Open-access NÃO É NINGUÉM, É O PROFESSOR! SOBRE A FIGURA DOCENTE E O SEU OFÍCIO

¡NO ES NADIE, ES EL MAESTRO! SOBRE LA FIGURA DOCENTE Y SU OFICIO

RESUMO:

O presente artigo visa examinar de que modo os esforços empreendidos no sentido de substituir a pessoalidade da ação docente pela tecnicidade impessoal de sua atividade afetam o professor e o ofício docente. O discurso de tecnicização da educação, discurso estruturado em torno de uma pretendida completude, centralidade e autonomia da dimensão técnica e metodológica do educar, concebe a educação como uma atividade que prescinde da presença de um alguém, de um sujeito a quem se faz possível o usufruto de um lugar de ação e enunciação. O que resta ao ofício docente diante dos esforços que visam reduzi-lo a uma atividade guiada pela lógica da produção fabril, marcada pela repetição automatizada de processos que independem da unicidade e pessoalidade daquele que a realiza? Estaria essa condição relacionada a queixas, adoecimentos, sentimentos de desvalorização e impotência frequentemente enunciados pelos professores? O exame desses questionamentos será feito à luz de uma fenomenologia das atividades humanas, tal como a concebe Hannah Arendt, e de escritos que buscam compreender a educação a partir dos aportes da psicanálise.

Palavras-chave: ofício docente; tecnicização da educação; Hannah Arendt; filosofia da educação; psicanálise na educação

RESUMEN:

Este artículo tiene como objetivo examinar cómo los esfuerzos realizados para reemplazar la personalidad de la acción docente por la tecnicidad impersonal de su actividad afectan al profesor y a la profesión docente. El discurso de la tecnificación de la educación, discurso estructurado alrededor de lo completo pretendido, de la centralidad y autonomía de la dimensión técnica y didáctica pretendidas, concibe la educación como una actividad que no requiere la presencia de alguien, de un sujeto pasible de usufructuar de un lugar de acción y enunciación. ¿Qué queda de la docencia frente a los esfuerzos encaminados a reducirla a una actividad guiada por la lógica de la producción fabril, marcada por la repetición automatizada de procesos independientes de la singularidad y personalidad de quien realiza la actividad? ¿Estaría relacionada esta condición con los malestares, enfermedades, sentimientos de desvaloración e impotencia frecuentemente mencionados por los docentes? El análisis de estas cuestiones se hará a la luz de una fenomenología de las actividades humanas, tal como la concibe Hannah Arendt, y de escritos que buscan comprender la educación a partir de los aportes del psicoanálisis.

Palabras clave: trabajo docente; tecnificación de la educación; Hannah Arendt; filosofía de la educación; psicoanálisis en la educación

ABSTRACT:

This article aims to examine how efforts that seek to replace the personality of the teaching action by the impersonal technicality of its activity affect the teacher and the teaching profession. The discourse of technicization of education, a discourse structured around the intended completeness, centrality, and autonomy of the technical and methodological dimension of education, conceives education as an activity that does not require the presence of someone, the presence of a subject to whom it is possible to enjoy a place of action and enunciation. What does the teacher do in the face of efforts to reduce teaching to an activity guided by the logic of factory production, marked by the automated repetition of processes that are independent of the uniqueness and personality of the one who performs it? Would this condition be related to the complaints, illnesses, feelings of devaluation, and impotence frequently mentioned by teachers? The examination of these questions will be done in the light of a phenomenology of human activities, as conceived by Hannah Arendt, and of writings that seek to understand education from the contributions of psychoanalysis.

Keywords: teaching craft; technicization of education; Hannah Arendt; philosophy of education; psychoanalysis in education

APRESENTAÇÃO

[...]

Tomo o meu café com pão dormido, que não é tão ruim assim. E enquanto tomo café vou me lembrando de um homem modesto que conheci antigamente. Quando vinha deixar o pão à porta do apartamento ele apertava a campainha, mas, para não incomodar os moradores, avisava gritando:

- Não é ninguém, é o padeiro!

Interroguei-o uma vez: como tivera a ideia de gritar aquilo?

“Então você não é ninguém?”

Ele abriu um sorriso largo. Explicou que aprendera aquilo de ouvido. Muitas vezes lhe acontecera bater a campainha de uma casa e ser atendido por uma empregada ou outra pessoa qualquer, e ouvir uma voz que vinha lá de dentro perguntando quem era; e ouvir a pessoa que o atendera dizer para dentro: “não é ninguém, não senhora, é o padeiro”. Assim ficara sabendo que não era ninguém…

Ele me contou isso sem mágoa nenhuma, e se despediu ainda sorrindo.

[...]

(Trecho de O padeiro, de Rubem Braga)

A figura literária do padeiro de Rubem Braga, ao ser instado a identificar-se - a, por exemplo, enunciar um nome que o singularizasse, destacando-o como a pessoa única que é, com sua história -, desidentifica-se com sua própria subjetividade e enuncia a si mesmo como um “ninguém”. A cena poderia ensejar interpretações literárias ou sociológicas que vinculassem essa figura à sociedade de massas, ao abandono a que são relegados trabalhadores urbanos de metrópoles etc. Todavia, nas reflexões que se seguem nós a tomaremos como uma metáfora das vicissitudes do ofício docente submetido à tecnicização, à normalização burocrática e ao fetiche da redução dos desafios da atividade docente à aplicação de supostas metodologias pedagógicas redentoras. Em suma, a cena retrata, por analogia, os esforços a que hoje assistimos no sentido de substituir a pessoalidade da ação docente pela tecnicidade impessoal de sua atividade, de forma a despojar a figura do professor de sua identidade narrativa singular. Tal como no caso do padeiro, espera-se que ele se assuma como um “ninguém”, evitando, assim, incomodar seus interlocutores. Ao entrar em cena, um alguém sempre pode atrapalhar, embaralhar o esperado, escapar ao contratado e ao planejado. Isso porque um “alguém” poderia entrar para tomar um café, narrar um fato que presenciara ou ainda contar uma anedota sobre o conteúdo da sua entrega. Um ninguém, todavia, deve ali se fazer presente apenas para que a máquina não deixe de funcionar, para que o conteúdo (ou o pão) não deixe de ser entregue.

Nas reflexões que se seguem, sustentaremos a hipótese de que essa figura abstrata - o “ninguém” - emerge como fruto do discurso de tecnicização da educação e de seu impacto nas representações acerca do ofício docente. Tal discurso, de modo geral, estrutura-se em torno de uma pretendida completude, centralidade e autonomia da dimensão técnica e metodológica da educação. Argumentaremos que o sucesso desse discurso implicaria a perda de elementos fundantes da formação educacional, já que consiste num rechaço à possibilidade de que algo da ordem do imprevisto, do novo, do sujeito possa emergir no educar. Perguntamo-nos, ainda e de modo mais específico, acerca das implicações desse processo à possibilidade de ação e enunciação do professor em seu ofício. O que resta ao ofício docente diante dos esforços de tecnicização da educação que procuram reduzi-lo a uma atividade guiada pela lógica da produção fabril, marcada pela repetição automatizada de processos que independem da unicidade e pessoalidade daquele que a realiza? Estaria tal tentativa relacionada às diversas queixas, adoecimentos, sentimentos de desvalorização e impotência frequentemente enunciados pelos professores? O exame desses questionamentos será feito à luz de uma fenomenologia das atividades humanas, tal como a concebe Arendt, e de escritos que buscam compreender a educação a partir dos aportes da psicanálise.

