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A materialidade corporificada das relações entre seres humanos e não-humanos: considerações a partir das obras de Marília Floôr Kosby e Soledad Castresana

The embodied materiality of relationships between humans and non-humans: considerations from the works of Marília Floôr Kosby and Soledad Castresana

La materialidad corporificada de las relaciones entre seres humanos y no humanos: consideraciones a partir de las obras de Marília Floôr Kosby y Soledad Castresana

Resumo

As obras Mugido [ou diário de uma doula], da poeta brasileira Marília Floôr Kosby (2017)KOSBY, Marília Floôr (2017). Mugido [ou diário de uma doula]. Rio de Janeiro: Edições Garupa., e Carneada, da poeta argentina Soledad Castresana (2007)CASTRESANA, Soledad (2007). Carneada. Córdoba: Alción., aceitam o convívio tanto com a indeterminação da vida que se inicia quanto com a inevitabilidade da morte, sem se furtar ao questionamento sobre nossa responsabilidade e participação em sistemas de dominação, reducionismo e expropriação. Ao questionarem a cisão entre humano e animal, que organiza o modo como vivemos, tomando o mundo e os demais seres vivos como recurso, as poetas nos convocam a pensar, também, as relações de gênero em que a ordem patriarcal separa e hierarquiza homens e mulheres, aproximando-as dos seres não humanos. Os poemas se corporificam, nos pedem que os habitemos enquanto corpo — carne — e nos colocam diante da relação com a morte e a violência, mas também das dores e alegrias de quem gera vida, da multiplicação de um amor multiespecífico que prolifera entre fêmeas inespecíficas. A reflexão aqui proposta busca estabelecer diálogo entre os dois poemários citados e a pesquisa de Raj Patel e Jason Moore (2017)PATEL, Raj; MOORE, Jason W. (2017). A history of the world in seven cheap things: A guide to capitalism, nature, and the future of the planet. Berkeley: University of California Press., Vinciane Despret (2021)DESPRET, Vinciane (2021). O que diriam os animais? São Paulo: Ubu. e Donna Haraway (2022)HARAWAY, Donna (2022). Quando as espécies se encontram. São Paulo: Ubu., além de outras autoras e autores, que indicam horizontes para um bem viver e um morrer com dignidade, convocando-nos à desarticulação, numa comunicação sempre imprevista, porém profusa de significados.

Palavras-chave:
animais não-humanos; ecocrítica; Marília Floôr Kosby; Soledad Castresana

Abstract

The books Mugido [ou diário de uma doula], by Brazilian poet Marília Floôr Kosby (2017)KOSBY, Marília Floôr (2017). Mugido [ou diário de uma doula]. Rio de Janeiro: Edições Garupa., and Carneada, by Argentine poet Soledad Castresana (2007)CASTRESANA, Soledad (2007). Carneada. Córdoba: Alción., embrace both the indeterminacy of life that begins and the inevitability of death, without shying away from questioning our responsibility and participation in systems of domination, reductionism, and expropriation. By questioning the division between human and animal, which organizes the way we live, seeing the world and other living beings as resources, the poets summon us to also consider gender relations wherein the patriarchal order separates and hierarchizes men and women, bringing them closer to non-human beings. The poems become embodied, asking us to inhabit them as bodies — flesh — and confront the relationship with death and violence, but also with the pains and joys of those who generate life, in a multiplication of a multispecific love that proliferates among unspecified females. The reflection proposed here seeks to establish a dialogue between the two poetry collections mentioned and the research of Raj Patel e Jason Moore (2017)PATEL, Raj; MOORE, Jason W. (2017). A history of the world in seven cheap things: A guide to capitalism, nature, and the future of the planet. Berkeley: University of California Press., Vinciane Despret (2021)DESPRET, Vinciane (2021). O que diriam os animais? São Paulo: Ubu. and Donna Haraway (2022)HARAWAY, Donna (2022). Quando as espécies se encontram. São Paulo: Ubu., among other authors, who point to horizons for a good living and a dignified dying, calling us to disarticulation, in a communication always unforeseen, yet rich in meanings.

Keywords:
non-human animals; ecocriticism; Marília Floôr Kosby; Soledad Castresana

Resumen

Las obras Mugido [ou diário de uma doula], de la poeta brasileña Marília Floôr Kosby (2017)KOSBY, Marília Floôr (2017). Mugido [ou diário de uma doula]. Rio de Janeiro: Edições Garupa., y Carneada, de la poeta argentina Soledad Castresana (2007)CASTRESANA, Soledad (2007). Carneada. Córdoba: Alción., aceptan tanto la indeterminación de la vida que comienza como con la inevitabilidad de la muerte, sin eludir el cuestionamiento sobre nuestra responsabilidad y participación en sistemas de dominación, reduccionismo y expropiación. Al cuestionar la separación entre humano y animal, que organiza la forma en que vivimos, tomando el mundo y los demás seres vivos como recursos, las poetas nos invitan a reflexionar también sobre las relaciones de género, en las cuales el orden patriarcal separa y jerarquiza a hombres y mujeres, acercándolas a los seres no humanos. Los poemas nos piden que los habitemos como cuerpo — carne — y nos enfrentan a la relación con la muerte y la violencia, pero también a los dolores y alegrías de quienes generan vida, a la multiplicación de un amor multiespecífico que prolifera entre hembras inespecíficas. La reflexión propuesta aquí busca establecer un diálogo entre los dos poemarios mencionados y la investigación de Raj Patel e Jason Moore (2017)PATEL, Raj; MOORE, Jason W. (2017). A history of the world in seven cheap things: A guide to capitalism, nature, and the future of the planet. Berkeley: University of California Press., Vinciane Despret (2021)DESPRET, Vinciane (2021). O que diriam os animais? São Paulo: Ubu. y Donna Haraway (2022)HARAWAY, Donna (2022). Quando as espécies se encontram. São Paulo: Ubu., así como otras autoras y autores, que señalan horizontes para vivir bien y morir con dignidad, convocándonos a la desarticulación, en una comunicación siempre imprevista, pero profusa de significados.

