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Por uma nova relação com o mundo: escritoras brasileiras e seus encontros com o não humano

For a new relationship with the world: Brazilian women writers and their encounters with the non-human

Por una nueva relación con el mundo: escritoras brasileñas y sus encuentros con lo no humano

Resumo

O artigo analisa obras de escritoras brasileiras contemporâneas com base nos encontros com elementos não humanos em diálogo com os conceitos de alteridade, de interdependência e das relações interespécies. Destacam-se obras de Adriana Lisboa (2021LISBOA, Adriana (2021). O vivo. Belo Horizonte: Relicário.; 2022LISBOA, Adriana (2022). Todo o tempo que existe. Belo Horizonte: Relicário.), Maria Esther Maciel (2021)MACIEL, Maria Esther (2021). Pequena enciclopédia de seres comuns. São Paulo: Todavia. e Paulliny Tort (2021)TORT, Paulliny (2021). Erva Brava. São Paulo: Fósforo., pela perspectiva da ecologia decolonial e do pós-antropocentrismo.

Palavras-chave:
literatura de mulheres; não humano; ecologia decolonial

Abstract

The article analyzes works by contemporary Brazilian women writers based on their encounters with non-human elements in dialogue with the concepts of alterity, interdependence, and interspecies relations. The works of Adriana Lisboa (2021LISBOA, Adriana (2021). O vivo. Belo Horizonte: Relicário.; 2022LISBOA, Adriana (2022). Todo o tempo que existe. Belo Horizonte: Relicário.), Maria Esther Maciel (2021)MACIEL, Maria Esther (2021). Pequena enciclopédia de seres comuns. São Paulo: Todavia., and Paulliny Tort (2021)TORT, Paulliny (2021). Erva Brava. São Paulo: Fósforo. are emphasized from the perspective of decolonial ecology and post-anthropocentrism.

Keywords:
women’s literatura; non-human; decolonial ecology

Resumen

El artículo analiza las obras de escritoras brasileñas contemporáneas a partir de sus encuentros con elementos no humanos en diálogo con los conceptos de alteridad, interdependencia y relaciones interespecies. Narrativas y poemas de Adriana Lisboa (2021LISBOA, Adriana (2021). O vivo. Belo Horizonte: Relicário.; 2022LISBOA, Adriana (2022). Todo o tempo que existe. Belo Horizonte: Relicário.), Maria Esther Maciel (2021)MACIEL, Maria Esther (2021). Pequena enciclopédia de seres comuns. São Paulo: Todavia. y Paulliny Tort (2021)TORT, Paulliny (2021). Erva Brava. São Paulo: Fósforo. están subrayadas desde la perspectiva de la ecología decolonial y el post-antropocentrismo.

Palabras-clave:
literatura de mujeres; no humano; ecología decolonial

Qualquer encontro pressupõe estar diante de alguém, de outro ou de um objeto a fim de despertar inúmeras possibilidades e emoções. Como nos apresenta Sara Ahmed (2015)AHMED, Sara (2015). La politica cultural de las emociones. Tradução de Cecilia Olivares Mansuy. Cidade do México: Programa Universitario de Estudios de Género/Universidad Nacional Autónoma de México., as emoções são relacionais, pois implicam aproximações e afastamentos em conexão com tudo o que nos rodeia. Para a circulação desses sentimentos, que não residem de forma fixa, é preciso, então, um encontro e um efeito de contato, um efeito de contágio recíproco, como acentua Ahmed (2015)AHMED, Sara (2015). La politica cultural de las emociones. Tradução de Cecilia Olivares Mansuy. Cidade do México: Programa Universitario de Estudios de Género/Universidad Nacional Autónoma de México..

Discussões teóricas, filosóficas e artísticas não faltam a respeito dos encontros entre nós, humanos, marcados por camadas de identificação e estranhamento, de diferenças e aproximações, da complexa relação entre mim e o outro, especialmente da nossa capacidade de atribuir sentido a eles, capacidade permeada por sistemas de poder que, por vezes, nos levam a hierarquizações e construção de estereótipos. Duas questões a atravessar este artigo são como se dariam os encontros com os elementos não humanos e como tais interações poderiam ser representadas literariamente.

Como aponta Rosi Braidotti (2015)BRAIDOTTI, Rosi (2015). Lo Posthumano. Tradução de Juan Carlos Gentile Vitale. Barcelona: Gedisa., refletir a respeito disso é necessariamente questionar o pensamento antropocêntrico clássico, pensamento que considera como alteridade tudo o que se distingue do paradigma do Homem branco, ou seja, o outro sexualizado (as mulheres), o outro racializado (os “nativos”) e o outro “naturalizado” (os animais, o meio ambiente, a terra), ou tudo que não é “considerado humano”, a valorar a ideia de que apenas uma espécie dominante deve ser defendida (Braidotti, 2015BRAIDOTTI, Rosi (2015). Lo Posthumano. Tradução de Juan Carlos Gentile Vitale. Barcelona: Gedisa.).

