Resumo
O artigo examina a obra Banzeiro òkòtó: uma viagem à Amazônia centro do mundo, de Eliane Brum (2021) — a partir das ideias de futuro ancestral, do pensador indígena Ailton Krenak, da disputa contemporânea sobre a memória do passado e da herança colonial — e a discussão sobre a subjetividade e a desconstrução da concepção cartesiana de corpo e mente como instituições separadas e hierarquicamente estabelecidas. A partir desses pontos, o trabalho busca compreender a ideia de "amazonizar-se" proposta pela autora e as implicações dessa mudança de concepção subjetiva em um projeto de descolonização e aproximação dos povos da floresta.
Palavras-chave: banzeiro; òkótó; futuro ancestral; Amazônia; floresta; subjetividade
Abstract
The article examines the work Banzeiro òkòtó: uma viagem à Amazônia centro do mundo, by Eliane Brum (2021), based on the ideas of ancestral future from Indigenous thinker Ailton Krenak, the contemporary dispute over the memory of the past and colonial heritage. It also discusses subjectivity and the deconstruction of the Cartesian conception of body and mind as separate and hierarchically established institutions. From these points, the work seeks to understand the idea of "amazonizing oneself" proposed by the author and the implications of this shift in subjective conception within a project of decolonization and closer connection with the forest peoples.
Keywords: banzeiro; òkótó; ancestral future; Amazon; forest; subjectivity
Resumen
El artículo examina la obra Banzeiro òkòtó: uma viagem à Amazônia centro do mundo, de Eliane Brum (2021), a partir de las ideas del futuro ancestral del pensador indígena Ailton Krenak, la disputa contemporánea sobre la memoria del pasado y la herencia colonial, así como la discusión sobre la subjetividad y la deconstrucción de la concepción cartesiana del cuerpo y la mente como instituciones separadas y jerárquicamente establecidas. A partir de estos puntos, el trabajo busca comprender la idea de "amazonizarse" propuesta por la autora y las implicaciones de este cambio de concepción subjetiva en un proyecto de descolonización y acercamiento a los pueblos de la selva.
Palabras clave: banzeiro; òkótó; futuro ancestral; Amazonía; selva; subjetividad
Saremo presto boschi tutti quanti insieme? (Vivian Lamarque, "I nomi degli amanti", 2023).
Em seu livro de poesias intitulado L'amore da vecchia, trazendo a perspectiva de uma mulher idosa para tratar da experiência do amor, Vivian Lamarque (2022), no poema "I nomi degli amanti", lista uma série de árvores-amantes que teriam sido ofendidas pela confusão da narradora. Apesar de seu amor, ela teria chamado faia a um olmo e acácia a um freixo. Ela pede perdão pelo esquecimento e pelas vezes que não os reconheceu. Já no final, seus versos questionam se logo seremos todos bosque, se teremos coração de grama ou de raízes: "oh presto saremo boschi tutti quanti insieme? Avremo cuori d'erba? Di radici?" (Lamarque, 2022, p. 12). A narradora encerra perguntando se não iremos mais ver a luz do sol, se passaremos para uma outra vida, em outro lugar, indagando onde e como isso se dará, mas destacando nos dois últimos versos se esse atravessamento será sem o azul da neve, colocando-o ao lado do amor que escorre nas veias: "da una vita passeremo a un'altra, dove? Come? Privi dell'azzurro della neve? Privi dell'amore nelle vene?" (Lamarque, 2022, p. 12).
Tratando-se de uma obra que reflete o ponto de vista de uma senhora idosa, poderíamos supor que ela estivesse tratando da finitude da existência da própria protagonista. Mas é possível, também, que o poema de Lamarque nos toque em tempos de emergência climática para falar da nossa finitude enquanto humanos. Primeiro nos provoca: seremos logo, todos juntos, um bosque? Em seguida, propõe-nos uma fusão de subjetividades e corpos: mãos e ramos, cabelos e folhas; com nossos corações que poderiam se transformar em grama ou criar raízes. No poema, o humano não está hierarquicamente estabelecido como sujeito e olhando para as árvores como alteridade menor. É o corpo humano que, na hipótese da narradora — de sermos bosques —, ganha novos elementos, novas cores e formas. É também a ideia de uma transformação: a comunhão de corpos humanos e não humanos, ou mais que humanos; a passagem do indivíduo a um coletivo, nesse caso, de árvores e outros seres viventes.
De maneira diferente e em outra linguagem, é essa a proposta da escritora e jornalista brasileira Eliane Brum (2021), em seu livro Banzeiro Òkòtó: uma viagem à Amazônia centro do mundo. Deslocando a centralidade da figura humana, ela convoca seus leitores a amazonizarem-se.
Amazonizar-se, como verbo, vai muito além da floresta. É um movimento para voltar a ser, para se despartir, no sentido daquele que se partiu ao se colocar fora da natureza, ao deixar de ser parte do todo ôrganico de um planeta vivo. […] O que quero dizer é que se reflorestar, ou se amazonizar, é um movimento radical. Se não for radical, não será (Brum, 2021, p. 50).