SOBRE OS CONTORNOS DO ALGUÉM E DO NINGUÉM

Como tivera ele a ideia de gritar que não era ninguém? Diante de uma figura aparentemente sem contornos, perguntamo-nos a respeito das relações e dos elementos mobilizados em sua enunciação. Seria essa figura capaz de produzir e deixar estórias1 [stories] atrás de si? A cena narrada em O padeiro instiga-nos a pensar a respeito dos traços difusos e imprecisos do ninguém e como esse aparente não-personagem participa de um acontecimento humano. Valendo-nos de uma estratégia marcadamente arendtiana, buscaremos inicialmente examinar a figura do ninguém a partir do que ele não é, concebendo-o em oposição ao conceito de um alguém.

Diferentemente de explicitar o que alguém é - ou seja, características compartilhadas com outros sujeitos, como sua profissão, nacionalidade etc. - a pergunta sobre quem alguém é volta-se para a unicidade de cada ser humano. Quem alguém é, propõe Arendt (2015), revela-se por meio de atos e palavras, feitos e proferidas em um mundo comum. Radicados no solo da unicidade e da singularidade, os atos e as palavras humanos permitem a um agente revelar ativamente sua identidade pessoal, única e singular. Nessa revelação, a um rosto com características compartilhadas por tantos outros que lhe são semelhantes, adicionam-se feições distintivas. “Desse alguém que é único pode-se dizer verdadeiramente que antes dele não havia ninguém” (ARENDT, 2015, p. 220).

A ação e o discurso, assinala Arendt (2015), estão sempre intimamente ligados, visto que a revelação de um alguém, que é expressa na resposta à pergunta quem alguém é ,“está implícita tanto em suas palavras quanto em seus feitos” (p. 221). Essa vinculação é de tal forma constitutiva que, segundo a autora, “desacompanhada do discurso, a ação perderia não só o seu caráter revelador, como, e pelo mesmo motivo, o seu sujeito” (p. 221). Sem o discurso,

em lugar de homens que agem teríamos robôs executores a realizar coisas que permaneceriam humanamente incompreensíveis. A ação muda deixaria de ser ação, pois não haveria mais um ator; e o ator, realizador de feitos, só é possível se for, ao mesmo tempo, o pronunciador de palavras. A ação que ele inicia é humanamente revelada pela palavra, e embora seu ato possa ser percebido em seu aparecimento físico bruto, sem acompanhamento verbal, só se torna relevante por meio da palavra falada na qual ele se identifica como o ator, anuncia o que faz, fez e pretende fazer (ARENDT, 2015, p. 221).

A ação e o discurso de um alguém eclodem no mundo como novos fios que são imediatamente integrados à teia de relações humanas existente onde quer que os seres humanos vivam junto aos outros. Os novos fios a ela adicionados passam invariavelmente a interferir - direta ou indiretamente - naqueles que ali já estavam. Em maior ou menor medida, a história humana muda o seu rumo, acrescentam-se novas passagens ao grande livro de estórias da humanidade [storybook] (ARENDT, 2015). As implicações da existência de uma teia de relações nas quais são incluídos novos fios à medida que agimos e falamos não se reduzem, todavia, à integração e à interferência de um alguém no vasto legado de feitos e palavras humanas. A existência de tal teia implica que as consequências ou efeitos de nossos atos são sempre ilimitados e imprevisíveis:

toda ação deflagra não apenas uma reação, mas uma reação em cadeia, e todo processo é causa de novos processos imprevisíveis. Esta ilimitabilidade é inevitável; não poderia ser remediada restringindo nossas ações a um quadro limitado, palpável, de circunstâncias, ou armazenando todo o material pertinente em computadores gigantes. O menor ato, nas mais limitadas circunstâncias, porta o gérmen da mesma ilimitabilidade e imprevisibilidade; um ato, um gesto ou uma palavra podem ser suficientes para mudar qualquer constelação (ARENDT, 2005, p. 192-193).

E é justamente esse movimento que ocorre com as estórias, com aquilo que um alguém deixa atrás de si: a estória singular, produzida por um alguém que age e fala em um mundo humano, afeta de modo também singular “as estórias de vida de todos aqueles com quem ele entra em contato” (ARENDT, 2015, p. 228).

Essas ponderações iniciais acerca do alguém e de sua vinculação radical com a ação suscitam reflexões a respeito do que poderia ter inspirado o padeiro a enunciar que não era ninguém. O que essa ‘ninguém-dade’ [nobody-ness]2 diz sobre ele e sobre a sua ida à porta? Antes de ser uma figura a quem é possível atribuir contornos nítidos, o ninguém parece se constituir em uma versão espoliada de um alguém: um sujeito despojado daquilo que essencialmente o distingue como humano.

O ninguém, propomos, é a figura que em determinada situação reduz a sua presença e o seu aparecimento a uma finalidade específica, a uma função previamente estabelecida. Nada se espera dele além do previsto, daquilo que consta no contrato. Sabe-se de antemão a razão precisa pela qual e para a qual ele ali está, seja para apertar botões, entregar um pão ou, na lógica que aqui examinamos, para ensinar, reduzido à execução de uma atividade impessoal. Sua figura e o seu aparecimento não são levados em conta na sucessão de cenas que compõem a grande obra em que se insere.

Àquilo operado por um ninguém, ao que seria uma espécie de enclausuramento da ação, Arendt (2015) nomeia comportamento, por contraste à pessoalidade da ação. A autora discorre sobre esse conceito ao examinar o que seria o modo de funcionamento da sociedade de massas - e de modo mais específico da sociedade de empregados -, nas quais é requerido de seus membros um funcionamento puramente automático,

como se a vida individual realmente houvesse sido submersa no processo vital global da espécie e a única decisão ativa exigida do indivíduo fosse deixar-se levar, por assim dizer, abandonar a sua individualidade, as dores e as penas de viver ainda sentidas individualmente, e aquiescer a um tipo funcional, entorpecido e “tranquilizado” de comportamento (ARENDT, 2015, p. 401).

A manutenção de um tipo funcional, entorpecido e tranquilizado de comportamento corresponde justamente àquele necessário à adaptação dos sujeitos às condições de vida em um mundo que vê, a cada dia, o deserto avançar. O comportamento é elemento central do processo de desarraigamento e superfluidade humana no qual o mundo comum tende a desaparecer.

O comportamento enclausura a ação - e o discurso - ao furtar-lhe a espontaneidade, a liberdade, a façanha extraordinária que sempre comporta (ARENDT, 2015). Ao assim operar, ele priva o sujeito - que então se transfigura em um ninguém - de sua revelação no mundo de modo único e singular. Resta-lhe apenas um rosto com características compartilhadas por tantos outros que lhe são semelhantes. A partir dessa perspectiva parece-nos possível afirmar, portanto, que um ninguém é um ator que em determinada circunstância se comporta em lugar de agir e que reduz a sua enunciação a uma mera comunicação desprovida das raízes que o pensamento - uma reflexão ajuizante da experiência cotidiana - poderia lhe conferir. Aquilo que um ninguém faz e profere é apenas um meio para determinado fim. Trata-se aqui, é importante ressaltar, de uma distinção analítica e não ontológica, já que se manifesta em condições específicas, que não impedem que o alguém venha a se manifestar em outras circunstâncias.

Sem o desvelamento do agente no ato, a ação perde seu caráter específico e torna-se um feito como outro qualquer. Na verdade, passa a ser apenas um meio de atingir um fim, tal como a fabricação é um meio de produzir um objeto. [...] o discurso transforma-se, de fato, em “mera conversa”, apenas mais um meio de alcançar um fim, [...] nesse caso, as palavras nada revelam (ARENDT, 2015, p. 223, grifos nossos).

