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Jair Messias Bolsonaro e suas verdades: o negacionismo da Ditadura Civil-Militar em três proposições legislativas

Jair Messias Bolsonaro and his truths: denialism of the Civil-Military Dictatorship in three legislative proposals

Jair Messias Bolsonaro y sus verdades: el negacionismo de la Dictadura Cívico-Militar en tres propuestas legislativas

Resumo

O negacionismo histórico da Ditadura Civil-Militar Brasileira de 1964 esteve presente ao longo de toda a carreira política de Jair Messias Bolsonaro. Este artigo analisa três proposições relacionadas à Ditadura de 1964 apresentadas por Bolsonaro durante seus mandatos legislativos em 2004, 2013 e 2014. Objetiva-se explicitar a historicidade e as características do negacionismo presentes nessas propostas, argumentando que essa negação atualiza as estratégias de implantação do terror da Ditadura no fomento a uma cultura do medo, e, com isso, promovendo a violência. Dessa forma, é possível reconhecer o negacionismo histórico além de uma mera negação da realidade.

Palavras-chave:
Ditadura Civil-Militar Brasileira; Negacionismo; Cultura do medo; Violência; Jair Messias Bolsonaro; Guerrilha do Araguaia; Comissão Nacional da Verdade

Abstract

Historical denialism of the Brazilian 1964 civil-military dictatorship featured throughout Jair Messias Bolsonaro’s political career. This paper analyzes three propositions related to the 1964 dictatorship put forth by Bolsonaro during his legislative terms in 2004, 2013, and 2014, to explain the historicity and characteristics of the historical denialism present in these documents. We argue that this denialism updates the strategies of terror implementations to foster a culture of fear and, therefore, promote violence. Hence, historical denialism goes beyond a mere denial of reality.

Keywords:
Brazilian Civil-Military Dictatorship; Denialism; Culture of fear; Violence; Jair Messias Bolsonaro; Araguaia Guerrilla; National Truth Commission

Resumen

El negacionismo histórico de la dictadura cívico-militar brasileña de 1964 quedó demostrado en numerosos momentos a lo largo de toda la carrera política de Jair Messias Bolsonaro. Este artículo analiza tres propuestas relacionadas con la dictadura presentadas en 2004, 2013 y 2014 por Bolsonaro durante sus mandatos legislativos. Su objetivo es explicar la historicidad y las características del negacionismo presentes en estas propuestas con el argumento de que este negacionismo actualiza las estrategias de implementación del terrorismo de la dictadura al fomentar una cultura del miedo y, así, contribuye a la promoción de la violencia. Por tanto, es posible considerar el negacionismo histórico más allá de una mera negación de la realidad.

Palabras clave:
Dictadura Cívico-Militar brasileña; Negacionismo; Cultura del miedo; Violencia; Jair Messias Bolsonaro; Guerrilla del Araguaia; Comisión Nacional de la Verdad

— Seu livro de cabeceira? — Pergunta o jornalista que conduz a entrevista.

A cabeça inclina para trás, os olhos se elevam, mas seguem fixos no entrevistador, e, entre um sorriso contido e a postura que evidencia trejeitos da disciplina militar:

— Verdade Sufocada. — Responde efusivo, como é esperada a resposta de um subordinado frente à pergunta de seu superior hierárquico. Agora, um riso pleno.

— Verdade… De qual autor? — Continua o entrevistador.

— O autor? — E gargalha.

— Ustra. — Outra pessoa responde.

Desta vez, o entrevistado responde sério, com o cenho franzido:

— É uma história real do Brasil, você tem que ver os dois lados. E ali é uma história com fatos, com data, com local, com episódios reais.

— Qual é o autor? — O jornalista reitera a pergunta.

— Carlos Alberto Brilhante Ustra.

— Ok. — Encerra o entrevistador.

Introdução

O diálogo que serve como epígrafe para este artigo ocorreu em 30 de julho de 2018 no programa Roda Viva , da TV Cultura, entre o então candidato à presidência da República, Jair Messias Bolsonaro, e o jornalista Ricardo Lessa, que mediava o debate. Dois anos antes, Bolsonaro havia se referido a Ustra em sua declaração de voto durante a sessão legislativa que aprovaria o processo de impeachment da presidenta Dilma Rousseff. As menções a um coronel juridicamente declarado como torturador geraram em muitas pessoas um “efeito de desorientação”, expressão utilizada por Gill Seidel (1982 apud Authier-Revuz; Romeu, 2004AUTHIER-REVUZ, Jacqueline, ROMEU, Lydia. O lugar do outro em um discurso de falsificação da história: a respeito de um texto que nega o genocídio dos judeus no Terceiro Reich. In: AUTHIER-REVUZ, Jacqueline (org.) Entre a transparência e a opacidade: um estudo enunciativo do discurso. Porto Alegre: ediPUCRS, 2004. ) para se referir ao que sentiu escutando o negacionista francês Robert Faurisson.

Essas não foram as primeiras nem as únicas manifestações públicas de Bolsonaro ao longo de sua carreira política a respeito de temáticas correlatas à Ditadura Civil-Militar Brasileira de 1964. Após eleito presidente, o ex-militar despertou polêmicas nos usos que fazia do passado ditatorial (Bauer, 2020BAUER, Caroline Silveira. Usos do passado da Ditadura Brasileira em manifestações públicas de Jair Bolsonaro. In: KLEN, Bruna; PEREIRA, Mateus Henrique de Faria; ARAUJO, Valdei Lopes de (org.). Do fake ao fato: (des)atualizando Bolsonaro. Vitória: MilFontes, 2020. p. 183-204. ), e assim seguiu ao longo de seu mandato.

Em 2004, momento que se rememorava o quadragésimo aniversário do Golpe de 1964, e em 2013 e 2014, durante os trabalhos da Comissão Nacional da Verdade (CNV) e a efeméride dos cinquenta anos da intervenção militar — ou seja, em conjunturas propícias para o debate público sobre a memória do período ditatorial —, o então deputado federal Bolsonaro encaminhou três proposições à Câmara relacionadas à Ditadura.

A primeira, de 15 de dezembro de 2004, à época deputado pelo Partido da Frente Liberal (PFL) do Rio de Janeiro, era um requerimento à Presidência da Câmara dos Deputados solicitando “a realização de sessão solene em homenagem aos bravos e heroicos militares que morreram na lutado [sic] movimento armado denominado ‘Guerrilha do Araguaia’, ocorrido no período entre 1972 e 1975 e extinto pelas Forças Armadas” (Brasil, 2004 BRASIL. Câmara dos Deputados. Requerimento nº 2.392, de 15 de dezembro de 2004. Requer a realização de sessão solene em homenagem aos militares que morreram na luta contra os guerrilheiros do Araguaia. Brasília, DF: Câmara dos Deputados, 15 dez. 2004. Disponível em: https://www.camara.leg.br/proposicoesWeb/fichadetramitacao?idProposicao=273757 . Acesso em: 22 nov. 2020.
https://www.camara.leg.br/proposicoesWeb...
). 1 1 A partir de agora, este documento será referenciado como Proposição 1.

A segunda, de 26 de dezembro de 2013, tratava-se também de um requerimento, mas desta vez dirigido à Comissão de Direitos Humanos e Minorias, presidida à época pelo deputado pastor Marco Feliciano, do Partido Social Cristão (PSC), para instalação de uma “Subcomissão especial para a defesa da história das Forças Armadas na formação do Estado brasileiro” (Brasil, 2014BAUER, Caroline Silveira. Brasil e Argentina: ditaduras, desaparecimentos e políticas de memória. 2. ed. Porto Alegre: Medianiz, 2014. ). 2 2 A partir de agora, este documento será referenciado como Proposição 2.

A terceira, de 11 de dezembro de 2014, agora como deputado federal pelo Partido Progressista (PP), foi um encaminhamento de projeto de lei que propunha a criação de uma “Comissão da Verdade (CV) no âmbito da Casa Civil da Presidência da República” (Brasil, 2014 BRASIL. Câmara dos Deputados. Projeto de Lei nº 8.246, de 11 de dezembro de 2014. Cria a Comissão da Verdade (CV) no âmbito da Casa Civil da Presidência da República. Brasília, DF: Câmara dos Deputados, 11 dez. 2014. Disponível em: https://www.camara.leg.br/proposicoesWeb/fichadetramitacao?idProposicao=840958 . Acesso em: 21 nov. 2020.
https://www.camara.leg.br/proposicoesWeb...
). 3 3 A partir de agora, este documento será referenciado como Proposição 3.

Este artigo analisa essas três proposições, explicitando a historicidade e as características do negacionismo histórico nelas presentes. Argumenta-se que essa negação atualiza as estratégias de implantação do terror da ditadura no fomento a uma cultura do medo, contribuindo para a promoção da violência. Dessa forma, torna-se possível reconhecer o negacionismo histórico além de uma mera negação da realidade. Esse debate será realizado na primeira parte do artigo. Na segunda parte, os textos e as justificativas das propostas legislativas apresentadas serão os materiais analisados para evidenciar o negacionismo da Ditadura e suas características.