Palabras-clave:
animales no humanos; ecocrítica; Marília Floôr Kosby; Soledad Castresana

Em 2020, estima-se que 73.162.794.213 animais (entre aves, suínos, ovinos e bovinos) foram abatidos para consumo humano em todo o mundo (Orzechowski, 2022ORZECHOWSKI, Karol (2022). Global Animal Slaughter Statistics & Charts: 2022 Update. Faunalytics. Disponível em: https://faunalytics.org/global-animal-slaughter-statistics-charts-2022-update/. Acesso em: 14 nov. 2023.
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). Um número nove vezes maior que a quantidade de pessoas no globo terrestre — não entram nessa estimativa os animais marinhos e aqueles cujas vidas e mortes são destinadas à pesquisa em laboratórios. Como responder a estas mortes? Como não as transformar em apenas mais um número incomensurável diante do qual paralisamos ou apenas seguimos em frente, optando por ignorá-lo? Como honrar estas mortes? Sabemos que o consumo de carne faz parte das tradições alimentares humanas desde muito antes do início do registro histórico, mas diversas vozes chamam atenção para o fato de que, nas últimas décadas, nossa principal interação com animais não humanos, especialmente em zonas urbanas, se dá por meio da alimentação, ou seja, de seus corpos mortos (Adams, 2015ADAMS, Carol J. (2015). A política sexual da carne: a relação entre o carnivorismo e a dominância masculina. São Paulo: Alaúde.; Lestel, 2016 apud Maciel, 2016MACIEL, Maria Esther (2016). Literatura e animalidade. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira.; Despret, 2021DESPRET, Vinciane (2021). O que diriam os animais? São Paulo: Ubu.). Diante da separatividade e hierarquização que marca a experiência humana urbano-contemporânea, as obras de Soledad Castresana, poeta argentina, e Marília Floôr Kosby, poeta brasileira, parecem oferecer uma saída: é preciso implicar-se, desarticulando o próprio corpo, abandonando a noção de excepcionalidade humana e construindo novos sentidos para o viver e o morrer, sem nos furtarmos ao questionamento sobre nossa responsabilidade e participação em sistemas de dominação, reducionismo e expropriação.

A princípio, segue uma breve apresentação das obras e de suas autoras. Marília Flôor Kosby nasceu em Arroio Grande, extremo sul do Brasil em 1984. Mugido [ou diário de uma doula], publicado em 2017, é seu terceiro livro de poemas e, nasce da experiência de trabalho em campo ao acompanhar o pai veterinário em suas visitas a fazendas e no cuidado com seres não humanos (cf. Kosby, 2019KOSBY, Marília Floôr (2019). Mulheres, vacas e partos nas pecuárias do Extremo Sul do Brasil: relações transespecíficas a partir do encontro entre Antropologia e epistemologias feministas. Tessituras, v. 7, n. 1, p. 93-105. https://doi.org/10.15210/tes.v7i1.14551
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). A obra é composta por diversos poemas curtos, em verso, que abordam diversos aspectos da vida rural — especialmente aqueles ligados ao nascimento e morte dos animais destinados à alimentação humana. O livro também é atravessado por um relato em prosa, o "diário de uma doula", no qual, junto à voz narrativa, é descrito o atendimento do veterinário que foi chamado à fazenda onde uma mulher lutava para salvar a vida da vaca que não conseguia parir o terneirinho natimorto.

Soledad Castresana, por sua vez, nasceu em 1979, na província de La Pampa, Argentina. Carneada, publicado em 2007, é seu primeiro livro e também se volta a uma paisagem rural, em que animais humanos e não humanos convivem em relações de grande proximidade. Neste livro, o contato com os animais é parte do cotidiano e, envolve tanto a geração de vida quanto de morte. A obra está dividida em três partes: "comportamiento animal", em que a descoberta da sexualidade marca toda a experiência e, se expande para além do humano; "debajo del cuero", em que a dureza e a violência da vida no campo, bem como, das hierarquias de gênero e espécie se apresentam; e "carneado", composta por dois longos poemas que descrevem detalhadamente a transformação de um porco em carne consumível.

Em seu artigo Por que olhar para os animais, o crítico de arte John Berger (2021)BERGER, John (2021). Por que olhar para os animais. São Paulo: Fósforo. analisa os apagamentos animais realizados por nossa cultura e destaca especialmente a dificuldade em aceitar as indeterminações (que ele denomina "dualismos") que atravessam tais relações. Animais são fonte de admiração, de afeto, de temor, de curiosidade, de alimentação, de transporte, de vestuário. Nossos sentimentos diante deles como conjunto — como aqueles que nos colocam frente à consciência intolerável, por vezes, de que somos seres vivos e, portanto, mortais — foram sendo continuamente categorizados, sistematizados, hierarquizados, higienizados e transformados em relações inequívocas, em que há apenas um sujeito (o humano).

Berger (2021)BERGER, John (2021). Por que olhar para os animais. São Paulo: Fósforo., à época da escrita do ensaio, em 1977, afirma que traços das indeterminações apontadas acima ainda

permanecem com aqueles que vivem intimamente com os animais e dependem deles. O camponês se afeiçoa a seu porco e fica satisfeito em salgar a carne deste mesmo animal. O que é significativo nessa frase, e de difícil compreensão para um forasteiro da cidade, é que as duas orações estão conectadas por um e e não por um mas (Berger, 2021BERGER, John (2021). Por que olhar para os animais. São Paulo: Fósforo., p. 21).

A mesma recusa de oposições simplificadoras é adotada pela voz poética de Carneada logo no começo do longo poema intitulado "amanecer", o primeiro dos dois textos que compõem a terceira e última parte de seu livro. Eis as estrofes iniciais do poema:

hay que revolver la sangre
en cruz
con una cuchilla
sin parar
mientras esté vivo
el cuero es duro
es dura la grasa
es duro atravesar
clavar hondo
¿quién que ha sido capado
puede soportar sin cagarse
ver la propia sangre
llenando una olla?
el último signo vital
se registra en el ano (Castresana, 2007CASTRESANA, Soledad (2007). Carneada. Córdoba: Alción., p. 47).

No início do poema, o animal ainda está vivo e é testemunha de sua morte. Interessante notar que, apesar de descrever sem quaisquer adjetivos (especialmente os de caráter afetivo) a morte do porco, a voz lírica não deixa de reconhecê-lo como sujeito ao perguntar sobre como reage diante de seu próprio sangue sendo vertido em uma panela.

