Resumo
Neste texto, resenhamos o livro O mundo desdobrável: ensaios para depois do fim, da escritora brasileira Carola Saavedra. Procuramos mostrar como os ensaios contidos na obra desdobram a questão “o que pode a literatura?”. Fazemos ainda alguns apontamentos sobre o que chamamos incoerência teórica da obra, indicando, ao final, as possibilidades que Saavedra vislumbra para a literatura dos próximos anos.
Palavras-chave Carola Saavedra; ensaio; literatura contemporânea; literatura brasileira
Abstract
This work brings the review of the book O mundo desdobrável: ensaios para depois do fim, by the Brazilian writer Carola Saavedra. It attempts to show how Saavedra’s essays unfold the question “What can literature do?”. We also comment what we call the “theoretical incoherence” of the book, indicating, in the end, the possibilities Saavedra glimpses for the literature in the coming years.
Keywords: Carola Saavedra; essay; contemporary literature; Brazilian literature
Resumen
Este texto es una reseña del libro O mundo desdobrável: ensaios para depois do fim, de la escritora brasileña Carola Saavedra. Se intentó mostrar cómo los ensayos contenidos en la obra despliegan la pregunta “¿Qué puede hacer la literatura?”. Hacemos también algunos apuntes sobre lo que llamamos “inconsistencia teórica” de la obra, indicando, al final, las posibilidades que vislumbra Saavedra para la literatura de los próximos años.
Palabras clave: Carola Saavedra; ensayo; literatura contemporánea; literatura brasileña
O mundo desdobrável: ensaios para depois do fim é a primeira incursão de Carola Saavedra no gênero ensaístico. O livro foi lançado pela editora Relicário, na coleção Nosotras, cuja proposta é viabilizar diálogos plurais por meio de textos de mulheres brasileiras e hispanofalantes. Além da obra de Saavedra, que é uma brasileira nascida no Chile, a coleção já conta com títulos da argentina Sylvia Molloy, da chilena Lina Meruane e da mexicana Margo Glantz.
No prólogo à obra, Saavedra apresenta a grande questão que alinhava os textos ali reunidos: “o que pode a literatura?”. Poucos trechos do livro respondem diretamente a essa pergunta; na verdade, em diversos momentos a autora parece se afastar da dúvida que ela mesma formulou. Assim, escreve sobre visitas a museus, frases que a acompanham, filmes a que assistiu, permacultura, feminismo e Antropoceno, entre inúmeros outros assuntos. O caso é que, ao investigar o que pode a literatura, a escritora tem um contexto muito específico em mente: a contemporaneidade — ou, se preferirmos, o fim do mundo. Daí que seja inviável discutir as possibilidades da palavra literária — ou da metáfora, nos termos de Saavedra — sem fazer também uma série de desvios e comentários à margem. Como ela mesma esclarece no prólogo, a pergunta “o que pode a literatura?” deve ser alargada; é preciso perguntar mais: “O que pode a literatura em um mundo em colapso, assombrado pelo aquecimento global, pandemias, ascensão da extrema-direita, aumento da miséria, entre outras tragédias?” (Saavedra, 2021, p. 9).
Além da pergunta que norteia os ensaios de O mundo desdobrável, diversas outras questões reivindicam a atenção do leitor nas cerca de 200 páginas da obra. Em grande medida, para Saavedra (2021), formular uma questão com precisão é mais importante do que responder a ela: “O sucesso do oráculo está justamente aí, na pergunta” (Saavedra, 2021, p. 190). O apelo dessa posição se deve à subversão daquele paradigma racionalista — ilustrado pela trágica convicção decifradora de Édipo (Agamben, 2007) — para o qual a resposta, e não a pergunta, é a medida de todas as coisas. Ao tomarmos o partido da arte de elaborar enigmas, e não o da arte da decifração, podemos nos empenhar, por exemplo, em formular problemas que suportem muitas soluções diferentes, mas nenhuma definitiva. Tais problemas nos possibilitam ser profícuos e prolixos, desviar do tema, nos perder em digressões e volteios, elementos importantes para a elaboração de soluções criativas. Nesse tipo de resposta oferecido por Saavedra (2021), a amarração do argumento e a coerência teórica valem menos do que o prazer advindo das suposições, do desdobramento das frases e das retomadas de um mesmo tema por diferentes perspectivas (a autora utiliza a imagem de uma espiral, em que, a cada volta, se chega a um ponto que é e não é o mesmo). Mas talvez o aspecto mais notável dessa arte de formular questões exatas para obter respostas imprecisas seja a possibilidade de levar a cabo esta difícil confissão: não sabemos a resposta.