A fim de quebrar a lógica de que os “outros” naturalizados são apenas recursos mercantilizáveis, devemos positivar a capacidade relacional de nossa espécie humana com elementos não antropomórficos, como animais, plantas, terra, rios, águas e outros elementos geocêntricos. Ao enfatizar isso, Braidotti (2015)BRAIDOTTI, Rosi (2015). Lo Posthumano. Tradução de Juan Carlos Gentile Vitale. Barcelona: Gedisa. recupera o conceito de zoe, para além de bio. Zoe engloba tanto as partes discursivas, tradicionalmente reservadas ao humano, quanto o exclusivamente orgânico, reservado ao biológico, mas também se expande para tudo o que nos cerca, incluindo os chamados elementos inorgânicos. Zoe busca, então, eliminar binarismos e aspira a ser uma força transversal que une espécies, domínios e categorias separadas. É uma categoria que nos ajuda a ter em mente que a vida não nos pertence sozinha, mas acentua nossa interdependência, nossa dependência da alteridade, como aponta Braidotti (2015)BRAIDOTTI, Rosi (2015). Lo Posthumano. Tradução de Juan Carlos Gentile Vitale. Barcelona: Gedisa..

Tal dimensão está no cerne de uma mudança pós-antropocêntrica, tanto como força criadora quanto como possibilidade de novas formas de pensar, diante dos desafios do capitalismo contemporâneo insustentável e voraz, que acentua cada vez mais a exploração da própria vida em todas as suas dimensões.

Os estudos literários não estão alheios aos novos desafios éticos, inclusive diante da emergência climática que ameaça a sobrevivência de todos e de todas nós. A sustentabilidade ecológica e social desafia cada vez mais os estudos literários, como aponta Rita Terezinha Schmidt (2015SCHMIDT, Rita Terezinha (2015). (Eco) conhecimentos e a literatura no limiar da vida que vem – Introdução. In: MANDAGARÁ, Pedro; Mandagará; SCHMIDT, Rita Terezinha (org.). Sustentabilidade: o que pode a literatura? Santa Cruz: Editora da Unisc. p. 11-24., p. 21):

As elaborações estético-verbais da interdependência entre vida social e mundo natural, amparadas na compreensão de que nossa existência enquanto seres humanos, depende da coexistência com outras formas de vida de um mundo não humano, interpela as subjetividades de leitores e leitoras quanto a práticas de vida, no sentido de descortinar possibilidades de (re)imaginar a arte da convivência e da coexistência, em um cenário em que essa arte está extinta, senão quase, e precisa ser urgentemente reinventada.

Tanto Rita Terezinha Schmidt (2015)SCHMIDT, Rita Terezinha (2015). (Eco) conhecimentos e a literatura no limiar da vida que vem – Introdução. In: MANDAGARÁ, Pedro; Mandagará; SCHMIDT, Rita Terezinha (org.). Sustentabilidade: o que pode a literatura? Santa Cruz: Editora da Unisc. p. 11-24. quanto Rosi Braidotti (2015)BRAIDOTTI, Rosi (2015). Lo Posthumano. Tradução de Juan Carlos Gentile Vitale. Barcelona: Gedisa. nos interpelam a repensar, eticamente, as relações de interdependência entre os seres, incluindo aqueles e aquelas que virão depois de nós, nossos interlocutores e interlocutoras do porvir. Nesse sentido, este artigo privilegia obras literárias de mulheres que trazem imagens e alteridades mais além das figuras do antropocentrismo clássico, mas não só. Afinal, os denominados elementos naturais têm sido utilizados, no decorrer de toda a história literária, como cenário ou metáforas para sublinhar, mais uma vez, padrões antropocêntricos de nossa espécie, em imagens continuamente repetidas ao longo das histórias literárias. O olhar proposto aqui recai sobre obras de escritoras brasileiras contemporâneas que representam a imaginação sensorial e a radicalização da capacidade relacional não somente com animais e vegetais, porém também com outros elementos da terra, da água e do ar.

As obras aqui selecionadas constituem duas visadas relevantes e complementares. Em um primeiro momento, são analisados contos de Erva Brava, de Paulliny Tort (2021)TORT, Paulliny (2021). Erva Brava. São Paulo: Fósforo., levando-se em consideração as relações socioambientais, com base nos conceitos de entorno e de solastalgia, em uma perspectiva coletiva. Dialoga-se também com os denominados valores culturais da natureza, uma vez que as narrativas da obra trazem o sentido de perda não só dos lugares, mas de práticas e saberes vinculados ao ambiente. No momento seguinte, nas obras de Adriana Lisboa (2021LISBOA, Adriana (2021). O vivo. Belo Horizonte: Relicário.; 2022LISBOA, Adriana (2022). Todo o tempo que existe. Belo Horizonte: Relicário.) e Maria Esther Maciel (2021)MACIEL, Maria Esther (2021). Pequena enciclopédia de seres comuns. São Paulo: Todavia., é acentuada a relação do humano com o mundo que o cerca, em suas estreitas interações com o não humano, em percursos mais individuais.

