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As ambivalências da maternidade: uma análise da personagem Anna em Com armas sonolentas, de Carola Saavedra

The ambivalences of motherhood: an analysis of Anna in Com Armas Sonolentas by Carola Saavedra

Las ambivalencias de la maternidad: un análisis del personaje Anna en Com armas sonolentas de Carola Saavedra

Resumo

É pelo corpo e pela sexualidade, tomados como aspectos que demarcam a negatividade e a inferioridade do sujeito feminino, que a mulher é oprimida e dominada. É nesse contexto que questões referentes à maternidade foram construídas sob os pilares do patriarcado, discurso que historicamente subjugou e silenciou o sujeito feminino. O fazer materno constituiu-se enquanto exercício de abnegação e entrega da mulher à sua prole, como a principal responsável pela ação de cuidar; há a certeza de que o amor de mãe é sentimento inato e inquestionável. Ainda, a realização da maternidade é entendida como fator de confirmação de feminilidade, sendo o não cumprimento desta a demarcação de um caráter desviante. Entretanto, na atualidade, vem-se revisando o status materno, de modo que se compreenda que a construção da mulher-mãe perpassa uma multiplicidade de experiências. Isto posto, o presente trabalho teve como objetivo refletir acerca da construção do sujeito-mãe na obra Com armas sonolentas, publicada em 2018, de autoria de Carola Saavedra. O estudo, que foca na maternidade da personagem Anna, aponta para a percepção de que a narrativa analisada apresenta uma maternidade que desconstrói os ideias reservados a essa instituição, desnudando, assim, as ambivalências e as múltiplas experiências que envolvem esse fazer. A discussão parte das contribuições teóricas de Nancy Chodorow (1978CHODOROW, Nancy (1978). Psicanálise da maternidade: uma crítica a Freud a partir da mulher. Rio de Janeiro: Rosa dos Tempos.), Elizabeth Badinter (1985)BADINTER, Elisabeth (1985). Um amor conquistado: o mito do amor materno. Tradução: Waltensir Dutra. Rio de Janeiro: Nova Fronteira., Adrienne Rich (1986RICH, Adrienne Cecile (1986). Of Woman Born: motherhood as experience and institution. Nova York: W. W. Norton & Company.) e Orna Donath (2017DONATH, Orna (2017). Mães arrependidas: uma outra visão da maternidade. Tradução: Marina Vargas. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira.).

Palavras-chave:
maternidade; sujeito-mãe; literatura brasileira contemporânea

Abstract

It is through the body and sexuality, taken as aspects that demarcate the negativity and inferiority of the female subject, that women are oppressed and dominated. In this context, issues related to motherhood were constructed under the pillars of patriarchy, a discourse that historically subjugated and silenced the female subject. Motherhood has been constituted as an exercise of selflessness and devotion by the woman, who is primarily responsible for caring for her offspring. There is a certainty that a mother's love is innate and unquestionable. Furthermore, the achievement of motherhood is understood as a confirmation of femininity, and failing to fulfill this role is seen as a mark of deviance. However, nowadays, maternal status is being reviewed to understand that the construction of the woman-mother permeates a multiplicity of experiences. The present work aimed to reflect on the construction of the mother-subject in the work Com armas sonolentas, published in 2018, by Carola Saavedra. The study, which focuses on the motherhood of the character Anna, points to the perception that the narrative analyzed presents a form of motherhood that deconstructs the ideals reserved for this institution, thus exposing the ambivalences and multiple experiences involved in this activity. The discussion is based on the theoretical contributions of Nancy Chodorow (1978CHODOROW, Nancy (1978). Psicanálise da maternidade: uma crítica a Freud a partir da mulher. Rio de Janeiro: Rosa dos Tempos.), Elizabeth Badinter (1985)BADINTER, Elisabeth (1985). Um amor conquistado: o mito do amor materno. Tradução: Waltensir Dutra. Rio de Janeiro: Nova Fronteira., Adrienne Rich (1986RICH, Adrienne Cecile (1986). Of Woman Born: motherhood as experience and institution. Nova York: W. W. Norton & Company.) and Orna Donath (2017DONATH, Orna (2017). Mães arrependidas: uma outra visão da maternidade. Tradução: Marina Vargas. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira.).

Keywords:
motherhood; mother; contemporary Brazilian literature

Resumen

Es a través del cuerpo y la sexualidad, tomados como aspectos que demarcan la negatividad y la inferioridad del sujeto femenino, que las mujeres son oprimidas y dominadas. Es en este contexto que las cuestiones relativas a la maternidad se construyeron bajo los pilares del patriarcado, discurso que históricamente ha subyugado y silenciado al sujeto femenino. La actividad materna se constituyó como un ejercicio de desinterés y dedicación de la mujer, a quien corresponde en primer lugar la acción de cuidar, de su descendencia; Existe la certeza de que el amor de una madre es un sentimiento innato e incuestionable. Además, la consecución de la maternidad se entiende como un factor de confirmación de la feminidad, mientras que su incumplimiento marca un carácter desviado. Sin embargo, hoy en día se revisa el estatus materno, de manera que se comprenda que la construcción de la mujer-madre permea una multiplicidad de experiencias. Dicho esto, el presente trabajo pretende reflexionar sobre la construcción del sujeto-madre en la obra Com Armas Sonolentas, publicada en 2018 por Carola Saavedra. El estudio, que se centra en la maternidad del personaje Anna, apunta a la percepción de que la narrativa analizada presenta una maternidad que deconstruye las ideas reservadas a esta institución, exponiendo así las ambivalencias y múltiples experiencias que involucran esta actividad. La discusión se basa en los aportes teóricos de Nancy Chodorow (1978CHODOROW, Nancy (1978). Psicanálise da maternidade: uma crítica a Freud a partir da mulher. Rio de Janeiro: Rosa dos Tempos.), Elizabeth Badinter (1985)BADINTER, Elisabeth (1985). Um amor conquistado: o mito do amor materno. Tradução: Waltensir Dutra. Rio de Janeiro: Nova Fronteira., Adrienne Rich (1986)RICH, Adrienne Cecile (1986). Of Woman Born: motherhood as experience and institution. Nova York: W. W. Norton & Company. y Orna Donath (2017DONATH, Orna (2017). Mães arrependidas: uma outra visão da maternidade. Tradução: Marina Vargas. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira.).

Palabras clave:
maternidad; madre; literatura brasileña contemporánea

INTRODUÇÃO

Há muito, a maternidade socialmente aceita é instituída pelos pilares do conservadorismo patriarcal, que tomou da religião o molde para o sujeito-mãe. Para o patriarcado, o ideal materno constitui-se a partir da figura da Virgem Maria, feminino abnegado e devotado aos cuidados com os filhos (Chorodow, 1978CHODOROW, Nancy (1978). Psicanálise da maternidade: uma crítica a Freud a partir da mulher. Rio de Janeiro: Rosa dos Tempos.). Qualquer ação materna fora desse padrão é tomada como desviante, sendo a mulher rotulada como "problemática" ao não exercer a sua principal função social esperada. Ademais, para as mulheres, não há escape ao cumprimento desse papel, pois essa instituição é considerada inata a elas. Pontua-se que, nesse viés, a não maternidade seria a marca da não feminilidade da mulher.

Contudo, ainda na segunda onda do feminismo, autoras como Adrienne Rich (1986RICH, Adrienne Cecile (1986). Of Woman Born: motherhood as experience and institution. Nova York: W. W. Norton & Company.) pontuaram toda a complexidade que envolve o fazer materno e o sujeito-mãe, sinalizando a importância de se repensar o status da maternidade e de reconhecê-la enquanto um fazer múltiplo e coletivo. Mesmo o conceito inato de amor materno é colocado em xeque por Elisabeth Badinter (1985)BADINTER, Elisabeth (1985). Um amor conquistado: o mito do amor materno. Tradução: Waltensir Dutra. Rio de Janeiro: Nova Fronteira., ao atrelar a ascensão dessa ideia aos interesses do capital. De muitas maneiras, esses apontamentos ressoam em diferentes espaços na contemporaneidade e, a maternidade, um tema tabu e, por muito tempo pouco discutido, torna-se cerne de muitos debates.