Com base em Val Plumwood, a crítica argentina María Amelia Arancet Ruda (2019)RUDA, María Amelia Arancet (2019). Naturaleza e identidad en Carneada, de Soledad Castresana. In: CÁMPORA, Magdalena; PUPPO, María Lucía (org.). Dinámicas del espacio: reflexiones desde América Latina. Buenos Aires: Educa. p. 739-748. Disponível em: https://repositorio.uca.edu.ar/bitstream/123456789/9060/1/dinamicas-espacio-reflexiones-America.pdf. Acesso em: 17 nov. 2023.
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identifica no livro de Castresana uma ética multiespécies em que se é capaz de "manifestar apertura hacia el ser no-humano como un ser potencialmente intencionado y comunicativo, o sea, sujeto y no-objeto" (Arancet Ruda, 2019RUDA, María Amelia Arancet (2019). Naturaleza e identidad en Carneada, de Soledad Castresana. In: CÁMPORA, Magdalena; PUPPO, María Lucía (org.). Dinámicas del espacio: reflexiones desde América Latina. Buenos Aires: Educa. p. 739-748. Disponível em: https://repositorio.uca.edu.ar/bitstream/123456789/9060/1/dinamicas-espacio-reflexiones-America.pdf. Acesso em: 17 nov. 2023.
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, p. 745). Durante todo o livro, podemos ver esta abertura ao animal não humano, como é bem analisado pela pesquisadora argentina, que também chama a atenção para que tal postura também se mantenha no instante da morte. O "transformar o porco em carne"1 1 Referência ao título do poema seguinte: "y el cerdo se hizo carne". não será, pelo menos por parte da voz lírica, um processo de destituição das implicações éticas que residem no reconhecimento de um sujeito, mas antes um espaço em que os corpos humanos e não humanos encontram-se e misturam-se de forma muito profunda ("el filo es la forma de la mano").

A expressão com que se inicia o poema ("hay que") e que se repete por cinco vezes, é uma "construcción modal de obligación o necesidad" que confere o tom imperativo e pré-determinado às ações que se executam: os atos humanos são descritos sem sua agência ou volição, apenas como ações necessárias, em que não há qualquer reflexão (como poderemos confirmar no poema seguinte "y el cerdo se hizo carne"). A mudança de gênero (de carneada, no título do livro, para carneado, no título da seção) é importante, pois, ao mudar a palavra de gênero, Castresana (2007)CASTRESANA, Soledad (2007). Carneada. Córdoba: Alción. também limita seu significado: se "carneada" pode descrever uma ação, "carneado", por sua vez, é apenas a forma passiva do verbo "carnear". A agência humana é elidida e estamos diante de uma descrição de ações irrefletidas, apenas executadas.

Sobre a palavra que dá nome ao livro, Arancet Ruda (2019RUDA, María Amelia Arancet (2019). Naturaleza e identidad en Carneada, de Soledad Castresana. In: CÁMPORA, Magdalena; PUPPO, María Lucía (org.). Dinámicas del espacio: reflexiones desde América Latina. Buenos Aires: Educa. p. 739-748. Disponível em: https://repositorio.uca.edu.ar/bitstream/123456789/9060/1/dinamicas-espacio-reflexiones-America.pdf. Acesso em: 17 nov. 2023.
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, p. 740) escreve:

En tanto sustantivo, "carneada" refiere un trabajo campero específico. Suele decirse "Hoy hay carneada", y se sabe que ese día habrá un buen asado, hábito alimentario propio de la cultura argentina, quizá el más característico, lo cual no es un dato menor. En tanto adjetivo, más bien participio de pasado pasivo, significa que algo ha sido "herido, muerto y despedazado con un fin alimenticio". Finalmente, el verbo "carnear" alude a la acción de "matar y descuartizar un animal para aprovechar su carne" (RAE).

Todas as violentas ações descritas pela analista — matar, despedaçar, desmembrar — aparecem nos poemas. No entanto, cabe destacar que a dificuldade do processo não é ignorada — "el cuero es duro / es dura la grasa / es duro atravesar / clavar hondo", que é possível observar em "amanecer" (Castresana, 2007CASTRESANA, Soledad (2007). Carneada. Córdoba: Alción., p. 47-49). Além disso, o processo é acompanhado por outros animais, companheiros que também se alimentam da carne do porco, como nos versos abaixo:

hay que sacar los coágulos
con las manos
hay que tirarlos contra un árbol
para las gallinas
para alimentar la rapacidad
de las crías de chimangos
[…]
las gallinas enfrentan
la saliva de los perros
no distinguen lo fresco
de lo digerido (Castresana, 2007CASTRESANA, Soledad (2007). Carneada. Córdoba: Alción., p. 47-49).

Ao falar de espécies companheiras, Donna Haraway (2022HARAWAY, Donna (2022). Quando as espécies se encontram. São Paulo: Ubu., p. 28) faz questão de evocar a etimologia latina da palavra "companheiro": cum panis, "com pão". O companheirismo entre seres humanos e não humanos que atravessa o livro de Castresana não poderia deixar de fora o ato vital da alimentação, mas sem negar-se a enfrentar "a carne dos emaranhados mortais de fazer-mundo" (Haraway, 2022HARAWAY, Donna (2022). Quando as espécies se encontram. São Paulo: Ubu., p. 11), em que não nos furtamos à morte, mas nos implicamos de maneira responsável e atenta.

Podemos ler os dois poemas da última parte de Carneada como dois atos de uma mesma peça em que o protagonista, o porco, vai lentamente desaparecendo. Se em "amanhecer" o porco não é nomeado até o 33º dos 52 versos, no último poema do livro, "y el cerdo se hizo carne", ele aparece apenas no título — no corpo do poema, é apenas sua "carne" que será nomeada. Há um procedimento que se aproxima do apagamento do animal vivo que deu origem ao alimento, como criticado por Adams (2015ADAMS, Carol J. (2015). A política sexual da carne: a relação entre o carnivorismo e a dominância masculina. São Paulo: Alaúde.) e Despret (2021)DESPRET, Vinciane (2021). O que diriam os animais? São Paulo: Ubu., mas, diferentemente do processo de alienação que nos permite apagar o animal nos pedaços de carne que compramos no supermercado, os poemas de Castresana (2007)CASTRESANA, Soledad (2007). Carneada. Córdoba: Alción. expõem toda a dificuldade, violência, dureza e perigo envolvidos no processo de fazer do porco carne: "en la mano / se mezclan sangre del hombre y del cerdo" (Castresana, 2007CASTRESANA, Soledad (2007). Carneada. Córdoba: Alción., p. 51).