Articulando essas reflexões à luz dos escritos da psicanálise poderíamos acrescentar ainda que a palavra, sob a lógica da ‘ninguém-dade’ [nobody-ness], torna-se uma fala desprovida de uma condição que a distingue como humana: a condição de endereçamento (DE LAJONQUIÈRE, 2021). A palavra endereçada, a palavra de um alguém, em oposição aos enunciados vazios e anônimos, carrega uma marca singular de pertencimento a uma estória, a uma tradição e, como tal, “carrega em si mesma uma dose de existência, uma cota de saber fazer com a vida, ou seja, um savoir vivre ou saber existencial que não se reduz ao conhecimento sobre nenhum dos mundos possíveis - aqueles das letras, dos números etc.” (DE LAJONQUIÈRE, 2014, p. 50). Na palavra endereçada está embutida a marca de origem de seu remetente, isto é, quem ele é e qual é a sua estória junto aos outros. A palavra endereçada diz (do mundo) de onde veio e em nome de que(m) foi endereçada (FANIZZI; DE LAJONQUIÈRE, 2023). A palavra endereçada supõe um sujeito, um alguém, em seu destinatário.

Operando desse modo, a palavra endereçada, propõe Lajonquière (2021), é privativa àqueles em condição humana, os “únicos seres capazes de dar a palavra e de cobrá-la de um outro ‘parlêtre’, conforme o neologismo lacaniano. [...] Esse endereçamento pressupõe o sujeito, assim como implica todo e qualquer sujeito humano” (DE LAJONQUIÈRE, 2021, p. 18-19). Implicação essa, assinala o autor, traduzida no fato de que “de nossa posição de sujeito somos sempre responsáveis” (LACAN, 1965 apud DE LAJONQUIÈRE, 2021, p. 19).

Em movimento contrário, o comportamento - e as deformações que impõe à ação e à enunciação - cria desertos, deixa os fios da teia de relações humanas perecerem à ruína do tempo, posto que se trata de uma atitude de renúncia à sua tessitura. Ao comportar-se, o sujeito retira-se da cena humana e assume uma posição de indiferença e alienação com relação ao mundo e à própria humanidade. Torna-se uma figura desarraigada e supérflua, visto que declina do usufruto de um lugar singular no curso da história humana.

Para encerrarmos esta primeira seção, parece-nos relevante acrescentar ainda um aspecto sutil, mas fundamental ao exame da distinção entre ação e comportamento. Apesar da importância radical da ação para a existência humana, seria ilusória a consideração de que os humanos agem o tempo todo. A despeito do modo singular como cada pessoa pode realizar determinada atividade, há uma grande quantidade delas - sobretudo aquelas essencialmente técnicas, burocráticas ou laborais - junto às quais basta que sigamos certo conjunto de regras e operações para realizá-las, para atingirmos o seu fim. Elas não nos convocam à ação, mas justamente ao comportamento. E essas situações não se somam ou dizem respeito ao processo de desarraigamento e superfluidade humana que aqui examinamos; note-se que o padeiro, naquela atividade pontual e específica de entrega dos pães, contava sobre a sua ‘ninguém-dade’ sem mágoa nenhuma, e se despedia sorrindo. O padeiro, da mesma forma que o professor ou qualquer outra pessoa, comporta-se, comunica-se e, por vezes, age e fala. Ser alguém não é uma condição estável e adquirida, não é uma identidade fixa e conquistada; revelamo-nos como alguém de modo sempre fugaz e irruptivo, revelamo-nos como alguém no justo instante de um ato ou uma palavra que afirma a unicidade do sujeito. O problema se dá, por sua vez, na recorrente imposição do comportamento em substituição à ação, no espraiamento da lógica da fabricação em um contexto de produção fabril - que muito se aproxima do trabalho (labor) - que se sobrepõe às atividades próprias do domínio da ação, às relações políticas e intersubjetivas. O risco consiste no embaralhamento do modus operandi das atividades da vita activa - trabalho, obra e ação (ARENDT, 2015) -, bem como no desequilíbrio da incidência de cada uma delas na existência humana.

Parece-nos ser justamente neste ponto, no espraiamento dos domínios de uma das atividades humanas sobre outra, que se situa a questão central do problema aqui examinado: a lógica tecnicista que hoje rege a educação parece ignorar as fronteiras de cada uma das atividades que compõem o ofício de educar - no qual há trabalho, há obra e há também ação - e avança indiscriminadamente sobre todos os seus territórios. Assim, ao buscarmos examinar as implicações do discurso de tecnicização da educação no que concerne às possibilidades de ação e enunciação docente, o fazemos motivados pelo fato de que esse discurso compreende a educação como uma atividade semelhante àquela da produção fabril e, como tal, visa lhe impor - e aos sujeitos que a empreendem - a lógica própria à atividade fabricadora em sua modalidade industrial3.

Ocorre que a lógica fabril da produção em escala industrial não suporta a presença de agentes capazes de mudar, a cada instante, o rumo de sua produção. Para que atinja os fins previamente determinados é imperativo que todos os sujeitos envolvidos em seu processo se limitem ao comportamento. A docência torna-se, nessa lógica, um ofício supostamente passível de ser exercido por qualquer um, por um ninguém, como sonham os planejadores dos sistemas apostilados. Noutras palavras, visa-se transformar a docência em um ofício que prescinde da presença de um alguém capaz de propor o novo e o improvável, de alguém capaz de acolher e gerir o imprevisto. Ao ensino bastaria um bom conjunto de materiais e métodos e um aplicador apto que se comporte adequadamente. É, afinal, precisamente o comportamento uniforme aquele “que se presta à determinação estatística e, portanto, à predição cientificamente correta” (ARENDT, 2015, p. 53), atributos fundamentais ao discurso de tecnicização da educação.

Visa-se, em semelhante lógica, a um processo no qual não haja fios que se soltem pela ação de um alguém, tampouco imprevistos que exijam um novo cálculo de rota ou impliquem um atraso nas entregas. O sistema (de ensino ou outro qualquer) busca tornar-se imune aos sujeitos no momento em que ele os toma como supérfluos, como “dentes de uma engrenagem”. Enredado em seu ofício por discursos e mecanismos que o compelem ao comportamento, o professor é então transformado na figura abstrata do ninguém. É ele, assim, um não-personagem na narrativa que se conta sobre a educação, um não-personagem em seu próprio ofício. E isso certamente não se dá sem consequências, visto que uma pessoa que se lança a ensinar “não faz simplesmente alguma coisa, ela faz também alguma coisa de si mesma: sua identidade carrega as marcas de sua própria atividade e uma boa parte de sua existência é caracterizada por sua atuação profissional” (TARDIF; RAYMOND, 2000, p. 210). A ‘ninguém-dade’ de um professor, propomos, opera uma espécie de ruptura no fio de sua narrativa (RICŒUR, 2021) e participa de modo profundo daquilo que faz sofrer um sujeito (FANIZZI, 2022). Afinal, como propõe Ricœur (2021) “uma vida é a história desta vida, em busca de narração. Compreender a si mesmo é ser capaz de contar histórias sobre si mesmo que sejam ao mesmo tempo inteligíveis e aceitáveis, sobretudo aceitáveis” (p. 21-22, grifos e tradução nossa).

A LÓGICA FABRICADORA COMO RESPOSTA À FRAGILIDADE EDUCATIVA

É como se tivessem dito que bastaria que os homens renunciassem à sua capacidade para a ação - que é fútil, ilimitada e incerta com relação aos resultados - para que houvesse um remédio para a fragilidade dos assuntos humanos.

