referencias (REVEL, 2009; TANGUY, 2012). Esta é uma importante lição da epistemologia e da história da ciência. Cabe ao pesquisador - tarefa indelegável - a análise crítica, retrabalho dos conceitos, a construção da coerência. Não foi outra coisa o que pretendemos fazer.

O ESTADO DA QUESTÃO: CONSIDERAÇÕES FINAIS

Inspirado em uma obra sobre o tema da cumulatividade do conhecimento nas ciências sociais (WALLISER, 2009), não parece ser impertinente perguntar: sabemos hoje melhor que no passado sobre a natureza e a especificidade do trabalho docente? Podemos dizer de bom grado que sim. Gerações de pesquisadores não trabalharam em vão, sabemos hoje melhor que no passado sobre os docentes e seu trabalho.

Nessa longa trajetória, pesquisas pioneiras como as de Joly Gouveia e Luiz Pereira mostraram algumas especificidades do trabalho no campo do ensino, cobrindo uma gama variada de aspectos como o interesse na escolha profissional do magistério, as condições de trabalho, a configuração da jornada de trabalho, a remuneração, a formação etc. Esses são aspectos importantes para a época e que continuam muito importantes, sempre a serem atualizados com a consideração das singularidades regionais e com as transformações da sociedade. Ser docente nas escolas dos anos 1960 não é o mesmo que ser docente nas escolas da segunda década do século XXI.

Sabemos hoje também melhor sobre o posicionamento do trabalho docente no âmbito das relações sociais de produção no capitalismo e sobre as implicações deste trabalho ser um trabalho não-material. Essa foi a perspectiva desenvolvida por Dermeval Saviani. Essas aquisições foram retomadas posteriormente por Vitor Paro. Este mostrou como a aula não pode ser concebida como o produto do trabalho docente, essa era uma das linhas de argumentação de Saviani, mas a constituição do aluno educado. Logo, pois, o produzido no ato do processo pedagógico é consumido naquele instante, na interface docente-aluno, mas também segue para além do momento de sua produção. O que é produzido pelo trabalho docente circula assim para além da classe, segue com o aluno no mundo fora da classe (ele lê um livro em casa, e lê porque aprendeu a ler na escola) e também ao longo da vida, em inúmeras situações. Esse aluno não entra no processo pedagógico apenas como objeto do trabalho docente, mas também, e num só tempo, como sujeito.

Explorar e tirar consequências desse aspecto - o fato de no processo de trabalho pedagógico o aluno ser objeto/sujeito - é um dos méritos das análises de Maurice Tardif e Claude Lessard. O trabalho docente é tido por eles também como um trabalho não-material e, sobretudo, uma forma laboral na qual o trabalho ocorre sobre e com outro ser humano. Eles evidenciam empiricamente como o processo pedagógico é atravessado, de ponta a ponta, pela interface entre docente e alunos, entre alunos e docente e alunos e alunos. Não se trata de um traço qualquer, algo secundário, mas aspecto cardinal do exercício profissional no magistério. O trabalho com tais caracteres eles denominam de trabalho interativo.

É possível dizer que esse conjunto de estudos sobre a natureza e a especificidade do trabalho docente permitiu o aprofundamento de nossa compreensão sobre o tema. Esses estudos nos legaram - claro, nem completamente, nem definitivamente - importantes aquisições sobre o que é próprio à docência. A dinâmica histórica, contudo, engendra sempre novas configurações e isto faz com que a questão das especificidades da docência adquira certa perenidade, sem arrefecer sua importância.

Por fim, vale destacar que, se levarmos a sério a ideia de que a docência é trabalho, talvez seja pertinente combinar o interesse pelo que é próprio ao trabalho no campo do ensino com a compreensão de aspectos que seguem em sentido inverso. O que se pode chamar de uma verticalização da análise, no sentido de um aprofundamento sobre a especificidade da docência, deve também ser completado com a horizontalização da análise, no sentido de sua generalidade. É preciso, de certo modo, sair da docência para encontrá-la. Isto implica em efetuar aberturas em direção ao campo mais vasto dos estudos do trabalho e percorrer um pouco do que foi acumulado no âmbito da ergonomia da atividade, da sociologia do trabalho, da psicologia do trabalho, entre outras disciplinas e abordagens.