O negacionismo da Ditadura Civil-Militar Brasileira

Nas últimas duas décadas, observa-se um crescente interesse de profissionais de história sobre o negacionismo da Ditadura Civil-Militar Brasileira de 1964. Essa atenção pode ser explicada pela maior circulação e difusão de discursos diversionistas, falseadores e negacionistas, em diferentes espaços e formatos. Entretanto, esses pesquisadores preferem utilizar temos como “revisionismo” e algumas derivações para se referir a esses fenômenos (Calil, 2014CALIL, Gilberto Grassi. O revisionismo sobre a Ditadura Brasileira: a obra de Elio Gaspari. Segle XX, Barcelona, n. 7, p. 99-126, 2014. ; Melo, 2014MELO, Demian Bezerra de (org.). A miséria da historiografia: uma crítica ao revisionismo contemporâneo. Rio de Janeiro: Consequência, 2014. ; Sena Júnior, 2015SENA JÚNIOR, Carlos Zacarias de. O espelho da memória: um debate com o revisionismo histórico em torno da Ditadura. Crítica Marxista, Campinas, SP, n. 40, p. 121-131, 2015. ; Toledo, 2004TOLEDO, Caio Navarro de. 1964: golpismo e democracia: as falácias do revisionismo. Crítica Marxista, Campinas, SP, n. 19, p. 27-48, 2004. ), 4 4 É importante destacar que esses autores têm como objetos de estudo publicações sobre a Ditadura de 1964 (artigos, capítulos e livros) realizadas por jornalistas ou historiadores, ou seja, dedicam-se ao estudo de um “revisionismo” historiográfico. Para o emprego do conceito “revisionismo” em relação a outros episódios, ver Borin ( 2000 ) e Moraes ( 2015 ). com algumas exceções (Almada, 2021ALMADA, Pablo Emanuel Romero. O negacionismo na oposição de Jair Bolsonaro à Comissão Nacional da Verdade. Revista Brasileira de Ciências Sociais, São Paulo, v. 36, n. 106, p. 1-21, 2021. ; Bauer, 2022aBAUER, Caroline Silveira. Ditadura. In: SZWAKO, José; RATTON, José Luiz (org.). Dicionário dos negacionismos no Brasil. Recife: CEPE, 2022a. p. 113-115. ; Camargo, 2017CAMARGO, Alessandra Lopes. Negacionismos e políticas de memória na justiça de transição brasileira. 2017. Dissertação (Mestrado em História) – Instituto de Filosofia e Ciências Humanas, Universidade Estadual de Campinas, Campinas, SP, 2017. ; Meneses, 2019MENESES, Sônia. Uma história ensinada para Homer Simpson: negacionismos e os usos abusivos do passado em tempos de pós-verdade. História Hoje, São Paulo, v. 8, n. 15, p. 66-88, 2019. ; Pereira, 2015PEREIRA, Mateus Henrique de Faria. Nova direita?: guerras de memória em tempos de Comissão da Verdade (2012-2014). Varia Historia, Belo Horizonte, v. 31, n. 57, p. 863-902, set./dez. 2015. ; Seligmann-Silva, 2010SELIGMANN-SILVA, Márcio. O local do testemunho. Tempo e Argumento, Florianópolis, v. 2, n. 1, p. 3-20, jan./jun., 2010. ; Valim; Avelar; Bevernage, 2021VALIM, Patrícia; AVELAR, Alexandre de Sá; BEVERNAGE, Berber. Apresentação: Negacionismo: história, historiografia e perspectivas de pesquisa. Revista Brasileira de História. São Paulo, v. 41, n. 87, p. 13-36, 2021. ). Analisar as variações conceituais e os argumentos empregados nesse debate extrapola os objetivos desse artigo, contudo, são necessárias algumas considerações a respeito dessa preferência.

O termo “negacionismo” foi popularizado pelo historiador francês Henry Rousso ( 1987ROUSSO, Henry. Le Syndrome de Vichy (1944-1987). Paris: Seuil, 1987. ) para compreender a negação do assassinato em campos de extermínio durante a Segunda Guerra Mundial. Essa vulgarização ocorreu paralelamente à globalização da memória do Holocausto, na perspectiva trabalhada por Andreas Huyssen ( 2000HUYSSEN, Andreas. Passados presentes: mídia, política, amnésia. In: HUYSSEN, Andreas. Seduzidos pela memória. Rio de Janeiro: Aeroplano, 2000. ). Ao ser convertido em um episódio paradigmático, o Holocausto e, por consequência, sua negação, podem ter criado óbices para a nomeação de outras práticas como exemplos de negacionismos. Embora Michael Rothberg ( 2009ROTHBERG, Michael. Multidirectional Memory: Remembering the Holocaust in the Age of Decolonization. Stanford, CA: Stanford University Press, 2009. ) argumente que foi justamente essa universalização que permitiu o reconhecimento de outras experiências como genocídios, para ele, a memória do extermínio judeu foi construída a partir das denúncias das práticas imperiais europeias nas colônias africanas. Mesmo assim, muitas pessoas preferem reservar a noção de negacionismo exclusivamente para o Holocausto, e/ou para situações de negação de determinada realidade, como a existência de câmaras de gás, por exemplo.

Além disso, François Bédarida ( 1998BÉDARIDA, François. As responsabilidades do historiador expert. In: BOUTIER, Jean; JULIA, Dominique (org.). Passados recompostos: campos e canteiros da história. Rio de Janeiro: Editora FGV, 1998. ), referindo-se aos nazistas, chamou a atenção para uma das primeiras ações dos negacionistas: reivindicarem-se “revisionistas”, um dos procedimentos do trabalho historiográfico. Segundo ele, “no que concerne ao nazismo, a primeira impostura dos negacionistas é se arrogarem o título de revisionistas, um termo em si mesmo mais do que honroso, elogioso mesmo, uma vez que caracteriza o procedimento de base do trabalho histórico” (Bédarida, 1998BÉDARIDA, François. As responsabilidades do historiador expert. In: BOUTIER, Jean; JULIA, Dominique (org.). Passados recompostos: campos e canteiros da história. Rio de Janeiro: Editora FGV, 1998.: 146). Assim, incorporar a noção de “negacionismo” é um posicionamento de denúncia à tergiversação negacionista, além de uma precisão teórica.

Retornando à breve revisão bibliográfica acerca do negacionismo da Ditadura, existem importantes análises que historicizam a memória do período, com pontuais menções ao negacionismo (Cardoso, 2012CARDOSO, Lucileide Costa. Criações da memória: defensores e críticos da ditadura (1964-1985). Cruz das Almas, BA: EDUFRB, 2012. ; Castro, 2008CASTRO, Celso. Comemorando a “revolução” de 1964: a memória histórica dos militares brasileiros. In: FICO, Carlos et al. (org.). Ditadura e democracia na América Latina: balanço histórico e perspectivas. Rio de Janeiro: Editora FGV, 2008. p. 119-142. ; Chaves, 2014CHAVES, Eduardo dos Santos. Uma história positiva da ditadura: a narrativa dos militares sobre os “anos da revolução”. Outros Tempos, São Luís, v. 11, n. 17, p. 53-73, 2014. ; Joffily, 2018JOFFILY, Mariana. Aniversários do Golpe de 1964: debates historiográficos, implicações políticas. Tempo e Argumento, Florianópolis, v. 10, n. 23, p. 204‐251, jan./mar. 2018. ; Martins Filho, 2002MARTINS FILHO, João Ribeiro. A guerra da memória: a Ditadura Militar nos depoimentos de militares e militantes. Varia Historia, Belo Horizonte, v. 18, n. 28, p. 178-201, dez. 2002. ; Napolitano, 2015NAPOLITANO, Marcos. Recordar é vencer: as dinâmicas e vicissitudes da construção da memória sobre o Regime Militar brasileiro. Antíteses, Londrina, PR, v. 8, p. 9-44, 2015. , 2020NAPOLITANO, Marcos. Desafios para a história nas encruzilhadas da memória: entre traumas e tabus. História, Curitiba, v. 68, n. 1, p. 18-56, jan./jun., 2020. ; Pereira, 2015PEREIRA, Mateus Henrique de Faria. Nova direita?: guerras de memória em tempos de Comissão da Verdade (2012-2014). Varia Historia, Belo Horizonte, v. 31, n. 57, p. 863-902, set./dez. 2015. ; Schimdt, 2007SCHMIDT, Benito Bisso. Cicatriz aberta ou página virada?: lembrar e esquecer o Golpe de 1964 quarenta anos depois. Anos 90, Porto Alegre, v. 14, n. 26, p.127-156, dez. 2007. ; Valim; Avelar; Bevernage, 2021VALIM, Patrícia; AVELAR, Alexandre de Sá; BEVERNAGE, Berber. Apresentação: Negacionismo: história, historiografia e perspectivas de pesquisa. Revista Brasileira de História. São Paulo, v. 41, n. 87, p. 13-36, 2021. ), mas não se encontrou uma historicização dos discursos negacionistas sobre o Regime Ditatorial de 1964, 5 5 À exceção da periodização sugerida por Bauer ( 2022b ). tarefa que demanda pesquisas que articulem certas narrativas de sujeitos específicos 6 6 São necessários mais estudos que analisem as inserções intelectuais, políticas e sociais de indivíduos e grupos formuladores ou disseminadores de discursos negacionistas, revelando interesses econômicos e intelectuais nessas formas abusivas de mobilização do passado. com regimes historiográficos e suas particulares condições de circulação, recepção e legitimidade da história. Portanto, as considerações que seguem visam contextualizar as manifestações do deputado Bolsonaro analisadas neste texto.