Na perspectiva dos encontros com o não humano, é necessário sublinhar a ideia do habitar colonial de Malcom Ferdinand (2022)FERDINAND, Malcom (2022). Uma ecologia decolonial: pensar a partir do mundo caribenho. Tradução de Letícia Mei. São Paulo: Ubu.. Segundo ele, o habitar colonial intensificou toda a exploração sobre a terra e sobre os corpos, humanos e não humanos. Para repensar um horizonte comum de mudanças, enfatizam-se as possibilidades de associações interespécies entre os corpos colonizados, em perspectiva ampla, e os não humanos, haja vista o seu conceito de “ecologia-do-mundo”, que “pressupõe uma ontologia relacional que reconheça que nossas existências e nossos corpos estão entremeados pelos encontros com uma pluralidade de humanos e uma pluralidade de não humanos” (Ferdinand, 2022FERDINAND, Malcom (2022). Uma ecologia decolonial: pensar a partir do mundo caribenho. Tradução de Letícia Mei. São Paulo: Ubu., p. 255). Conforme o teórico, é indissociável o enfrentamento da crise ecológica com os movimentos antirracistas, feministas e decoloniais, a fim de romper a exploração e a destruição, continuamente repetidas.

A crítica ao modo de habitar colonial, nos termos de Ferdinand (2022)FERDINAND, Malcom (2022). Uma ecologia decolonial: pensar a partir do mundo caribenho. Tradução de Letícia Mei. São Paulo: Ubu., marca muitas narrativas de Paulinny Tort (2021)TORT, Paulliny (2021). Erva Brava. São Paulo: Fósforo.. Em sua obra, todas as narrativas estão localizadas na fictícia cidade de Buriti Pequeno, no cerrado brasileiro. O livro traz temáticas urgentes, como a expansão do agronegócio, a poluição, as mudanças culturais, o consumismo, a redução da biodiversidade, a exploração do trabalho, a migração, as mudanças culturais, com um permanente apontamento dos conflitos socioambientais do Centro-Oeste, sem perder olhares afetivos sobre suas personagens complexas. Como aponta Stefania Chiarelli (2022CHIARELLI, Stefania (2022). Um cerrado de contrastes. Rascunho, n. 263., p. 9) em resenha sobre o livro, “os personagens se equilibram entre um mundo que já não é e outro ao qual ainda não pertencem. Um pé na erva brava e outro na agroindústria”.

Em todas as narrativas há esse tenso equilíbrio entre os dois mundos, atravessado pelo onipresente Rio Amanaçu, que cruza a cidade, desde o conto de abertura até o último. Pela etimologia da palavra de origem tupi, Amanaçu significa “chuva grande, temporal, tempestade”, tema, enfim, da última narrativa, anunciado em todo o percurso de leitura. Ao final, a instância narrativa anuncia que o Amanaçu “não é mais rio” (Tort, 2021TORT, Paulliny (2021). Erva Brava. São Paulo: Fósforo., 92), após o transbordamento final. Para deixar de ser, o que foi antes? Vale recordar a dificuldade de conceituar um rio, acentuada pelo escritor e biólogo Mia Couto (2009COUTO, Mia (2009). Rios, cobras e camisas de dormir. In: COUTO, Mia. E se Obama fosse africano? E outras interinvenções. Lisboa: Caminho., p. 55):

Acreditamos que todos sabemos o que é um rio. No entanto, essa definição é quase sempre redutora e falsa. Nenhum rio é apenas um curso de água, esgotável sob o prisma da hidrologia. Um rio é uma entidade vasta e múltipla. Compreende as margens, as áreas de inundação, as zonas de captação, a flora, a fauna, as relações ecológicas, os espíritos, as lendas, as histórias. É uma rede de entidades vivas, um assunto mais da Biologia que da Engenharia. Habituados a olhar as coisas como engenhos, esquecemos que estamos perante um organismo que nasce, respira e vive de trocas com a vizinhança.

Nessa perspectiva (compartilhada com as concepções de muitos povos originários), um rio possui agência, como ser integrado de relações e de histórias, é sujeito vivo de ações e relações. O rio ficcional de Tort (2021)TORT, Paulliny (2021). Erva Brava. São Paulo: Fósforo., o Amanaçu, percorre todas as narrativas, não estando apenas como paisagem ou cenário, mas indo além, tanto como entorno quanto como desencadeador das intrigas, especialmente no fecho do livro.

Com base em concepções estéticas, a filósofa Marta Tafalla Gonzalez (2015TAFALLA GONZALEZ, Marta (2015). Paisaje y Sensorialidad. In: LUNA, Toni; VALVERDE, Isabel (org.). Teoría y Paisaje II: Paisaje y emoción. El resurgir de las geografías emocionales. Barcelona: Olot i Barcelona. p. 115-136., p. 125) explica que a ideia de paisagem está centrada sobretudo no sentido da visão, que sugere uma interpretação — seja intelectual, seja emocional — posterior, dotando-a de significado. Por sua vez, diferentemente da paisagem, “um entorno é um lugar que podemos entrar, que caminhamos em diferentes direções e observamos de múltiplas perspectivas. Enquanto estamos nele, ela nos cerca, nos rodeia e as coisas que acontecem nele também nos afetam” (Tafalla, 2019TAFALLA, Marta (2019). Ecoanimal: una estética plurisensorial, ecologista y animalista. Madri: Plaza y Valdés., p. 162, tradução nossa).