A literatura é um dos lugares em que a maternidade em sua pluralidade passa a ser discutida. Muitas escritoras brasileiras contemporâneas1 1 Escritoras como Carola Saavedra, Conceição Evaristo, Adriana Lisboa, entre outras, apresentam obras em que a maternidade é temática de destaque. destacam o sujeito-mãe em suas obras. Ao revisar a história do feminino, essas autoras colocam a personagem mãe como protagonista e narradora de sua própria história, de forma a que se tenha acesso ao mais profundo inconsciente do sujeito-mãe.

Isto posto, o presente artigo pretende analisar a construção da mulher-mãe na obra Com armas sonolentas (2018), o quinto romance da escritora e tradutora brasileira Carola Saavedra, nascida no Chile e com uma extensa produção literária2 2 Saavedra estreou na literatura com o livro de contos Do lado de fora, publicado em 2005; já em 2007, a autora publicou seu primeiro romance intitulado Toda terça, seguido das obras Flores azuis (2008), Paisagem com dromedário (2010) e O inventário das coisas ausentes (2014). O manto da noite (2022) é seu último romance publicado. A escritora já foi finalista dos prêmios São Paulo de Literatura e Jabuti. . Esse debate é realizado a partir da análise da personagem Anna Marianni. Busca-se com isso demonstrar que esse sujeito, como representado na obra de Saavedra, apresenta-se distante das expectativas direcionadas à mulher em seu fazer materno, ou seja, há uma ruptura com a figura da boa mãe, desafiando a perspectiva de que a maternidade é unicamente perpassada pela benevolência e amor.

Nessa perspectiva, entende-se que ao apontar esse rompimento com os valores patriarcais há tanto demarcados para o sujeito mãe, a obra sugere a necessidade de ressignificação dessa instituição e, consequentemente, a importância de se perceber a mãe de um ponto de vista mais plural. Ademais, acredita-se que refletir acerca da multiplicidade da maternidade a partir de um viés multifacetado viabiliza a quebra das amarras que aprisionam as mulheres ao sentimento de culpa, comum às mulheres-mães. Para a realização deste estudo, leva-se em consideração as contribuições de Adrienne Rich (1986)RICH, Adrienne Cecile (1986). Of Woman Born: motherhood as experience and institution. Nova York: W. W. Norton & Company., Simone de Beauvoir (2009)BEAUVOIR, Simone de (2009). O segundo sexo. 2. ed. Tradução: Sérgio Milliet. Rio de Janeiro: Nova Fronteira., Nancy Chodorow (1978)CHODOROW, Nancy (1978). Psicanálise da maternidade: uma crítica a Freud a partir da mulher. Rio de Janeiro: Rosa dos Tempos. e Orna Donath (2017)DONATH, Orna (2017). Mães arrependidas: uma outra visão da maternidade. Tradução: Marina Vargas. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira..

"EU GESTEI ESSE OUTRO SER HUMANO"

O discurso da maternidade como um ato natural ao feminino se faz presente na sociedade ocidental há bastante tempo. De acordo com a teórica Elisabeth Badinter (1985)BADINTER, Elisabeth (1985). Um amor conquistado: o mito do amor materno. Tradução: Waltensir Dutra. Rio de Janeiro: Nova Fronteira., em O mito do amor materno, foi no século XVIII3 3 É importante salientar que a autora não afirma que a noção acerca do amor materno nasceu no século XVIII, mas sim que as modificações socioculturais que aconteciam à época, manejadas pelos sujeitos no poder, instituíram a maternidade como um dever das mulheres. A atividade de cuidado com os filhos, considerada um exercício exclusivo do feminino, serviu como mais um artifício de restrição desses sujeitos ao espaço doméstico/privado. que realizou-se uma substancial mudança na compreensão acerca do vínculo entre a mulher e o fazer materno. Em atendimento aos interesses do patriarcado, a maternidade foi reconfigurada à época para se alinhar aos moldes de uma instituição que precisava responder às demandas de um capitalismo sedento pelo necessário crescimento de mão-de-obra4 4 A autora aponta que, anterior a essa ressignificação da maternidade, havia um alto índice de mortalidade infantil, fato nada valioso para o sistema capitalista, uma organização econômica que precisa de um alto número de mão de obra assalariada para a manutenção do grupo dominante no poder. . Resumidas à sua fisiologia, as mulheres viam agora na maternidade um de seus deveres, que é tanto uma obrigação social quanto um compromisso frente ao seu marido, que vê nos filhos a possibilidade de continuação do nome da família.

Adrienne Rich (1986)RICH, Adrienne Cecile (1986). Of Woman Born: motherhood as experience and institution. Nova York: W. W. Norton & Company. postula que, para sustentar a maternidade como dever das mulheres, o patriarcado estabeleceu inúmeras práticas de cerceamento das experiências femininas de modo a designar essa instituição5 5 No presente trabalho, a referência à maternidade como instituição parte dos apontamentos da teórica Adrienne Rich (1986), que sublinha esse fazer como modo de manutenção das mulheres sob o poder do masculino. Os homens colocam a maternidade como compulsória de forma a garantir um corpo dominado. , juntamente com o papel de esposa, como uma vocação (Beauvoir, 2009BEAUVOIR, Simone de (2009). O segundo sexo. 2. ed. Tradução: Sérgio Milliet. Rio de Janeiro: Nova Fronteira.), uma situação posta como "natural" a esses sujeitos. Nesse sentido, à mulher, desde a sua mais tenra idade, afirma-se "que ela é feita para gerar e cantam-lhe o esplendor da maternidade; os inconvenientes de sua condição […] é justificado por esse maravilhoso privilégio de pôr filhos no mundo" (Beauvoir, 2009BEAUVOIR, Simone de (2009). O segundo sexo. 2. ed. Tradução: Sérgio Milliet. Rio de Janeiro: Nova Fronteira., p. 654).

As afirmações de Badinter (1985)BADINTER, Elisabeth (1985). Um amor conquistado: o mito do amor materno. Tradução: Waltensir Dutra. Rio de Janeiro: Nova Fronteira. vão ao encontro dos estudos de Beauvoir, ao mesmo tempo em que sublinham o lugar divino ocupado pela maternidade embebida do discurso religioso:

A maternidade torna-se um papel gratificante, pois está agora impregnado de ideal. O modo como se fala dessa "nobre função", com um vocabulário tomado à religião (evoca-se frequentemente a "vocação" ou o "sacrifício" materno) indica que um novo aspecto místico é associado ao papel materno. A mãe é agora usualmente comparada a uma santa e se criará o hábito de pensar que toda boa mãe é uma "santa mulher" (Badinter, 1985BADINTER, Elisabeth (1985). Um amor conquistado: o mito do amor materno. Tradução: Waltensir Dutra. Rio de Janeiro: Nova Fronteira., p. 222).

Todavia, há fronteiras bem delimitadas pelo discurso patriarcal no que tange ao desempenho dessa mulher-mãe; a ela é reservada uma única maternidade possível, um padrão que se desenhou a partir da figura da Virgem Maria, exemplo de dedicação ao filho. Dessa maneira, para que a mulher ocupe o lugar idealizado para o sujeito-mãe, deve, então, cumprir todas as funções atreladas ao ideal de "boa mãe"6 6 Em oposição à figura da boa-mãe, tem-se a da maternidade ruim (mãe má). Nesse grupo estão as mulheres que concretizam a maternidade fora dos padrões impostos pela moral do patriarcado: mulheres com filhos fora do casamento, mulheres que não dedicam-se à criação dos filhos, mulheres que questionam os parâmetros a ela dados para a realização materna. . Assim, ao lado da dedicação aos filhos, cabe ainda citar a abnegação materna, já que há uma necessária renúncia das vontades da mulher diante dos desejos e do futuro de seus filhos. Incluído nessas imposições também está o casamento tradicional, tendo em vista que a "boa mãe" é aquela que está em matrimônio com um homem e a dedicação ao espaço privado, em nome da construção de um lar feliz e "saudável".

