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Entrevista com Edson Teles

Interview with Edson Teles

Entrevista con Edson Teles

Edson TelesTELES, Edson; CALAZANS, Marília; OSMO, Carla (org.). A responsabilidade de empresas por violações de direitos durante a Ditadura. São Paulo: CAAF-Unifesp, 2023. 327 p. é professor da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp), autor de diversos livros, incluindo a organização de O que resta da ditadura (São Paulo: Boitempo, 2010), lidera o Centro de Antropologia e Arqueologia Forense (CAAF-Unifesp) e coordena o projeto A Responsabilidade de Empresas por Violações de Direitos durante a Ditadura . Nesta entrevista, Teles comenta sobre o trabalho que é fruto de uma parceria com o Ministério Público Federal (MPF) e o Ministério Público do Estado de São Paulo (MP-SP).

Poderia explicar em que consiste este projeto [A Responsabilidade de Empresas por Violações de Direitos durante a Ditadura], as pessoas envolvidas e o que se pretende com ele?

O projeto A Responsabilidade de Empresas por Violações de Direitos durante a DitaduraCAMPOS, Pedro; BRANDÃO, Rafael; LEMOS, Renato (org.). Empresariado e ditadura no Brasil. Rio de Janeiro: Consequência, 2020. é o resultado de uma parceria do Centro de Antropologia e Arqueologia Forense da Unifesp e os Ministérios Públicos federal e do estado de São Paulo e que tem como objetivo principal apurar o aparato repressivo montado em conluio entre empresas e o governo ditatorial, os ataques sistemáticos aos direitos dos trabalhadores ocorridos durante o período e os benefícios econômicos obtidos por empresas em troca do apoio tanto ao Golpe de Estado de 1964 quanto ao governo comandado pelos generais (1964-1985).

Esta parceria se originou a partir da reparação pecuniária resultante do inquérito judicial contra a empresa Volkswagen por acusação de graves violações de direitos [humanos] contra seus trabalhadores durante a Ditadura. Foi realizado um acordo, por meio de um Termo de Ajustamento de Conduta (TAC), cujo valor foi destinado, em parte, a projetos de memória e pesquisa sobre o período da Ditadura. O CAAF-Unifesp foi indicado por movimentos de trabalhadores e de direitos humanos e pelos Ministérios Públicos para receber um montante de 4,5 milhões de reais, destinados a dois projetos, sendo um deles o projeto de investigação das empresas, com o aporte de 2 milhões de reais (o segundo projeto foi o de criação, dentro da estrutura do CAAF, do Laboratório de Identificação Humana, o LabIH, com o investimento voltado principalmente ao setor de genética, consolidando os trabalhos forenses de identificação de possíveis desaparecidos políticos da Ditadura).

Após a realização de uma série de seminários de pesquisa, abertos a qualquer interessado, formou-se uma coordenação (eu, na coordenação, com Carla Osmo e Marília Calazans, ambas servidoras da Unifesp, na vice coordenação) e uma Comissão Científica (com doze nomes, sendo quatro da Unifesp, dois representantes da sociedade civil, dois de outras instituições de ensino do Brasil e mais dois representantes de universidades do exterior).

Decidiu-se, então, na montagem inicial de um edital destinado à contratação de dez pesquisadores, responsáveis por dez pesquisas, de modo que cada um dos contratados pudesse gerir, com autonomia, os recursos destinados em um período de dezoito meses. Posteriormente, resultante de um segundo aporte do Ministério Público Federal de 330 mil reais, somou-se mais três pesquisadores para pesquisar três novas empresas, para projetos de doze meses.

Em paralelo, outros grupos de pesquisa investigam quatro temas transversais: questões raciais (sobre racismo nas práticas das empresas e organização de estratégias de resistência por parte do movimento negro); questões de gênero (sobre discriminação contra mulheres trabalhadoras, assédio sexual, controle dos corpos — como limitação do uso do banheiro, revistas, contaminação com produtos químicos na indústria farmacêutica); questões relativas aos povos indígenas (sobre violações ligadas à realização de grandes empreendimentos, como construção de estradas e usinas e atividades de mineração); e questões relativas à participação da Justiça do Trabalho nas violações.

Quais empresas estão sendo investigadas?

Por indicação do Ministério Público Federal, foram listadas nove empresas a serem investigadas (Petrobras, Companhia Siderúrgica Nacional, Itaipu, Folha de S.Paulo, Companhia Docas de Santos, Josapar, Paranapanema, Cobrasma e Fiat) e uma décima vaga seria definida pelo melhor projeto aprovado na categoria sem definição da empresa (foi escolhido o projeto sobre a empresa Aracruz).