"Um movimento para voltar a ser", uma perspectiva de futuro que indica um retorno, um futuro ancestral, como nomeou em uma de suas obras o filósofo indígena Ailton Krenak. Para ele, a reflexão não é sobre um retorno cronológico que indique uma volta às práticas do passado. É o estabelecimento de uma conexão com um território que é ancestral porque apresenta mundos que estavam presentes antes do surgimento da espécie humana e que continuarão a viver, mesmo se os humanos não estiverem mais por aqui. Um de seus exemplos são os rios, "esses seres que sempre habitaram os mundos em diferentes formas, são quem me sugerem que, se há futuro a ser cogitado, esse futuro é ancestral, porque já estava aqui" (Krenak, 2022, p. 11). Ao lembrar de meninos Yudjá remando em conjunto e em harmonia com o rio, Krenak nota que essa conexão de uns com os outros, expandidas ao rio, era a abertura aos mundos possíveis, nas quais ele sustenta a sua concepção de futuro: "esses meninos que vejo em minha memória não estão correndo atrás de uma ideia prospectiva do tempo, nem de algo que está em outro canto, mas do que vai acontecer exatamente aqui, neste lugar ancestral que é seu território, dentro dos rios" (Krenak, 2022, p. 6). O futuro como tempo que está para chegar é uma ilusão, "algo que nós imaginamos", como destaca Krenak (2022). O perigo é que "podemos depositar tudo ali", inclusive possibilidades de futuros improváveis e mentiras, "dizer que alguma coisa vai acontecer no futuro não exige nada" (Krenak, 2022, p. 96), conclui. O que acontece é uma mudança na percepção do tempo. No projetar incessante de ações que virão, criamos uma aceleração do tempo em que a ruptura com o passado está há séculos, décadas ou dias atrás.
O estudioso da comunicação Eugenio Bucci identifica, na mudança na percepção do tempo, um presente inchado que comprime o espaço e distorce as distâncias com relação às projeções de passado e de futuro. Se as tecnologias de transporte reduziram as distâncias, ou a comunicação digital permitiu a ubiquidade dos sujeitos, "o mundo sem jornadas, sem pausas e sem folgas, aberto 24 horas por dia, com eventos que se sucedem como acontecimentos prolongados" apresenta, para Bucci (2021, p. 165), "uma permanente ação frenética que não se deixa esgotar". É uma interferência no tempo, que a partir da possibilidade da cobertura midiática dos eventos, em diferentes lugares, a qualquer momento — o que ele chama de instância da imagem ao vivo — começa a gerar a ideia de vivermos em um presente contínuo. A consciência de que há uma sucessão de eventos externos que podemos consumir o tempo todo mudou radicalmente nossa percepção do tempo, segundo o autor. Agora, além de não mais refletir o presente ou o passado enquanto experiência própria, temos a possibilidade de consumo infinito e incessante de eventos e histórias. Enfim, a radicalização das novas tecnologias de comunicação que nos lançou no universo de produção e consumo de episódios e histórias ininterruptos faz, nas palavras de Bucci (2021, p. 40), que "o essencial pareça episódico e o episódico domine o essencial". Para Eliane Brum (2021), vivemos hoje uma desestruturação do conceito de futuro e uma disputa pelo passado.
No capítulo "A esperança é superestimada", a autora primeiro aponta para a transformação da ideia de esperança em uma commodity 1 capitalística. Esperança, afinal, vem do latim sperare, sentimento de confiança na realização presente ou futura do que se deseja (Enciclopédia Treccani, 2024). Segundo Brum (2021), ela foi convertida em mercadoria, justamente "no momento em que o futuro se desenha sombriamente como o futuro em um planeta pior" (Brum, 2021, p. 260). Em sua pesquisa, a autora defende que a necessidade na crença em um final positivo ou em uma conquista, mesmo que parcial de um desejo ou objetivo, deixou de ser imprescindível para uma parte dos ativistas em tempos de catástrofe climática. "Percebo uma mudança profunda no modo de pensar. Minha hipótese é que, não fosse essa mudança no modo de pensar, adolescentes da geração Greta2 não conseguiriam fazer o que fazem. Não me parece que tenham questões com a esperança. Tampouco ela está em seu horizonte imediato de preocupações" (Brum, 2021, p. 262). Para Brum (2021), a discussão sobre a esperança é também geracional, entre pais que consumiram o planeta e filhos que viverão em um território esgotado. Por isso, no Fórum Econômico Mundial em Davos, no ano de 2019, a jovem sueca recusou textualmente as esperanças que os adultos prometiam. "Não quero as suas esperanças. Não quero que vocês sejam esperançosos. Quero que entrem em pânico, que sintam o medo que eu sinto todos os dias. Quero que ajam como se sua casa estivesse em chamas, porque ela está" (Thunberg, 2019).