Reflexões acerca da carga carregada pelas mulheres em relação aos padrões a elas impostos são realizadas na obra de Carola Saavedra (2018)SAAVEDRA, Carola (2018). Com armas sonolentas. São Paulo: Companhia das Letras., Com armas sonolentas. A obra perpassa a discussão sobre o feminino de diferentes formas, mas de modo significativo, debate sobre a maternidade. Nela, é narrada a história de três gerações de mulheres da mesma família — a avó (sem nome), Anna e Maike; mulheres que, de muitas formas, estão distantes de si mesmas, vivenciando o abandono, a inadequação à língua e aos espaços que habitam. Os capítulos do livro são dedicados a contar as histórias de cada uma dessas mulheres, sendo esse principiado pela narração da história de Anna Marianni, pseudônimo de uma jovem aspirante a atriz que, no início da narrativa, tem apenas 21 anos.

O texto se constrói enquanto símbolo das lutas femininas. O próprio título demarca uma noção de despertar, que necessita das mais diversas armas para que se efetive, frente às situações de opressão que essas mulheres vivenciam. Com armas sonolentas apresenta intertextualidade com o poema Primeiro sonho, de Sor Juana Inés da la Cruz, poeta barroca mexicana. Como um modo de conexão entre as gerações, esse poema é lido pela avó sem nome à sua neta, que só entende seu significado com o tempo, a partir da sua experiência, aos poucos percebendo a necessidade da força e da resistência das mulheres.

Nessa perspectiva, compreende-se que a linguagem utilizada pela obra aprofunda a complexidade da personagem Anna e os diferentes contextos opressores por onde ela passa, seja na infância na casa dos patrões em que vê a mãe ser explorada e com quem divide um pequeno quarto no grande apartamento, ou na vida adulta, na claustrofóbica Alemanha, um lugar que acreditava que mudaria a sua vida, mas que se transforma em mais um episódio de expectativas frustradas, já que se vê presa a uma vida cumprindo os padrões esperados ao feminino. Uma boa parte da história de Anna é narrada por ela mesma7 7 A história de Anna é também narrada em terceira pessoa. , de forma não linear, permitindo uma imersão profunda em seus pensamentos e sentimentos, revelando a culpa e a alienação que ela experimenta; memórias e experiências se entrelaçam para expor as camadas de sua subjetividade fragmentada.

De origem humilde, essa mulher vê na união com um diretor alemão de carreira em ascensão, chamado Heiner, a grande oportunidade para mudar a sua vida. Anna apaixona-se perdidamente por esse homem, com quem se muda para a Alemanha após dois meses de romance. A facilidade em decidir tão rapidamente pela mudança de país, como apontado pelo narrador, se deve à dificuldade na criação de laços pela personagem:

Sempre teve uma grande facilidade em ir embora, como se o passado, tão tênue, rapidamente se dissipasse. […] A verdade é que, naquela época, não havia nada nem ninguém que significasse um laço, um compromisso, e tudo colaborava para que ela conseguisse se manter na superfície, jamais se aprofundar, jamais tocar a densa matéria do sofrimento, algo que na mínima aproximação a engoliria sem retorno (Saavedra, 2018SAAVEDRA, Carola (2018). Com armas sonolentas. São Paulo: Companhia das Letras., p. 27-28).

Da mesma forma, entende-se que a dificuldade para o estabelecimento de vínculos é também fruto de seus medos; o temor de aprofundar qualquer tipo de relação sentido por Anna se dá pelo receio de que o "mergulho" em outro sujeito pudesse fazer com ela se perdesse dos objetivos traçados para si. O narrador salienta ainda que Anna culpa a si mesma por sua "incapacidade" de amar do modo imposto pelas tradições, principalmente no que se refere aos sentimentos e à entrega historicamente vinculada às mulheres (Nogueira, 2003NOGUEIRA, Maria da Conceição (2003). "Ter" ou " fazer" o gênero: O dilema das opções epistemológicas em psicologia social. In: ENCONTRO NACIONAL DA ABRAPSO SOBRE ESTRATÉGIAS DE INTERVENÇÃO – A PSICOLOGIA SOCIAL, 12., 2003, Porto Alegre. Anais […]. Porto Alegre: Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul.). Contudo, o narrador afirma que a relação com a mãe é dissonante das demais, "e havia a mãe […] mas a mãe era um nó cego, não era um laço, cuidaria dela assim que pudesse" (Saavedra, 2018SAAVEDRA, Carola (2018). Com armas sonolentas. São Paulo: Companhia das Letras., p. 27-28). Todavia, é possível perceber que o vínculo entre as duas também parece fugir aos moldes tradicionais.

A relação de Anna com a mãe é definida pela mágoa, pela distância e pela dor. Para Anna, sua mãe era um símbolo de submissão, tendo suportado humilhações por parte da patroa. Filha de uma empregada doméstica, Anna, ainda muito jovem, sentia vergonha da figura materna; a situação fica ainda mais clara quando, aos catorze anos, ela não aceita que a mãe vá à sua festa de aniversário, que seria celebrada junto às amigas feitas no clube que frequentava com a patroa da mãe, afirma a menina à mãe:

Eu não quero ser sua filha, eu tenho vergonha de você, do seu rosto que é só osso, dos cabelos grudados na cabeça, dos dentes que faltam na sua boca, das suas unhas todas roídas, você parece uma velha, uma mendiga, e eu não quero ser sua filha, não quero ser filha da empregada (Saavedra, 2018SAAVEDRA, Carola (2018). Com armas sonolentas. São Paulo: Companhia das Letras., p. 158).

Em uma tentativa de desatrelar-se de suas raízes e, por consequência, distanciar-se da figura materna, Anna anseia por fazer parte de algo maior, algo mais importante e marcante que a história por ela até aquele momento vivida. Todavia, ela sucumbe aos encantos de um novo mundo proposto pelo namorado alemão. A situação vivida pela personagem corrobora os apontamentos de Beauvoir (2009BEAUVOIR, Simone de (2009). O segundo sexo. 2. ed. Tradução: Sérgio Milliet. Rio de Janeiro: Nova Fronteira., p. 203) de que "tudo impele as mulheres a desejarem ardorosamente agradar aos homens", dado que a sociedade se organiza de modo que o feminino seja dependente do "privilégio econômico detido pelos homens, seu valor social, o prestígio do casamento" (Beauvoir, 2009BEAUVOIR, Simone de (2009). O segundo sexo. 2. ed. Tradução: Sérgio Milliet. Rio de Janeiro: Nova Fronteira., p. 203).

Na união com o homem europeu, para Anna, reside a aproximação dos seus sonhos, sem que seja cogitado um possível distanciamento dos seus planos de se tornr uma grande atriz; para a personagem, ela tirou a "sorte grande". Luana Della-Flora (2019DELLA-FLORA, Luana Jéssika (2019). Heranças silenciosas, heranças malditas: implicações da subalternidade e do emprego doméstico em Com armas sonolentas, de Carola Saavedra, e Estela sem Deus, de Jeferson Tenório. 181f. Dissertação (Mestrado em Letras) – Universidade Presbiteriana Mackenzie, São Paulo., p. 73) menciona que "há na relação entre Heiner e Anna uma dinâmica similar à do colonizador/colonizado", sugerindo que para esse feminino, a Europa representa o lugar onde pode conquistar seus objetivos.