O negacionismo da Ditadura é um fenômeno político, que extrapola o campo historiográfico, e, portanto, quando analisado, deve ser estudado a partir das inter-relações com as disputas culturais, políticas e sociais de determinado momento histórico. Ao falar sobre o negacionismo da Ditadura nos anos 2000, é imprescindível compreendê-lo em sua inter-relação com a conjuntura do quadragésimo aniversário do Golpe de 1964, o primeiro rememorado em um governo do Partido dos Trabalhadores (PT), no qual se passou a difundir discursos negacionistas através de livros autointitulados como “politicamente incorretos”, quando a memória deixou de fazer referência diretamente a uma experiência própria e se transformou em um conhecimento cultural compartilhado (Jelín, 2002JELÍN, Elizabeth. Los trabajos de la memoria. Madrid: Siglo XXI, 2002.: 33).

Quanto aos anos 2010, com a eleição de Dilma Rousseff, suas políticas de memória — incluindo a CNV —, a rememoração dos cinquenta anos do Golpe em 2014, e a entrega do relatório final da CNV, a presença do negacionismo no debate público deve ser compreendida de forma indissociável de eventos transnacionais, como a ascensão de negacionismos científicos e do fortalecimento de movimentos e partidos de extrema-direita, os quais fomentam e são fomentados pelo anticientificismo, pelo anti-humanismo e o descrédito da política, baseados em valores anti-intelectuais, conservadores e reacionários, além de necropolíticos. Para o estudo dessa conjuntura, é necessário levar em consideração fenômenos como a pós-verdade 7 7 A pós-verdade é considerada por alguns autores como parte do paradigma de nossa época, e apresenta ao campo historiográfico desafios relativos à noção de prova e à construção da verdade. Como a pós-verdade se sustenta na premissa da existência de múltiplas verdades, e que os indivíduos são livres para escolher as que mais lhes convêm, criam-se realidades paralelas, marcadas pela suposição (Aparici, García-Marín, 2019: 41). Em suas narrativas, a pós-verdade reafirma as crenças de setores específicos da sociedade, operando mais no plano emocional que no racional (Murolo, 2019: 69). e as fake news, compreendendo como o passado da Ditadura tem sido instrumentalizado como propaganda 8 8 Propaganda pode ser entendida como uma ação organizada para difundir uma ideia, com finalidades de persuadir comportamental (ação) ou emocionalmente (emoção) (Pérez Ruiz; Aguilar Gutiérrez, 2019 ). As fake news e a pós-verdade, quando associadas ao negacionismo, transformam-se em uma forma de propaganda promovida a partir de mentiras históricas. Essas mentiras são constituídas de forma mais ou menos explícitas, de acordo com as estratégias identificadas por García-Marín e Aparici ( 2019 ). de projetos políticos contemporâneos.

Contudo, ainda que se possa identificar uma maior visibilidade dessas manifestações nos últimos anos em função da conjuntura dos trabalhos da CNV e a ascensão política de grupos militares, ou militarizados, na política brasileira, a criação e a circulação de versões negacionistas sobre a Ditadura ocorreram ainda durante o regime ditatorial, em parte promovidas pelo próprio Estado como parte de sua estratégia de implantação do terror (Bauer, 2014BAUER, Caroline Silveira. Brasil e Argentina: ditaduras, desaparecimentos e políticas de memória. 2. ed. Porto Alegre: Medianiz, 2014. ).

Durante a Ditadura, além dos sequestros, das torturas, das mortes e dos desaparecimentos, foram empregadas práticas de controle sobre o passado, a escrita da história e o exercício da memória do período, como a censura, a desinformação, o falseamento da realidade (com as versões falsas de “atropelamento”, “morte em confronto” e “suicídio” para ocultar os assassinatos sob tortura e as execuções), a indisponibilidade de arquivos dos órgãos de informação e repressão e o uso da propaganda. O regime se esforçou para não criar provas sobre as violações de direitos humanos, desempenhando ações clandestinas, paralelas ao funcionamento burocrático das forças de segurança; ou, em relação ao aparato repressivo oficial, destruiu arquivos ou dificultou seu acesso através da negação de sua existência ou do sigilo documental. Na conjuntura de transição política, intitulou aqueles que apresentavam histórias e memórias dissonantes de “revanchistas”.

Portanto, propõem-se um entendimento do negacionismo da Ditadura como uma atualização das estratégias de implantação do terror da Ditadura, no fomento a uma cultura do medo, contribuindo para a promoção da violência. Em outras palavras, o negacionismo resulta na transformação da violência física em violência simbólica. Para essa compreensão, aproxima-se o caso brasileiro das reflexões de autores sobre o negacionismo e os genocídios perpetrados na Europa durante o século XX (Feierstein, 2005FEIERSTEIN, Daniel (comp.). Genocidio: la administración de la muerte en la modernidad. Buenos Aires: UNTREF, 2005. ; Gagnebin, 1998GAGNEBIN, Jeanne Marie. Verdade e memória do passado. Projeto História, São Paulo, v. 17, p. 213-221, nov. 1998. ). Conforme Gagnebin ( 1998GAGNEBIN, Jeanne Marie. Verdade e memória do passado. Projeto História, São Paulo, v. 17, p. 213-221, nov. 1998.: 221), Hitler estava ciente da destruição da história e da memória perpetradas através de um genocídio quando afirmou, em agosto de 1939, “quem ainda fala dos extermínios dos armênios, hoje?”.

As mortes e os desaparecimentos não teriam sido as últimas etapas desses processos, mas as tentativas de controle da história e da memória. No caso da Ditadura Civil-Militar Brasileira, isso significou a elaboração de políticas de esquecimento e silenciamento por parte do Estado, iniciadas com a divulgação de falseamentos e negacionismos, e seguidas com a promulgação da Lei de Anistia (Camargo, 2017CAMARGO, Alessandra Lopes. Negacionismos e políticas de memória na justiça de transição brasileira. 2017. Dissertação (Mestrado em História) – Instituto de Filosofia e Ciências Humanas, Universidade Estadual de Campinas, Campinas, SP, 2017. ), a destruição e indisponibilização de arquivos dos órgãos de informação e repressão, e a disseminação de discursos negacionistas como reação às iniciativas de questionamento à versão oficial do passado propalada pela própria Ditadura.

Através dessas estratégias, a Ditadura Brasileira contribuiu, direta ou indiretamente, para forjar certas narrativas negacionistas sobre o período, que foram difundidas em diferentes comunidades de memória — principalmente os círculos militares —, e passaram a circular no espaço público. Essas narrativas, assim como as demais estratégias de implantação do terror, eram/são permeadas de violência política e simbólica, permitindo que se afirme que o negacionismo dispõe de um componente de violência intrínseco, porque, em relação ao outro, construído como inimigo por uma “cultura do medo”, existe apenas a possibilidade de combate (Authier-Revuz; Romeu, 2004AUTHIER-REVUZ, Jacqueline, ROMEU, Lydia. O lugar do outro em um discurso de falsificação da história: a respeito de um texto que nega o genocídio dos judeus no Terceiro Reich. In: AUTHIER-REVUZ, Jacqueline (org.) Entre a transparência e a opacidade: um estudo enunciativo do discurso. Porto Alegre: ediPUCRS, 2004.: 248).

Entende-se por cultura do medo o resultado do emprego do terrorismo de Estado, ao fomentar a insegurança e o medo ao desconhecido, atribuindo à dissidência e à oposição a ideia de desordem intolerável (Bauer, 2014BAUER, Caroline Silveira. Brasil e Argentina: ditaduras, desaparecimentos e políticas de memória. 2. ed. Porto Alegre: Medianiz, 2014. ; Corradi, 1986CORRADI, Juan. A cultura do medo na sociedade civil: reflexões e propostas. In: CHERESKY, Isidoro; CHONCHOL, Jacques (org.). Crise e transformação dos regimes autoritários. São Paulo: Ícone, 1986. ; Garretón, 1992GARRETÓN, Manuel Antonio. Fear in Military Regimes: An Overview. In: CORRADI, Juan E.; FAGEN, Patrícia W.; GARRETÓN, Manuel A. (ed.). Fear at the Edge: State Terror and Resistance in Latin America. Berkeley, CA: University of California Press, 1992. ). Nesse sentido, o negacionismo é a transposição, para o nível discursivo, da “vontade de aniquilamento” dos sujeitos que se atém aos dados de realidade. Já que não se pode eliminar indiscriminadamente esses sujeitos, elimina-se a verdade que eles enunciam. Como afirma Hannah Arendt ( 2003ARENDT, Hannah. Verdade e política. In: ARENDT, Hannah. Entre o passado e o futuro. São Paulo: Perspectiva, 2003.: 312), “a mentira organizada tende a destruir aquilo que ela decidiu negar”. Transfere-se para o âmbito discursivo a eliminação da existência física de pessoas ocorrida durante a Ditadura. O silenciamento é uma forma de morte e negação de suas existências, assim como de seus registros na história e na memória (Authier-Revuz; Romeu, 2004AUTHIER-REVUZ, Jacqueline, ROMEU, Lydia. O lugar do outro em um discurso de falsificação da história: a respeito de um texto que nega o genocídio dos judeus no Terceiro Reich. In: AUTHIER-REVUZ, Jacqueline (org.) Entre a transparência e a opacidade: um estudo enunciativo do discurso. Porto Alegre: ediPUCRS, 2004.: 254). Na impossibilidade do assassinato, arruína-se sua narrativa, deslegitima-se, silencia-se.