A construção modal de obrigação "hay que" também dá início ao poema, como no anterior, contudo este texto confere maior visibilidade aos seres humanos que realizam as ações. Se no poema anterior havia apenas uma breve menção ao "hombre que abre" o corpo do porco, aqui serão muitos os homens e mulheres implicados na produção de carne, descritos em seus mais diversos afazeres, bem como em sua socialidade, conforme é possível observar nos seguintes versos:

y el mate pasa
de mano ensangrentada
a boca sin manchas
de mano engrasada
a boca sin dientes (Castresana, 2007CASTRESANA, Soledad (2007). Carneada. Córdoba: Alción., p. 52).

Ainda que o porco tenha desaparecido, como mencionado anteriormente, sua existência de sujeito parece permanecer na carne, que "no assume / su condición / resiste" (Castresana, 2007CASTRESANA, Soledad (2007). Carneada. Córdoba: Alción., p. 51). As dificuldades no processo são ressaltadas pela repetição: o poema começa informando que "hay que hervir la grasa / durante cinco horas / revolviendo en círculos" (Castresana, 2007CASTRESANA, Soledad (2007). Carneada. Córdoba: Alción., p. 51) e, onze estrofes depois, volta a repetir que "hay que revolver / en círculos / durante cinco horas / para derretir" (Castresana, 2007CASTRESANA, Soledad (2007). Carneada. Córdoba: Alción., p. 53). Tal repetição enfatiza a dificuldade do processo e apresenta um importante contraste com as duas últimas estrofes do poema, que encerram também o livro:

en algunos lugares
las cosas son simples
la carne se corta (Castresana, 2007CASTRESANA, Soledad (2007). Carneada. Córdoba: Alción., p. 53).

Aqui, vemos uma clara crítica à disponibilidade de carne nos supermercados e, ao fato de que não apenas o animal vivo está ausente, mas também todo o árduo e perigoso trabalho de seres humanos (que, muitas vezes, compõem os setores mais precarizados da população2 2 Os impressionantes dados sobre a exploração de trabalhadoras e trabalhadores na produção de carne podem ser vistos no documentário Carne e osso (2011), produzido pela Repórter Brasil. ). Estes aparecem no poema como executantes de ações necessárias ("hay que"), mas que "não pensam": "el que corta / no piensa" (Castresana, 2007CASTRESANA, Soledad (2007). Carneada. Córdoba: Alción., p. 51); "las mujeres no piensan" (Castresana, 2007CASTRESANA, Soledad (2007). Carneada. Córdoba: Alción., p. 52); "el hombre que revuelve / no piensa" (Castresana, 2007CASTRESANA, Soledad (2007). Carneada. Córdoba: Alción., p. 53). Podemos observar nestes versos, não apenas a automatização (esperável) de quem realiza as mesmas tarefas com muita frequência, mas também uma recusa ao pensamento, seja ela motivada pelos indivíduos em tela (como forma de dessensibilização voluntária, que se torna necessária ao trato cotidiano com a morte) ou pelas más condições de trabalho em que se encontram.

Esta carne "desanimalizada", sem implicação e sem respons-habilidade3 3 Ao propor a grafia "respons-habilidade" (response-ability) para a palavra "responsabilidade" (responsability), Haraway (2022) nos convoca a pensar em nossa responsabilidade diante do outro, sempre um sujeito, em termos de nossa habilidade de responder a seu chamado, engajando-nos "responsivamente no olhar uns dos outros" (Haraway, 2022, p. 35). (Haraway, 2023HARAWAY, Donna (2023). Ficar com o problema: fazer parentes no Chthuluceno. São Paulo: N-1.) está marcada pelos apagamentos e violências que caracterizam a pecuária industrial. A este respeito, Raj Patel e Jason Moore (2017PATEL, Raj; MOORE, Jason W. (2017). A history of the world in seven cheap things: A guide to capitalism, nature, and the future of the planet. Berkeley: University of California Press., p. 161-162, grifos meus) escrevem que:

To those with a romantic view of where their food comes from, meat appears to be a raw ingredient rather than a processed one. Yet the industrial labor techniques of simplification, compartmentalization, and specialization first developed in sugar production have found their way into meat production too. […] The creation of markets for uniform grain and meat commodities — such as the Chicago Board of Trade — made it possible for these commodities to become not only cheap food but the backing for financial instruments. These instruments in turn require the uniformity, homogenization, and industrialization of the crops they transform. Such industry demands the invention of new veterinary practices-from intensive breeding to hormonal supplementation to antibiotic use to concentrated animal feeding operations — which have had globally transformative effects on the quality of food, soil, water, and air. Raw meat in the supermarket is, in other words, cooked up by a sophisticated and intensive arm of capitalism's ecology.

Diferentemente dos verbos evocados pelo termo "carnear", o vocabulário, agora, é de origem industrial, em que os processos de homogeneização, uniformidade e simplificação são fundamentais para a transformação de partes de corpos de animais vivos em mercadorias reguladas internacionalmente. A transformação de produtos agrícolas em mercadorias padronizadas, conhecidas como commodities, envolve, além da produção em grande escala regida por parâmetros definidos globalmente, a alienação dos produtores em relação ao preço, também estabelecidos em bolsas de mercadorias internacionais. Este sistema gera um modelo produtivo marcado pela massificação da produção e superexploração da mão de obra e dos recursos naturais envolvidos, como a água e a terra — os autores destacam que "14,5 por cento de todas as emissões antropogênicas de dióxido de carbono (CO2) provêm da produção pecuária" (Castresana, 2007CASTRESANA, Soledad (2007). Carneada. Córdoba: Alción., p. 162). No caso da pecuária industrial, além das graves consequências ambientais e sociais, a vida dos animais destinados ao consumo passa a ser vista apenas como parte do processo de confecção de mercadorias. Estes seres são confinados, amputados, reproduzidos em quantidades e condições complemente avessas aos ciclos naturais, alimentados com substâncias altamente processadas e, por fim, abatidos e desmembrados em unidades industriais — devidamente afastadas do olhar de quem os consome — que foram a inspiração para a criação da linha de montagem fordista. A eficiência na "desmontagem", ou seja, no apagamento dos corpos animais e sua transformação em mercadorias padronizadas, não pode ser dissociada da exploração da força de trabalho humana que também "desmonta" a relação entre a pessoa que trabalha e aquilo que produz (cf. Adams, 2015ADAMS, Carol J. (2015). A política sexual da carne: a relação entre o carnivorismo e a dominância masculina. São Paulo: Alaúde.; Patel; Moore, 2017PATEL, Raj; MOORE, Jason W. (2017). A history of the world in seven cheap things: A guide to capitalism, nature, and the future of the planet. Berkeley: University of California Press.).