Hannah Arendt

A existência humana na Terra não seria possível apenas com o aparecimento fugaz e improdutivo da ação. As três principais atividades da vita activa examinadas por Arendt em sua obra A Condição Humana (2015) complementam-se e revestem-se de igual importância no movimento geral de conservação e renovação do mundo, da vida e da existência humana. Ocorre que cada uma delas guarda uma série de especificidades e, poderíamos mesmo dizer, incompatibilidades, de modo que a sobreposição dessas atividades ou a transposição do modus operandi de uma delas para outra não se faz sem importantes perdas e subversões às características que essencialmente as distinguem como trabalho, obra ou ação.

Antes de examinarmos de que modo a lógica do trabalho (labor) incorporada pela produção industrial parece ter hoje se espraiado sobre a educação e, de forma mais específica, sobre a atividade docente, vejamos brevemente alguns dos contornos que Arendt atribui à obra e ao processo por meio do qual ela é fabricada. Pensemos, primeiramente, nas distinções que Arendt (2015) propõe entre as atividades do trabalho e da obra, para em seguida examiná-la em relação à ação. Enquanto o trabalho é a atividade que corresponde ao processo biológico do corpo humano, a obra está relacionada à não-naturalidade da existência humana e, desse modo, é liberada do sempre-recorrente ciclo vital ao qual o trabalho está condicionado. A obra, por meio da fabricação, proporciona a construção de um mundo “artificial” de coisas, um lar concreto para a vida humana capaz de a ela transcender e sobreviver. Ao produzir objetos de uso - e não de consumo, como o trabalho - a obra dá ao mundo “a estabilidade e a solidez sem as quais não se poderia contar com ele para abrigar a criatura mortal e instável que é o homem” (ARENDT, 2005, p. 183).

Outro aspecto essencial que a autora assinala ao distinguir essas atividades é o fato de que a fabricação tem sempre um começo definido e um fim previsível, qual seja, o objeto que se pretende ter em mãos ao final da atividade. “A durabilidade e a objetividade são o resultado da fabricação, a obra do homo faber, que consiste em uma reificação” (ARENDT, 2005, p. 184). Já o trabalho, aprisionado no movimento cíclico das atividades vitais, “não tem, propriamente falando, nem um começo nem um fim - apenas pausas, intervalos entre a exaustão e a regeneração” (ARENDT, 2005, p. 185). A atividade do trabalho nunca chega a um fim enquanto durar a vida, ela é infinitamente repetitiva.

Ora, tendo em conta algumas das principais características da atividade da obra - ela produz objetos de uso, tem um começo e um fim definidos, visa à durabilidade, à objetividade e orienta-se pela lógica dos meios e fins -, de que modo poderíamos justificar a afirmação acerca do movimento que busca reduzir a educação a uma atividade fabricadora marcada pelos processos automatizados do trabalho? A tentativa de aplicação da lógica da fabricação ao educar pode ser identificada em diferentes discursos, estratégias e mecanismos atualmente mobilizados em torno da educação; e esse processo, dentre diversos outros que visam despojá-la de seu sentido intrínseco, coloca hoje a escola e os seus sujeitos em um lugar no qual precisam ser defendidos (MASSCHELEIN; SIMONS; LARROSA, 2022). Isso porque o sucesso de tal empreitada significa a perda de elementos constitutivos da própria educação, como discorreremos a seguir.

A educação torna-se um meio. Observamos com frequência em nossa sociedade indicativos da pretensão de que a educação seja reduzida a um meio para atingir determinados fins. Tais fins são sustentados - por vezes de forma patente - nos mais distintos suportes materiais hoje produzidos para a educação. Seja em projetos de lei, cursos de atualização docente ou materiais didáticos, faz-se possível apreender certas concepções acerca do que seria o “papel da educação” em nossa sociedade: produzir bons resultados em avaliações internacionais, promover o desenvolvimento econômico e social, criar mão de obra qualificada, fabricar um novo futuro já cuidadosamente planejado e o que mais puderem sonhar os discursos que compreendem a educação a partir do utilitarismo moderno.

Todas essas finalidades, entretanto, poderiam parecer de imediato bastante justificadas e positivas à educação e à sociedade de maneira geral - como comumente acontece com as ideias advogadas pelo discurso de tecnicização da educação. E isso, sobretudo, se ignoradas as especificidades daquilo que acontece dentro de uma instituição escolar - algo que também comumente se verifica em tais discursos. Ocorre que a educação não pode ser apenas um meio para um fim que lhe é extrínseco; a educação, sustenta Carvalho (2017, p. 26), é, sobretudo,

um elo entre o mundo, comum e público, e os novos que a ele chegam pela natalidade. Nesse sentido, o ensino e o aprendizado se justificam não exclusivamente por seu caráter funcional ou por sua aplicação imediata às demandas da vida, mas por sua capacidade de se constituir como uma experiência simbólica de relação com o mundo comum. Pensar a educação como uma experiência simbólica significa ultrapassar a dimensão técnica, utilitária e funcional da aprendizagem reduzida ao desenvolvimento de competências para pensá-la em seu potencial formativo.

Desse modo, argumenta Carvalho (2017, p. 110), reduzir a experiência escolar a um meio cujo fim seria “a mera adaptação funcional dos indivíduos aos reclamos de produção e consumo das sociedades contemporâneas” implica expropriá-la de seu sentido intrínseco: “a iniciação dos mais novos em heranças simbólicas capazes de dar inteligibilidade à experiência humana e durabilidade ao mundo comum” (CARVALHO, 2017, p. 110). Reduzir o sentido da educação a uma finalidade fixa e externa à sua própria realização desinveste e esvazia a potência de que a escola venha a se configurar como um tempo-espaço onde algo pode acontecer (MASSCHELEIN; SIMONS, 2018). Busca-se substituir os acontecimentos por um conjunto de eventos programados.

Padronizam-se os processos e atividades. Como em grande parte das atividades fabricadoras - principalmente se pensarmos naquelas de larga escala -, a objetividade e a eficácia são os aspectos determinantes de seus processos. Assim, para que atinja os fins prévia e objetivamente definidos, a educação escolar passa a ser orientada por discursos e dispositivos que almejam garantir a governabilidade e padronização de suas atividades. Tais pretensões reificam-se no estabelecimento de normas e procedimentos escolares rígidos e abstratos, na adoção estrita de certos materiais didáticos, na grande difusão de sistemas de ensino apostilados, na criação de escalas herméticas supostamente capazes de atribuir uma grandeza numérica aos desempenhos docentes e discentes, como no caso da submissão constante dos alunos e instituições a avaliações nacionais e internacionais padronizadas e em larga escala. Grande parte desses instrumentos e estratégias vê na padronização um modo de controlar não apenas o que se passa no educar, mas também os seus efeitos ou produtos.

Carvalho (2016) aponta, de modo específico sobre o caso das avaliações, algo que acrescenta uma importante nuance à reflexão acerca da padronização dos processos educativos. Segundo o autor, não se trata de negarmos

a necessidade de grandes avaliações sistêmicas que, se bem-feitas, podem auxiliar na elaboração de metas em políticas públicas. Entretanto, crer que elas possam substituir o penoso, mas necessário, processo singular de ajuizamento de um professor acerca do desempenho de seus alunos é uma quimera. Um sonho - ou pesadelo - da tecnoburocracia cujas metas são a desconsideração da contingência, a ignorância da singularidade e a afirmação da superfluidade do humano (CARVALHO, 2016, p. 41).