O que caracteriza mais ainda a ideia de entorno é a apreciação multissensorial, que envolve todos os sentidos, e não só a visão. Como ressalta Marta Tafalla Gonzalez (2015)TAFALLA GONZALEZ, Marta (2015). Paisaje y Sensorialidad. In: LUNA, Toni; VALVERDE, Isabel (org.). Teoría y Paisaje II: Paisaje y emoción. El resurgir de las geografías emocionales. Barcelona: Olot i Barcelona. p. 115-136., um dos sentidos menos valorizados na tradição estética é o olfato, como se a percepção de um entorno não passasse por ele, contudo trata-se de um dos sentidos que mais afetam nossas memórias e relações imersivas com tudo o que nos rodeia, causando-nos repulsa ou atração conforme sua característica intrínseca. Muitas modificações nos odores dos ecossistemas, por causa das mudanças climáticas e das intervenções humanas, afetam os entornos, provocando “alterações e desordens nos equilíbrios dos ecossistemas. Se isso é assim, não temos outro remédio que tomarmos o sentido do olfato a sério” (Tafalla Gonzalez, 2015TAFALLA GONZALEZ, Marta (2015). Paisaje y Sensorialidad. In: LUNA, Toni; VALVERDE, Isabel (org.). Teoría y Paisaje II: Paisaje y emoción. El resurgir de las geografías emocionales. Barcelona: Olot i Barcelona. p. 115-136., p. 132, tradução nossa).

O onipresente Rio Amanaçu, como entorno, é vivido por múltiplos sentidos em Erva brava, de maneira especial seu odor, que espanta a todos e a todas. Em vários momentos, o rio, outrora limpo, agora interage com seus habitantes pelo seu cheiro de fossa, de água pútrida, por conta do lixo e, principalmente, pelos detritos que vêm das granjas e matadouros de animais ao seu redor, como dito na abertura do livro, no conto “Ternura e crack”:

O rio Amanaçu agora fede, às vezes mais que fossa. Ficou assim depois das granjas de galinha e de porco, que despejam o mingau dos esterqueiros na água. Não fazem isso todos os dias nem todas as semanas, mas de tempos em tempos. Então a vila apodrece e os peixes morrem afogados na merda, depois melhora, como hoje
(Tort, 2021TORT, Paulliny (2021). Erva Brava. São Paulo: Fósforo., p. 10).

Trata-se de um rio que não mais é um espaço de socialização, lazer e trabalho, apesar de resistir na memória do velho sineiro do conto “Como nascem os sinos”:

Minha nossa, como nadávamos nesse rio! Ele se vê de bermudas saltando das pedras, o corpo girando no ar e mergulhando na água, os lambaris assustados, os amigos saltando atrás, seguidos por meninas que se molhavam mansas até a cintura, algumas a carregar irmãos menores, enquanto as lavadeiras trabalhavam na outra margem, com suas tinas de roupas e suas pedras de sabão. Mas agora acabou, o que sobrou foi essa água podre, esse esgoto. Tonico fecha os olhos, comprime os lábios murchos, treme voluntariamente as mãos. Essa cidade ainda vai desaparecer, ele diz por entre os dentes
(Tort, 2021TORT, Paulliny (2021). Erva Brava. São Paulo: Fósforo., p. 26).

O trecho do conto permite analisar vários aspectos dos encontros culturais e emocionais entre o elemento humano e o não humano. Um deles é perceber Tonico, o tocador de sinos, tomado pela emoção conceituada por Gleen Albrecht (2020ALBRECHT, Glenn (2020). Las emociones de la Tierra: nuevas palabras para un nuevo mundo. Barcelona. Tradução de Judit Abelló. Mra., p. 59, tradução nossa) como solastalgia:

Defino solastalgia como a dor ou angústia causada pela perda contínua de conforto e a sensação de desolação relativa ao estado atual de seu entorno e seu território. É a experiência existencial derivada de uma mudança ambiental negativa que se manifesta como um ataque ao sentido de lugar.

Tais sentimentos centrados nas perdas de culturas e paisagens trazidas por transformações indesejadas em seus territórios foram especialmente pesquisados por Albrecht (2020)ALBRECHT, Glenn (2020). Las emociones de la Tierra: nuevas palabras para un nuevo mundo. Barcelona. Tradução de Judit Abelló. Mra. nas populações australianas que sofreram impactos psicológicos e comunitários derivados da mineração a céu aberto. A solastalgia atinge, segundo o teórico, aqueles que permanecem nas suas comunidades e percebem, cotidianamente, os desconfortos suscitados pelas modificações ambientais, de forma negativa. O velho Tonico sente por todo o corpo as referidas sensações, a falta de perspectiva e a proximidade do fim da cidade, talvez porque seu entorno, percebido multissensorialmente, já não exista. Afinal o rio, no sentido amplo de Mia Couto (2009)COUTO, Mia (2009). Rios, cobras e camisas de dormir. In: COUTO, Mia. E se Obama fosse africano? E outras interinvenções. Lisboa: Caminho., já não é mais o mesmo.

Há também a intensificação dessa perda, uma vez que o rio envolvia os denominados valores culturais da natureza. Esses valores, estudados por Erika Fernandes-Pinto (2024FERNANDES-PINTO, Erika (2024). Valores culturais da natureza: desatando nós e criando laços na implementação de políticas de conservação. Desenvolvimento e Meio Ambiente, v. 63, p. 315-338. https://doi.org/10.5380/dma.v63i0.89662
https://doi.org/10.5380/dma.v63i0.89662...
, p. 328), são “os significados simbólicos, vínculos históricos e ancestrais, bens, saberes, tradições, percepções e práticas de grupos sociais (do passado ou contemporâneos) intrinsecamente interligados a paisagens, elementos da flora, fauna, relevo ou fenômenos naturais”. A pesquisadora ressalta as relações de pertencimento que os valores culturais ligados à natureza promovem, especialmente se estão envolvidas questões afetivas. Com a destruição de práticas culturais vinculadas ao Rio Amanaçu, a narração anuncia que a cidade vai desaparecer.