Em Mugido [ou diário de uma doula], as questões relacionadas à transformação de animais em carne se espalham por todo o livro e são, muitas vezes, associadas à questão de gênero: seja numa comparação direta entre fêmeas humanas e não humanas, seja pela descrição da divisão sexual do trabalho na fazenda. Jacques Derrida (2018DERRIDA, Jacques (2018). "É preciso comer bem" ou o cálculo do sujeito. Revista Latinoamericana do Colegio Internacional de Filosofia, n. 3, p. 149-185.), pensando sobre o consumo de carne nas sociedades ocidentais, fala de uma "virilidade carnívora", que denomina "carno-falogocentrismo" (Derrida, 2018DERRIDA, Jacques (2018). "É preciso comer bem" ou o cálculo do sujeito. Revista Latinoamericana do Colegio Internacional de Filosofia, n. 3, p. 149-185., p. 178): "A força viril do macho adulto […] pertence ao esquema que domina o conceito de sujeito. Este não se pretende apenas mestre e proprietário da natureza. Nas nossas culturas, ele aceita o sacrifício e come a carne" (Derrida, 2018DERRIDA, Jacques (2018). "É preciso comer bem" ou o cálculo do sujeito. Revista Latinoamericana do Colegio Internacional de Filosofia, n. 3, p. 149-185., p. 179). E propõe a questão: "em nossos países, quem teria alguma chance de vir a ser um chefe de Estado e de aceder então ‘ao comando’ declarando-se publicamente, e, portanto, exemplarmente, vegetariano? O chefe deve ser comedor de carne" (Derrida, 2018DERRIDA, Jacques (2018). "É preciso comer bem" ou o cálculo do sujeito. Revista Latinoamericana do Colegio Internacional de Filosofia, n. 3, p. 149-185., p. 179). O vegetarianismo, como bem demonstrado por Carol Adams em A política sexual da carne (2015)ADAMS, Carol J. (2015). A política sexual da carne: a relação entre o carnivorismo e a dominância masculina. São Paulo: Alaúde., é visto como uma feminização indesejável e, a virilidade se afirma com base no consumo do corpo do outro: seja um animal não humano, seja uma fêmea humana.

Na obra de Kosby (2017)KOSBY, Marília Floôr (2017). Mugido [ou diário de uma doula]. Rio de Janeiro: Edições Garupa., uma aliança entre fêmeas de diversas espécies ressalta as conexões indicadas acima. Na entrevista que encerra a primeira edição do livro, a autora afirma:

A mulher do campo, que convive tão próxima a esses animais de criação — que são aqueles que a gente também come — que os vê morrer, copular, parir, tem uma experiência transespecífica com os corpos das outras mamíferas que é visceral. São fêmeas todas, a mulher reconhece seu útero, suas tetas, sua vagina, sua libido, seu fenecer, pelas vacas, as porcas, as cabras. Elas falam de si pelas outras e vice-versa (Kosby, 2017KOSBY, Marília Floôr (2017). Mugido [ou diário de uma doula]. Rio de Janeiro: Edições Garupa., p. 115).

Esta relação entre fêmeas de distintas espécies aparece, no poemário de Soledad Castresana (2007)CASTRESANA, Soledad (2007). Carneada. Córdoba: Alción., majoritariamente pela via da violência: as éguas, subsumidas nos muitos "cavalos" — este masculino supostamente neutro — presentes no livro, têm seu gênero explicitado em apenas dois poemas, nos quais há referência à violência sexual, "un paseo por el bosque" (Castresana, 2007CASTRESANA, Soledad (2007). Carneada. Córdoba: Alción., p. 32) e "charco en calma" (Castresana, 2007CASTRESANA, Soledad (2007). Carneada. Córdoba: Alción., p. 39). A dor animal aparece como substituta à dor da mulher, sendo indicação não apenas de que as violências especistas e de gênero estão profundamente conectadas, mas também do silenciamento a que estão submetidas as mulheres vítimas de violência sexual. No primeiro poema mencionado acima, vemos que "las ramas herían / los costados de la yegua" (Castresana, 2007CASTRESANA, Soledad (2007). Carneada. Córdoba: Alción., p. 32). A mulher — possivelmente ainda uma menina, pois "todavía / no llegaba a los estribos" (Castresana, 2007CASTRESANA, Soledad (2007). Carneada. Córdoba: Alción., p. 32) — está paralisada, "los párpados duros" e, não consegue sequer protestar: "no dijo nada" (Castresana, 2007CASTRESANA, Soledad (2007). Carneada. Córdoba: Alción., p. 32). Já em "charco en calma", mulher e égua se confundem — "sudor de mujer y de yegua / confunden el cuero" (Castresana, 2007CASTRESANA, Soledad (2007). Carneada. Córdoba: Alción., p. 39) — e o ser que é objeto de violência torna-se apenas "hembra", remetendo às tradicionais formas de apagamento da humanidade de mulheres quando sua conduta sexual não é considerada em conformidade com as regras estabelecidas pela sociedade patriarcal.