Em consonância com a proposição anterior de Carvalho (2016), não advogamos nesta reflexão o abandono de estratégias ou instrumentos que em alguma medida possam conferir certa padronização ao que se passa no ensino. Todos aqueles que já se lançaram à aventura de educar provavelmente concordariam com a afirmação de que determinadas atividades seriam irrealizáveis sem alguma medida de padronização. Tal como assinalamos anteriormente a respeito do comportamento - que por diversas vezes guia as nossas atividades sem que isso signifique a atestação da superfluidade humana -, o risco da padronização situa-se na sua sobreposição às demais atividades do educar, inclusive àquelas que demandam a capacidade de ajuizamento e discernimento próprios a um alguém.

Adotam-se modelos abstratos que orientam e validam os processos educativos. A pretensão de padronizar os processos e atividades do educar implica, necessariamente, a adoção de modelos, de padrões para que possam servir de guia àqueles que os põem em prática. E é justamente tal modelo que possibilita, em etapas finais, a avaliação das supostas qualidade e eficácia dos processos desenvolvidos. Ocorre que esses modelos não dizem respeito apenas às atividades e aos procedimentos que devem ser aplicados, mas aos sujeitos por eles visados - sejam docentes ou discentes - durante e ao final do processo. A educação é transformada, desse modo, em uma atividade que visa a efeitos de objetificação e não mais a processos de subjetivação.

A despeito de os contornos atribuídos a esse modelo serem contingenciais, visto que se trata de uma síntese daquilo que uma sociedade ou um grupo tenciona e valoriza naquele momento, um modelo é sempre uma figura abstrata. E isso não pode ser esquecido, sob a pena de que todos os sujeitos de carne e osso se tornem inadequados, insuficientes e inexistentes. É justamente tal abstração que assinala Azanha (2004) ao refletir sobre a formação do professor das escolas básicas. O autor observa que “as discussões e propostas que surgem em congressos, seminários e outros eventos têm se detido na caracterização da figura abstrata de um profissional dotado de determinadas qualidades como sendo um ideal de formação” (AZANHA, 2004, p. 369). Expressões como modelo ou ideal, sobretudo quando apresentadas como destino único e possível a ser alcançado - desde que corretamente cumpridas cada uma das etapas que levam até ele -, são com frequência concepções refratárias à experiência, ao desejo, ao imprevisto, em suma, são concepções que ignoram e rechaçam o próprio sujeito em sua unicidade e abertura às contingências.

Àquele que nos parece ser o aluno visado por discursos orientados pela lógica da fabricação educativa, Lajonquière (2008, 2010) nomeia em seus trabalhos como A-Criança. A categoria por ele sugerida tem por referência uma criatura bastante singular que, apesar de seu nome, não guarda semelhança com as crianças com as quais cotidianamente nos deparamos. É ela um ser natural, a-temporal e a-histórico, dotado de necessidades educativas mais ou menos especiais (DE LAJONQUIÈRE, 2010). É a criança ideal, a partir da qual todas as outras passam a ser avaliadas e, portanto, postas em risco. Nela não há resto, tampouco falta. Tudo n’A-Criança é da ordem do previsível e controlável: “quando tudo funciona como iludido, tudo flui ‘naturalmente’” (DE LAJONQUIÈRE, 2009, p. 73). Tal Criança é “fabricada pela expertise dos saberes” (DE LAJONQUIÈRE, 2021, p. 28) e encontra solo fértil em um mundo adulto que sonha com formulações pedagógicas assertivas e definitivas, alegadamente caucionadas pela ciência e seus especialistas. Parece-nos ser ela, precisamente, o aluno perfeito para O-Professor tencionado pelos discursos sobre o que seria a ideal - e abstrata - formação docente. A pretensão universalizante de tais modelos, ao buscar uma resposta válida e boa para todos, nos impulsiona “para a mesmidade; (...) nos impulsiona a cada vez menos aceitar as diferenças, as singularidades” (LEBRUN, 2004, p. 110-111). A mesmidade é possível - e por vezes até mesmo desejável - na fabricação de objetos, mas certamente não na formação educacional. Mobilizados por tais modelos e pretensões, os mecanismos não poderiam, então, se limitar aos programas e conteúdos; a padronização, nesse modelo, extrapola a matéria “para inscrever-se na alma, para se transformar em governabilidade dos indivíduos e de suas formas de ser” (CARVALHO, 2016, p. 70).

Uma análise de Arendt (2015) acerca da aproximação que a filosofia grega faz entre as ideias de contemplação e fabricação (theōria e poiēsis) inspira-nos a acrescentar ainda outra camada à discussão acerca dos modelos sustentados na fabricação educativa. Na filosofia grega, aponta Arendt (2015), “a contemplação e a fabricação têm estreita afinidade e não se posicionam em uma oposição inequívoca tal como a que existe entre a contemplação e a ação” (p. 374). Segundo a reflexão da autora, o ponto crucial de similaridade entre contemplação e fabricação na filosofia grega é o fato de que

a contemplação, a observação de algo, era vista como um elemento inerente também à fabricação, na medida em que a obra do artífice era guiada pela ‘ideia’, pelo modelo que ele contemplava antes de iniciar o processo de fabricação e depois que este houver terminado, primeiro para saber o que produzir e, depois, para julgar o produto final (ARENDT, 2015, p. 374, grifos nossos).

Parece-nos bastante interessante, à reflexão que aqui buscamos desenvolver acerca da tentativa de reduzir a educação a uma atividade fabricadora, a consideração, assinalada pela autora, da atitude exigida, em determinados momentos, àquele que conduz o processo da fabricação: não se trata da ação, mas da contemplação, da observação de algo, ainda que este seja uma construção abstrata. No modus operandi de uma atividade contemplativa, diferentemente da ação, a centralidade não parece estar posta sobre o sujeito, que então contempla algo, mas sobre o objeto que é contemplado (e, no caso da fabricação, sobre o objeto assumido como modelo no princípio do processo e almejado como produto quando esse finda). Neste ponto, apresentamos brevemente alguns dados obtidos em um estudo realizado pela Unesco (2004), com 5000 professores de todo o Brasil, que nos parece bastante representativo das ideias hoje predominantes em nosso imaginário pedagógico. Segundo o relatório produzido ao final da pesquisa, 79,2% dos professores ouvidos consideraram ser a sua função aquela de ‘facilitador da aprendizagem dos alunos’. Apenas 17,3% percebiam-se como um ‘transmissor da cultura e do conhecimento’, e 3,4% não se identificavam com nenhum desses papéis. A ideia “renovada” do professor como facilitador, mediador, tutor do processo de aprendizagem parece flertar com a atividade da contemplação - como uma espécie de observação -, constitutiva da fabricação, visto que nessa concepção pressupõe-se bastar à criança o contato imediato “com as práticas sociais e suas linguagens para que essas venham a se revelar na complexidade de seus usos, de seus sentidos e de seus mecanismos de validação intersubjetiva” (CARVALHO, 2017, p. 61). A partir da perspectiva que aposta na “espontaneidade” e “autonomia infantil” no processo de apreensão de diversos aspectos do legado humano, a referência a alguém a quem confiar a responsabilidade pela iniciação das crianças na herança simbólica de que se constitui o mundo torna-se algo absolutamente desnecessário (CARVALHO, 2017). Bastaria a presença de uma figura capaz de se comportar de acordo com uma prescrição, de modo a produzir a menor interferência possível na relação de uma criança com o mundo, reiterando, no discurso pedagógico, o velho preceito liberal que concebe a liberdade como ausência de interferência.

Tornam-se os meios (e os sujeitos) intercambiáveis, desde que preservados os fins. Visto que é o almejado produto final que orienta e justifica o processo de fabricação, os seus meios - ou os sujeitos que colocam o processo em movimento - têm um papel estritamente utilitário. As características que os distinguem como seres únicos e singulares são apagadas em meio ao funcionamento do grande maquinário. Preza-se apenas aquilo que uma grande quantidade de pessoas pode ter em comum: a capacidade de manter, de forma eficaz, o sistema em movimento.