Todavia, aos poucos, os sonhos de Anna vão esmorecendo; nenhum dos planos por ela delineados acontecem e seus dias acabam resumidos à solidão no apartamento em um país em que não domina o idioma, enquanto o marido viaja a trabalho e pouco fica em casa. A falta de amor por esse homem torna-se cada vez mais clara, assim como os seus sonhos de se tornar a grande atriz dos filmes do alemão se esvaem em meio ao seu abandono; "não havia ninguém do lado de fora, nem família, nem amigos, nem mesmo Heiner. Ninguém que, com seu olhar, lhe devolvesse uma expressão de espanto, de ódio ou de encantamento" (Saavedra, 2018SAAVEDRA, Carola (2018). Com armas sonolentas. São Paulo: Companhia das Letras., p. 45), assinala o narrador. Como consequência dessas ausências, esse feminino vai, aos poucos, perdendo-se de si mesmo, como sugere o excerto a seguir apresentado:

Anna se olhava no espelho e não se reconhecia, a Alemanha […] a transformara em outra pessoa. […] Os pensamentos de Anna iam se tornando cada vez mais sombrios, talvez acentuados pela percepção de que suas ambições anteriores em nada correspondiam à realidade (Saavedra, 2018SAAVEDRA, Carola (2018). Com armas sonolentas. São Paulo: Companhia das Letras., p. 37).

Anna, vivendo à sombra desse homem, encontra-se em uma posição por ela nunca antes imaginada, tendo em vista que o modo como buscou constituir-se enquanto sujeito objetivou o rompimento com a submissão feminina personificada na figura da mãe, empregada doméstica de uma família de classe social mais elevada. O medo de ocupar um lugar minimamente parecido ao de sua mãe faz-se presente em muitos momentos:

Surpreendeu-se lembrando muito da mãe com seu uniforme de empregada espanando bibelôs, limpando os banheiros da casa da dona Clotilde, seu corpo escuro e seco, sua ignorância, a mãe, para quem Paris era tão distante quanto a Lua, e ela agora em Paris, repetia a frase e os pensamentos, tentando convencer a si mesma, não, ela não era mãe, ela, Anna Marianni, tinha outro destino, algo oposto, luminoso, estrangeiro àquela linhagem de opacidade e subserviência (Saavedra, 2018SAAVEDRA, Carola (2018). Com armas sonolentas. São Paulo: Companhia das Letras., p. 45-46).

Ela, que entendia a sua condição, em um primeiro momento, como mais cômoda do que a de sua figura materna, se vê em uma situação em que necessita reforçar para si mesma que terá um destino diferente daquela mulher subalternizada. A situação que se desenrola na Alemanha evidencia as dificuldades enfrentadas pelo feminino em uma sociedade que define "por antecipação as possibilidades das configurações imagináveis e realizáveis do gênero" (Butler, 2003BUTLER, Judith (2003). Problemas de Gênero: feminismo e subversão da identidade. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira., p. 30) e que, como resultado, aliena o feminino, seu corpo e sexualidade, de si mesmo. Sabe-se que essa antecipação acontece no modo como se dá a socialização das meninas, sempre como sujeitos dependentes do masculino e desprovidos de poder, uma condição à qual Anna também foi sujeitada durante sua infância e adolescência. É em meio a essa relação em que o marido alemão exemplifica atitudes machistas, esperando que ela se conforme a um papel tradicional de mulher submissa, que cuida da casa e das necessidades dele, sem questionar ou buscar sua própria independência, colocando-a em um lugar de insegurança, solidão e dependência, que Anna descobre uma gravidez indesejada, mais uma das marcas da falta de controle sobre o seu próprio corpo; um estado que, em seu início, não é percebido por ela, como mostra o excerto abaixo:

Olhando para seu corpo, pela primeira vez, percebeu algo estranho. Anna sabia precisar o que era, talvez um ou outro quilo que se apegava, talvez estivesse comendo muito, […] Quanto tempo tinha se passado? Nos últimos tempos, sentia-se quase sempre mal, descompensada, um enxaqueca que não a largava, os seios inchados. […] o horror do pensamento. […] Seria possível?, não, não era possível, ela teria percebido, ela teria. Havia algo muito errado com seu corpo, sentia que o corpo não era mais seu (Saavedra, 2018SAAVEDRA, Carola (2018). Com armas sonolentas. São Paulo: Companhia das Letras., p. 51-52).

O não reconhecimento da situação de sua gravidez por Anna é sintomático de uma sociedade que impede o acesso do feminino ao seu próprio corpo, negligenciando sua educação sobre o funcionamento dos seus hormônios, da menstruação, da ovulação etc., tornando tabu qualquer tema que perpassa a sua corporalidade. A falta de interesse da sociedade patriarcal em disponibilizar o conhecimento ao feminino sobre o seu corpo está vinculado ao fato de que esse, como afirma Federici (2017FEDERICI, Silvia (2017). Calibã e a bruxa: mulheres, corpo e acumulação primitiva. Tradução: Coletivo Sycorax. São Paulo: Elefante., p. 34), é o "principal terreno de sua exploração", corroborando com Chodorow (1978CHODOROW, Nancy (1978). Psicanálise da maternidade: uma crítica a Freud a partir da mulher. Rio de Janeiro: Rosa dos Tempos., p. 17) que assinala que "a maternação das mulheres é um dos poucos elementos universais e duráveis da divisão do trabalho por sexos"; sem o conhecimento e uma educação adequada das mulheres, que as muniria de armas contra o controle masculino, os seus corpos são mais facilmente acessados e dominados pelo patriarcado. Anna personifica, assim, a violência instituída ao feminino, através da maternidade compulsória (Rich, 1986RICH, Adrienne Cecile (1986). Of Woman Born: motherhood as experience and institution. Nova York: W. W. Norton & Company.). A reação da personagem à descoberta da gravidez já em estágio avançado vai de encontro ao entendimento social acerca da forma como as mulheres recepcionam (ou deveriam recepcionar) a maternidade:

Você está grávida, ela disse, e completou, de quinze semanas, quase quatro meses, ela disse […] Anna chorava, não conseguia parar de chorar, como isso poderia ter acontecido. Eu não posso ter esse filho, disse, não quero, de jeito nenhum, e foi quando a médica explicou que com a gravidez já tão avançada não era mais possível nem mesmo uma curetagem, no seu caso tratava-se já de uma cirurgia, porque aos quatro meses o feto… (Saavedra, 2018SAAVEDRA, Carola (2018). Com armas sonolentas. São Paulo: Companhia das Letras., p. 53).

A negativa de Anna em relação ao seu novo estado coloca em xeque a noção de que, como pontua Perrot (2015PERROT, Michelle (2015). Minha história das mulheres. Tradução: Angela M. S. Côrrea. 2. ed. São Paulo: Contextos., p. 68), "a maternidade é o grande caso das mulheres", ao salientar que, como exercício social fundamental ao feminino, essa seria o auge da felicidade e do desempenho da feminilidade. Do mesmo modo, se desconstrói a ideia de que toda a mulher está preparada para a chegada de uma criança e todo o cuidado que ela demanda; nesse sentido, Orna Donath (2017)DONATH, Orna (2017). Mães arrependidas: uma outra visão da maternidade. Tradução: Marina Vargas. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira. assevera "que as mulheres carregam os descendentes humanos pode ser um fato, mas isso não obriga as mulheres a se comprometerem com os cuidados, a proteção, a educação e a responsabilidade que essa relação exige" (Donath, 2017DONATH, Orna (2017). Mães arrependidas: uma outra visão da maternidade. Tradução: Marina Vargas. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira., p. 51-52). Nesse sentido, sobre o mesmo tema, entende-se que é preciso que o discurso que sobrepõe o biológico ao cultural seja revisado; para a teórica, assim será possível entender a diversidade que circunda a constituição das mulheres-mães. Assim, a personagem rejeita a noção socialmente instituída de que "a mãe ideal não tem interesses próprios" (Chodorow, 1978CHODOROW, Nancy (1978). Psicanálise da maternidade: uma crítica a Freud a partir da mulher. Rio de Janeiro: Rosa dos Tempos., 105); o incômodo de Anna representa o seu anseio por decidir sobre os caminhos de sua história.