A “cultura do medo” promovida pela Ditadura seria uma expressão da ortodoxia terrorista estudada por Pierre Ansart ( 1978ANSART, Pierre. Ideologias, conflitos e poder. Rio de Janeiro: Zahar, 1978. ), caracterizada por uma leitura dicotômica da realidade, em que “o ilegítimo é tudo aquilo que convém controlar, combater e excluir. A ideologia terrorista leva ao extremo essa dimensão […]; o ilegítimo já não é apenas o inferior que é preciso controlar, e sim o mal que cumpre destruir para que a sociedade legítima se realize” (Ansart, 1978ANSART, Pierre. Ideologias, conflitos e poder. Rio de Janeiro: Zahar, 1978.: 154-155). Ansart ( 1978ANSART, Pierre. Ideologias, conflitos e poder. Rio de Janeiro: Zahar, 1978.: 152) destaca que a linguagem dessa ideologia carece de informações e argumentações lógicas, “pois já não se trata, com efeito, de convencer pelo raciocínio, mas apenas de manter a obediência”. O apelo às emoções e à violência simbólica são utilizados em substituição à argumentação fática ou lógica, recorrendo-se à confusão a partir da generalização.

Seligmann-Silva ( 2009SELIGMANN-SILVA, Márcio. Anistia e (in)justiça no Brasil: o dever de justiça e a impunidade. In: SANTOS, Cecilia MacDowell; TELES, Édson; TELES, Janaína de Almeida (org.). Desarquivando a ditadura: memória e justiça no Brasil. São Paulo: Hucitec, 2009. v. 2, p. 541-555. ) lembra que, durante a Ditadura, os militares negavam toda denúncia sobre as violações, como perseguições, torturas, prisões arbitrárias, desaparecimentos e mortes. Ou seja, havia uma orquestração da mentira para impedir que a sociedade reconhecesse a real situação da repressão. O autor afirma que essa lógica negacionista continuou sendo utilizada pelos governos democráticos, constituindo, portanto, uma “cadeia de negações” com o objetivo de garantir o silenciamento sobre certos temas, a fim de atingir, ao longo do tempo, o esquecimento sobre a Ditadura de 1964.

Para que se compreenda o negacionismo como uma forma de violência simbólica que atualiza as estratégias de implantação do terror da ditadura, é necessário ampliar os significados de negação. Primeiro, do ponto de vista historiográfico, o negacionismo da Ditadura Civil-Militar pode ser definido como um uso abusivo do passado, no qual, através da mentira, do engano e do falseamento, busca-se usufruir de suas vantagens. Nesse “abuso” do passado, os negacionistas empregam uma série de estratégias retóricas, resultando na deturpação e falsificação dos fatos; na seleção e na omissão irresponsável de informações; no reducionismo analítico; na descontextualização; na difamação e na exposição de pessoas, afetando suas reputações; e no ato de ignorar os debates historiográficos e a produção bibliográfica existente. Dessa forma, generalizações, imprecisões e omissões, quando relacionadas a realidades históricas e mobilizadas politicamente, podem ser compreendidas como parte de um discurso negacionista. O negacionismo é sempre deliberado e intencional, e, por isso, não deve ser confundido com o desconhecimento, o equívoco e o erro, mesmo que existam “zonas cinzentas e diferentes níveis de consciência entre o erro, o exagero e a mentira” (Baets, 2013BAETS, Antoon de. Uma teoria do abuso da História. Revista Brasileira de História, São Paulo, v. 33, n. 65, p. 17-60, 2013.: 36). 9 9 Antoon de Baets ( 2013 ) realizou uma classificação para os abusos e os usos irresponsáveis da história, do ponto de vista heurístico, epistemológico e pragmático. Mesmo que tenha se baseado em comportamentos e práticas de historiadores, e que o negacionismo da Ditadura Brasileira não seja predominantemente propalado por esses profissionais, sua proposta contribui para pensar o negacionismo da Ditadura como um abuso do passado. A mentira e o falseamento não decorrem necessariamente da falta de conhecimento.

Depois, valendo-se da leitura psicanalítica da negação como um mecanismo de defesa, compreende-se o negacionismo não só como um ato de negar a realidade, mas de não aceitar, ou reconhecer, algo como possível ou verdadeiro. Essa interpretação foi sugerida por Pereira ( 2015PEREIRA, Mateus Henrique de Faria. Nova direita?: guerras de memória em tempos de Comissão da Verdade (2012-2014). Varia Historia, Belo Horizonte, v. 31, n. 57, p. 863-902, set./dez. 2015. ), analisando manifestações de militares brasileiros na conjuntura dos trabalhos da CNV. Ao suprimir todos os advérbios de negação desses textos, o autor sugere que existe uma dificuldade em aceitar determinada realidade, mais do que a negação propriamente dita dessa realidade.

Acrescentaríamos a essa leitura a ideia do negacionismo como um intenso trabalho de autoengano, em uma operação mais ou menos consciente de negação de determinada realidade que contrarie crenças e desestabilize o sistema de valores de uma pessoa. O negacionista nega a realidade porque deseja que a realidade seja diferente daquilo que ela é. Desse modo, compreende-se por que as crenças, as emoções e os preconceitos dos indivíduos apresentam maior validade que dados concretos que os contradigam. Quando contra-argumentados a partir de dados, podem se valer de mecanismos de defesa, como a negação.

Essa ideia reforça os argumentos desenvolvidos por Leo Festinger no final dos anos 1950, por meio de uma teoria psicossocial, a teoria da dissonância cognitiva . Segundo David García-Marín e Roberto Aparici ( 2019GARCÍA-MARÍN, David; APARICI, Roberto. La posverdad: el software de nuestra era. In: APARICI, Roberto, GARCÍA-MARÍN, David (coord.). La postverdad: una cartografía de los medios, de las redes y la política. Barcelona: Gedisa, 2019.: 32, tradução nossa), uma pessoa “tenderá a considerar como verdadeiros aqueles conteúdos que minimizem o máximo possível a dissonância cognitiva, ou seja, que se ajustem mais às suas crenças preestabelecidas”. 10 10 “Se inclinará a considerar como verdaderos aquellos contenidos que minimicen todo lo posible su disonancia cognitiva, es decir, acogerá como verdaderos aquellos contenidos que se ajusten más a sus creencias preestabelecidas.” Essa teoria explicaria a busca por uma coerência harmoniosa entre suas atitudes, suas crenças e seus comportamentos, já que há uma desconformidade quando esses três aspectos (atitudes, crenças e comportamentos) não estão alinhados (García-Marín, Aparici, 2019GARCÍA-MARÍN, David; APARICI, Roberto. La posverdad: el software de nuestra era. In: APARICI, Roberto, GARCÍA-MARÍN, David (coord.). La postverdad: una cartografía de los medios, de las redes y la política. Barcelona: Gedisa, 2019.: 32). 11 11 O bolsonarismo tem sido explicado a partir da teoria da dissonância cognitiva por pesquisadores como Rocha ( 2023 ).

Jair Bolsonaro e suas verdades

Em 15 de dezembro de 2004, o deputado Bolsonaro encaminhou um requerimento à Câmara dos Deputados solicitando “a realização de sessão solene em homenagem aos bravos e heroicos militares que morreram na lutado [sic] movimento armado denominado ‘Guerrilha do Araguaia’, ocorrido no período entre 1972 e 1975 e extinto pelas Forças Armadas” (Proposição 1)

Diferentemente do que afirmam trabalhos historiográficos e relatos de militares e militantes, Bolsonaro afirmava que a maior parte dos integrantes da guerrilha estavam vivos, desmentindo a “sanguinolência” e a “violência” das Forças Armadas:

Certamente, seus idealizadores, cuja grande maioria encontra-se viva e sem qualquer sequela, tanto que quase todos ocupam altos cargos nos três poderes da República, o que prova que as Forças Armadas não foram tão violentas e sanguinárias como se afirma, se tivessem sido vitoriosos, implantariam no Brasil um regime autoritário e antidemocrático idêntico ao de Cuba, considerando que praticamente todos aqueles que participaram do movimento são frequentadores assíduos daquele país e gozam da intimidade de Fidel Castro, reconhecidamente o mais antigo dos ditadores do mundo à custa de mais de 70 mil execuções sumárias, em sua maioria de presos políticos (Proposição 1).