A docência possui suas especificidades e, ao mesmo tempo, é um trabalho como todos os outros. Comporta hierarquizações relativas à divisão sexual do trabalho, comporta os processos saúde/doença, comporta a decalagem entre trabalho prescrito e trabalho real, como também comporta técnica, valores, saberes formais, saberes tecidos - individual e coletivamente - pela experiência profissional, modos de fazer julgados pertinentes pelos pares, modos de hierarquizar o que é o principal e o secundário no exercício profissional etc. Dizendo isso realçamos a dimensão formal, a mais visível, do trabalho e uma outra, pouco visível (porém, de importância cardinal), tecida pelos homens e mulheres na experiência de vida e trabalho e que, como belamente diz Schwartz (1988), lhe servem como patrimônio.

Há muito a ser feito nesse domínio. A dimensão menos visível do trabalho sublinhada acima não é outra que aquela sobre o qual Nóvoa (2022), desde seus textos mais antigos, incansavelmente chama a atenção para a importância de ser valorizada e investida no âmbito da formação dos professores e professoras. Ela é exatamente o que preenche a profissão por dentro.

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  • WALLISER, Bernard. (Org.). La cumulativité du savoir en sciences sociales Paris: Ecole des Hautes Etudes en Sciences Sociales, 2009.
  • 1
    Como bem notaram alguns autores, é comum nas pesquisas em educação o uso das mais diversas terminologias para se referir ao trabalho docente e se colocar sob esta rubrica temas que - porque conduzidos em pesquisas sem que se faça nenhuma ou quase nenhuma mediação com o trabalho - terminam por não dizer nada sobre o trabalho docente, ainda que se pretendam inscritas nesse domínio. Isto foi constatado por Gama e Terrazan (2012), em pesquisa realizada sobre as comunicações apresentadas nas edições do ENDIPE.
  • 2
    Esses aspectos são tratados por diversos autores, entre os quais se destaca a pesquisa de Núbia Ribeiro sobre a trajetória e o trabalho acadêmico de Luiz Pereira (cf. RIBEIRO, 2007).
  • 3
    Aparecida Joly Gouveia cita a esse respeito, em um texto de 1985, Durkheim, Weber e Mannheim (GOUVEIA, 1985, p.64); Celso Beisiegel amplia essa lista, acrescentando aos autores citados as obras de Karl Marx, Wright Mills e Florian Znaniecki (BEISIEGEL, 2013).
  • 4
    Mais-valia é o termo usualmente utilizado para se traduzir a palavra alemã Mehrwert, central no esquema teórico de Marx. Nos anos 1980 essa era forma habitualmente utilizada nas traduções. Em tempos mais recentes, a publicação dos Grundrisse e de O Capital pela editora Boitempo, adotou o termo Mais-valor, tradução literal do termo alemão. Ambas as edições são reputadas como as melhores disponíveis no Brasil. Os tradutores esclarecem - e se está aqui de acordo com eles - que assim o fizeram porque Mais-valor diz precisamente sobre a palavra traduzida e, igualmente, é mais precisa sobre o conteúdo da categoria, pois a produção capitalista é produção de valor, produção de valor crescente (cf. DUAYER, 2011).
  • 5
    Um estudo sobre o trabalho docente publicado em 2008, de autoria de Tumolo e Fontana (2008), insiste nessa direção considerada por Saviani como equivocada. Se propondo a analisar a natureza do trabalho docente no capitalismo e discutindo a produção acadêmica da década de 1990, a ênfase dos autores recai sobre a distinção entre trabalho produtivo e trabalho improdutivo, no que apontam que o trabalho docente pode ser um ou outro, a depender das relações sociais de produção no qual o trabalho está inserido. Sobre o mencionado estudo não é sem pertinência observar que a distinção entre trabalho produtivo e improdutivo quanto à docência e a distinção entre ensino público e privado quanto à geração de mais-valor já havia sido feita por Saviani 27 anos antes, no texto de 1981, como também aparece, de modo substantivo, em Paro (1986, p.137). A respeito das elaborações de Tumolo e Fontana (2008) deve-se acrescentar que a discussão sobre a noção de proletário em Marx coloca muitos problemas, não podendo sem mais ser assimilada, como fazem os autores, ao trabalho produtivo (cf. ALVES, 2022, p.1).