Se no primeiro conto, “Ternura e crack”, já é descrito o rio poluído e fétido, cuja água só é frequentada pelos “espectros” consumidores da droga — “Isso é coisa que nunca imaginaram em Buriti Pequeno” (Tort, 2021TORT, Paulliny (2021). Erva Brava. São Paulo: Fósforo., p. 10) —, no conto final há o fim da cidade pela grande inundação.

Erva brava encerra seus olhares sobre a coletividade com o conto “Rios voadores”. Recorda-se que o título se remete ao termo consagrado ao fenômeno climático das correntes atmosféricas de água, derivadas da evaporação/transpiração das árvores da floresta amazônica, que, após seu longo percurso até a Cordilheira dos Andes, geram chuvas até no bioma no qual se localiza a fictícia cidade. Um fenômeno poeticamente nomeado mostra a composição entre diferentes elementos geocentrados e as consequências sobre as outras formas de vida. O conto aponta para o evento climático, mas por um viés de catástrofe, em tempos de urgência.

Em um foco narrativo menos usual, a primeira pessoa do plural (“nós”), o conto abre com a descrição da lama e dos insetos descendo pelo Morro da Baleia, que começa a desmanchar-se por conta da chuva intensa. “Apenas eu e você presenciamos a água pardacenta que desce os morros com toda sorte de galhos e folhas, húmus e liquens. Depois de meses de estiagem, chegaram da Amazônia os rios voadores. Com eles, as tempestades” (Tort, 2021TORT, Paulliny (2021). Erva Brava. São Paulo: Fósforo., p. 92). Há um estranhamento em relação ao impacto, em princípio negativo, de um evento climático tão significativo para o apontamento da importância da preservação da floresta.

Ao mesmo tempo, a narrativa sublinha a intensidade maior prevista para quaisquer ocorrências, tendo em vista o grau de intervenção humana na Terra, como vêm apontando todos e todas as cientistas há tempos. A enchente, que é “só o começo”, acentua, por exemplo, as disparidades sociais a proporcionar encontros inusitados, por exemplo, na Igreja de Nossa Senhora dos Homens Pretos, que passa a abrigar, como prédio resistente, pessoas de todos os credos e idades. Também os dejetos humanos e animais, com o transbordamento das fossas, se irmanam, independentemente de suas origens, em uma descrição escatológica.

Apesar de utilizar o “nós” como instância narrativa, a obra ressalta a impossibilidade de nos pensarmos de forma homogênea, haja vista a fratura colonial, como aponta Ferdinand (2022FERDINAND, Malcom (2022). Uma ecologia decolonial: pensar a partir do mundo caribenho. Tradução de Letícia Mei. São Paulo: Ubu., p. 149):

A pluralidade conflitual de atores, de tempos e de oikoi que tentam viver juntos no seio de uma pólis, de uma cidade, é subsumida no interior de um “nós” homogêneo. Embora esse “nós” possa ser multicor, ele se concentra em torno de um único oikos, de uma única maneira de habitar a Terra, à imagem da plantation colonial preservada pelas abolições do século XIX. As buscas das minorias por igualdade e por justiça sociais, anteriores à catástrofe, estão confinadas no porão inaudível do Antropoceno.

O conto mostra como os privilegiados, entre os quais o prefeito, saem antes, em sua “caravana de caminhonetes”, a “calcular prejuízos, como máquinas que não conseguem fazer outra coisa que não aquelas para as quais não foram programadas” (Tort, 2021TORT, Paulliny (2021). Erva Brava. São Paulo: Fósforo., p. 96).

Ao mesmo tempo que o conto aponta questões de justiça ambiental, permite-se dialogar com outra proposta epistemológica da ecologia decolonial, no seguinte trecho: “Atrás dos morros, no fundão do mato, há mais gente, alguns pequenos lavradores e seis indígenas. Mas eles estão fora da rota da tromba, portanto em melhor situação” (Tort, 2021TORT, Paulliny (2021). Erva Brava. São Paulo: Fósforo., p. 96). Pode-se deduzir que os pequenos lavradores, fora do esquema das grandes fazendas de monocultura dos endinheirados de Buriti Pequeno, podem estar alinhados ao que Ferdinand (2022)FERDINAND, Malcom (2022). Uma ecologia decolonial: pensar a partir do mundo caribenho. Tradução de Letícia Mei. São Paulo: Ubu. nomeia de ecologia quilombola, que traz uma nova forma de habitar a terra, por meio da

gestão interna das comunidades humanas e não humanas formadas pelo cuidado e pela preocupação que são dedicados a essa terra de vida, assim como na maneira como esses quilombolas fariam de tais espaços um lar, um oikos, aprendendo sua linguagem, seu logos. Ao contrário da sociedade de plantation, as comunidades quilombolas souberam viver a partir de seus arredores, dentro de uma pegada ecológica restrita
(Ferdinand, 2022FERDINAND, Malcom (2022). Uma ecologia decolonial: pensar a partir do mundo caribenho. Tradução de Letícia Mei. São Paulo: Ubu., p. 175)