Os ensaios de Saavedra (2021) são fragmentados, embora reunidos sob títulos que indicam uma temática aglutinante. Por exemplo, “Um teto todo nosso” tem o feminismo como foco, enquanto “Por uma literatura expandida” discorre sobre o potencial de uma literatura capaz de deixar de lado gêneros textuais, interpretações peremptórias e individualismos. Cada um dos fragmentos que compõem um ensaio recebe um subtítulo, e alguns dos fragmentos retomam textos já iniciados. Em “Um teto todo nosso”, por exemplo, Saavedra (2021) escreve um sucinto “Folhetim do século XIX”, que é intercalado com outros textos curtos.
Autores os mais distintos compõem o inventário de referências (para utilizar um termo que aparece no título de outra obra de Carola) apresentado em O mundo desdobrável, e em parte é por isso que se pode falar em alguma coisa como incoerência teórica: recorrendo a figuras tão diversas quanto Lacan e Antonio Candido, Susan Sontag e Carolina Maria de Jesus, Ricardo Piglia e Ailton Krenak, Saavedra (2021) parece pôr em prática algumas das posições centrais que assume nos ensaios: a lógica racionalista do terceiro excluído deve ser contestada em favor de um pensamento plural e contraditório; a ficção pode, sim, nos ajudar a criar uma origem e um futuro; e é preciso repensar as fronteiras entre nós e os outros, o que implica reavaliar não apenas o cânone, mas também os valores que o sustentam, como a ideia de valor estético.
Para o leitor familiarizado com a atual produção acadêmica das humanidades, esses temas, em grande medida fomentados pelo grande nó ocidental entre os estudos culturais, desconstrução e psicanálise, não são novidade, e é provável que essa categoria de leitor não considere os apontamentos de Saavedra (2021) especialmente originais ou reveladores. Em certos casos algumas observações podem soar até mesmo ingênuas, ainda mais quando consideradas em relação à obra de intelectuais que a própria autora cita.
Para ficarmos em um exemplo, no ensaio “Um teto todo nosso”, a escritora conta que, num evento de literatura, se viu impossibilitada de dizer que Clarice Lispector integrava o rol dos melhores escritores brasileiros por uma inviabilidade linguística:
Lembro que eu queria expressar a seguinte ideia, que Clarice Lispector era uma das melhores escritoras brasileiras, só que, ao fazê-lo, me acontecia o que me acontece aqui. Ao dizer “melhores escritoras”, eu imediatamente a restringia às escritoras do sexo feminino, o que não era a minha intenção (Saavedra, 2021, p. 50).
Esta é uma questão polêmica: a língua é marcada pela misoginia, pelo preconceito? Ela limita o sujeito ao forçá-lo a se expressar conforme regras incontornáveis? Seguindo premissas da análise do discurso e da desconstrução, há quem ache que sim, o que explica a proliferação de termos “neutros” nos últimos anos, de modo especial nas redes sociais, mas será que a língua é, como disse Barthes (2013), fascista, porque feita de infinitos “necessários” que nos obrigam a falar de formas determinadas? Ou ela guarda em si também a potência das metáforas e dos deslocamentos capazes de enriquecer a nossa existência — fenômeno que Barthes (2013), também, chamou de “literatura”?
Pode-se pensar, com Lacan, autor citado em outras passagens de O mundo desdobrável, que, se foi possível a Saavedra (2021) formular gramaticalmente a crítica da gramática, é porque seu pensamento não é de fato “indizível”, isto é, impossível de ser simbolizado. Pois a língua portuguesa, enquanto sistema que “fornece a condição de possibilidade para a estruturação de toda e qualquer experiência social” (Safatle, 2017, p. 46, grifo do original), embora com regras que definem a flexão em gênero, ainda nos permite uma efabulação e uma textualização mais potentes do que Saavedra (2021) parece supor. Há em sua reflexão uma clara contradição — nem sempre produtiva — entre a forma e o conteúdo: embora afirme que não é possível “dizer” em uma única frase que “Clarice Lispector é um dos melhores escritores brasileiros” sem transgredir as normas da língua, nada a impediu de contornar tal impossibilidade textualmente por meio das próprias possibilidades simbólicas da língua.