Na justificação desse requerimento, explicita-se o negacionismo quando Bolsonaro nega as mortes e os desaparecimentos dos membros da guerrilha. Se a morte e o desaparecimento dessas pessoas são negados, nega-se sua própria existência, o que evidencia a estratégia de aniquilamento total das vítimas e remete ao negacionismo como etapa final da prática genocida. Como afirma Márcio Seligmann-Silva ( 2010SELIGMANN-SILVA, Márcio. O local do testemunho. Tempo e Argumento, Florianópolis, v. 2, n. 1, p. 3-20, jan./jun., 2010.: 10), “o negacionismo, neste caso, é apenas um caso particularmente radical de um movimento que acompanha o gesto genocida. O genocida sempre visa à total eliminação do grupo inimigo para impedir as narrativas do terror e qualquer possibilidade de vingança. Os algozes sempre procuram também apagar as marcas do seu crime”.

Algum tempo depois, em 26 de setembro de 2013, o deputado Bolsonaro apresentou um requerimento à Comissão de Direitos Humanos e Minorias, presidida à época pelo deputado pastor Marco Feliciano, do Partido Social Cristão (PSC), para instalação de uma “subcomissão especial para a defesa da história das Forças Armadas na formação do Estado brasileiro” (Proposição 2).

Passado pouco mais de um ano, agora deputado federal pelo Partido Progressista (PP), em 11 de dezembro de 2014, um dia após a entrega do relatório final da CNV em cerimônia no Palácio do Planalto, Bolsonaro apresentou um projeto de lei que propunha a criação de uma “Comissão da Verdade (CV) no âmbito da Casa Civil da Presidência da República” (Proposição 3).

Um dos primeiros elementos que podem ser apontados sobre essas três proposições é a reatividade, que expressa a oposição de Bolsonaro tanto às rememorações dos quarenta anos do Golpe de 1964 quanto aos trabalhos da CNV, explícita desde o debate legislativo sobre a criação da comissão (Bauer, 2015BAUER, Caroline Silveira. O debate legislativo sobre a criação da Comissão Nacional da Verdade e as múltiplas articulações e dimensões de temporalidade da Ditadura Civil-Militar Brasileira. Anos 90, Porto Alegre, v. 22, n. 42, p. 115-152, 2015. ). Característica de alguns discursos militares negacionistas, ou não, sobre a Ditadura, 12 12 Como exemplos, poder-se-ia citar os livros Brasil: sempre (1986), de Marco Pollo Giordanni; Rompendo o silêncio (1987) e A verdade sufocada (2006), de Carlos Alberto Brilhante Ustra; A hora do lobo, a hora do carneiro (1989), de Amílcar Lobo; e Tudo a declarar (1989), de Armando Falcão. Não se trata de uma coincidência que esses títulos também evidenciem um caráter reativo e que remetam a uma busca por uma verdade ainda não estabelecida. essa postura pode ser compreendida como uma forma de ressentimento, oriundo dos caminhos da transição, da forma como a memória social sobre aquele período foi sendo construída (D’Araújo; Soares; Castro, 1994D’ARAÚJO, Maria Celina; SOARES, Gláucio Ary Dillon; CASTRO, Celso (org.). Visões do Golpe: a memória militar sobre 1964. Rio de Janeiro: Relume-Dumará, 1994. ), e da vitória eleitoral de pessoas que integraram organizações guerrilheiras nos anos 1960 e 1970. Evidencia também uma disputa política pelo sentido de “verdade” (Arendt, 2003ARENDT, Hannah. Verdade e política. In: ARENDT, Hannah. Entre o passado e o futuro. São Paulo: Perspectiva, 2003.: 298), explicando o tom de combate das medidas, que remete, por sua vez, à dimensão da violência do negacionismo ao se apresentar como um enfrentamento a outros sujeitos e aos seus discursos.

Na justificativa da Proposição 2, o deputado empregou uma tópica muito utilizada na comunidade de memória militar sobre o Golpe de 1964, que as Forças Armadas agiram a partir das demandas apresentadas pela sociedade civil: “Inegavelmente a interferência na vida política do país em 1964 ocorreu em atendimento aos anseios de segmentos políticos, da Igreja, de empresários e, principalmente, da sociedade civil” (Proposição 2). Essa forma de mobilizar o passado recupera uma função comumente atribuída aos militares, de “salvadores” da nação e da ordem e “tradutores” da vontade nacional.

Ainda que hoje se compreenda melhor o protagonismo de cada um desses setores nas campanhas de desestabilização do governo João Goulart, e se admita que o Golpe de 1964 foi civil-militar, parece que essa leitura, no conjunto da argumentação apresentada pelos militares, trata-se de uma atitude exculpatória ou, no mínimo, de compartilhamento de responsabilidades, em função de terem sido a única instituição associada às intervenções na política, o que teria causado um grande ressentimento nas Forças Armadas, identificado desde a década de 1990 (D’Araújo; Soares; Castro, 1994D’ARAÚJO, Maria Celina; SOARES, Gláucio Ary Dillon; CASTRO, Celso (org.). Visões do Golpe: a memória militar sobre 1964. Rio de Janeiro: Relume-Dumará, 1994. ).

Bolsonaro afirmou que, naquele momento, as Forças Armadas experimentavam uma “fragilização institucional” decorrente da “insuficiente representação no cenário político atual” (Proposição 2). Além disso, a instituição estaria sendo marginalizada pela mídia e pelos livros didáticos:

A mídia tem massificado a opinião pública contra as instituições militares, transmitindo notícias falsas e distorcidas sobre sua atuação no passado. De igual modo, os livros escolares estampam informações que se constituem em verdadeira deformação dos fatos ocorridos. Ressalte-se que, se a real intenção da Comissão Nacional da Verdade, como órgão institucional, é reescrever a história, é inaceitável que não haja contraponto por segmentos não indicados pelo governo (Proposição 2).

Sua proposição, dessa forma, ofereceria um contraponto ao complô de “reescrita da história”, buscando um “equilíbrio na busca da verdadeira história de nosso país”, inclusive para “acompanhar” o trabalho de instituições que visam “macular a imprescindível colaboração dos militares na construção da democracia e na formação do Estado brasileiro” (Proposição 2).

Os trechos citados evidenciam outras características do negacionismo da Ditadura além da reatividade. Na justificativa apresentada pelo deputado, a mídia e os livros didáticos são apresentados como “inimigos” que deformam, distorcem e falseiam os fatos. Para os negacionistas, quem nega é sempre o outro.

Segundo as interpretações de Jacqueline Authier-Revuz e Lydia Romeu, o negacionismo da Ditadura não objetiva contribuir com a historiografia sobre a Ditadura, mas forjar uma contraposição discursiva entre um eu “arauto e herói da ‘verdade revisionista’” e um outro (Authier-Revuz; Romeu, 2004AUTHIER-REVUZ, Jacqueline, ROMEU, Lydia. O lugar do outro em um discurso de falsificação da história: a respeito de um texto que nega o genocídio dos judeus no Terceiro Reich. In: AUTHIER-REVUZ, Jacqueline (org.) Entre a transparência e a opacidade: um estudo enunciativo do discurso. Porto Alegre: ediPUCRS, 2004.: 242), evocando os infortúnios que seus atos heroicos de narrar a verdade causam a si e à vida de seus familiares. “Esse mártir da verdade histórica é também, nela, um missionário e um mestre pensador, que se esforça em convencer e formar o leitor para a causa da realidade, associada à desconfiança em relação aos discursos” (Authier-Revuz; Romeu, 2004AUTHIER-REVUZ, Jacqueline, ROMEU, Lydia. O lugar do outro em um discurso de falsificação da história: a respeito de um texto que nega o genocídio dos judeus no Terceiro Reich. In: AUTHIER-REVUZ, Jacqueline (org.) Entre a transparência e a opacidade: um estudo enunciativo do discurso. Porto Alegre: ediPUCRS, 2004.: 246). Não seria exagero afirmar que esse outro é um adversário, um inimigo, uma expressão da “cultura do medo”. Nas narrativas negacionistas da Ditadura, esses inimigos são mantidos no anonimato, não são identificados, ou, quando muito, convertidos em nomes comuns plurais, tais como “os esquerdistas”, “os gramscianos”, “os historiadores”, os “marxistas”.

Sugerindo a existência de um complô, Bolsonaro mobiliza teorias conspiratórias. De acordo com García-Marín e Aparici ( 2019GARCÍA-MARÍN, David; APARICI, Roberto. La posverdad: el software de nuestra era. In: APARICI, Roberto, GARCÍA-MARÍN, David (coord.). La postverdad: una cartografía de los medios, de las redes y la política. Barcelona: Gedisa, 2019.: 117-118, tradução nossa) essas narrativas conspiracionistas

se fundamentam em histórias e informações que tentam explicar de forma simplória realidades complexas como resposta ao medo ou à incerteza. Essas teorias são extremamente resistentes aos fatos, […] Em certos casos, as evidências que refutam essas teorias conspiratórias são consideradas pelos conspiradores como vestígios da conspiração, porque tendem a pensar que tais provas foram artificialmente criadas. Os defensores dessas teorias também rechaçam as opiniões dos especialistas e todo tipo de autoridade que possa contrapor o sentido de suas crenças. 13 13 “Se fundamentan en historias e informaciones que intentan explicar de forma simple realidades complejas como respuesta al miedo o la incertidumbre. Estas teorías son extremamente resistentes a los hechos. […] En ocasiones, las evidencias que refutan estas teorías conspirativas son consideradas por sus seguidores como prueba de la conspiración ya que tienden a pensar que tales evidencias han sido artificialmente creadas. Los defensores de estas teorías también rechazan las opiniones de los expertos y todo tipo de autoridad que pueda contravenir el sentido de sus creencias.”