  • 6
    O tema é complexo, o trecho citado por Saviani não deixa entrever toda a dimensão do que está por detrás do problema. Marx trata do assunto em diversos textos: o Capítulo IV inédito, citado por Saviani, mas também em Grundrisse, O Capital e Teorias da mais-valia. Nesses textos, uma parte da problemática que os enreda diz respeito a questão da forma/matéria na relação entre trabalho produtivo e trabalho improdutivo. Se voltarmos a atenção para o trecho do Capítulo IV inédito de O Capital citado por Saviani, veremos que a posição do trabalho produtivo como aquele que produz mais-valor e que - é importante reter esse aspecto - seria indiferente à forma ganha outras determinidades. A sutileza da dialética sob a pena de Marx indaga sobre a própria forma, deixando a entender que a indiferença da forma não seria absoluta. Esse aspecto foi visto especialmente por Ruy Fausto que, argutamente, pergunta se não haveria uma forma mais adequada do produto do trabalho a ser explorado pelo modo de produção capitalista (FAUSTO, 1987). Ele observa que na análise de Marx é como se em um primeiro momento a determinação material do trabalho não importasse e, num segundo momento, que ela não devesse ser excluída. Isso é válido para o capitalismo do século XXI? Para Fausto, “tudo se passa [hoje] como se a forma capitalista tivesse quebrado essa barreira, ela se põe na matéria material como na matéria imaterial” (1987, p. 255).
  • 7
    Para dar conta de sua proposição, Vitor Paro busca o aporte dos teóricos no campo da administração, por um lado, e por outro busca a referência de uma literatura que lhe forneça o suporte para a crítica das formas ordinárias de se conceber e atuar no âmbito da administração. Esse referencial ele encontrará na sociologia do trabalho, em especial em Braverman (1981). Ocorre que este é um autor no qual o melhor da sociologia do trabalho se distanciou há muito tempo, sua perspectiva unilateral e determinista foi objeto de importantes críticas ainda quando o livro foi originalmente publicado, em 1974. Baseado em um modelo idealizado do trabalho artesanal como imagem do trabalho qualificado, Braverman concebe toda mudança no processo de trabalho como um aumento linear da degradação do trabalho no capitalismo. Uma síntese das críticas efetuadas a obra de Braverman pode ser vista em Castro e Guimarães (1991), para situar a concepção de Harry Braverman no âmbito dos fundamentos da sociologia do trabalho cf. Alves (2022).
  • 8
    Há uma impropriedade na descrição efetuada pelo autor no tocante aos componentes do processo de trabalho em Marx. Na tríade dos componentes do processo de trabalho ele substitui atividade por força de trabalho. Em suas palavras: “Além do objeto de trabalho e instrumentos de produção, também chamados em seu conjunto de meios de produção, o processo de trabalho exige a presença da energia do próprio homem, denominada força de trabalho” (PARO, 2010, p.30). Ocorre que esse conceito em Marx, a força de trabalho, diz respeito ao trabalho colhido pela economia capitalista, visto que sob o salariato não se compra o trabalho como tal, nem sua pessoa, mas uma potencialidade (daí o importante papel que a gestão vai ocupar à medida que a instituição salarial se expande e as formas pretéritas de organização do trabalho recuam). Assim, quando Marx trata dos elementos simples do processo de