Esperar por um resultado positivo parece, aos olhos de Brum (2021), mais do que uma ingenuidade, uma mentira. "Pela primeira vez na trajetória humana, o futuro, em grande medida, está dado. Sabemos que viveremos em um planeta muito pior" (Brum, 2021, p. 271). A luta se dá para saber se essas condições serão ruins ou hostis e como enfrentaremos a catástrofe. "Não a catástrofe possível, como no período da Guerra Fria e da destruição iminente pela bomba atômica. Mas uma catástrofe dificilmente evitável." Nessa esfera, como lembra a autora, entra em ação também a construção e a adoção de uma série de discursos políticos que abandonam o futuro e se voltam a construir passados inexistentes. Não é mais apenas a negação do presente, mas a "invenção de passados para os quais seria possível voltar" (Brum, 2021, p. 270).
Os britânicos que votaram pelo Brexit acreditavam que poderiam retornar à era dourada de uma Inglaterra poderosa e anglo-saxã. Os brancos empobrecidos dos Estados Unidos juravam que Trump poderia lhes devolver uma América onde os negros eram subalternos e, assim como os negros, cada "coisa" estava no seu lugar e cada um podia viver com a certeza de conhecer o lugar de cada coisa. Os eleitores de Bolsonaro negavam toda a tortura e os assassinatos praticados por agentes do Estado na ditadura, ou os justificavam, porque preferiam a ilusão de que viviam num país onde havia "ordem" e "segurança", onde homem era homem e mulher era mulher, onde homem transava com mulher e mulher com homem. Todos queriam desesperadamente voltar a viver num país que nunca houve. Esses países imunes a vastos conflitos e enormes violências jamais existiram, mas quem vai dizer o que existiu? (Brum, 2021, p. 271).
A disputa sobre o passado torna-se então imprescindível para enfrentar os discursos neocoloniais do presente. Refundando suas bases em conceitos excludentes e violentos, sem saber como lidar com o futuro, o que a maioria desses líderes propõe é a recuperação de um passado que nunca houve para colocá-lo como projeção de devir. Recuperar as memórias de quem esteve na resistência às violências desse passado é uma intervenção nos debates do presente e na imaginação sobre o futuro, mas é especialmente o conhecimento sobre estratégias de sobrevivência e rexistência3.
CORPOS E MEMÓRIAS SOBREVIVENTES
Estudando a ditadura militar brasileira, suas memórias oficiais, públicas e culturais, e a disputa que ainda hoje envolve o tema e suas representações, a resistência indígena pareceu-me desde o início um dos pontos não previstos pelo projeto político e social do regime4. Os militares que governaram o Brasil de 1964 a 1985 acreditavam de maneira convicta que oferecendo uma possibilidade aos indígenas de aderirem a um estilo de vida, dito civilizado ou ocidental, eles não negariam a proposta. Durante as duas décadas de regime, os indígenas foram atingidos de maneiras inauditas, abordados em territórios que os antigos colonizadores não os tinham alcançado. Viram suas terras serem invadidas, saqueadas, transformadas em asfalto e pasto para o gado. Seus territórios foram oferecidos como campos de trabalho aos migrantes nordestinos, que eram lançados na floresta para fugir da miséria. Seus povos foram contaminados por patógenos que chegavam com os homens do governo ou eram lançados por aviões, pelas empresas que esperavam um efeito mais rápido. O relatório final da Comissão Nacional da Verdade registrou ao menos 8.503 indígenas assassinados pelo regime. A Amazônia foi invadida como plano estratégico do Estado em parceria com grandes grupos empresariais.
Para tomar posse dessas áreas e tornar real a extinção de índios, empresas e particulares moveram tentativas de extinção física de povos indígenas inteiros, que chegaram a se valer da oferta de alimentos envenenados, contágios propositais, sequestros de crianças, assim como de massacres com armas de fogo (Brasil, 2014, p. 207).
Mesmo assim, nos anos finais da ditadura, uma nova organização dos povos indígenas nasceu5. Nações indígenas, que em tempos remotos disputaram território e foram inimigas, passaram a lutar pela defesa de seu modo de vida. A palavra índio, que "para os povos originários não faz nenhum sentido", ganhou em sua luta existencial "o significado de parente" (Brum, 2021, p. 39). Alianças com antropólogos brasileiros e estrangeiros, ativistas e religiosos levaram às reivindicações jurídicas para a autonomia do sujeito indígena perante às leis nacionais. A demarcação territorial ergueu-se como uma bandeira imprescindível. Pensadores indígenas participaram das comissões para a nova constituição do país, conhecida como Constituição Cidadã, em 1988. Em 1982, o cacique Xavante Mário Juruna foi eleito deputado federal pelo Partido Trabalhista Brasileiro (PTB). A ditadura esperava transformar a Amazônia em uma fábrica6, os indígenas continuaram protegendo a floresta com seus corpos.
"A palavra cidadania é bem conhecida. Faz parte desse repertório, digamos, branco. Já o enunciado florestania nasceu em um contexto regional, em um momento muito ativo da luta social dos povos que vivem na floresta", explica Krenak (2022, p. 77). O líder recorda que já no final da década de 1970, a aliança entre os descentes de migrantes nordestinos, que chegaram na floresta ainda no século XIX, e os indígenas levou a um "contágio de pensamento, cultura, uma reflexão sobre o bem comum" (Krenak, 2022, p. 77).