Em um âmbito mais empírico, poderíamos perguntar: por que insistir nas “impossibilidades” de uma única frase que pode ser facilmente substituída por “Clarice Lispector está entre os melhores escritores brasileiros”? Sim, também com Lacan (1985, p. 127), sabemos que toda a linguagem se estrutura em torno desse grão de real que “não cessa de não se escrever”, mas é preciso tomar cuidado para não cairmos numa posição melancólica que introjeta a impossibilidade do real como uma impotência do Eu. Ou, nos termos de Agamben (2015), é um erro confundir o não poder (o impossível de se realizar) com o poder não (o que se guarda como pura potência e, contingentemente, pode passar ao ato).
Seguindo a típica estrutura melancólica de oscilação intermitente entre o êxtase quente e a impotência fria, a insistência de Saavedra (2021) em assinalar as inviabilidades da linguagem (ou do Eu que a escreve?) parece se contrapor às propostas que percorrem os textos de O mundo desdobrável, nas quais as vias da literatura (e da linguagem) são exploradas e exaltadas. Como diz um Barthes (1988, p. 68) — outro grande crente na potência dos enigmas desdobráveis —, “não se pode destruir um código, pode-se apenas ‘jogar’ com ele”. Precisamente, o poder da literatura é o de traçar esse desvio, esse contorno, esse deslocamento. Insistir melancolicamente que uma forma específica do dizer é impossível nos parece contraditório com a lição geral de O mundo desdobrável: a de que a arte oracular de produzir enigmas se sustenta precisamente nesse passe de mágica chamado metáfora/literatura, que desdobra o um em dois, o necessário em contingente, a impotência em potência de não.
“Todas as histórias já foram contadas?”, Saavedra (2021, p. 61) pergunta-se em dado momento, e essa talvez seja a única questão, no livro todo, para a qual seria adequada uma única resposta: não, ainda há histórias a se contar, histórias sobre mães, sobre menopausa, sobre indígenas, sobre o que significa ser uma mulher negra, um homem ou uma mulher trans. Caso ainda estejamos aqui depois do fim, narrar será o ato derradeiro, um modo de lembrar tudo o que somos e de onde viemos. Ludibriar a morte, ensinam figuras tão distintas (será?) quanto Krenak, Sherazade e Aquiles, é ter sempre uma história para contar. Nesse empreendimento, a escrita — e é da perspectiva de uma escritora que Carola Saavedra se apresenta nessa obra — é um elemento muito valioso, pois por meio dela é possível saber o que ainda não se sabe, articular mais uma história, denominar o que antes era inominável: a literatura “como forma de colocar palavras onde antes havia o nada ou apenas um contorno” (Saavedra, 2021, p. 187).
Referências
- AGAMBEN, Giorgio (2007). Estâncias: a palavra e o fantasma na cultura ocidental. Belo Horizonte: Editora UFMG.
- AGAMBEN, Giorgio (2015). Bartleby, ou da contingência Belo Horizonte: Autêntica.
- BARTHES, Roland (1988). A morte do autor. In: BARTHES, R. O rumor da língua São Paulo: Brasiliense. p. 65-70.
- BARTHES, Roland (2013). Aula: aula inaugural da cadeira de semiologia literária do Colégio de França, pronunciada no dia 7 de janeiro de 1977. São Paulo: Cultrix.
- LACAN, Jacques (1985). O seminário, livro 20: mais, ainda. Rio de Janeiro: Jorge Zahar.
- SAAVEDRA, Carola (2021). O mundo desdobrável: ensaios para depois do fim. Belo Horizonte: Relicário. (Coleção Nosotras.)
- SAFATLE, Vladimir (2017). Introdução a Jacques Lacan. 4. ed. Belo Horizonte: Autêntica. (Coleção Filô Margens.)
Datas de Publicação
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Publicação nesta coleção
05 Jun 2023 -
Data do Fascículo
2023
Histórico
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Recebido
27 Nov 2022 -
Aceito
26 Jan 2023