Ainda que a violência de gênero também faça parte das questões abordadas pelos poemas de Mugido, como no poema "[mulher]" (Kosby, 2017KOSBY, Marília Floôr (2017). Mugido [ou diário de uma doula]. Rio de Janeiro: Edições Garupa., p. 67), as complexas e intrincadas relações entre fêmeas de diversas espécies abrange um universo de experiências mais vasto, como no poema "[angélica]", que começa interpelando a poeta Angélica Freitas, conhecida autora do livro Um útero é do tamanho de um punho.

O poema começa descrevendo as dificuldades relacionadas ao parto de uma vaca — "o parto de uma vaca / não é uma coisa / simples / envolve um útero / imenso / que rebenta" — e a necessidade de alguém com "punhos / firmes / finos porém" (Kosby, 2017KOSBY, Marília Floôr (2017). Mugido [ou diário de uma doula]. Rio de Janeiro: Edições Garupa., p. 29). Num segundo momento, segue descrevendo o que é necessário para matar uma vaca:

matar uma vaca
não é
uma coisa simples
requer um tiro
certeiro
alto calibre
o ponto preciso longe
no meio da testa
dois cavalos três
ou quatro homens
um guri
quem sabe uma mulher
carnear uma vaca
exige sangrá-la até a última gota
para que a carne
não termine
preta
sangrar uma vaca
é para exímios
comer uma vaca porém (Kosby, 2017KOSBY, Marília Floôr (2017). Mugido [ou diário de uma doula]. Rio de Janeiro: Edições Garupa., p. 29-30).

Além de uma alusão ao chamado "ciclo da vida", com imagens de nascimento e morte, também é possível identificar, no poema, a dupla função da vaca: como gado que produz mais gado e como reserva de carne para o consumo humano. Sua vida parece só ter valor enquanto bem de consumo (ou produtora de bens de consumo — e, aqui, não se fala da produção de leite, outro importante "uso" das vacas): em poema posterior, aprendemos que "a vaca a gente deixa durar uns dez anos / porque pare / o boi vive de três a dois na pecuária de corte" (Kosby, 2017KOSBY, Marília Floôr (2017). Mugido [ou diário de uma doula]. Rio de Janeiro: Edições Garupa., p. 75). Este raciocínio gera uma lógica econômica em que os animais deixam de ser considerados como seres vivos e passam a ser "produzidos como bens de consumo" (Despret, 2021DESPRET, Vinciane (2021). O que diriam os animais? São Paulo: Ubu., p. 148). Martha Alkimin (2021)ALKIMIN, Martha (2021). Êxodo, desnatureza e outras paisagens éticas na poesia de Marília Floôr Kosby. Texto Poético, v. 17, n. 33, p. 98-109. https://doi.org/10.25094/rtp.2021n33a781
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, ao analisar este poema, afirma que ele nos apresenta uma "reflexão ético-política que tensiona a discriminação e o suposto direito da espécie humana de explorar, escravizar e matar as demais espécies de animais por considerá-las inferiores". E conclui que "as vacas e as mulheres, como animais de uma espécie inferior aos olhos do patriarcado, são mercadorias de que se pode dispor, apropriar-se e matar" (Alkimin, 2021ALKIMIN, Martha (2021). Êxodo, desnatureza e outras paisagens éticas na poesia de Marília Floôr Kosby. Texto Poético, v. 17, n. 33, p. 98-109. https://doi.org/10.25094/rtp.2021n33a781
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, p. 105).

No entanto, assim como em Castresana (2007)CASTRESANA, Soledad (2007). Carneada. Córdoba: Alción., a voz poética não permite o apagamento da vaca e nos mostra as relações entre esta e nossa espécie: seja no parir, seja no morrer. A vaca não é apagada, pelo contrário, as relações que cercam o manejar sua vida e morte exigem saberes e corpos específicos (os punhos firmes e finos necessários ao parto; a força de homens e cavalos necessária para matá-la e o saber "exímio" exigido ao carneá-la). Já o consumo da carne, a mercadoria final, é criticado, assim como na obra da poeta argentina, por permitir o apagamento de todos os complexos emaranhados de vida e morte decorrentes dos modos tradicionais de "lida campeira" (Kosby, 2019KOSBY, Marília Floôr (2019). Mulheres, vacas e partos nas pecuárias do Extremo Sul do Brasil: relações transespecíficas a partir do encontro entre Antropologia e epistemologias feministas. Tessituras, v. 7, n. 1, p. 93-105. https://doi.org/10.15210/tes.v7i1.14551
https://doi.org/10.15210/tes.v7i1.14551...
). Diferentemente, no abate industrial, centenas, às vezes milhares, de animais são mortos num único dia, numa organização industrial do trabalho, como vimos4 4 Para uma descrição comparativa dos métodos de abate no Brasil e em outros países, cf. (Roça, 2006). Para uma abordagem literária da vida de pessoas e bovinos em um matadouro, cf. o romance de Ana Paula Maia (2013), De gados e homens. .

A relação entre a alimentação e a morte volta a aparecer em outro poema de Mugido, com referência à "ciência de se comer uma vaca". Podemos ler os dois poemas em paralelo, pensando que o "porém" com que é finalizado o poema anterior alude ao saber reivindicado no poema analisado agora:

e o coração de uma vaca sem nome
será que se come?
a ciência de se comer uma vaca
um quilo e tantos dentro do peito
cinco reais e treze centavos
por quatrocentos gramas
no balcão do supermercado
no estômago pesa
o que não se sente bater
do matambre ao coração
a cidade se encheu de moscas
porque se encheu de sangue (Kosby, 2017KOSBY, Marília Floôr (2017). Mugido [ou diário de uma doula]. Rio de Janeiro: Edições Garupa., p. 39).

O saber relacionado à lida com os animais — inclusive aquele necessário para transformá-los em carne — contrasta, nestes poemas, com o simples ato de comprar a carne no mercado. Comprar a carne já pré-processada no supermercado ou já ultraprocessada e transformada num hambúrguer vendido por uma cadeia transnacional de fast-food permite que ignoremos os saberes, as linguagens, a materialidade da vida e da morte. Podemos reduzir a vaca à picanha, acém, patinho — desarticulamos o corpo da vaca, para não precisarmos desarticular nossa relação com este ser e, menos ainda, nossa relação com sua morte. O animal vivo desaparece de nossa experiência alimentar cada vez mais asséptica e envolta por embalagens plásticas que garantem a "higiene das carnes no supermercado" (Kosby, 2017KOSBY, Marília Floôr (2017). Mugido [ou diário de uma doula]. Rio de Janeiro: Edições Garupa., p. 99).