Nesse cenário em que tudo que Anna "achava que era ela, começava a se desfazer" (Saavedra, 2018SAAVEDRA, Carola (2018). Com armas sonolentas. São Paulo: Companhia das Letras., p. 54), a personagem chega a cogitar um aborto do que encara como "algo que se agarrava a ela, essa coisa que grudava" (Saavedra, 2018SAAVEDRA, Carola (2018). Com armas sonolentas. São Paulo: Companhia das Letras., p. 54, grifo nosso). No entanto, o procedimento não é realizado, tanto devido ao estágio já avançado da gravidez quanto, sobretudo, como salientado pelo narrador, pela falta de coragem de Anna. Durante toda a gravidez, os sentimentos da personagem são de inconformidade com seu novo estado, há uma sensação de inadequação ao contexto que envolve a sua gestação; essa figura feminina não quer ter um filho, conforme exposto pelo narrador: "A coisa crescia em silêncio dentro de sua barriga. Anna não a sentia ainda, mas sabia que estava lá, feito um fantasma. […] ela não queria esse filho, disse com todas as letras, isso que está aqui dentro não é meu filho, é qualquer outra coisa, mas não é meu" (Saavedra, 2018SAAVEDRA, Carola (2018). Com armas sonolentas. São Paulo: Companhia das Letras., p. 55). O amor e a entrega ao filho por vir, esperado do sujeito-mãe, não são, por ela, em nenhum momento vivenciados durante a gestação.

Donath (2017)DONATH, Orna (2017). Mães arrependidas: uma outra visão da maternidade. Tradução: Marina Vargas. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira. aponta que cada mulher-mãe encontra a sua forma de lidar com a gravidez e, para Anna, essa situação não é diferente. Em conformidade com a desordem de suas emoções, a personagem, no início da gravidez, cria um duplo de si mesma, a materialização de um eu cindido e mutilado. Esse fato será mencionado anos mais tarde, sendo ela já uma atriz, como sempre sonhou, ao rememorar a situação vivida no país estrangeiro em um monólogo baseado em sua vida e por ela protagonizado:

xxx:

[…] quando soube que estava grávida, fingi que não era comigo, como se a notícia me dividisse em duas, e eu pudesse, a meu bel-prazer, transitar entre uma e outra, a que sabia e a que não sabia, como se o saber, mais do que o corpo, determinasse a gravidez. […] A mulher não grávida se olhava no espelho e não se reconhecia. Havia outra, feito sombra, um desdobramento de mim mesma. Havia um corpo dentro do meu corpo, algo humano? Eu olhava para a barriga ainda plana, e se fechasse os olhos?, a tragédia do saber é que não é possível voltar atrás, mesmo com todo o esforço para enterrar o que sabemos, as palavras voltavam à superfície feito náufragos desfigurados pelo sol e pela água do mar (Saavedra, 2018SAAVEDRA, Carola (2018). Com armas sonolentas. São Paulo: Companhia das Letras., p. 182-183).

Compreende-se que o duplo criado por Anna representa um eu em busca de uma subjetividade que não mais existe diante do sofrimento que lhe é infligido. Assim, há uma Anna grávida que se configura como um outro feminino, que a outra Anna, o duplo não grávido, nunca desejou ser. A "duplicação" de seu eu conforma a percepção das diferenças entre a Anna estrangeira (e grávida) e a Anna que vivia em terras brasileiras e que sonhava em se tornar uma atriz famosa.

Nem mesmo os olhares e falas condenatórias de Heiner que a qualificam como "um monstro" e como uma pessoa egoísta por mencionar a possibilidade de dar a criança para a adoção e falar friamente sobre a situação, fazem com que Anna mude a sua atitude frente à gravidez: "Anna só queria não falar no assunto e manter a vida a mais próxima possível do que era antes da gravidez, eu carrego essa criança no meu corpo contra a minha vontade" (Saavedra, 2018SAAVEDRA, Carola (2018). Com armas sonolentas. São Paulo: Companhia das Letras., p. 56-57). Outrossim, seu sofrimento e rejeição à maternidade persistem mesmo depois do nascimento da criança, uma menina. Ao descrever o bebê recém-nascido, é perceptível a sensação de que a menina nada mais era do que uma invasora em seu corpo, sugerindo sua aflição diante da situação:

A criança dentro dela abria sua barriga por dentro com uma faca e saía sozinha para o mundo lá fora, a criança dentro dela era escura e seca, […], a criança dentro dela nascia com todos os dentes, dentes enormes que apontavam para fora e deformavam sua boca, a criança dentro dela comia a própria placenta (Saavedra, 2018SAAVEDRA, Carola (2018). Com armas sonolentas. São Paulo: Companhia das Letras., p. 57).

Beauvoir (2009BEAUVOIR, Simone de (2009). O segundo sexo. 2. ed. Tradução: Sérgio Milliet. Rio de Janeiro: Nova Fronteira., p. 661) pontua que "a gravidez é principalmente um drama que se desenrola na mulher entre si e si", chamando a atenção tanto para o fato de que o feto pode ser depreendido pela mulher como "um parasita que a explora" quanto para a sensação de aniquilamento que a gestação de outro ser humano pode trazer ao feminino, já que esse pode carregar a "impressão de não ser nada mais" (Beauvoir, 2009BEAUVOIR, Simone de (2009). O segundo sexo. 2. ed. Tradução: Sérgio Milliet. Rio de Janeiro: Nova Fronteira., p. 662). Nessa perspectiva, a estudiosa Barbara Almond (2010)ALMOND, Barbara (2010). "Before the beginning": women's fears of monstrous births. In: ALMOND, Barbara. The monster within: the hidden side of motherhood. Berkeley: University of California Press. p. 51-72., em seu texto ‘Before the beginning’: women's fears of monstrous births, revela que as mulheres-mães ao atrelarem a figura da criança por elas gerada à de um monstro/parasita estão refletindo o monstro dentro delas mesmas, em um exercício de projeção. A autora expõe também que esse medo relaciona-se com a forma como o feminino compreende o seu papel enquanto mulher, traduzindo a "sua vergonha e ansiedade sobre os significados de ser mulher, sobre a compreensão de seu corpo e o que esse corpo pode produzir" (Almond, 2010ALMOND, Barbara (2010). "Before the beginning": women's fears of monstrous births. In: ALMOND, Barbara. The monster within: the hidden side of motherhood. Berkeley: University of California Press. p. 51-72., p. 56, tradução nossa).

A personagem, ao se ver como principal responsável por um ser humano pelo qual não reconhece nenhum tipo de afeto, experimenta mais vigorosamente as limitações impostas ao feminino. Ao contrário da imagem mítica construída para a maternidade, essa configura-se para o feminino como um evento traumático, que deixa marcas profundas em sua constituição psíquica, reforçada pela impossibilidade desse sujeito-mãe em formar vínculos com o bebê. Ainda no hospital, logo após o parto, ao pegar a menina pela primeira vez no colo, essa apresenta-se para essa mulher-mãe como "só um pacote que poderia conter qualquer coisa" (Saavedra, 2018SAAVEDRA, Carola (2018). Com armas sonolentas. São Paulo: Companhia das Letras., p. 57); em outro momento, o narrador sustenta o fato de que para Anna, aquela criança era apenas por ela percebida como uma obrigação que lhe foi imposta em que ela não teve possibilidade de escolha: "Não sentia nada. Nem carinho, nem raiva, nem menor amor. Poderia ser qualquer coisa, uma caixa, um embrulho, um embrulho que alguém havia lhe entregado e dito, tome, cuide disso" (Saavedra, 2018SAAVEDRA, Carola (2018). Com armas sonolentas. São Paulo: Companhia das Letras., p. 60).