trabalho, ele faz uso da palavra atividade (Tätigkeit). Não está em questão, nesse momento, a determinação posta por este ou aquele modo de produção, mas o estabelecimento do que, do ponto de vista técnico-antropológico, integra o processo de trabalho, sendo assim comum a não importa qual tempo histórico ou quadro social. Como destaca Sève (2008), a problemática da Tätigkeit ocupa lugar cardinal - e justamente por isso não pode ser secundarizada - na obra de Marx à medida que ele progride em suas investigações, bem como terá seu lugar em importantes desenvolvimentos na psicologia soviética nas décadas iniciais do século XX. Sobre a constituição do conceito de força de trabalho em Marx, dois minuciosos estudos podem ser vistos em Morilhat (2017) e em Alves (2022).
  • 9
    É uma vasta questão. De modo muito resumido, o essencial do problema envolve - e aqui sigo Yves Schwartz de perto - o fato de que o trabalho é um tema que recua em importância na obra de Habermas. Ele quer elaborar um outro paradigma, daí sua proposição de uma teoria da ação comunicativa. Nesta é a linguagem que ocupa posição central. Esse é um primeiro ponto da questão. É preciso um esforço muito grande para pensar o trabalho a partir de Habermas. Na sua filosofia, por mais ampla que seja, “não se achará nela uma maneira de encontrar o trabalho humano como um enigma que enriquece as relações entre o trabalho, o aprender e o saber (SCHWARTZ,2008, p. 33). Habermas é antes barreira do que ponte para esse gênero de investigação. Mas Tardif e Lessard não se dispunham, justamente, a estudar o ensino como trabalho? O segundo ponto diz respeito a uma importante inconsistência na tese de Habermas. Para conceber seu projeto de um novo paradigma social, ele é obrigado a considerar como esses aspectos reverberam na constituição dos indivíduos, isto é, como esse “social” encontra o “indivíduo”. Ele necessita convocar a psicologia. Aqui ele busca apoio em Jean Piaget: “Este conceito mais amplo de racionalidade comunicativa desenvolvido a partir do enfoque fenomenológico pode articular-se com o conceito de racionalidade cognitivo-instrumental desenvolvido a partir do enfoque realista. Existem, com efeito, relações internas entre a capacidade de percepção descentrada (no sentido de Piaget) e a capacidade de manipular coisas, por um lado, e a capacidade de entendimento intersubjetivo sobre as coisas, por outro. Daí que Piaget escolha o modelo combinado que representa a cooperação social, segundo o qual vários sujeitos coordenam suas intervenções no mundo por meio da ação comunicativa” (HABERMAS, 1987, p. 32). Sem menosprezar esse notável nome da história da ciência que foi Piaget, é preciso reconhecer que, sobre a dimensão social da constituição do indivíduo, sua teoria porta limites importantes. Como observa Lucien Sève, “a gênese do psíquico não é conforme Piaget de uma outra natureza que a evolução biológica, a fonte social dessas formas superiores resta nele largamente subestimadas” (SÈVE, 2008, p.183). Logo, pois, a reivindicada dimensão social da linguagem não é fundada, instrumento e signo circulam assim num mundo sem história, no sentido forte dessa palavra. O autor que no início do século XX vai evidenciar que aquilo que é propriamente humano é externo ao indivíduo é L. S. Vygotski, autor esse ignorado por Habermas e cujas fontes estão em Marx, figura esta que faz parte do universo que Habermas deseja superar. O círculo, então, se fecha. Ruy Fausto, sempre muito preciso, certa vez anotou que tudo se passa como se estivéssemos além de Marx, mas que muitas vezes se está aquém (FAUSTO, 2002).

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    11 Mar 2024
  • Data do Fascículo
    2024

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