Do mesmo modo, o produto final organiza o próprio processo de fabricação, decide sobre os especialistas necessários, o grau de cooperação, e o número de assistentes ou colaboradores. Por conseguinte, tudo e todos são julgados aqui em termos de adequação e de utilidade para o produto final desejado, e nada mais (ARENDT, 2005, p. 187).

Nessa lógica, o sentido das atividades e dos sujeitos não está em sua própria existência e realização, como no caso da ação (práxis), mas sempre submetido aos ditames do produto final almejado. Desde que ele seja preservado, seus intermediários são supérfluos e intercambiáveis.

Para acrescentar contornos mais concretos a essa questão, parece-nos relevante fazer aqui uma breve menção à experiência vivida por uma professora - e que possivelmente ecoa com a de tantas outras - na ocasião de sua saída de uma escola onde trabalhou por vários anos. “Ninguém é insubstituível”, disse a ela a coordenadora da instituição. A frieza e a realidade de tal afirmação ressoam com especial força ao serem proferidas entre os muros de uma instituição na qual as relações, o tempo e o espaço revestem-se do privilégio de poder operar sob lógicas distintas daquela do consumo e da produtividade; em uma instituição inventada para que sujeitos recebam e acolham no mundo - de forma sempre e absolutamente singular - outros sujeitos. No momento em que um professor, ou qualquer outro sujeito, é transformado em uma peça - cambiável - da qual se espera apenas o bom funcionamento (ou comportamento) para que não afete o movimento do grande mecanismo em que se insere, temos a certeza de que algo se perdeu na educação. “Tudo pode funcionar, mas nada tem sentido. É como se tivéssemos perdido o amor [ao mundo e às novas gerações] em algum lugar ao longo do caminho” (MASSCHELEIN; SIMONS, 2018, p. 139).

O que resta então ao professor, à práxis cotidiana do ofício docente? A transposição da lógica da fabricação fabril à educação, propomos, descaracteriza e esvazia o ofício docente posto que lhe furta uma de suas mais importantes atividades. Furta-lhe a atividade da ação, justamente aquela que o reveste de pessoalidade e dignidade. Justamente aquela que permite ao professor revelar-se como um alguém. Enredado em uma condição na qual vê reduzida a sua possibilidade de agir, resta ao professor “cuidar da manutenção das várias máquinas burocráticas gigantescas, cujos processos consomem os seus serviços e devoram os seus produtos tão rápida e impiedosamente quanto o processo biológico da vida infindável e repetitiva atividade do trabalho” (ARENDT, 2015, p. 114). O cerne do ofício docente é reduzido, então, a “uma rotina diária e necessária: o trabalho docente. Um trabalho que não inventa nada novo, não trata de grandes questões éticas, mas de um esforço repetitivo para preservar alguns comportamentos básicos como parte da convivência na escola” (ALMEIDA, 2021). Resta-lhe executar atividades da ordem da necessidade, da manutenção da vida escolar. Deve corrigir exercícios, cadernos, provas, controlar a frequência, fazer relatórios, preencher documentos, carimbar, recortar, colar e dobrar. Deve, inúmeras vezes, lembrar aos alunos “de que o dia e a hora da entrega de um dever não são negociáveis, de que um dever malfeito é para ser refeito no dia seguinte, de que isso, de que aquilo” (PENNAC, 2008, p. 134). Restam-lhe atividades de pouca ou nenhuma permanência - visto que mesmo aquelas pequenas obras do cotidiano docente são rapidamente consumidas pelo calendário letivo. Restam-lhe atividades que dificilmente deixarão rastros ou grandes estórias atrás de si. Se a educação é entendida e ordenada como um processo de produção fabril, ao ofício docente parece restar apenas o trabalho.

A AÇÃO DOCENTE OU A LIBERDADE DOCENTE, POIS SER LIVRE E AGIR SÃO UMA MESMA COISA.

Os homens são livres [...] enquanto agem, nem antes, nem depois; pois ser livre e agir são uma mesma coisa.

Hannah Arendt

Em solo oposto ao da fabricação, Arendt (2015) situa a ação, a única atividade que ocorre diretamente entre os homens, sem a mediação das coisas ou da matéria. A ação - juntamente com a enunciação - é atividade que torna possível ao alguém seu aparecimento no mundo como um ser absolutamente único e singular dentre todos aqueles que o antecederam e os que virão.

A ação, por mais frágil, improdutiva e fugaz que possa parecer, “‘produz’ estórias, intencionalmente ou não, com a mesma naturalidade com que a fabricação produz coisas tangíveis” (ARENDT, 2015, p. 228). Essa capacidade de produzir estórias, de deixar atrás de si rastros e vestígios para um narrador disposto a colocá-los em palavras, parece marcar uma importante distinção com relação ao comportamento realizado por um ninguém. É possível a criação de novas histórias - e estórias - sem o extra-ordinário que a ação e a enunciação comportam? É possível a existência de um sujeito, de um alguém, sem que haja espaços para o imponderável, sem vazios e fios soltos que convoquem à ação e ao aparecimento? A ilusão de completude e de controle, que inspira a imposição do comportamento sobre a ação, bem como da redução da educação à lógica da fabricação em sua modalidade fabril, ignora ser justamente na margem de indeterminação (dos acontecimentos, das ações e das relações) onde se situa a possibilidade de desvelamento de um alguém, bem como a potência humana de criação e manutenção de um mundo comum.

A ação, diferentemente da fabricação, não está mobilizada por uma finalidade, mas por um princípio. Ainda que seja precedida pelo juízo do intelecto e iniciada pelo império da vontade, uma ação brota sempre de um princípio (ARENDT, 2014). Um princípio, propõe Arendt (2014), não opera no interior do eu como fazem os motivos, tampouco liga-se a uma pessoa ou grupo em especial. A validade de um princípio é universal (ARENDT, 2014) e eles são demasiado gerais para prescrever metas ou modos de operacionalização particulares. Um princípio é, também, inexaurível, isto é, pode ser repetido indefinidamente sem que perca o vigor e a validade na execução de uma ação. Uma ação pode ter por princípio a honra, a glória, o amor à igualdade, mas também o medo, a desconfiança ou o ódio (ARENDT, 2014). A tentativa de substituir o princípio de uma ação por uma finalidade parece ser a forma mais consistente de enclausurá-la e descaracterizá-la. Ao ver-se furtada de um princípio, uma ação transforma-se facilmente em comportamento - justamente aquele visado e necessário ao espraiamento da lógica da fabricação sobre as diversas atividades humanas.

Além de não estar tensionada por uma finalidade, a ação tampouco concebe como meios os elementos articulados em seu aparecimento. Ela lança luz precisamente àquilo que a fabricação encobre, desinveste e torna cambiável. Quem, como e por que alguém age são aspectos inseparáveis da própria ação. Assim, o que na lógica da fabricação são meios - contingenciais, variáveis, supérfluos -, na ação constitui o seu elemento nuclear. Os elementos que se articulam no aparecimento de uma ação são sempre singulares e essenciais: a mais imperceptível mudança no arranjo que a compõe resultaria imediatamente em outra ação, tão singular e irreplicável quanto a primeira.