Os animais e seus corpos se transformam no "referente ausente" de nossos pratos, aquilo que "está ao mesmo tempo presente e não presente. Está presente por meio da inferência, mas sua significação se reflete apenas naquilo a que ele se refere, porque a experiência que lhe deu origem, literal, que fornece o significado, não está presente" (Adams, 2015ADAMS, Carol J. (2015). A política sexual da carne: a relação entre o carnivorismo e a dominância masculina. São Paulo: Alaúde., p. 87). Esta experiência de apagamento — ou de ignorância e esquecimento, como as denomina Despret (2021)DESPRET, Vinciane (2021). O que diriam os animais? São Paulo: Ubu. — normaliza a violência implícita ao ato de consumir carne, transformando o sacrifício de uma vida em um ato supostamente inocente, em que já não nos sentimos implicados. Tal normalização da violência, aponta Adams (2015)ADAMS, Carol J. (2015). A política sexual da carne: a relação entre o carnivorismo e a dominância masculina. São Paulo: Alaúde., participa da normalização da violência de gênero dentro de nossa própria espécie, já que "por meio da função do referente ausente, a cultura ocidental constantemente converte a realidade material da violência em metáforas controladas e controláveis" (Adams, 2015ADAMS, Carol J. (2015). A política sexual da carne: a relação entre o carnivorismo e a dominância masculina. São Paulo: Alaúde., p. 88).

O poema "[mulher]", de Marília Floôr Kosby, assim como os já citados de "un paseo por el bosque" e "charco en calma", de Soledad Castresana (2007)CASTRESANA, Soledad (2007). Carneada. Córdoba: Alción., nos permite entender melhor como o apagamento dos animais não humanos enquanto sujeitos se relaciona ao apagamento de mulheres humanas como sujeitos:

mulher
tu me faz uma galinha com arroz
que eu passei a noite depenando
depenando bichos decepados
mulher
me faz uma galinha com arroz
que eu passei a noite
escaldando pés
de bichos mutilados
mulher não tira essa mão daqui
que a noite andava fria
e essas tuas mãozinhas
tão mais destras que as minhas
passam a noite
me apartando o fel
do que é de se comer (Kosby, 2017KOSBY, Marília Floôr (2017). Mugido [ou diário de uma doula]. Rio de Janeiro: Edições Garupa., p. 67).

Neste poema, a voz masculina de um trabalhador da produção de carne, depois de passar a noite depenando e mutilando animais, pede a uma mulher — sem nome, identificada apelas pelo gênero — que lhe cuide. A mulher cuida de suas necessidades alimentares e sexuais, mas também psicológicas, pois cabe a ela a tarefa de "adoçar" sua vida, apartando-lhe do fel "do que é de se comer". Somente há a voz masculina, enunciando desejos facilmente compreensíveis, depois de um, possivelmente longo e pesado, dia de trabalho em que a morte e a violência se transformam em atos cotidianos. O apagamento da mulher, no entanto, é bastante significativo, visto que não sabemos o que fez de seu dia, o que deseja, o que necessita.

Seguindo a análise de Adams (2015)ADAMS, Carol J. (2015). A política sexual da carne: a relação entre o carnivorismo e a dominância masculina. São Paulo: Alaúde., vemos que ocorre uma dessensibilização para o outro, pois a mulher deixa de ser vista como um sujeito e, assim como os animais não humanos, só interessa na medida em que serve ao homem — aquele que se julga responsável pela manutenção financeira da família, obscurecendo todo o trabalho reprodutivo gratuito realizado pela mulher (Federici, 2021FEDERICI, Silvia (2021). O patriarcado do salário: notas sobre Marx, gênero e feminismo. São Paulo: Boitempo.). A mulher, assim como os bichos, é mutilada, pois, dela, só sabemos o que fazem "suas mãozinhas", num desmembramento e apagamento bastante significativos.

Em seu livro Quando as espécies se encontram, Donna Haraway (2022)HARAWAY, Donna (2022). Quando as espécies se encontram. São Paulo: Ubu. propõe a grafia "re-member" para a palavra inglesa "remember" (lembrar). Ao desmembrar a palavra, a autora propõe a memória, o ato de rememorar, como uma ação de recorporificação e rematerialização do sujeito ausente: "Para vir a aceitar o desmembramento do corpo, preciso re-membrar [re-member] seu devir. Preciso reconhecer todos os membros, animados e inanimados, que compõem uma determinada vida" (Haraway, 2022HARAWAY, Donna (2022). Quando as espécies se encontram. São Paulo: Ubu., p. 228). A autora propõe que a ética seja corporificada e situada, pois "os parceiros não precedem o encontro" (Haraway, 2022HARAWAY, Donna (2022). Quando as espécies se encontram. São Paulo: Ubu., p. 11), mas são moldados pela relação, num "emaranhado vital de escalas heterogêneas, tempos e tipos de seres enredados em presença carnal, sempre um devir, sempre constituído em relação" (Haraway, 2022HARAWAY, Donna (2022). Quando as espécies se encontram. São Paulo: Ubu., p. 228).

Com base nessas considerações sobre a materialidade corporificada de nossas relações, podemos retornar à crítica apresentada pelas duas poetas aos modos "desincorporados" de consumo de carne que vêm se tornando o padrão em nossas sociedades. Reafirmar os laços entre comer e matar é importante, pois nos convoca a pensar as mortes que propiciam a manutenção de nossas vidas e demanda que nos coloquemos diante delas de modo responsável:

Não há como comer e não matar, não há como comer e não devir com outros seres mortais diante dos quais somos responsáveis, não há como fingir inocência ou transcendência ou uma paz final. Que comer e matar não possam ser higienicamente separados não significa que qualquer forma de comer e matar seja boa ou simplesmente uma questão de gosto e cultura. Os modos multiespécies humanos e não humanos de viver e morrer estão em jogo nas práticas de comer (Haraway, 2022HARAWAY, Donna (2022). Quando as espécies se encontram. São Paulo: Ubu., p. 387-388, grifos meus)