Mulheres, crianças, homens, pessoas de todas as idades, se postaram entre as árvores e as motosserras, cercando os caminhos de quem chegava para fazer demarcações, impedindo que o dedo urbano — fosse ele de geógrafos, topógrafos ou sismógrafos — apontasse finais dentro da floresta. Não queriam estacas nem lotes, queriam a fluídez do rio, o contínuo da mata (Krenak, 2022, p. 77).
Esse movimento ficou conhecido como a Aliança dos Povos da Floresta, reunindo lideranças indígenas — o próprio Ailton Krenak — e os seringueiros na Amazônia, dentre eles, Chico Mendes, que foi brutalmente assassinado em 1988. O objetivo era a reivindicação das demarcações de territórios indígenas e a criação de reservas extrativistas. Os povos da floresta escolheram e lutaram para que seus mundos não fossem extintos.
O COLONIALISMO ACABOU. A COLONIALIDADE, NÃO
A Amazônia sempre foi um tema importante para os militares brasileiros, e os discursos sobre a região em geral envolviam a representação de um grande deserto e a necessidade de cooptar os índigenas — sob a ideia de integração nacional — nos sistemas de produção agrícola e extrativista. O primeiro presidente do país, Marechal Deodoro da Fonseca, ainda em 1891, dedicou aos indígenas e à Amazônia um de seus discursos aos parlamentares do Congresso Nacional.
Muito recomendável é a catequese de tribos indígenas que em grande número vagueiam pelas nossas regiões desertas e, que, não raramente invadem terras cultivadas, devastam-nas e assim estorvam o trabalho agrícola da população civilizada. Cumpre envidar esforços para abrandar-lhes os costumes selvagens e, quanto possível, atraí-las ao trabalho (Fonseca, 1891).
A mata virgem ou as terras desertas não eram uma realidade. Estudos antropológicos registram a ocupação humana na Amazônia há mais de 10 mil anos. Em seu livro, Brum (2021) reporta as pesquisas de antropólogos como Eduardo Neves ou arqueólogos como Vinicius Honorato e Márcio Amaral que demonstram a interação entre grandes ocupações humanas e o desenvolvimento ambiental na região desde um passado remoto. Isso é óbvio na cultura ameríndia, mas os cientistas não indígenas trabalham para conseguir demonstrar em outras instâncias a importância da floresta cultural e desmistificar a ideia de "terras desertas". "A infraestrutura de um povo não é só potes de barro ou vaso de cerâmica, mas também tudo aquilo que é vivo. Como as árvores. É um outro modo de estar no mundo que é contado por uma narrativa de ‘artefatos’, desta vez vivos" (Brum, 2021, p. 24).
Ainda no início do século XX, em 1910, foi criado o Serviço de Proteção ao Índio e Localização dos Trabalhadores Nacionais, vinculado ao Ministério da Agricultura. Estruturando as premissas que vinham desde o início da era republicana, a guerra declarada aos índigenas durante o período imperial foi transformada em uma integração — mesmo que forçada - dos indígenas em força produtiva para o Estado. O SPI, como ficou conhecida a instituição, era um projeto de um dos marechais mais reconhecidos da história brasileira, o Marechal Cândido Rondon. Em suas expedições desde o início da República, para a instalação de linhas telegráficas que conectassem regiões remotas do país, Rondon encontrou diversas nações indígenas e com várias delas estabeleceu uma relação — segundo ele — bastante amigável e respeitosa. É seu o mote de que no contato com os índigenas, os soldados poderiam "morrer se for preciso, matar nunca" (Mayer, 2024). É a partir das expedições de Rondon que o Estado brasileiro desenvolveu uma metodologia sistematizada de aproximação e aldeamento de indígenas isolados.
Primeiro os sertanistas distribuíam presentes aos índios; esperava-se que estes passassem a retribuir os presentes, na fase chamada namoro; na terceira fase, os índios convidavam os sertanistas para conhecer suas malocas; a quarta fase, de consolidação de "pacificação", constituía-se no estabelecimento de um acordo pelo qual, em resumo, "civilizados" e índios concordavam em não matar mais uns aos outros (muitas vezes esse diálogo não era feito às claras, pois os índios praticamente se entregavam aos benefícios representados pelos presentes dos "civilizados" do SPI); por último, os índios "pacificados" eram então agregados e entregues aos cuidados de funcionários de um posto, que se encarregava de dar a eles atendimento de saúde e alimentação e ensinar-lhes métodos de agricultura dos "civilizados". Assim, os índios deixariam de atacar e matar vizinhos ou trabalhadores que passavam pela região. Estava criado um novo posto indígena para índios aldeados (Valente, 2017, p. 14).