No segundo financiamento, o aporte veio já destinado pelo Ministério Público Federal à pesquisa de possíveis violações por parte das empresas Mannesmann, Belgo-Mineira e Embraer.

Realmente existe conjunto de documentos probatórios para se criar ações judiciais e responsabilizar as empresas pelo que fizeram?

Em todas as pesquisas se chegou a elementos robustos da participação das empresas pesquisadas em graves violações de direitos ou em recebimento de benefícios econômicos a partir da colaboração com os aparatos repressivos da Ditadura. Em vários casos, ambas violações foram cometidas. Em outros casos, soma-se ainda o ataque sistemático contra populações tradicionais (povos indígenas e/ou quilombolas e camponeses e populações ribeirinhas). Há documentos em grande quantidade e, também, em muitos casos, a coleta de depoimentos de sobreviventes e seus familiares.

Além dos arquivos públicos, os pesquisadores procuraram essas empresas? Elas abriram seus acervos?

A principal fonte documental foram, de fato, os arquivos públicos. Por meio dos documentos de órgãos do Estado, que no caso da Ditadura envolveu instituições de repressão e informação política, como, por exemplo, os Deops [departamentos estaduais de ordem política e social], várias ações de violações de direitos puderam ser detectadas nestes acervos. Além disso, documentos referentes às empresas estatais, por vezes, foram parar nos arquivos públicos. Das empresas privadas também se encontrou muitas coisas nos acervos públicos justamente pela relação estreita que elas tiveram com os aparatos e instituições de repressão, além das empresas de suporte e benefícios econômicos.

Já os acervos das empresas privadas não foram disponibilizados, nem mesmo mediante ofício do Ministério Público demandando o acesso. Em alguns casos, foi impedido mesmo o acesso aos arquivos de empresas estatais.

Fundamentalmente, se tem documentação sobre as violações por meio dos documentos estatais produzidos para organizar e efetivar a ação do processo e do aparato repressivo em conluio com as empresas.

Há ainda casos em que as empresas, seguindo a política estatal de ataque aos direitos dos trabalhadores, alegavam abertamente a perseguição em processos trabalhistas documentados na Justiça do Trabalho ou em acervos dos sindicatos.

A partir do que as equipes encontraram, pode-se afirmar, com toda certeza, que os arquivos da Ditadura não foram abertos e o que está em acervos públicos se encontra em condições de mau acondicionamento ou sem tratamento de classificação e disponibilização ao público.

Poderia fazer um breve resumo das principais violações cometidas pelas empresas?

Nos relatórios finais entregues aos Ministérios Públicos há dois tipos principais de violações apuradas, com diferença entre as empresas, e que se configuram como: a) violações contra trabalhadores da empresa; b) violações contra povos indígenas, povos quilombolas e camponeses.

Como possíveis violações contra os trabalhadores das empresas, tivemos achados, dividindo-os entre indícios de: violações de direitos trabalhistas individuais (redução de salários, precarização das condições de trabalho…); danos à saúde em decorrência de trabalho em condições insalubres; violações de direitos coletivos dos trabalhadores (repressão à organização de trabalhadores, impedimentos ao exercício do direito de greve…); vigilância de trabalhadores(as) e produção de listas sujas para impedi-los de encontrar novos empregos; prisões ilegais e ocultações de paradeiro às famílias; tortura de trabalhadores(as); violência sexual contra trabalhadores(as); morte de trabalhadores(as); discriminação racial; discriminação de gênero. Nove pesquisas identificaram indícios de violações de direitos de trabalhadores(as). Entre essas, destacam-se as aparentes violações de direitos sociais, tanto individuais quanto coletivos, de maneira a confirmar a relevância de se observar a forma como a violação de direitos civis e políticos por regimes autoritários se conecta com a precarização da proteção aos(às) trabalhadores(as) e outras violações a direitos econômicos, sociais e culturais. Foi também um achado presente em diversas das pesquisas a existência de um sistema de vigilância aos trabalhadores(as) por parte das empresas. Em alguns casos também se observaram prisões ilegais e ocultações de paradeiro às famílias, tortura e mortes de trabalhadores(as) e discriminações racial e/ou de gênero.