Na citação mais longa da Proposição 2, o deputado expressa um rechaço à cobertura da imprensa aos trabalhos da CNV e ao espaço conferido na mídia aos depoimentos de ex-presos e perseguidos políticos. Observa-se uma acusação à historiografia acadêmica e escolar de interpretações errôneas, imparciais ou lacunares, na expressão “deformação dos fatos ocorridos”. Ao afirmar que sua proposta busca um “equilíbrio na busca da verdadeira história de nosso país”, Bolsonaro mobiliza uma terceira característica do negacionismo da Ditadura, uma narrativa pretensamente definitiva, desideologizada, neutra, ao se referir a uma “verdadeira história”.

O requerimento de instalação da Subcomissão Especial para a Defesa da História das Forças Armadas na Formação do Estado Brasileiro foi em 2 de outubro de 2013. Contudo, a subcomissão seria extinta pouco tempo depois, em março de 2014, após empossamento da nova legislatura e da nova presidência da Comissão de Direitos Humanos e Minorias. Antes da extinção, a subcomissão realizou uma atividade.

Em novembro de 2013, Bolsonaro requereu uma audiência pública a fim de “debater os fatos relacionados à Guerrilha do Araguaia.” Para subsidiar os trabalhos daquela comissão, o deputado solicitou que fossem convidadas as seguintes pessoas: o tenente-coronel Lício Augusto Ribeiro Maciel; o deputado José Genoíno Guimarães Neto; e José Carlos Dias e Maria Rita Kehl, membros da CNV e integrantes do grupo de trabalho sobre a Guerrilha do Araguaia. Na justificação de seu pedido, o deputado afirmava que essa subcomissão, “diferentemente do que faz a Comissão Nacional da Verdade” realizaria depoimentos públicos “das pessoas envolvidos [sic] neste período”, com o objetivo de que “a imprensa e qualquer do povo [sic] possam tem acesso à verdade como ela foi, e não da forma como publicado na grande mídia, com informações distorcidas por aqueles que se intitulam paladinos da verdade”. Seria uma oportunidade para “elucidação dos fatos”, “com as informações prestadas por testemunhas vivas e com participação ativa naquele momento histórico que garantiu a continuidade do Estado brasileiro, livre do comunismo” (Proposição 2).

Nesse trecho, dois elementos chamam a atenção. Primeiramente, os convites realizados ao tenente-coronel Lício Maciel e ao deputado José Genoíno. O parlamentar, integrante da Guerrilha do Araguaia, foi preso na primeira operação de combate ao movimento; o militar, por sua vez, participara da prisão de Genoíno e de outras operações de repressão à guerrilha. Aqui, Bolsonaro procura dotar de legitimidade sua comissão ao convidar partícipes dos acontecimentos — “as testemunhas oculares”, na busca pela veracidade — e representantes dos “dois lados”, evidenciando uma suposta neutralidade. Posteriormente, o falseamento da realidade através da atribuição ao combate à Guerrilha do Araguaia a garantia que o Brasil permanecesse “livre do comunismo”. Bolsonaro também emprega uma narrativa anticomunista, extensamente utilizada por setores civis e militares (Motta, 2002MOTTA, Rodrigo Patto Sá. Em guarda contra o “perigo vermelho”: o anticomunismo no Brasil (1917-1964). São Paulo: Perspectiva, 2002. ). 14 14 Não é o objetivo deste artigo aprofundar as relações entre o discurso negacionista e o anticomunismo, mas se ressalta a importância do fenômeno como fator de alinhamento, coesão e identidade/reconhecimento entre diferentes grupos. Embora o anticomunismo tenha resultado em medidas concretas, sua mobilização na proposição do ex-militar evidencia uma estratégica retórica negacionista.

A terceira proposição, em formato de projeto de lei, foi apresentada por Bolsonaro um dia após a entrega do relatório final da CNV, em cerimônia realizada no Palácio do Planalto, em 10 de dezembro de 2014. O conteúdo da proposição assemelhava-se muito com os artigos da Lei nº 12.528, que criou a CNV (Brasil, 2011 BRASIL. Casa Civil. Subchefia para Assuntos Jurídicos. Lei nº 12.528, de 18 de novembro de 2011. Cria a Comissão Nacional da Verdade no âmbito da Casa Civil da Presidência da República. Diário Oficial da União, Brasília, DF, edição extra, 18 nov. 2011. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2011-2014/2011/lei/l12528.htm . Acesso em: 21 nov. 2020.
http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_at...
). O artigo 1º, por exemplo, explicitava que, assim como a CNV, a CV teria como objeto “examinar e esclarecer fatos e graves violações de direitos humanos praticados no país”, com a diferença que, nesse caso, abordariam aqueles episódios “não avaliados pela comissão instituída pela Lei nº 12.528, de 18 de novembro de 2011”. Pretendia-se assim “efetivar plenamente o direito à memória e à verdade histórica e promover a reconciliação nacional”. O projeto de lei também estipulava que a CV teria até 10 de dezembro de 2017 para a conclusão de seus trabalhos, quando deveria entregar um “relatório circunstanciado contendo as atividades realizadas, os fatos examinados, as conclusões e as recomendações” (Proposição 3).

A CV de Bolsonaro teria como escopo de investigação uma série de episódios referentes à atuação das organizações de esquerda armada brasileira, descritos minuciosamente ao longo do artigo 3º, com nomes, datas e circunstâncias, como atentados à bomba, expropriações, justiçamentos e sequestros de autoridades. Pretendia-se circunscrever os trabalhos às “graves violações de direitos humanos praticados por aqueles que se insurgiram contra o Estado brasileiro”, possibilitando que fosse “prestada assistência às vítimas de tais violações e seus familiares” (Proposição 3).

A proposta de Bolsonaro traz implicitamente a ideia de incompletude dos trabalhos da CNV por não ter investigado os atos descritos no texto. Em uma estratégia negacionista para tornar a mentira verossímil (Aparici; García-Marín, 2019APARICI, Roberto, GARCÍA-MARÍN, David. Historia de la mentira: más allá de Derrida. In: APARICI, Roberto, GARCÍA-MARÍN, David (coord.). La postverdad: una cartografía de los medios, de las redes y la política. Barcelona: Gedisa, 2019. ), o deputado utiliza uma retórica de convencimento aportando datas e nomes e descrevendo episódios, e, através da abundância e do hiper-realismo descritivo, reforça a ideia de ocultamento e omissão da verdade.

Nos quatro parágrafos que justificam a proposição do deputado, estão outros indícios que evidenciam uma interpretação negacionista da Ditadura Civil-Militar. Bolsonaro inicia a justificação de seu projeto afirmando que “a verdade não é monopólio de qualquer segmento político. Uma comissão onde todos os integrantes são designados pela chefe do Executivo, peça diretamente envolvida no período, perde sua credibilidade” (Proposição 3). Existe um ressentimento explícito em relação à então presidenta Dilma Rousseff, que, ao ser apresentada como responsável pela nomeação dos integrantes da CNV e “peça diretamente envolvida no período” (Proposição 3), é descredibilizada, assim como a própria comissão, compreendida pelo deputado como uma política em benefício próprio, e não uma política de memória promovida pelo Estado.

No parágrafo seguinte, Bolsonaro afirma que seu projeto

visa conceder a oportunidade à mesma Comissão Nacional da Verdade (CNV) de preencher a lacuna em seu relatório, que omitiu os fatos de guerrilheiros e terroristas, treinados e financiados por países que nunca admitiram liberdade em seu solo, esclarecer e dar publicidade com o mesmo destaque, a participação de cada um em atos de sequestros, atentados a bomba, estupros, torturas, execuções de militares e civis na busca da implantação da ditadura do proletariado (Proposição 3).

Aqui, é necessário fazer referência ao escopo de atuação da CNV, que esteve em disputa desde os debates legislativos para a aprovação da lei que criava a comissão. No texto da referida lei, explicita-se que a CNV atuaria nas graves violações de direitos humanos cometidas pelo Estado brasileiro, porque se buscava aferir a responsabilidade do Estado e de seus agentes nos crimes cometidos durante a Ditadura Civil-Militar (Bauer, 2017BAUER, Caroline Silveira. Como será o passado?: história, historiadores e a Comissão Nacional da Verdade. Jundiaí, SP: Paco, 2017. ).