Kosby (2017)KOSBY, Marília Floôr (2017). Mugido [ou diário de uma doula]. Rio de Janeiro: Edições Garupa. e Castresana (2007)CASTRESANA, Soledad (2007). Carneada. Córdoba: Alción., ao recusarem o apagamento do animal que se tornará alimento, recusam também o apagamento de diversas formas de violência. As autoras também celebram as alianças mais que humanas, através das quais o reconhecimento de nossa precariedade é parte fundamental de relações afetivas marcadas por indeterminações e por uma complexa manifestação de responsabilidades, em que não nos furtamos a encarar nossas práticas de vida e morte diante de outras espécies. Do desmembramento dos corpos não humanos em pedaços de carne irreconhecíveis (filé, hambúrguer, salsicha, etc.), passamos ao re-membramento dos corpos de animais não humanos e fêmeas humanas enquanto sujeitos para além de sua utilidade, seja na reprodução ou no fornecimento de proteína5 5 E é interessante notar que, num processo de higienização com ares supostamente científicos, a palavra "carne" venha desaparecendo do vocabulário alimentar em prol de uma "proteína" que apaga ainda mais profundamente sua relação com os corpos de animais vivos. .

Diante do incomensurável número de animais mortos todos os anos para consumo humano, Vinciane Despret (2021)DESPRET, Vinciane (2021). O que diriam os animais? São Paulo: Ubu. afirma que precisamos inventar uma maneira de honrar essas mortes (e essas vidas) através de uma

atenção às palavras, às maneiras de dizer que legitimam maneiras de fazer e de ser; […] que duvidemos, que inventemos tropos — como a etimologia nos lembra, que tropecemos —, que cultivemos homônimos capazes de nos lembrar que nada é óbvio, que nem tudo "dispensa palavras" (Despret, 2021DESPRET, Vinciane (2021). O que diriam os animais? São Paulo: Ubu., p. 150).

Castresana (2007)CASTRESANA, Soledad (2007). Carneada. Córdoba: Alción. e Kosby (2017)KOSBY, Marília Floôr (2017). Mugido [ou diário de uma doula]. Rio de Janeiro: Edições Garupa. atendem a esse pedido: inventam imagens, imaginários, em que as palavras nomeiam as ações mais brutais, sem se desviarem de um olhar para o outro não humano que jamais deixará de reconhecê-lo como um sujeito, com um companheiro mortal com o qual nos tornamos seres mortais e responsáveis.

Notas

  • 1
    Referência ao título do poema seguinte: "y el cerdo se hizo carne".
  • 2
    Os impressionantes dados sobre a exploração de trabalhadoras e trabalhadores na produção de carne podem ser vistos no documentário Carne e osso (2011CARNE E OSSO. Direção: Caio Cavechini e Carlos Juliano Barros. Roteiro e edição: Caio Cavechini. Fotografia: Lucas Barreto. Pesquisa: André Campos e Carlos Juliano Barros. Produção Executiva: Maurício Hashizume. Duração: 65 min. Realização: Repórter Brasil, 2011. Disponível em https://www.youtube.com/watch?v=887vSqI35i8. Acesso em: 17 nov. 2023.
    https://www.youtube.com/watch?v=887vSqI3...
    ), produzido pela Repórter Brasil.
  • 3
    Ao propor a grafia "respons-habilidade" (response-ability) para a palavra "responsabilidade" (responsability), Haraway (2022)HARAWAY, Donna (2022). Quando as espécies se encontram. São Paulo: Ubu. nos convoca a pensar em nossa responsabilidade diante do outro, sempre um sujeito, em termos de nossa habilidade de responder a seu chamado, engajando-nos "responsivamente no olhar uns dos outros" (Haraway, 2022HARAWAY, Donna (2022). Quando as espécies se encontram. São Paulo: Ubu., p. 35).
  • 4
    Para uma descrição comparativa dos métodos de abate no Brasil e em outros países, cf. (Roça, 2006ROÇA, Roberto de Oliveira (2006). Abate de bovinos. In: CONGRESSO BRASILEIRO DE MEDICINA VETERINÁRIA, 33., 2006, Cuiabá. Anais […]. Cuiabá. Disponível em: https://www.fca.unesp.br/Home/Instituicao/Departamentos/Gestaoetecnologia/Teses/Roca103.pdf. Acesso em: 17 nov. 2023.
    https://www.fca.unesp.br/Home/Instituica...
    ). Para uma abordagem literária da vida de pessoas e bovinos em um matadouro, cf. o romance de Ana Paula Maia (2013MAIA, Ana Paula (2013). De gados e homens. Rio de Janeiro: Record.), De gados e homens.
  • 5
    E é interessante notar que, num processo de higienização com ares supostamente científicos, a palavra "carne" venha desaparecendo do vocabulário alimentar em prol de uma "proteína" que apaga ainda mais profundamente sua relação com os corpos de animais vivos.

Referências

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  • CARNE E OSSO. Direção: Caio Cavechini e Carlos Juliano Barros. Roteiro e edição: Caio Cavechini. Fotografia: Lucas Barreto. Pesquisa: André Campos e Carlos Juliano Barros. Produção Executiva: Maurício Hashizume. Duração: 65 min. Realização: Repórter Brasil, 2011. Disponível em https://www.youtube.com/watch?v=887vSqI35i8 Acesso em: 17 nov. 2023.
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    » https://doi.org/10.15210/tes.v7i1.14551
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    » https://repositorio.uca.edu.ar/bitstream/123456789/9060/1/dinamicas-espacio-reflexiones-America.pdf
Editores: Paulo César Thomaz e Leila Lehnen

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    30 Ago 2024
  • Data do Fascículo
    2024

Histórico

  • Recebido
    20 Fev 2024
  • Aceito
    19 Jun 2024
Grupo de Estudos em Literatura Brasileira Contemporânea, Programa de Pós-Graduação em Literatura da Universidade de Brasília (UnB) Programa de Pós-Graduação em Literatura, Departamento de Teoria Literária e Literaturas, Universidade de Brasília , ICC Sul, Ala B, Sobreloja, sala B1-8, Campus Universitário Darcy Ribeiro , CEP 70910-900 – Brasília/DF – Brasil, Tel.: 55 61 3107-7213 - Brasília - DF - Brazil
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