A ação é livre, diz Arendt (2014): ser livre e agir são uma mesma coisa. A liberdade que se aninha na ação humana, contudo, não diz respeito a “uma disposição interior do espírito, pela qual estou livre para pensar o que quero independentemente daquilo que acontece no mundo” (ALMEIDA, 2008, p. 476). A liberdade da ação não é um dom capaz de desvinculá-la do mundo, de conferir a alguém a autorização e a capacidade de fazer aquilo que bem entender. A liberdade é aquilo que enraíza e entrelaça uma ação no mundo, no espaço entre-humanos; a liberdade é aquilo que coloca a ação em relação com o mundo. Assim, revela-se ser precisamente o entrelaçamento com o mundo a condição que nos permite verificar a liberdade em um ato ou palavra humana: é pelo fato de uma ação ou enunciação ter sido realizada no mundo, em meio à teia de relações humanas e às forças condicionantes que o viver-juntos e a existência na Terra nos impõem, que podemos verificar a eclosão de algo que segue em sentido absolutamente contrário ao esperado e opera “o infinitamente improvável” (ARENDT, 2014, p. 219). Um acontecimento é infinitamente improvável ao ser examinado em relação àquilo que, com certo automatismo, operava no mundo antes de seu aparecimento. Portanto, não há liberdade, concebida como um atributo tangível da vida comum, fora do mundo, fora do espaço público.

Nesse sentido, a liberdade verifica-se no instante em que alguém faz eclodir no mundo atos e palavras que testemunham a sua liberação em relação aos acontecimentos prévios, das tendências, dos automatismos, das propensões, das expectativas. Desse modo, a liberdade não se revela como um ideal abstrato e inalcançável que paira no horizonte humano: ao aparecer no espaço público, a liberdade é uma realidade concreta, torna-se “tangível em palavras que podemos escutar, em feitos que podem ser vistos e em eventos que são comentados, relembrados e transformados em estórias” (ARENDT, 2014, p. 201). Por meio da ação e da enunciação, faz-se possível ao agente a proposição de um novo começo, liberado da necessidade - e muitas vezes do “álibi” - de uma coerência ou continuidade com aquilo que já havia. A liberdade se exerce não em relação aos outros, mas com os outros e em relação às amarras do passado.

A partir dessa perspectiva, parece-nos possível a afirmação de que a potência que anima a natalidade - o fato de que seres novos nascem no mundo (ARENDT, 2015) - permanece latente durante toda a nossa existência, visto que é possível a um alguém, a todo instante, atualizar e verificar a capacidade humana de iniciar algo novo, de agir, de apresentar ao mundo algo que ali antes não havia. Como seres jamais absolutamente conformados pela tradição, pela cultura ou pela nossa própria estória (por nossos atos e palavras passadas), há sempre a possibilidade de que o rumo da narrativa de uma vida seja mudado, de que seja apresentado ao mundo um novo alguém, com feições únicas e singulares.

A isso que aparece no mundo por meio da ação e da enunciação e instaura um novo começo à sucessão dos acontecimentos, Arendt (2014) nomeia milagre. E essa ideia, por mais religiosa ou transcendente que possa inicialmente soar, é absolutamente secular e mundana: são os seres humanos que operam milagres. São os seres humanos que “podem estabelecer uma realidade que lhes pertence de direito” (ARENDT, 2014, p. 220) e instaurar uma diferença no mundo, um antes e um depois. Todo ato, afirma Arendt (2014, p. 218), “considerado, não da perspectiva do agente, mas do processo em cujo quadro de referência ele ocorre e cujo automatismo interrompe, é um ‘milagre’ - isto é, algo que não poderia ser esperado”. É o milagre a possibilidade mesma da liberdade, do irromper no mundo, por meio de atos e palavras, como uma improbabilidade infinita.

E onde opera tal sorte de milagres? Contrariamente ao que o pensamento religioso poderia nos fazer crer, os milagres, no sentido arendtiano, podem ser testemunhados a cada instante em que alguém decide agir e falar à revelia daquilo que a sua condição - e identificação - poderia sugerir ou, ainda, supostamente determinar. A absoluta conformidade ou identificação a um lugar, grupo ou a uma forma específica de comportamento costuma buscar sua justificação nos mais distintos elementos que de algum modo tencionam atribuir determinada conduta ou destinação a cada sujeito. A identificação pode tomar como fundamentação aquilo que se atesta sobre um sujeito - ou predicados que se lhe atribuem, como: a origem familiar, social, o gênero, a etnia, o ofício, o grau de escolarização ou ainda, mais modernamente, um laudo médico, um teste cognitivo ou um exame neurológico. O rompimento com tais identificações, a interrupção de encadeamentos automáticos, a recusa à absoluta conformação àquilo que nos cerca, por meio da ação e da enunciação, são formas profanas de operar milagres.

A despeito de habitar potencialmente grande parte das atividades humanas, há algumas delas, por sua vez, que parecem estar profundamente enraizadas na possibilidade de eclosão de milagres, atividades essas que, em alguma medida, dependem deles para que possam ocorrer. A educação parece ser uma delas - e quiçá também a política e o processo de cura analítica, os três ofícios impossíveis de Freud. Propomos o enraizamento da educação no solo dos milagres visto que podemos concebê-la como uma aposta de que algo novo, algo da ordem do imprevisto - do sujeito, do desejo - possa emergir a partir do acolhimento dos recém-chegados no mundo. Afinal, a educação não é uma atividade que se “exerce sobre a matéria para nela imprimir uma forma final de antemão concebida, mas implica a interação com uma pluralidade de sujeitos singulares cujas respostas a nossos atos e palavras são da ordem do imprevisível” (CARVALHO, 2017, p. 105). A imprevisibilidade e a improbabilidade são características essenciais de um acontecimento miraculoso.

A ação de alguém deixa atrás de si rastros, como pontas de mistérios (ROSA, 2001), e dela podem desdobrar-se tantas outras, igualmente imprevisíveis e ilimitadas. E quando podemos dizer que um professor age? Para o exame de tal questionamento inspiramo-nos na resposta apresentada por Pereira (2016, p. 21) acerca dos momentos em que alguém poderia ser considerado um “bom professor”: “esse somente o será quando ele atuar no avesso daquilo que prevê a racionalidade técnica dos inumeráveis compêndios pedagógicos de nosso entorno”. Um professor age no exato momento em que recusa o mero comportamento - evidente, previsto, prescrito, predeterminado - diante daquilo com o que se depara em seu ofício. Um professor age quando interrompe o automatismo de uma reação e põe-se a ajuizar acerca da singularidade de um acontecimento, de um sujeito ou de uma resposta advinda de onde não esperava. Um professor age quando decide assumir o risco implicado no abandono temporário das atividades previstas no sistema apostilado para dedicar-se àquilo que a experiência do instante parece exigir. Um professor age quando, a despeito da incapacidade supostamente atestada em um laudo médico ou avaliação padronizada, sustenta em seu endereçamento à criança a possibilidade de que algo da ordem do desejo possa emergir. Um professor age quando, movido pelo princípio da igualdade, ignora qualquer identificação que possa decorrer de origem social ou familiar de seu aluno. Todas essas ações podem ser consideradas, em alguma medida, milagres, e de todas elas, provavelmente, emergiram outros, tão inesperados e ilimitados quanto os primeiros.