É aqui que, como recorda Brum (2021, p. 55), "ser descoberto é a maldição de todos aqueles que só podem existir se esquecidos". A primeira expedição realizada pelo SPI sob comando do regime militar, em 1965, levou os funcionários do governo a tentarem as fases do método de Rondon com 48 kararaô; todos morreram, de gripe ou de fome. A missão partiu sem médico e sem medicamentos (Valente, 2017, p. 14-15). Rubens Valente (2017), em seu livro Os fuzis e as flechas: história de sangue e resistência indígena na ditadura, aponta para a contradição constitutiva do SPI: o órgão "foi criado com o objetivo de proteger os índios, porém ao mesmo tempo, prepará-los para se tornarem parte da comunidade nacional, ou seja, virarem trabalhadores ou produtores rurais. Ao agir assim, operava contra a cultura, história e organização desses grupos" (Valente, 2017, p. 29). A política estatal de promover o contato com grupos isolados deixou de existir, pelo menos oficialmente, em 1984, já nos últimos anos do regime militar. Mas os projetos políticos e econômicos para a região continuam a prever a destruição da floresta e o desflorestamento de seus povos. Os relatos contados em Banzeiro Òkòtó dão conta de inúmeras vidas ceifadas ou transformadas em pobreza já em tempos de democracia. As histórias mais eclatantes presentes no livro são as envolvidas na barragem/assassinato do rio Xingu para a construção da hidrelétrica de Belo Monte7. É a partir do paradigma de Belo Monte, que destruiu mundos inteiros, alagando grandes áreas da floresta, que Eliane Brum (2021) recupera as ideias de Ailton Krenak e não aceita a culpabilização generalizada — ação humana — para a catástrofe climática.
É necessário afirmar que a catástrofe climática e a sexta extinção em massa de espécies foram provocadas por uma minoria dominante composta dos financeiramente ricos de países consumidores, em particular bilionários e supermilionários, e dos financeiramente ricos de países consumidos, em particular bilionários e supermilionários. […] Os mais afetados pela crise climática, porém, são aqueles que não a produziram (Brum, 2021, p. 375).
A autora nega também o termo apartheid climático, criado pela Organização das Nações Unidas (ONU) para tratar da disparidade nas consequências geradas pela emergência climática. Para Brum, falar em apartheid aponta para a reivindicação de um direito ou um desejo de pertencimento para os que estão fora das camadas privilegiadas da sociedade consumidora. Como vimos, desde os tempos coloniais do século XV e XVI, não é bem assim. "Os povos originários e as comunidades tradicionais, como nos apontam seus anciões e seus ancestrais, não querem se tornar também eles devoradores de mundo" (Brum, 2021, p. 375). A própria autora explica sua decisão sobre mudar-se definitivamente para a Amazônia e passar a contar de lá suas histórias, como uma ação de confronto contra o "povo da mercadoria" ou "comedores de floresta"; seu desejo era passar do näpe inimigo ao näpe estrangeiro8.
BANZEIRO ÒKÒTÓ: UM MOVIMENTO DE DESCOLONIZAÇÃO
O reflorestar-se reivindicado por Eliane Brum (2021) tem uma conexão com a cosmogonia ameríndia e é, antes de tudo, um rompimento com a concepção cartesiana de um indíviduo que se dividiu radicalmente em corpo e intelecto, cultura e natureza. Na recomposição individual, amazonizar-se é também ampliar-se, estruturar-se como corpos expandidos em outros corpos, outros seres ou outros mundos. Já no primeiro capítulo, a autora afirma que não tem mais estômago, fígado ou rins, mas um banzeiro que entrou dentro dela e que agora ocupa seu corpo. Banzeiro é uma palavra das comunidades do rio Xingu, sem tradução. É um lugar onde o rio apresenta-se mais perigoso, bravo, um espaço de intersecção entre o lugar "de onde se veio e aonde se quer chegar" (Brum, 2021, p. 5). Diferente do não lugar da supermodernidade descrito por Marc Augé (1994, p. 73), onde os lugares sociais não podem mais ser entendidos como históricos ou identitários, porque são apenas uma passagem, são lugares de trânsito. O banzeiro é um estado do rio em um determinado lugar — histórico, geográfico e social, porque é esse nome que as populações originárias e tradicionais que vivem a beira do Xingu chamam aquela porção do rio.
A afirmação de que, após se mudar para a Amazônia, uma porção do rio passou a habitá-la, é o que Brum entende por mistura de corpos — humanos e não. A capa de seu livro na edição original, mas também naquela publicada em língua inglesa, nos Estados Unidos, traz uma foto de Lilo Clareto: a imagem expõe um tronco robusto, semiaberto, quase como um convite aos leitores para que toquem aquele outro corpo, para que ocupem aquela fenda aberta, misturando mãos e caule, tornando-se um corpo-floresta.
No rastro das concepções que moldaram a modernidade ocidental — e aqui destaco a leitura de Walter Mignolo (2011) na obra The darker side of western modernity, de que esta não existiu sem o colonialismo e não pode, portanto, ser pensada separada do fenômeno colonial (Mignolo, 2011, p. 3) —, o pensamento cartesiano radicalizou as premissas lançadas pela filosofia dos antigos gregos e pela religião bíblico-cristã sobre o dualismo do sujeito dividido em corpo e alma. Descartes transformou a alma em um elemento distanciado das influências do corpo e baseado na racionalidade científica. O Ego, intelecto regido com rigor metodológico, quase matemático, era, na hipótese cartesiana, quem de fato oferecia o sentido do mundo aos sujeitos. Umberto Galimberti (2018), na sua obra Il corpo, explica que "Descartes priva o corpo do seu mundo e de todas as outras funções de sentido fundadas sobre a experiência corpórea, atraverso qual o mundo está concretamente em nossas mãos10" (Galimberti, 2018, p. 69). O corpo torna-se um objeto, concebido igual a outros corpos, regidos por leis físicas. Em suas meditações filosóficas, Descartes trabalhou com a possibilidade da divisão e independência radical entre mente e corpo, mas não a desenvolveu por completo. Essa hipótese, porém, foi suficiente para o filósofo afirmar que o corpo não era essencial para a existência (Descartes, 1986, p. 27).