Anna retrata que o fazer materno pode ser constituído de uma total falta de sentimentos de amor e carinho, como salientado por Donath (2017)DONATH, Orna (2017). Mães arrependidas: uma outra visão da maternidade. Tradução: Marina Vargas. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira.. É nessa perspectiva que a criança será tomada por esse sujeito-mãe como um reforço de sua condição de indivíduo vulnerável e sem poder no espaço em que transita:

E ela ali, com a criança nos braços numa solidão […] ninguém se lembrava dela, ninguém vinha lhe perguntar como ela estava se sentindo. Ninguém lhe perguntava do horror, das noites sem dormir, do bebê que só fazia mamar, até que ela, quase louca, e o bebê ali pendurado, sugando tudo o que pudesse (Saavedra, 2018SAAVEDRA, Carola (2018). Com armas sonolentas. São Paulo: Companhia das Letras., p. 58).

Assim, o romance de Saavedra (2018)SAAVEDRA, Carola (2018). Com armas sonolentas. São Paulo: Companhia das Letras. sugere o isolamento da mulher-mãe, uma ideia inversa à que se postula acerca da relação da mãe com os seus filhos, que seria permeada pela alegria, entrega e cumplicidade. Fragilizada, Anna se vê preterida pela filha e obrigada a atender as demandas da recém-nascida. Sobre isso, Donath (2017DONATH, Orna (2017). Mães arrependidas: uma outra visão da maternidade. Tradução: Marina Vargas. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira., p. 185) esclarece que "conhecer as mães — seu universo emocional e suas ideias como pessoas — tende a ser considerado um fardo; uma carga que deveria ser evitada". Donath (2017DONATH, Orna (2017). Mães arrependidas: uma outra visão da maternidade. Tradução: Marina Vargas. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira., p. 185) explica que, na cultura da "maternidade perfeita", as atenções se dirigem aos filhos, "sem esperar que as mães existam como alguém com necessidade e desejos próprios".

A atitude de Anna coloca em xeque a teoria de uma maternidade devotada por natureza, de entrega do feminino aos filhos. Elisabeth Badinter (1985)BADINTER, Elisabeth (1985). Um amor conquistado: o mito do amor materno. Tradução: Waltensir Dutra. Rio de Janeiro: Nova Fronteira., sobre o tema, assinala a importância de se compreender a historicidade da construção do sujeito-mãe:

Ao se percorrer a história das atitudes maternas, nasce a convicção de que o instinto materno é um mito. Não encontramos nenhuma conduta universal e necessária da mãe. Ao contrário, constatamos a extrema variabilidade de seus sentimentos, segundo sua cultura, ambições ou frustrações. Como, então, não chegar à conclusão, mesmo que ela pareça cruel, de que o amor materno é apenas um sentimento e, como tal, essencialmente contingente? Esse sentimento pode existir ou não existir; ser e desaparecer. Mostrar-se forte ou frágil. Preferir um filho ou entregar-se a todos. Tudo depende da mãe, de sua história e da História. Não, não há uma lei universal nessa matéria, que escapa ao determinismo natural. O amor materno não é inerente às mulheres. É "adicional" (Badinter, 1985BADINTER, Elisabeth (1985). Um amor conquistado: o mito do amor materno. Tradução: Waltensir Dutra. Rio de Janeiro: Nova Fronteira., p. 366).

Dessa forma, instaura-se, na obra de Saavedra (2018)SAAVEDRA, Carola (2018). Com armas sonolentas. São Paulo: Companhia das Letras., uma discussão que se dispõe a pôr em xeque a definição da mulher pelo cumprimento, e aqui teríamos o feminino ideal que cumpre com suas funções ou não do papel materno, desvencilhando-se do viés patriarcal instituído à mulher no fazer materno, um discurso permeado pela religião e que anula esse sujeito, fazendo sempre valer os desejos do outro em detrimento de suas próprias vontades. No reconhecimento da perda de si mesma, a maternidade é para Anna a constatação de que ela já não pode mais fazer uso de sua racionalidade, reduzindo-se apenas às suas características biológicas:

Então isso é ser mãe, pensou, um bicho sugando as tetas de um outro bicho, se alimentando de um outro bicho, e ela olhava para o bebê e olhava para Heiner e não sentia nada. […] a cada dia que passava iam se tornando piores, ela ia se tornando pior, mais distante, capaz das piores coisas, e tinha medo de em algum momento deixar de ser humana restando apenas aquela força desconhecida e incontrolável (Saavedra, 2018SAAVEDRA, Carola (2018). Com armas sonolentas. São Paulo: Companhia das Letras., p. 58-59).

O excerto acima vai ao encontro do sinalizado por Beauvoir (2009)BEAUVOIR, Simone de (2009). O segundo sexo. 2. ed. Tradução: Sérgio Milliet. Rio de Janeiro: Nova Fronteira., de que a concretização da maternidade não é ideal para todas as mulheres, nem mesmo se constitui como o sonho de todo o feminino. No mesmo sentido, Badinter (1985BADINTER, Elisabeth (1985). Um amor conquistado: o mito do amor materno. Tradução: Waltensir Dutra. Rio de Janeiro: Nova Fronteira., p. 70) afirma ser impossível "definir um comportamento materno próprio à espécie humana", o que acaba por "enfraquecer a noção de instinto, e com ela, a de ‘natureza’ feminina", demarcando a importância de considerar a multiplicidade que envolve a construção da subjetividade da mulher-mãe, "reflexo da história pessoal e cultural de cada mulher" (Badinter, 1985BADINTER, Elisabeth (1985). Um amor conquistado: o mito do amor materno. Tradução: Waltensir Dutra. Rio de Janeiro: Nova Fronteira., p. 70). Vendo-se cada vez mais animalizada e resumida à função materna, as reações desse sujeito-mãe sugerem o desejo por uma brecha, um retorno ao seu "eu" anterior, à vida antes de sua ida à Alemanha, quando a criança ainda não existia. Dessarte, a menina, símbolo da sua não conformidade com a sociedade patriarcal que institui a maternidade como um dever, é abandonada em um parque da cidade.

O ato de Anna também reflete a esperança de que essa criança encontre outra pessoa, alguém que tenha condições de cuidá-la de uma maneira que ela sabe que não poderá: "Ficaria bem, aquela filha que não era mais minha, que nunca fora" (Saavedra, 2018SAAVEDRA, Carola (2018). Com armas sonolentas. São Paulo: Companhia das Letras., p. 177). Anna tem consciência de que ela e aquele bebê não vivem em simbiose, como comprova o excerto a seguir: "Ficaria bem, aquele corpo que se desprendera do meu corpo e agora tinha vida própria" (Saavedra, 2018SAAVEDRA, Carola (2018). Com armas sonolentas. São Paulo: Companhia das Letras., p. 177). Anna não é uma mulher má, mas uma mulher em pedaços, que percebe que, antes de tudo em sua vida, ela necessita saber quem realmente é.

Se, em um primeiro momento, a prosa de Saavedra captura nuances emocionais e psicológicas, trazendo à luz, em um primeiro momento, a culpa sentida por Anna, refletindo a internalização das expectativas e pressões machistas. Na construção de sua vida adulta, essa abordagem narrativa dá voz à memória e ao subjetivo, contextualizando a luta de Anna contra a alienação e a dependência, revelando como sua trajetória pessoal está intrinsecamente ligada às estruturas sociais patriarcais. Já no Brasil, Anna rememora seu segundo casamento e a violência nele vivida, sua relação com a mãe e a saída da casa de seus empregadores. Além disso, o abandono da filha, marcado pela violência da maternidade compulsória, será o tema de seu monólogo, uma violência que repercute vinte anos depois.