Nas possíveis violações contra povos indígenas, povos quilombolas e/ou camponeses, foram achados indícios de: contexto (empreendimento ao qual as violações estão ligadas); esbulho de terras; danos às propriedades ou instalações; destruição de lavouras ou da produção; destruição ou subtração de instrumentos de trabalho; trabalho escravo; tortura; violência sexual; mortes e desaparecimentos; violações contra práticas religiosas e culturais. Foram identificados indícios de violações de direitos de povos indígenas por cinco empresas, de violações de direitos de comunidades quilombolas por uma empresa, e de outras violações no campo/em meio rural (que não aquelas que têm por vítimas indígenas e quilombolas) por quatro empresas. Em especial, essas pesquisas observaram a prática de esbulho de terras, danos às propriedades e instalações, destruição das lavouras ou da produção. Mas houve também pesquisas que identificassem indícios de violações contra práticas religiosas e culturais, trabalho escravo, tortura, mortes e/ou desaparecimento e violência sexual. Além disso, foram encontrados indícios de danos ao meio ambiente em decorrência das atividades de seis empresas, entre eles: mudança no caráter das águas (de rio para lago, com impactos sobre a flora e fauna), poluição e contaminação de rios, do solo e do ar, desmatamento e riscos de desertificação.

Por muitos anos se falou em Ditadura Militar, atribuindo apenas aos militares a responsabilidade pelo Golpe de Estado de 1964 e pela condução do Estado no período 1964-1985. Pesquisas recentes vêm apontando a maciça participação do empresariado na condução do Golpe e a sua presença em cargos da administração pública, ditando os rumos do Estado. De que forma essas pesquisas contribuirão para entender a colaboração de empresários e empresas com a Ditadura, que se tornou uma Ditadura Empresarial-Militar?

A contribuição dessa pesquisa à definição do regime como uma ditadura empresarial-militar será contundente e inescapável. Se havia alguma dúvida, ou indefinição na interpretação, com essa pesquisa é possível vislumbrar com clareza que desde o Golpe de 1964, passando pela reestruturação do Estado, a escolha das políticas econômicas, trabalhistas, de posse da terra e de reforma do Estado, incluindo a outorga de uma nova Constituição, foram etapas de construção e consolidação da maior e mais violenta ditadura em nosso período republicano, que somente foram possíveis e ocorreram devido à gerência direta das classes empresariais aliadas às Forças Armadas. Foi um projeto conjunto do capital, incluindo os apoios e as ações diretas da potência norte-americana, em aliança com os setores mais conservadores de nossa sociedade (as aristocracias, os censores, os latifundiários etc.).

Quais serão os meios de divulgação através do qual a sociedade brasileira vai tomar conhecimento das violações cometidas pelas empresas?

Esse é um desafio em aberto. O CAAF-Unifesp coordenou a realização de pesquisas que apontam uma pequena parte da coordenação e gerência da classe empresarial durante a Ditadura. A partir da pesquisa, formaram-se redes de pesquisadores, fomentou-se a formação de recursos humanos na temática, abriram-se novas possibilidades de métodos de pesquisa e alguma conexão com os principais sujeitos dessa história, as vítimas, seus familiares, os sindicatos etc. Assim, pode-se dizer que há ainda muito a ser conhecido. Da parte da pesquisa dentro da universidade, seria preciso a abertura de meios de financiamento por parte das agências de fomento à pesquisa, assim como a constituição da subárea de conhecimento voltada à temática dentro das mesmas agências e dentro dos programas de pós-graduação. Há muito a ser desvelado.

Este ano, o Golpe de 1964 completa sessenta anos, e ainda vemos muitas empresas cometendo violações contra os trabalhadores. Qual é o impacto social que você espera com a divulgação dos resultados dessas pesquisas?

É difícil mensurar os impactos da pesquisa, mesmo porque vivemos um momento político em que lutamos pelo básico na política: o direito a viver em uma democracia. Por outro lado, o momento é propício para sabermos mais sobre o modo como o capital se impôs nesse território ainda colonizado (agora sob novas formas) chamado Brasil. Durante as pesquisas, especialmente nas visitas de campo, eram visíveis a repetição de violações de direitos de trabalhadores e, especialmente, de populações tradicionais por parte de empresas nos dias atuais. Por vezes, pelas mesmas empresas investigadas, algumas das quais seguem cometendo crimes semelhantes [àqueles cometidos durante a Ditadura].

O impacto que espera seja causado pela pesquisa é a rediscussão das leis e das formas de fiscalização da ação das empresas, reconstruindo a democracia no país a partir das demandas dos trabalhadores e das populações cujos territórios seguem sendo explorados, hoje ainda mais pelo agronegócio.

Referências

  • CAMPOS, Pedro; BRANDÃO, Rafael; LEMOS, Renato (org.). Empresariado e ditadura no Brasil. Rio de Janeiro: Consequência, 2020.
  • TELES, Edson; CALAZANS, Marília; OSMO, Carla (org.). A responsabilidade de empresas por violações de direitos durante a Ditadura. São Paulo: CAAF-Unifesp, 2023. 327 p.
  • Fonte de financiamento: Não há.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    26 Abr 2024
  • Data do Fascículo
    2024

Histórico

  • Recebido
    15 Fev 2024
  • Aceito
    20 Fev 2024
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