No século XXI, refutando o pensamento cartesiano, Eliane Brum (2021, p. 10) nota que "Descartes era tremendamente convincente e mais conveniente ainda no momento em que formulou a sua teoria, e sabe-se lá o que se passava com seus testículos quando inventou esse humane partido", mas ao final, "o corpo é o que somos e é o corpo que grita, dói e ama, tudo misturado". Para Brum (2021), o sujeito é seu corpo (incluindo a mente), e é esse corpo que ela deseja expandido aos outros humanos e mais que humanos. Essa é a sua proposta radical de reflorestamento. Nas reflexões da autora, o rompimento com o pensamento colonial está intimamente conectado com a ideia de desbranqueamento.
Eu me mudei para a Amazônia, ou eu me mudei em Amazônia porque quero me desbranquear. Sei que vou morrer fracassando nessa tentativa, mas fui para a Amazônia para ser outra experiência de mim a partir da descolonização do meu corpo, aqui compreendido também como corpo da floresta, ou um corpo na floresta. A destruição da Amazônia tornou-se para mim uma questão pessoal, passei a compreender a corrosão da floresta como a corrosão do meu próprio corpo, e não num sentido apenas intelectual. Ou retórico. Passei a me entender como floresta. O entendimento de mim como uma realidade expandida me levou à compreender que a luta pela floresta é a luta contra o patriarcado, contra o feminicídio, contra o racismo, contra o binarismo de gênero. E também contra a centralidade da pessoa humana (Brum, 2021, p. 49).
Voltando alguns passos na ruptura com o pensamento colonial, é importante lembrar que, durante as lutas anticoloniais do século XX, figuras importantes, como o intelectual africano Amílcar Cabral, discursavam sobre a necessidade da descolonização das mentes. Era preciso romper com um conhecimento que colocava os brancos como superiores e sua cultura como a única racional e digna. Nas colônias portuguesas em território africano, que conquistaram a independência apenas após o final da ditadura portuguesa em 1974, o dispositivo de assimilação hierarquizava os nativos e contribuía para instaurar um sistema de controle e domínio da população. Amílcar Cabral, assim como os demais líderes africanos dos movimentos de liberação, eram filhos de famílias assimiladas. Ele seguiu uma educação portuguesa, tendo inclusive ganhado uma bolsa de estudos para terminar a sua formação em Portugal. Consciente da potência que a categorização colonial, através dos assimilados, tinha criado para dividir as elites das massas em território africano, Cabral insistia na urgência e na importância da descolonização das mentes para uma real liberação anticolonial.
Toda educação portuguesa deprecia a cultura e a civilização do africano. As línguas africanas estão proibidas nas escolas. O homem branco é sempre apresentado como um ser superior e o africano como um ser inferior. Os conquistadores coloniais são descritos como santos e heróis. As crianças africanas adquirem um complexo de inferioridade ao entrarem na escola primária. Aprendem a temer o homem branco e a ter vergonha de serem africanos (Cabral, 1977, p. 64).
O dispositivo da assimilação oferecia alguns direitos aos nativos em troca da repressão de qualquer manifestação ou expressão da cultura autóctone. No romance O alegre canto da perdiz, a escritora moçambicana Paulina Chiziane (2008) descreve uma cena de assimilação como um rito de cancelamento do sujeito africano, o assassinato de si como a única alternativa de sobrevivência:
Quem não se ajoelha perante o poder do império não poderá ascender ao estatuto de cidadão. Se não conhece as palavras da nova fala jamais se poderá afirmar. Vamos, jura por tudo que não dirás mais uma palavra nessa língua bárbara. Jura, renuncia, mata tudo, para nascer outra vez. Mata a tua língua, a tua tribo, a tua crença. Vamos, queima os teus amuletos, os velhos altares e os velhos espíritos pagãos. José faz o juramento perante um oficial de justiça, que mais se parece com um juramento de bandeira. Com pouca cerimónia, diante de um oficial meio embriagado (Chiziane, 2008, p. 144).