Em sua peça, a fala de Anna aponta que o gesto de carregar um bebê em seu próprio corpo nada mais foi do que a repetição do que as outras mulheres de sua família fizeram. Refletindo o peso do discurso patriarcal sobre o corpo das mulheres, Anna problematiza, indaga e sugere a incoerência da naturalização da maternidade, algo tão violento para as mulheres. Ademais, as reflexões da personagem desnudam a noção de que não é na repetição do exercício do cuidado de uma criança entre gerações de mulheres que a mulher se faz sujeito-mãe:

E desse ato surgiu um amontoado de células chamado "outro ser humano". Eu, então, durante nove meses, dentro do meu órgão-recipiente chamado útero, gestei esse outro ser humano, e, quando ele estava grande o suficiente, eu senti as contrações que o expulsaram para fora do meu corpo. E isso se deu através desse tubo chamado vagina, ligado ao órgão-recipiente chamado útero através de uma pequena entrada chamada colo do útero, entrada essa que, não por acaso, nove meses antes possibilitara a entrada do líquido branco que, de alguma forma, estava ligado à existência daquela outra pessoa. O tubo chamado vagina, assim como o colo do útero, foi se expandindo e se expandindo até que passasse por ele, num acontecimento inimaginável, um pedaço de carne chamado outro ser humano, e depois outro pedaço de carne, menor, chamado placenta. E eu fiquei ali, desorientada, exausta, diante daquele outro ser humano que chorava e mamava e dormia e soltava secreções por todos os orifícios do corpo. E era também através de um desses orifícios do corpo chamado boca que o outro ser humano sugava a ponta do meu peito, que nada mais era do que também um pedaço de carne com ínfimos orifícios, dos quais saía sangue que, desprovido dos glóbulos vermelhos, chama-se leite. Eu fiz tudo isso: gestei e pari e vesti e alimentei um pedaço de carne, chamada também de "outro ser humano", e limpei suas secreções e excrementos e o coloquei num berço a salvo de intempéries e predadores, eu fiz tudo isso que minha mãe e minha avó e minha bisavó e minha tataravó e minha tataratataravó haviam feito, mas nem por isso tornei-me mãe (Saavedra, 2018SAAVEDRA, Carola (2018). Com armas sonolentas. São Paulo: Companhia das Letras., p. 176).

As palavras escolhidas por Anna mostram um feminino que diverge da construção social acerca do sujeito-mãe, bem como das noções acerca do amor materno. Nesse sentido, a personagem sinaliza o fato de que a maternidade não pode ser resumida à biologia. Beauvoir (2009)BEAUVOIR, Simone de (2009). O segundo sexo. 2. ed. Tradução: Sérgio Milliet. Rio de Janeiro: Nova Fronteira. pontuou que um sujeito torna-se uma mulher, preterindo, desse modo, a noção acerca de uma essência feminina, "não se nasce mulher", à existência e vivências que transformam um sujeito; outrossim, Anna destaca que ninguém nasce mãe, pois a maternidade não é marca biológica feminina, mas sim uma imposição da sociedade, que a coloca como dever.

Ao encontro do afirmado por Badinter (1985)BADINTER, Elisabeth (1985). Um amor conquistado: o mito do amor materno. Tradução: Waltensir Dutra. Rio de Janeiro: Nova Fronteira. acerca da não naturalidade do amor materno, Anna personifica a ideia de que não é o fato de ter um útero que fará dela um sujeito-mãe, uma mulher "naturalmente" preparada para o cuidado com o "outro". Em seu discurso, é apresentada uma necessária revisão das ideias consolidadas pelo discurso social em vigência. Utilizando uma linguagem que coloca a maternidade em termos biológicos, a personagem denuncia uma sociedade que animaliza e objetifica o corpo das mulheres de modo que reproduzam o fazer materno no formato silenciador e opressor instituído pelo patriarcado. Nessa perspectiva, Anna questiona inclusive a compreensão que se tem acerca do que é "natural" para as mulheres:

xxx

Eu era ainda muito jovem e acabara de ter um bebê. Eu pari um amontoado de células que costumamos chamar "outro ser humano", e, ao fazê-lo, apenas reproduzi o gesto de todas as mulheres da minha linhagem, minha mãe, minha avó, minha bisavó, minha tataravó, minha tataratataravó. A natureza. (Pausa) Mas nada é natural na natureza! […] Não, nada é natural na natureza. (Anna prende o cabelo num rabo de cavalo). Eu gestei "outro ser humano" dentro das minhas entranhas, nesse lugar chamado útero, esse órgão-casa, órgão-universo, e assim, de um instante a outro, surgiu alguém que antes não existia (Saavedra, 2018SAAVEDRA, Carola (2018). Com armas sonolentas. São Paulo: Companhia das Letras., p. 175).

Sua fala evidencia a necessidade de se repensar uma sociedade que toma o conceito de natural como forma de silenciar as mulheres. Compreende-se que a própria noção de natureza é imbricada pela cultura, tendo em vista que essa concepção será tomada pelo patriarcado de modo a restringir o feminino. Sobre esse tópico, Chodorow (1978)CHODOROW, Nancy (1978). Psicanálise da maternidade: uma crítica a Freud a partir da mulher. Rio de Janeiro: Rosa dos Tempos., ao retomar os estudos de Rubin, diz que os "cuidados maternos […] e a organização da família constituem as questões acerca do gênero e sexualidade" (Chodorow, 1978CHODOROW, Nancy (1978). Psicanálise da maternidade: uma crítica a Freud a partir da mulher. Rio de Janeiro: Rosa dos Tempos., p. 23) e, por essa razão, são produtos sociais. Badinter (1985)BADINTER, Elisabeth (1985). Um amor conquistado: o mito do amor materno. Tradução: Waltensir Dutra. Rio de Janeiro: Nova Fronteira. também disserta sobre a temática afirmando que a vinculação da maternidade ao feminino não deve ser resumida aos hormônios femininos.

As marcas dessa restrição são expostas pela personagem que, mesmo entendendo o funcionamento opressor nos diferentes setores da sociedade, não consegue se livrar da culpa por ter abandonado uma criança: "Eu tinha que fazer alguma coisa, algo que me desse algum castigo, porque a culpa, a culpa é algo que gruda, que se agarra, uma língua de óleo pelo corpo. A culpa é uma língua de óleo que se enrosca feito corda" (Saavedra, 2018SAAVEDRA, Carola (2018). Com armas sonolentas. São Paulo: Companhia das Letras., p. 178). Em outra passagem em sua peça, que reforça a dificuldade em viver com a culpa de ter abandonado um bebê, Anna chega a imaginar como a sua vida se tivesse ficado com a filha:

xxx

Às vezes, imagino como seria se as coisas tivessem tomado outro rumo, e eu, num último minuto, em vez do abandono, tivesse decidido me tornar mãe daquele bebê, minha filha, voltando para casa, nós duas. Às vezes, imagino breves cenas espalhadas no tempo, numa ela ainda mama, e eu canto uma canção de ninar que a minha mãe cantava quando eu tinha insônia […]. Às vezes, num salto, ela tem vinte e cinco anos, e eu, a mãe, há muito deixei de ser jovem, como se a existência de um filho, mesmo longe, mesmo não filho, nos jogasse numa nova cronologia (Saavedra, 2018SAAVEDRA, Carola (2018). Com armas sonolentas. São Paulo: Companhia das Letras., p. 187).