Lembremos, ainda, neste ponto, da interessante análise que Lajonquière (2010) propõe acerca do filme The miracle worker (1962), de Arthur Penn. O filme narra a história do encontro de Helen Keller e Anne Sullivan, no ano de 1887, em Tuscumbia, Alabama, Estados Unidos. Helen, ainda bebê, foi acometida por uma doença que a deixou cega e surda. Aos sete anos ela conhece Anne, enviada à sua casa para ser sua professora. Mesmo afirmando não saber aonde a sua implicação na educação de Helen poderia levá-la, a chegada de Anne marcou a saída da pequena garotinha do isolamento imposto pela sua deficiência, a saída de sua vida de fantasma - sentimento que Helen viria a relatar em seu livro intitulado Lutando contra as trevas. Lajonquière (2010) assinala as diferentes traduções feitas do título americano do filme, que numa tradução literal seria “A trabalhadora miraculosa”. No Brasil foi lançado como “O milagre de Anne Sullivan”, em Portugal como “O milagre de Helen Keller” e na França como “Miracle en Alabama”. O autor vale-se das distintas traduções para trazer à discussão o questionamento acerca do agente do milagre. Quem ou o que parece tê-lo operado na história em questão? A partir de uma perspectiva psicanalítica, Lajonquière (2010, p. 167) propõe tratar-se “do milagre mesmo da palavra, da sua mestria”. O miraculoso trabalho da palavra, afirma o autor, “a função significante - é aquele de instalar, uma e outra vez, a possibilidade de vivermos uma experiência ou uma diferença entre um antes e um depois no devir temporal” (DE LAJONQUIÈRE, 2010, p. 167). Foi o modo como Anne endereçava a palavra a Helen “que decidiu de vez a emergência mesma da palavra em Helen ou, se preferirmos, da sujeição de Helen ao discurso” (DE LAJONQUIÈRE, 2010, p. 169).

Note-se que o acontecimento miraculoso operado pela palavra se fez possível não pela cientificidade ou adequação do método escolhido e adotado por Anne na educação de Helen, o milagre fez-se possível pois “Anne desejava falar com Helen. Tinha algo a dizer, assim como havia alguma coisa que queria escutar dela” (DE LAJONQUIÈRE, 2010, p. 171, grifos nossos). Anne desejava escutar alguma coisa de Helen, e não uma coisa específica visada de antemão em sua empreitada pedagógica. Anne supunha um sujeito, um alguém, em Helen.

A educação, em movimento contrário àquilo visado pelo discurso tecnicista e à lógica da fabricação educativa, deve ser capaz de suportar o fato de que está sempre orientada à constituição de um “alguém que se insere de forma singular na pluralidade do mundo” (CARVALHO, 2017, p. 105). Ela deve ser capaz de suportar a abertura, a falta, a incompletude como a “única e paradoxal possibilidade - assim sendo, antimetódica - de virmos a sustentar as condições para que alguma coisa da ordem de um desejo possa advir como resto de toda proporção educacional” (DE LAJONQUIÈRE, 2009, p. 120-121).

BREVES CONSIDERAÇÕES

Não há remédios, prescrições ou respostas definitivas para educar alguém. Para lidar com a impossibilidade que se aninha na educação, é imprescindível a presença de um sujeito que continuamente acolha aquilo que emerge de modo inesperado e o relance à relação educativa: o educar depende da prontidão de alguém disposto a agir. Não apenas a agir, mas a refletir e ajuizar sobre aquilo que vivencia cotidianamente em seu ofício de modo que assuma “o lugar do ‘árbitro’ das múltiplas e incessantes ocupações da existência humana no mundo, do juiz que nunca encontra uma solução definitiva para esses enigmas, mas respostas sempre novas à pergunta que está realmente em questão” (ARENDT, 2019, p. 232, grifo nosso).

Na lógica tecnicista, àquele que ocupa o ‘lugar de árbitro’ é estritamente reservada à função de fiscalizar e manter em movimento o ‘processo educativo’. Cabe a ele verificar se não há algum mau funcionamento (ou mau comportamento) nas etapas intermediárias do processo, bem como se aquilo produzido ao final é suficientemente semelhante ao modelo estabelecido no princípio. Não há enigmas, tampouco necessidade de ajuizamento. O professor vê-se, assim, impelido pela ninguém-dade a permanecer à porta; quem ele é deve ser deixado do lado de fora. O professor já não mais é esperado em um lugar de palavra em seu ofício.

Essa condição em meio à qual os professores devem exercer o seu ofício - a da ninguém-dade - parece-nos estar profundamente relacionada à grande quantidade de professores que hoje sofrem e se sentem adoecidos no exercício da docência (FANIZZI, 2022). O sofrimento de alguém, propõe Ricœur (2021), desdobra-se das ameaças e constrangimentos infligidos ao exercício de suas capacidades enquanto agente humano, dentre elas as capacidades de agir, de dizer e de (se) contar. Sem um alguém não há ação, não há enunciação tampouco a possibilidade de narrar. A partir disso, sustentamos a proposição de serem os reclamos de um professor uma forma de enunciar a existência de um alguém que sofre ao ver-se enclausurado em mecanismos que lhe furtam a possibilidade de ação e de enunciação. De um alguém que vê, a cada dia, seu ofício ser espoliado das diversas camadas que o constituem e reduzido à infindável, impessoal e repetitiva atividade do trabalho. Atividade que não deixa rastros atrás de si, tampouco estórias e personagens.

Agradecimento

O presente artigo é parte da pesquisa de doutorado “O professor nos tempos da técnica: a docência entre a ação e a fabricação” (concluída em dez. 2022), desenvolvida na Universidade de São Paulo (Brasil) e na Université Paris 8 (França), com financiamento da Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo (FAPESP), processos n. 2019/14645-0 e 2020/01667-2.

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  • FANIZZI, Caroline; DE LAJONQUIÈRE, Leandro. A palavra docente como gesto de responsabilidade pelo mundo e pelos recém-chegados. Educação Temática Digital - ETD Campinas, 2023. (no prelo)
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  • MASSCHELEIN, Jan; SIMONS, Maarten; LARROSA, Jorge. A questão com a escola/da escola. Tramas da fábula escolar. Tradução de Caroline Fanizzi e Anyele Lamas. In: CARVALHO, José Sérgio Fonseca de. Jacques Rancière: Educação, política e emancipação. São Paulo: Editora Autêntica, 2022. (no prelo)
  • PENNAC, Daniel. Diário de escola Tradução de Leny Werneck. Rio de Janeiro: Rocco, 2008.
  • PEREIRA, Marcelo Ricardo. O nome atual do mal-estar docente Belo Horizonte: Fino Traço, 2016.
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  • ROSA, João Guimarães. O espelho. In: Primeiras estórias Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2001, p. 119-128.
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  • THE MIRACLE WORKER. Direção: Arthur Penn. Produção: Fred Coe. Estados Unidos: Playfilm Productions, 1962. (DVD; 106 minutos)
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    » https://unesdoc.unesco.org/ark:/48223/pf0000134925
  • 1
    Hannah Arendt faz em sua obra uma distinção entre os termos story (estória) e history (história), mantida na revisão de Adriano Correia de A condição humana (2015). Correia assinala que a despeito de o termo estória ser um tanto antiquado em português, tal distinção é fundamental visto que Arendt vale-se de cada um dos referidos termos em contextos específicos. O seguinte trecho nos parece bastante elucidativo dessa distinção: “Que toda vida individual entre o nascimento e a morte possa afinal ser narrada como uma estória [story] com começo e fim é a condição pré-política e pré-histórica da história [history], a grande estória sem começo nem fim” (ARENDT, 2015, p. 228).
  • 2
    Hannah Arendt, Denktagebuch - 1950-1973, p. 523 (caderno XXI, n. 26, abril de 1955).
  • 3
    Fazemos menção de modo específico à lógica de produção fabril em sua modalidade industrial. Ainda que a obra do artesão seja também regida pela lógica da fabricação, ela implica, em alguma medida, a pessoalidade, a singularidade e mudanças de rumo. Assim, embora o objeto fabricado ganhe independência de seu produtor, suas marcas singulares nele se imprimem, de forma que na argila do vaso fiquem marcadas as mãos do oleiro (BENJAMIN, 2012).

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    23 Fev 2024
  • Data do Fascículo
    2024

Histórico

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