No romance, na voz das personagens mais velhas, a assimilação era representada como um caminho de morte: "os assimilados eram assassinos" (Chiziane, 2008, p. 93), justificava o pai da personagem Delfina, por nunca ter aderido ao regime. Muitos assimilados, após entrarem na administração pública, se viam transformados em sipaios e soldados do exército colonial, tendo como obrigação, reprimir, castigar ou matar qualquer nativo que resistisse às regras de exploração. Em sua estratégia narrativa, Chiziane (2008) também equipara o aniquilamento do sujeito africano ao assassinato de outros seres, outros mundos. Descrevendo os pensamentos da personagem José dos Montes, enquanto percorria a estrada que o levaria até o oficial de Justiça, o narrador nos fala da essência do colonialismo como um sistema de "desviar o curso do rio. Matar de sede os peixes, as algas e os corais", fechar todas as portas e deixar apenas uma" (Chiziane, 2008, p. 144), a da assimilação. Para Cabral (1977), a ruptura com o dispositivo de assimilação, que hierarquizava as culturas, era a passagem necessária para que deixassem para trás o assassinato de corpos, humanos e não. Era a possibilidade de criar uma sociedade nova, que não reproduziria a divisão colonial entre elites e massas populares:
Um povo que se liberta do domínio estrangeiro não será culturalmente livre a não ser que, sem complexos e sem subestimar a importância dos contributos positivos da cultura do opressor e de outras culturas, retome os caminhos ascendentes da sua própria cultura, que se alimenta da realidade viva do meio e negue tanto as influências nocivas como qualquer espécie de subordinação a culturas estrangeiras (Cabral, 1977, p. 225).
Em outro tempo histórico, Brum (2021) trabalha a conexão do colonialismo com os diversos significados da emergência climática global e não discursa sobre a criação de uma nova sociedade, como fizeram os movimentos anticoloniais e de viés marxistas das décadas de 60 e 70 do século XX. Sua proposta é buscar nas memórias, resistências e epistemologias ameríndias e quilombolas um modo de colocar-se no mundo diante da possibilidade do fim da nossa espécie. O contexto descrito em Banzeiro Òkòtó é uma antologia de dados e estudos que a autora vem recolhendo desde a sua primeira viagem ao território amazônico, em 1998. Mas não é sobre a violência que a autora versa suas palavras. Primeiro porque narrar a violência seria, segundo ela, "poupar tempo e esforço". Seria como oferecer dados e dar uma ideia de completude sobre o assunto. Afinal, como lembra, o Brasil é um país violento e as cenas da Amazônia queimando foram apresentadas a todos nos últimos anos, em diversos formatos. A questão central do livro é contar outras histórias, falar sobre o viver e o resistir a essa violência.
Escrevo sobre resistência. Sobre como tornar a vida possível apesar de todas as formas de morte — ou, no caso dos povos originários do Brasil, apesar de tentarem matá-los de todas as formas há mais de quinhentos anos. Essa jornada pela Amazônia, para muito além da geografia, é também uma investigação sobre as resistências possíveis no momento em que vivemos o impossível da emergência climática e da sexta extinção em massa de espécies (Brum, 2021, p. 67).
Banzeiro Òkòtó é um livro pensado para os brancos, porque nem todos os humanos são responsáveis em igual medida pela destruição do planeta; "uma parte é uma ameaça, outras interagem com a floresta, a transformam, inclusive a plantam" (Brum, 2021, p. 21). A obra se estrutura em linguagem de brancos, porque "para os povos originários, não existe a natureza e as pessoas humanas. Há apenas natureza. Os indígenas não estão na floresta, eles são floresta" (Brum, 2021, p. 21). E porque é o brancocentrismo que culpabiliza a todos pela destruição da nossa própria casa, não responsabilizando ninguém. Mas como afirma a autora, recuperando as palavras do xamã e diplomata Yanomami David Kopenawa, "nem todas as pessoas humanas têm a cabeça cheia de esquecimento" (Brum, 2021, p. 21).
É nesse sentido que a autora descreve os dois outros conceitos presentes no título da obra: Òkòtó e Amazônia centro do mundo. Este último nasce quase como um paradigma evidente de que "na esquina do colapso climático, a maior floresta tropical é o centro do mundo" (Brum, 2021, p. 376). É também lá que a ação dos rios voadores que regulam o clima pode determinar a temperatura e a disposição de água que teremos em um futuro próximo. Como lembra a autora, a centralidade da floresta para os que atuam na lógica predatória também é bastante clara, por isso estabeleceram vínculos e ocupações de seu território. Por outro lado, Brum (2021) destaca que é também a Amazônia que abriga inúmeras existências que podem nos ensinar a resistir e a mudar radicalmente o pensamento e o modelo de sociedade que nos trouxe até aqui, até o colapso.
Partindo desse mesmo princípio da centralidade da resistência, a autora invoca também as periferias urbanas, criadas a partir do desflorestamento histórico de inúmeras populações que, de povos floresta, tornaram-se "povos-natureza-convertidos-em-pobres". Amazônia centro do mundo é deslocar a centralidade da sociedade para o que hoje consideramos margem, porque experiências que souberam sobreviver ao predadorismo capitalista talvez consigam nos ensinar estratégias de luta e novos modos para vivermos juntos.