Nessa reaprendizagem, há alianças com povos originários. Ferdinand (2022)FERDINAND, Malcom (2022). Uma ecologia decolonial: pensar a partir do mundo caribenho. Tradução de Letícia Mei. São Paulo: Ubu. não deixa de apontar o inescapável entrelaçamento dos efeitos do habitar colonial para todos os viventes, mesmo para os que buscam escapar da plantation, como demonstrado por sua pesquisa. Se o navio negreiro é fato e figura utilizados por ele, em sua discussão potente, a “arca de Noé” como possibilidade de refúgio também o é, pois aponta “alienação da relação com a Terra e uma perda do mundo” (Ferdinand, 2022FERDINAND, Malcom (2022). Uma ecologia decolonial: pensar a partir do mundo caribenho. Tradução de Letícia Mei. São Paulo: Ubu., p. 215). Não há escapatória a não ser pela política do encontro, proposta pela sua ideia do “navio-mundo”, mediante alianças possíveis, incluindo interespécies, em uma proposta de alinhamento de movimentos sociais ambientalistas, antirracistas e feministas, pois fundamentalmente a “crise ecológica é uma crise de justiça” (Ferdinand, 2022FERDINAND, Malcom (2022). Uma ecologia decolonial: pensar a partir do mundo caribenho. Tradução de Letícia Mei. São Paulo: Ubu., p. 267). Para resolvê-la, é preciso ir às suas origens colonialistas e criticar também as saídas mantenedoras de privilégios.

No conto de Paullinny Tort (2021)TORT, Paulliny (2021). Erva Brava. São Paulo: Fósforo., é narrado o fim da cidade de Buriti Pequeno (e o fim da antologia): “Já não existe Buriti Pequeno. E somente nós, eu e você, saberemos: daqui em diante será como se nunca houvesse existido” (Tort, 2021TORT, Paulliny (2021). Erva Brava. São Paulo: Fósforo., p. 98). Trata-se do fim da ficcional cidade, que talvez não prolongue sua existência para além da criação literária, a não ser pela voz narradora a interpelar “você”, na instância de leitura, a fim de reconfigurar o sentido da cidade e seu cataclisma representados. O fim catastrófico de Buriti Pequeno vem ao encontro de todo o sentimento de perda do lugar — conceituado pela solastalgia de Albrecht (2020)ALBRECHT, Glenn (2020). Las emociones de la Tierra: nuevas palabras para un nuevo mundo. Barcelona. Tradução de Judit Abelló. Mra. —, já apresentado em contos anteriores. Como se faltasse apenas essa resposta final à comunidade em crise em todos os níveis.

Se os contos previamente analisados permeiam relações conflitivas pelos (des)encontros com o não humano, por intermédio das intensificações das emergências climáticas, derivadas dos modelos predatórios de exploração do ambiente e da degradação dos sentimentos de pertencimento, as obras a seguir anunciam perspectivas mais individuais, porém potenciais para relações mais harmônicas com a vida em múltiplas formas.

Nesse sentido, o poema de Adriana Lisboa (2021)LISBOA, Adriana (2021). O vivo. Belo Horizonte: Relicário., O vivo, traz a interligação dos animais, vegetais e minerais, em uma perspectiva múltipla e não dualista da vida. A não separatividade e a diversidade estão na escolha lexical e morfológica, por exemplo, da própria palavra-título, por vezes substantivo, por vezes verbo, por vezes adjetivo:

o vivo
vivo como se fosse
meu este instante
mas ele não é mais
que canteiro
do vivo
há um animal que em mim
se observa
e segreda ao largo vivo
dentro dele
e por toda parte ao seu redor:
eu — nada mais
do que aquilo que habito
este instante
um canteiro
o ar que inventa o pulmão
(Lisboa, 2021LISBOA, Adriana (2021). O vivo. Belo Horizonte: Relicário., p. 37).

Sublinha-se que o substantivo — como classe morfológica — aponta e designa todos os seres. Assim, começa como substantivo, apontado por um artigo definido, tudo o que vive. Mas no primeiro verso a palavra se torna um verbo para uma enunciação a misturar tempo (“instante”) e espaço (“canteiro”) que anuncia a impossibilidade de posse, já que o artigo anunciado (“meu”) não é de ninguém. Trata-se de uma ilusão, porque a passagem do tempo é apenas um lugar no qual muitas coisas podem ser cultivadas, seja um pequeno jardim, seja um pomar, por exemplo. No início, um devir a ser, depois de muitas ações como planejar, semear, colher, observar, estar e estar no mesmo espaço e seus instantes. Canteiro dialoga com jardinagem. Sue Stuart-Smith (2021)STUART-SMITH, Sue (2021). La mente bien ajardinada: Las ventajas de vivir al ritmo de las plantas. Tradução de Jordi Ainaud. Madri: Debate., psiquiatra e psicoterapeuta, assim resume a atividade: “A jardinagem é o que acontece quando duas energias criativas convergem: a humana e a natureza. É um lugar de sobreposição entre o que é ‘eu’ e ‘não sou eu’, entre o que podemos conceber e o que o ambiente nos dá para trabalhar” (Stuart-Smith, 2021STUART-SMITH, Sue (2021). La mente bien ajardinada: Las ventajas de vivir al ritmo de las plantas. Tradução de Jordi Ainaud. Madri: Debate., p. 31, tradução nossa).