A proposta de Bolsonaro pode parecer equitativa e isonômica, mas essa argumentação falaciosa se baseia em uma distorção histórica negacionista. Primeiro porque a violência cometida pelo Estado e por indivíduos não são grandezas comparáveis; por questões de princípios, o Estado tem como objetivo resguardar a vida dos indivíduos, garantindo a aplicação da justiça e a execução das leis, não sua violação. À época, o Brasil tinha dispositivos jurídicos para o combate às ações de guerrilha urbana e rural, mas foi adotada uma estratégia repressiva orientada pela chamada “guerra revolucionária”, em que o inimigo passa a ser combatido com suas próprias armas.

Da mesma forma, não se pode afirmar que exista uma similitude entre o potencial repressivo estatal e as condições das organizações de esquerda armada. A desproporcionalidade entre os recursos humanos e materiais das Forças Armadas e das organizações guerrilheiras pode ser observada em diferentes oportunidades, como no próprio combate à Guerrilha do Araguaia no que diz respeito à proporção de militares mobilizados para o combate aos guerrilheiros.

Ainda, os projetos da Ditadura e das oposições revolucionárias são distintos, o que torna a pretensa equidade inócua. Enquanto havia diferentes projetos econômicos, políticos e sociais de civis e militares que se alternaram ao longo da Ditadura, as organizações guerrilheiras, ainda que por meios distintos, defendiam a derrubada daquele Estado e a implantação de um regime socialista no Brasil. 15 15 A diferenciação entre as motivações se apresenta como possibilidade de contraposição aos argumentos das múltiplas verdades quando utilizados para justificar versões históricas negacionistas. Semelhante consideração foi elaborada por Daniel Feierstein ( 2018 ) em relação ao caso argentino, como enfrentamento à tese falaciosa dos dois demônios e sua violência generalizada, demonstrando a necessidade de diferenciar os projetos “da direita” e “da esquerda”, somado às anteriores desconstruções desse argumento que explicitam a desproporcionalidade entre a violência do Estado e a violência revolucionária.

O ex-militar recupera com essa justificativa uma argumentação largamente utilizada no Cone Sul, a chamada “teoria dos dois demônios”, 16 16 Essa “teoria” foi uma interpretação elaborada para as ditaduras argentinas durante a transição política para a democracia naquele país, em que se equiparava os atos cometidos pelas organizações guerrilheiras e pelo Estado. Sua eficácia na construção de determinada memória sobre o passado recente naquele país foi tão expressiva que consolidou a ideia de que apenas os militares e os militantes de organizações guerrilheiras foram responsáveis pela violência das décadas de 1960, 1970 e 1980, tornando as sociedades, de forma geral, inocentes nesse processo, ver Feierstein ( 2018 ). que, além de estabelecer a equivalência entre o terrorismo de Estado e a violência revolucionária, fornece uma leitura dicotômica, militarizada e simplista da realidade, interpretando a Ditadura como uma dinâmica entre as Forças Armadas e as organizações guerrilheiras, ou entre “aliados” e “inimigos”.

A ausência de compromisso com a realidade fática faz com que, na apresentação dessas equiparações, omita-se que as ações das organizações guerrilheiras foram investigadas, seus integrantes foram indiciados, processados, condenados — raras vezes, absolvidos — e cumpriram suas penas, isso quando não foram mortos e desaparecidos. A recíproca, no entanto, não é verdadeira: durante a Ditadura Civil-Militar não houve investigações sobre a ação repressiva, nem sobre os “abusos” ou “excessos” que alguns militares admitiram que poderiam ter ocorrido. Além dos crimes cometidos na consecução das estratégias de implantação do terror, o Estado ditatorial foi omisso em relação às acusações de violações de direitos humanos denunciadas tanto no âmbito nacional quanto internacional. Essas denúncias eram consideradas “propaganda adversa” elaboradas por “subversivos” e, quando investigadas, não resultavam em punições para mandantes e executores.

Além de sua argumentação seduzir pela equidade e isonomia, ao recuperar os “dois lados”, Bolsonaro constrói-se como um “sujeito neutro” (Feierstein, 2018FEIERSTEIN, Daniel. Los dos demónios (recargados). Buenos Aires: Marea, 2018. ), alheio às versões contraditórias, o que confere ainda mais força para sua interpretação pelo pretenso teor de neutralidade e objetividade, ou, como costuma afirmar, “sem o viés ideológico”, desresponsabilizando-se.

Em geral, nos discursos negacionistas, existe uma objetividade idealizada baseada em uma suposta isenção, imparcialidade e neutralidade, explícita no caso em análise, mas também evidente na epígrafe deste texto. Nela Bolsonaro afirma que a obra de Ustra é dotada de fatos, nomes, locais, não apela necessariamente para a fatualidade, para a realidade buscada pelo método historiográfico, mas para a ideia de uma narrativa “limpa”, desideologizada, muito próxima à ideia de “limpeza” reivindicada pelos negacionistas do Holocausto quanto aos seus textos (“limpar a história das mentiras, dos erros”) e pelos nazistas em relação à Alemanha e à Europa, a serem “limpas”, como dizia o líder nazista Heinrich Himmler (Authier-Revuz; Romeu, 2004AUTHIER-REVUZ, Jacqueline, ROMEU, Lydia. O lugar do outro em um discurso de falsificação da história: a respeito de um texto que nega o genocídio dos judeus no Terceiro Reich. In: AUTHIER-REVUZ, Jacqueline (org.) Entre a transparência e a opacidade: um estudo enunciativo do discurso. Porto Alegre: ediPUCRS, 2004.: 248)

A verdade, como observado por Hannah Arendt ( 2003ARENDT, Hannah. Verdade e política. In: ARENDT, Hannah. Entre o passado e o futuro. São Paulo: Perspectiva, 2003. ), é, desse modo, reduzida a uma questão de opinião e escolha entre dois discursos. E a sociedade, que tem um papel ativo na recepção e na apropriação do conhecimento histórico (Nicolazzi, 2019NICOLAZZI, Fernando. Os historiadores e seus públicos: regimes historiográficos, recepção da história e história pública. História Hoje, São Paulo, v. 8, n. 15, p. 203-222, 2019. ), é chamada a se responsabilizar “escolhendo um lado”, conferindo-lhe legitimidade. Já que a força do negacionismo não reside em sua correspondência com a realidade fática, é preciso buscar as formas de legitimação desses discursos. Ainda que não exista uma única forma de legitimar um discurso negacionista, com frequência se apela para a “liberdade de expressão”, ou “liberdade de opinião”, confundindo-se “opinião” e “verdade” (Arendt, 2003ARENDT, Hannah. Verdade e política. In: ARENDT, Hannah. Entre o passado e o futuro. São Paulo: Perspectiva, 2003. ). Difunde-se uma ideia de que o mundo tem “muitas verdades”, equânimes, e que a escolha de uma verdade é um exercício de liberdade democrática. A democracia passa a ser compreendida como espaço onde todas as enunciações e opiniões sobre a Ditadura podem ser feitas, em nome da liberdade de expressão, ainda que configurem a antítese da democracia, como o discurso de ódio. Se não se pode afirmar que existe uma única interpretação da realidade, isso não significa que todas as interpretações são possíveis, porque existem aquelas que são abusivas, falsas, mentirosas.

No penúltimo parágrafo da justificativa, Bolsonaro reforça a denúncia sobre a imparcialidade da CNV, que teria sido formada por um colegiado “notadamente pautado em posicionamentos unilaterais, alheios ao contexto da época do Regime Militar”. A proposição bolsonarista se apresenta como “o outro lado” ignorado, marginalizado, e sua proposição forneceria a contranarrativa necessária para o “equilíbrio” dessas histórias, pois, segundo o deputado, o relatório da CNV “revelou-se revanchista e caluniosa contra as Forças Armadas e auxiliares, integrantes de outros órgãos de segurança, bem como de civis que deram suas vidas pela nossa liberdade”.

Considerações finais

Se as menções de Jair Messias Bolsonaro à Ustra surpreenderam muitas pessoas, um acompanhamento de suas proposições enquanto deputado federal evidenciam suas históricas manifestações apologéticas à ditadura implementada em 1964.

A formação militar de Bolsonaro durante a Ditadura possibilitou um contato direito com oficiais ocupantes de postos-chave e partícipes dos aparatos de informação e segurança. Essa sociabilidade militar fez com que sua geração recebesse e transmitisse uma narrativa muito específica sobre o regime, permeada por elementos negacionistas (Bauer, 2020BAUER, Caroline Silveira. Usos do passado da Ditadura Brasileira em manifestações públicas de Jair Bolsonaro. In: KLEN, Bruna; PEREIRA, Mateus Henrique de Faria; ARAUJO, Valdei Lopes de (org.). Do fake ao fato: (des)atualizando Bolsonaro. Vitória: MilFontes, 2020. p. 183-204. ). A negação do passado ditatorial promovida por Bolsonaro, portanto, perpassa sua trajetória castrense e se explicita em diferentes momentos de sua trajetória política. Após sua posse como presidente da República, essas manifestações foram dotadas de maior legitimidade. Contudo, estão presentes em momentos como nessas três proposições legislativas. O conteúdo dessas propostas demonstra uma atualização da estratégia de implantação do terror no fomento à “cultura do medo”, promovendo uma violência simbólica. A mobilização desses sentimentos por Bolsonaro visava buscar uma adesão política.