É dessa ideia de resistir juntos que Brum (2021) recupera o termo iorubá Òkòtó. A palavra entrou na vida da autora pelas reflexões do babalorixá antropólogo Pai Rodney de Oxóssi, descrevendo um caracol que forma uma concha ossificada que em formato espiral gera o movimento de ampliação a partir de uma pequena base. "Amazônia centro do mundo é banzeiro em transfiguração para òkòtó" (Brum, 2021, p. 373). A cada movimento tecido com outros humanos e mais que humanos, a luta coletiva se abre para um novo horizonte; "a cada revolução, amplia-se, até converter-se numa circunferência aberta para o infinito" (Brum, 2021, p. 373).
CONSIDERAÇÕES FINAIS
A obra de Eliane Brum (2021) é uma imersão — para os brancos — nos mundos amazônicos, nos genocídios e nas sobrevivências. Ela não tem a pretensão de ser porta-voz de nenhuma das experiências nas quais inspira sua luta. Suas páginas abrigam a existência dessa mulher branca que vive violentamente as contradições de florestar-se em um país que continua a destruir a floresta. Ela narra a sua trajetória em reconhecer-se enquanto corpo-sujeito e transformar-se em outra, um corpo-floresta. Suas descobertas, desestruturações, seus encontros, encantamentos. Um corpo-banzeiro. Suas palavras buscam o devir impossível de dar conta das inúmeras histórias que passaram a viver dentro da autora, nessa escuta e transformação que teceram uma nova subjetividade, a sua, mas que, através de seu livro, ela espera que seja um convite para os leitores à participarem dessa confecção coletiva de novos corpos, ampliados, em luta.
Contar essas histórias, convocar-nos a olharmos para essas existências como centrais, é tentar também libertar nossa história do sequestro colonial que persiste. É perseguir contando histórias — como aconselha Ailton Krenak (2022) — para adiar o fim do mundo. É entender que a linguagem não é uma roupa — a ser consumida —, mas um modo de habitar o próprio corpo, de concebê-lo.
Notas
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1
Originalmente nascido como termo sinônimo de mercadoria, ligado especificamente a produtos não industrializados que circulam na cadeia do comércio global, como as matérias-primas, por exemplo. A pala commodity vra é utilizada por Eliane Brum (2021) com o sentido de mercadoria vendida no sistema capitalístico em escala global.
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2
A autora faz referência a Greta Thumberg e aos jovens que começaram as greves pelo clima e outras ações políticas visando um combate à política econômica atual.
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3
O antropólogo Viveiros de Castro (2017) usou o termo rexistência em seu discurso apresentado no evento "Abril Indígena" em 20 de abril de 2016 e no ano seguinte no colóquio "Questões indígenas: ecologia, terras e saberes ameríndios". O discurso virou a publicação Os involuntários da pátria, no qual o estudioso afirma que os índigenas são "um exemplo de rexistência secular a uma guerra feroz contra eles para desexistí-los, fazê-los desaparecer, seja matando-os pura e simplesmente, seja desindianizando-os e tornando-os ‘cidadãos civilizados’, isto é, brasileiros pobres, sem terra, sem meios de subsistência próprios, forçados a vender seus braços — seus corpos — para enriquecer os pretensos novos donos da terra" (Castro, 2017, p. 8).
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4
Os militares até hoje não disponibilizaram os arquivos de sua agência de serviço secreto, não houve processos judiciais para os crimes cometidos pelos agentes do regime, não sabemos o que houve com os desaparecidos, não houve um pedido de desculpas oficial à nação. A Comissão Nacional da Verdade, implementada por lei no país apenas em 2011, não foi reconhecida pelas Forças Armadas. Desde 2016, e com maior intensidade a partir de 2021, há pedidos constantes de intervenção militar no país. Ver: Frederico (2022).
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5
Em 1980, é instituída a União Nacional Indígena.
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6
Conforme aponta a publicação Sudam em Revista, nº 2, de outubro-novembro de 1971. Ver Anexo 1 ao final do artigo.
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7
O projeto da construção de uma hidrelétrica na bacia do Rio Xingu remonta ao governo ditatorial militar, elaborado em 1975 e concluído, apesar dos inúmeros protestos, em 2015.
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8
Näpe, na língua yanomami, é usada para designar inimigos, estrangeiros e também é o modo como esse povo chama os brancos. Sobre a homogeneização do termo "branco", Brum afirma: "Se todos os povos originários são chamados de "índios" — como se mais de trezentos povos, que falam mais de duzentas línguas diferentes, isso só no Brasil, pudessem ser nomeados por apenas uma palavra —, nada mais simétrico do que devolver a gentileza chamando-nos a todos de "brancos" (Brum, 2021, p. 13).
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9
"Modernity is a complex narrative whose point of origination was Europe; a narrative that builds Western civilization by celebrating its achievements while hiding at the same time its darker side, coloniality. Coloniality, in other words, is constitutive of modernity—there is no modernity without coloniality" (Mignolo, 2011, p. 3).
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10
Do original: "Cartesio priva il corpo del suo mondo e di tutte quelle altre formazioni di senso che si fondano sull'esperienza corporea, attraverso cui il mondo ci è direttamente alla mano".
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Editor:
Paulo César Thomaz
Datas de Publicação
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Publicação nesta coleção
20 Dez 2024 -
Data do Fascículo
2025
Histórico
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Recebido
06 Set 2024 -
Aceito
18 Set 2024