A segunda e a terceira estrofe estão ligadas, pois se anuncia, por meio de dois pontos, o segredo do animal que habita e observa a si mesmo e tudo mais: o vivo que está dentro e fora do canteiro, desde o humano envolvido até as amplitudes da vida-zoe. Animal habitante e habitado como o humano, em busca de individualização. Dois seres animados que habitam o mesmo tempo (“Este instante”) em um espaço que já está indefinido como seu artigo um (“um canteiro”), que não nos separa, que não nos pertence. Por fim, a inversão final da lógica antropocêntrica: “O ar que inventa o pulmão”. A agência da invenção está no ar, na última linha do poema, a criar o órgão animal responsável pelas trocas gasosas, que sustenta, no fim, o vivo, por meio da respiração.

Se a vida-zoe da não separatividade pudesse transcender também a dissolução do corpo físico — ou seja, a morte? A escritora Adriana Lisboa (2022)LISBOA, Adriana (2022). Todo o tempo que existe. Belo Horizonte: Relicário., no ensaio autobiográfico Todo o tempo que existe, descreve seu processo de luto pela morte dos pais. O mais importante aqui é sua relação com as plantas e os pássaros, um carinho especial aprendido em família, principalmente em relação às árvores do Jardim Botânico do Rio de Janeiro (RJ), um lugar no qual aprendeu a se “vegetalizar”, a perceber, por exemplo, a medida horizontal, o poder de uma árvore e a observação plena:

Aqueles passeios no Jardim Botânico, nos dias que antecederam a morte de meu pai, foram também passeios com ele. E com minha mãe. Com eles, para eles, por eles. E eu via a jacupemba com a família, e o tiê-galo com aquele garboso barrete vermelho no corpo de penas pretas; eu vi essas aves com eles, para eles, por eles
(Lisboa, 2022LISBOA, Adriana (2022). Todo o tempo que existe. Belo Horizonte: Relicário., p. 22).

Nesses encontros, Adriana Lisboa (2022)LISBOA, Adriana (2022). Todo o tempo que existe. Belo Horizonte: Relicário. ressalta que o Jardim Botânico tem um que de álbum de família, no qual há acolhimento:

Acolhimento do corpo extraordinário de um mundo infinitamente mais antigo que o nosso, e muito menos nosso do que gostamos de acreditar — nós que conquistamos, dominamos, ocupamos, capturamos, exploramos, modificamos para que fique do nosso agrado
(Lisboa, 2022LISBOA, Adriana (2022). Todo o tempo que existe. Belo Horizonte: Relicário., p. 25).

De certa forma, a autora/narradora enfatiza o parque como local de refúgio para o luto, mas também de reencontro com os pais, na companhia de seres não humanos, porém que também se comunicam com sua infância rememorada.

Outro encontro com o não humano é a obra híbrida de Maria Esther Maciel (2021)MACIEL, Maria Esther (2021). Pequena enciclopédia de seres comuns. São Paulo: Todavia. Pequena enciclopédia de seres comuns, que também tem traços autobiográficos e uma possibilidade de ver o mundo para além de si e de sua própria dor, pelo contato com o não humano. Organizada em verbetes e ilustrações de seres vivos, em sua apresentação já diz que talvez seja uma obra que não exista, e isso se justifica no prefácio, pois foi

escrito por uma bióloga que não é bióloga, mas finge ser uma, na medida do impossível. Já os seres vivos nele incluídos — todos classificados segundo certas peculiaridades de seus nomes comuns — tem uma realidade irrefutável: seja pela ciência, pela literatura ou por nenhuma das duas
(Maciel, 2021MACIEL, Maria Esther (2021). Pequena enciclopédia de seres comuns. São Paulo: Todavia.).

Maria Esther Maciel (2021)MACIEL, Maria Esther (2021). Pequena enciclopédia de seres comuns. São Paulo: Todavia. escolhe seus verbetes com base em viventes (plantas, aves, peixes, crustáceos, mamíferos) cuja nomeação comum seja formada aos pares entre dois substantivos, próprios, como Maria e João, ou comuns, sempre ligados por hífen, como: Flor-leopardo, Maria-farinha, João-bobo, Arbusto-borboleta, Peixe-cachorro etc. Em cada verbete, há o nome científico e uma ilustração de Julia Panadés, nos moldes de ilustração botânica ou zoológica. Inspirada tanto em bestiários medievais (com muitos seres reais de nosso cotidiano ou não) quanto na História dos animais, de Aristóteles, clássico da Antiguidade grega, organizado em verbetes, e muita mistura entre observação e suposições fantasiosas, a obra convida-nos à observação dessa fauna/flora cotidiana, seja na nomeação, seja no detalhismo das ilustrações, seja na ironia bem-humorada dos textos, balanceados entre encantamentos, informações objetivas e fantasiosas, alguma antropomorfização e denúncia. É dividido em capítulos, conforme as nomeações. Temos as marias, os joões, as viúvas e as viuvinhas, os híbridos e o et cetera (inconclusos), aludindo às classificações nas narrativas de Jorge Luis Borges.