A adesão de amplos setores da sociedade ao conteúdo do discurso negacionista e seu consequente “efeito de desorientação” parece fomentar entre os historiadores uma visão melancólica de que não há o que fazer. Porém, quando uma comunidade adere à falsificação como dado de realidade e como princípio, enunciar a realidade fática extrapola os limites de nossa atuação profissional e se torna um ato político. O enfrentamento ao negacionismo contemporâneo brasileiro recupera a importância do debate sobre as funções sociais da história e do historiador. Contudo, o negacionismo não é apenas um problema historiográfico e profissional, mas um desafio à democracia, pois sua narrativa tem sido naturalizada e normalizada na política.

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Notas

  • 1
    A partir de agora, este documento será referenciado como Proposição 1.
  • 2
    A partir de agora, este documento será referenciado como Proposição 2.
  • 3
    A partir de agora, este documento será referenciado como Proposição 3.
  • 4
    É importante destacar que esses autores têm como objetos de estudo publicações sobre a Ditadura de 1964 (artigos, capítulos e livros) realizadas por jornalistas ou historiadores, ou seja, dedicam-se ao estudo de um “revisionismo” historiográfico. Para o emprego do conceito “revisionismo” em relação a outros episódios, ver Borin ( 2000BORIN, Marta Rosa. Revisionismo/negacionismo. In: SILVA, Francisco Carlos Teixeira da; MEDEIROS, Sabrina Evangelista; VIANNA, Alexander Martins (org.). Dicionário crítico do pensamento da direita: ideias, instituições e personagens. Rio de Janeiro: Mauad, 2000. p. 397-398. ) e Moraes ( 2015MORAES, Luís Edmundo de Souza. Revisionismo negacionista. In: SILVA, Francisco Carlos Teixeira da; MEDEIROS, Sabrina; VIANNA, Alexandre Martins (org.). Enciclopédia de guerras e revoluções: volume 3: 19452014: a época da Guerra Fria (19451991) e da nova ordem mundial. Rio de Janeiro: Elsevier, 2015. ).
  • 5
    À exceção da periodização sugerida por Bauer ( 2022bBAUER, Caroline Silveira. Negacionismo da ditadura, história pública e ensino de história. In: MENESES, Sônia; WANDERLEY, Sonia Maria de Almeida Ignatiuk; MELO, Rosilene Alves (org.). Ensinar com história pública: desafios, temas e experiências. Sobral, CE: SertãoCult, 2022b. p. 143-154. ).
  • 6
    São necessários mais estudos que analisem as inserções intelectuais, políticas e sociais de indivíduos e grupos formuladores ou disseminadores de discursos negacionistas, revelando interesses econômicos e intelectuais nessas formas abusivas de mobilização do passado.
  • 7
    A pós-verdade é considerada por alguns autores como parte do paradigma de nossa época, e apresenta ao campo historiográfico desafios relativos à noção de prova e à construção da verdade. Como a pós-verdade se sustenta na premissa da existência de múltiplas verdades, e que os indivíduos são livres para escolher as que mais lhes convêm, criam-se realidades paralelas, marcadas pela suposição (Aparici, García-Marín, 2019APARICI, Roberto, GARCÍA-MARÍN, David. Historia de la mentira: más allá de Derrida. In: APARICI, Roberto, GARCÍA-MARÍN, David (coord.). La postverdad: una cartografía de los medios, de las redes y la política. Barcelona: Gedisa, 2019.: 41). Em suas narrativas, a pós-verdade reafirma as crenças de setores específicos da sociedade, operando mais no plano emocional que no racional (Murolo, 2019MUROLO, Leonardo. La posverdad es mentira: un aporte conceptual sobre fake news y periodismo. In: APARICI, Roberto; GARCÍA-MARÍN, David (coord.). La postverdad: una cartografía de los medios, de las redes y la política. Barcelona: Gedisa, 2019.: 69).
  • 8
    Propaganda pode ser entendida como uma ação organizada para difundir uma ideia, com finalidades de persuadir comportamental (ação) ou emocionalmente (emoção) (Pérez Ruiz; Aguilar Gutiérrez, 2019PÉREZ RUIZ, Andrea; AGUILAR GUTIÉRREZ, Manuel. Propaganda, manipulación y uso emocional del lenguaje político. In: APARICI, Roberto; GARCÍA-MARÍN, David (coord.). La postverdad: una cartografía de los medios, de las redes y la política. Barcelona: Gedisa, 2019. ). As fake news e a pós-verdade, quando associadas ao negacionismo, transformam-se em uma forma de propaganda promovida a partir de mentiras históricas. Essas mentiras são constituídas de forma mais ou menos explícitas, de acordo com as estratégias identificadas por García-Marín e Aparici ( 2019GARCÍA-MARÍN, David; APARICI, Roberto. La posverdad: el software de nuestra era. In: APARICI, Roberto, GARCÍA-MARÍN, David (coord.). La postverdad: una cartografía de los medios, de las redes y la política. Barcelona: Gedisa, 2019. ).
  • 9
    Antoon de Baets ( 2013BAETS, Antoon de. Uma teoria do abuso da História. Revista Brasileira de História, São Paulo, v. 33, n. 65, p. 17-60, 2013. ) realizou uma classificação para os abusos e os usos irresponsáveis da história, do ponto de vista heurístico, epistemológico e pragmático. Mesmo que tenha se baseado em comportamentos e práticas de historiadores, e que o negacionismo da Ditadura Brasileira não seja predominantemente propalado por esses profissionais, sua proposta contribui para pensar o negacionismo da Ditadura como um abuso do passado.
  • 10
    “Se inclinará a considerar como verdaderos aquellos contenidos que minimicen todo lo posible su disonancia cognitiva, es decir, acogerá como verdaderos aquellos contenidos que se ajusten más a sus creencias preestabelecidas.”
  • 11
    O bolsonarismo tem sido explicado a partir da teoria da dissonância cognitiva por pesquisadores como Rocha ( 2023ROCHA, João Cezar de Castro. Bolsonarismo: da guerra cultural ao terrorismo doméstico: retórica do ódio e dissonância cognitiva coletiva. Belo Horizonte: Autêntica, 2023. ).
  • 12
    Como exemplos, poder-se-ia citar os livros Brasil: sempre (1986), de Marco Pollo Giordanni; Rompendo o silêncio (1987) e A verdade sufocada (2006), de Carlos Alberto Brilhante Ustra; A hora do lobo, a hora do carneiro (1989), de Amílcar Lobo; e Tudo a declarar (1989), de Armando Falcão. Não se trata de uma coincidência que esses títulos também evidenciem um caráter reativo e que remetam a uma busca por uma verdade ainda não estabelecida.
  • 13
    “Se fundamentan en historias e informaciones que intentan explicar de forma simple realidades complejas como respuesta al miedo o la incertidumbre. Estas teorías son extremamente resistentes a los hechos. […] En ocasiones, las evidencias que refutan estas teorías conspirativas son consideradas por sus seguidores como prueba de la conspiración ya que tienden a pensar que tales evidencias han sido artificialmente creadas. Los defensores de estas teorías también rechazan las opiniones de los expertos y todo tipo de autoridad que pueda contravenir el sentido de sus creencias.”
  • 14
    Não é o objetivo deste artigo aprofundar as relações entre o discurso negacionista e o anticomunismo, mas se ressalta a importância do fenômeno como fator de alinhamento, coesão e identidade/reconhecimento entre diferentes grupos.
  • 15
    A diferenciação entre as motivações se apresenta como possibilidade de contraposição aos argumentos das múltiplas verdades quando utilizados para justificar versões históricas negacionistas. Semelhante consideração foi elaborada por Daniel Feierstein ( 2018FEIERSTEIN, Daniel. Los dos demónios (recargados). Buenos Aires: Marea, 2018. ) em relação ao caso argentino, como enfrentamento à tese falaciosa dos dois demônios e sua violência generalizada, demonstrando a necessidade de diferenciar os projetos “da direita” e “da esquerda”, somado às anteriores desconstruções desse argumento que explicitam a desproporcionalidade entre a violência do Estado e a violência revolucionária.
  • 16
    Essa “teoria” foi uma interpretação elaborada para as ditaduras argentinas durante a transição política para a democracia naquele país, em que se equiparava os atos cometidos pelas organizações guerrilheiras e pelo Estado. Sua eficácia na construção de determinada memória sobre o passado recente naquele país foi tão expressiva que consolidou a ideia de que apenas os militares e os militantes de organizações guerrilheiras foram responsáveis pela violência das décadas de 1960, 1970 e 1980, tornando as sociedades, de forma geral, inocentes nesse processo, ver Feierstein ( 2018FEIERSTEIN, Daniel. Los dos demónios (recargados). Buenos Aires: Marea, 2018. ).
  • Fonte de financiamento: Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq).
  • Contribuição dos autores: Não se aplica.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    07 Jun 2024
  • Data do Fascículo
    2024

Histórico

  • Recebido
    03 Nov 2023
  • Aceito
    20 Mar 2024
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