O excerto acima sugere a impossibilidade para o feminino de desatrelar-se da culpa e do peso do não cumprimento do papel materno: Anna, inserida em uma sociedade que baseia o feminino em sua função materna, mesmo anos depois, está presa a essa situação, de modo que precisa criar imagens em que está cumprindo o papel materno. Compreende-se que esse exercício de imaginação em que ela se vê como cumpridora do fazer materno trabalha como uma forma de buscar respostas para sua incapacidade de assumir os cuidados com aquela criança; contudo, o resultado dessa ação é sempre o do seu posicionamento em um lugar de culpa e de arrependimento: ela não tem para onde voltar — "o que eu espero encontrar? Não há mais filha […] E assim, dou voltas ao arrependimento que me espreita" (Saavedra, 2018SAAVEDRA, Carola (2018). Com armas sonolentas. São Paulo: Companhia das Letras., p 187). Marcada e machucada pelo discurso patriarcal, Anna percebe-se como a única culpada pelo que aconteceu: "Se não tivesse engravidado, e se não tivesse parido, e se não tivesse me tornado mãe" (Saavedra, 2018SAAVEDRA, Carola (2018). Com armas sonolentas. São Paulo: Companhia das Letras., p. 187).

Ainda confessando suas culpas e ao mesmo tempo reforçando, quase para si mesma, a afirmação de que não é um monstro, Anna relata a perda de contato com a mãe. Essa situação, como pontua Luciana Jardim (2019JARDIM, Luciana Abreu (2019). Aspectos da maternidade no romance com Armas Sonolentas, de Carola Saavedra. Navegações, v. 12, n. 1, e33653. https://doi.org/10.15448/1983-4276.2019.1.33653
https://doi.org/10.15448/1983-4276.2019....
, p. 7), acentua "o mero descompasso circunstancial entre mãe e filha", e sugere que a maternidade não envolve apenas o amor, "que, para o senso comum, parece ser o único a compor o universo de sensações dessa experiência do dar à luz" (Jardim, 2019JARDIM, Luciana Abreu (2019). Aspectos da maternidade no romance com Armas Sonolentas, de Carola Saavedra. Navegações, v. 12, n. 1, e33653. https://doi.org/10.15448/1983-4276.2019.1.33653
https://doi.org/10.15448/1983-4276.2019....
, p. 7), mas uma multiplicidade de sentimentos, configurando-se como uma relação complexa que perpassa as diferentes experiências dos sujeitos envolvidos nessa situação.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

A partir da análise apresentada, percebe-se que Com armas sonolentas (2018) rompe com os padrões designados ao sujeito-mãe ao apresentar uma personagem que não esconde o incômodo, a solidão e a inadequação que a assolam no fazer materno. Há uma clara distância entre a maternidade representada por Anna Mariani e aquela idealizada pelo patriarcado, sugerindo a impossibilidade de se pensar a maternidade e tudo que a envolve enquanto um fazer inato às mulheres. Anna, em seu discurso, pontua o peso social e cultural que a maternidade carrega para o feminino, que é desde muito jovem ensinado a cuidar/maternar.

Nesse sentido, entende-se que a análise da situação da maternidade e da construção do sujeito-mãe em Com armas sonolentas provê um entendimento plural sobre o feminino, desatrelado do olhar unívoco destinado às mulheres e do fazer materno enquanto essência e natureza feminina. A obra sublinha que a maternidade envolve um processo de "tornar-se", permeado por diferentes sentimentos e contextos. A obra apresenta as ambivalências da maternidade que perpassam o sujeito feminino, trazendo à tona questionamentos sobre os modos como a construção da subjetividade feminina foi enclausurada pelo sistema vigente.

Do mesmo modo, Com armas sonolentas (2018) assinala a quase impossibilidade de fuga do feminino desse fazer, tendo em vista a força do discurso patriarcal, que imputa a esses sujeitos situações de violência e completo desconhecimento do seu corpo, mas que reitera a compulsoriedade do discurso que atrela a mulher à maternidade; mãe e filha estão marcadas pela obrigatoriedade da maternidade enquanto instituição, e seus corpos e subjetividades são marcados por isso.

Por fim, é sabido que não se pode afirmar que todos os padrões impostos à mulher-mãe, sendo um deles a própria maternidade enquanto instituição compulsória e vinculada à mais alta expressão da feminilidade, foram refutados. Todavia, os debates empreendidos na atualidade, como sugere o livro analisado, demonstram um caminho de possibilidades na constituição de um feminino que, ao expor o peso de um fazer materno construído pelo discurso patriarcal, considera variadas formas de expressão de sua subjetividade; uma subjetividade não mais atrelada à maternidade enquanto um fazer obrigatório.

Notas

  • 1
    Escritoras como Carola Saavedra, Conceição Evaristo, Adriana Lisboa, entre outras, apresentam obras em que a maternidade é temática de destaque.
  • 2
    Saavedra estreou na literatura com o livro de contos Do lado de fora, publicado em 2005; já em 2007, a autora publicou seu primeiro romance intitulado Toda terça, seguido das obras Flores azuis (2008), Paisagem com dromedário (2010) e O inventário das coisas ausentes (2014). O manto da noite (2022) é seu último romance publicado. A escritora já foi finalista dos prêmios São Paulo de Literatura e Jabuti.
  • 3
    É importante salientar que a autora não afirma que a noção acerca do amor materno nasceu no século XVIII, mas sim que as modificações socioculturais que aconteciam à época, manejadas pelos sujeitos no poder, instituíram a maternidade como um dever das mulheres. A atividade de cuidado com os filhos, considerada um exercício exclusivo do feminino, serviu como mais um artifício de restrição desses sujeitos ao espaço doméstico/privado.
  • 4
    A autora aponta que, anterior a essa ressignificação da maternidade, havia um alto índice de mortalidade infantil, fato nada valioso para o sistema capitalista, uma organização econômica que precisa de um alto número de mão de obra assalariada para a manutenção do grupo dominante no poder.
  • 5
    No presente trabalho, a referência à maternidade como instituição parte dos apontamentos da teórica Adrienne Rich (1986)RICH, Adrienne Cecile (1986). Of Woman Born: motherhood as experience and institution. Nova York: W. W. Norton & Company., que sublinha esse fazer como modo de manutenção das mulheres sob o poder do masculino. Os homens colocam a maternidade como compulsória de forma a garantir um corpo dominado.
  • 6
    Em oposição à figura da boa-mãe, tem-se a da maternidade ruim (mãe má). Nesse grupo estão as mulheres que concretizam a maternidade fora dos padrões impostos pela moral do patriarcado: mulheres com filhos fora do casamento, mulheres que não dedicam-se à criação dos filhos, mulheres que questionam os parâmetros a ela dados para a realização materna.
  • 7
    A história de Anna é também narrada em terceira pessoa.
  • O trabalho faz parte da pesquisa de doutoramento, que gerou a tese intitulada "Nada é natural na natureza": a construção narrativa do sujeito-mãe na Literatura Brasileira Contemporânea escrita por mulheres, defendida em agosto de 2021, na Universidade Federal do Rio Grande (FURG). O texto pode ser acessado pelo link https://repositorio.furg.br/handle/1/10400.
  • O projeto recebeu financiamento da Capes via bolsa de doutorado sanduíche na Universidade de Lisboa.

Referências

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Editor: Paulo César Thomaz

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    19 Ago 2024
  • Data do Fascículo
    2024

Histórico

  • Recebido
    23 Maio 2024
  • Aceito
    11 Jun 2024
Grupo de Estudos em Literatura Brasileira Contemporânea, Programa de Pós-Graduação em Literatura da Universidade de Brasília (UnB) Programa de Pós-Graduação em Literatura, Departamento de Teoria Literária e Literaturas, Universidade de Brasília , ICC Sul, Ala B, Sobreloja, sala B1-8, Campus Universitário Darcy Ribeiro , CEP 70910-900 – Brasília/DF – Brasil, Tel.: 55 61 3107-7213 - Brasília - DF - Brazil
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