Acentua-se aqui o gesto da escritora. Pela seleção de uma nomeação dada por nós, humanos, diante de associações imagéticas ou não, passou-se à observação do ser em suas características — objetivas e/ou imaginárias, tanto pelo lado da palavra quanto pelo do desenho da ilustradora. Há todo um tomo a respeito dos seres comuns nomeados como viúvas, como o pássaro viuvinha-alegre: “Essa viuvinha contradiz sua viuvez de várias formas. Para começar, seu corpo é todo branco. Tanto que muita gente a chama de ‘noivinha’. Só o bico, as penas extremas das asas e a ponta da cauda tem a cor do luto” (Maciel, 2021MACIEL, Maria Esther (2021). Pequena enciclopédia de seres comuns. São Paulo: Todavia., p. 59). Indo além, em meio ao tomo relativo a viúvas e viuvinhas, em sua maioria pássaros, mas não só, encontra-se o verbete “Viuvinha humana”, com o nome científico Homo sapiens viuvensis: “Ela está triste, mas não é triste. O desamparo que lhe é atribuído por outros humanos não existe senão como uma saudade doída do que foi irreversivelmente perdido. De resto, persiste e se mantém altiva” (Maciel, 2021MACIEL, Maria Esther (2021). Pequena enciclopédia de seres comuns. São Paulo: Todavia., p. 66). E reconhece-se, na ilustração “científica”, a própria escritora Maria Esther.

Em entrevista ao jornal Estado de Minas, em maio de 2021, ao descrever o processo de criação, Maciel conta que começou com as marias, seguidas das viuvinhas. Cita que, por conta da sua experiência da viuvez, quis tirar esse peso da palavra viúva de sua vida, dando-lhe leveza. Nos verbetes dedicados às viúvas e viuvinhas, há vários desses trechos que contradizem o peso simbólico da nomeação humana que, em princípio, não corresponde às características descritas textualmente. Pequena enciclopédia de seres comuns propõe um rico jogo entre o ato de nomeação, a descrição criativa, a ilustração e o colocar-se dentro e fora dessa voragem classificatória e promove encontros, olhares e emoções entre o humano e o não humano, a comprovar o continuum natureza-cultura, previamente teorizado.

Diante dos desafios contemporâneos, especialmente a emergência climática, as obras analisadas trazem interações múltiplas e olhares diversos sobre o mundo, tanto o humano quanto o não humano. Se na obra de Paulliny Tort (2021)TORT, Paulliny (2021). Erva Brava. São Paulo: Fósforo. os sentidos são marcados pela solastalgia causada pelos entornos modificados pela ação humana e pelo habitar colonial, nos textos de Adriana Lisboa (2021LISBOA, Adriana (2021). O vivo. Belo Horizonte: Relicário.; 2022LISBOA, Adriana (2022). Todo o tempo que existe. Belo Horizonte: Relicário.) e Maria Esther Maciel (2021)MACIEL, Maria Esther (2021). Pequena enciclopédia de seres comuns. São Paulo: Todavia. aparecem elementos de simbiose mais explícitos. Recorda-se que a simbiose é a base da mútua convivência entre organismos vivos em interconexão, como nos recorda Albrecht (2020)ALBRECHT, Glenn (2020). Las emociones de la Tierra: nuevas palabras para un nuevo mundo. Barcelona. Tradução de Judit Abelló. Mra.. Para ele, o individualismo antropocêntrico poderia ser questionado e superado por um pensamento que ressaltasse processos simbióticos, e não uma perspectiva competitiva entre os seres (Albrecht, 2020ALBRECHT, Glenn (2020). Las emociones de la Tierra: nuevas palabras para un nuevo mundo. Barcelona. Tradução de Judit Abelló. Mra., p. 142). Dialoga-se, enfim, com a interdependência da categoria de zoe, discutida previamente por Braidotti (2015)BRAIDOTTI, Rosi (2015). Lo Posthumano. Tradução de Juan Carlos Gentile Vitale. Barcelona: Gedisa..

Assim, o convite feito pelas escritoras é uma reflexão a respeito desses encontros com o não humano, harmoniosos ou não, que revitalizam nossas emoções, em diálogo com novas possibilidades de viver. Nesse sentido, a arte, a literatura não estão ausentes no processo de imaginar e traduzir nossos encontros indispensáveis com elementos não humanos que, afinal, também somos nós.

Referências

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  • TORT, Paulliny (2021). Erva Brava São Paulo: Fósforo.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    23 Set 2024
  • Data do Fascículo
    2024

Histórico

  • Recebido
    28 Mar 2024
  • Aceito
    11 Jul 2024
Grupo de Estudos em Literatura Brasileira Contemporânea, Programa de Pós-Graduação em Literatura da Universidade de Brasília (UnB) Programa de Pós-Graduação em Literatura, Departamento de Teoria Literária e Literaturas, Universidade de Brasília , ICC Sul, Ala B, Sobreloja, sala B1-8, Campus Universitário Darcy Ribeiro , CEP 70910-900 – Brasília/DF – Brasil, Tel.: 55 61 3107-7213 - Brasília - DF - Brazil
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