Acessibilidade / Reportar erro

Extrapolação e especulação: o Antropoceno na novela “Tóquio”, de Daniel Galera

Extrapolation and speculation: the Anthropocene in the novel by Daniel Galera, “Tóquio”

Extrapolación y especulación: el Antropoceno en la novela “Tóquio”, de Daniel Galera

Resumo

Este artigo debruça-se sobre a novela “Tóquio”, publicada em 2021 no livro O Deus das Avencas, de Daniel Galera, a fim de estudar como o Antropoceno é incluído na obra. Observando, primeiramente, o modo como as mudanças climáticas são apresentadas pelo autor em sua ficção, conclui-se que Galera (2021)GALERA, Daniel (2021). Tóquio. In: GALERA, Daniel. O Deus das Avencas: três novelas. São Paulo: Companhia das Letras. p. 65-169. extrapola os conhecimentos do presente para criar um futuro inóspito para suas personagens, de acordo com as ciências do clima. Depois, analisando a trama, aponta-se para o fato de que existe uma especulação sobre a organização social e política acerca do alastramento da cibernética com base em teorias sociológicas contemporâneas. Esses dois procedimentos, extrapolação e especulação, combinam-se para gerar uma ficção antiutópica que, embora trate do Antropoceno, se prende ainda a convenções literárias do romance burguês moderno. O objetivo final do artigo é mostrar que a criação de Galera (2021)GALERA, Daniel (2021). Tóquio. In: GALERA, Daniel. O Deus das Avencas: três novelas. São Paulo: Companhia das Letras. p. 65-169. sugere uma posição relativamente conservadora relativa às possibilidades e aos desafios que a literatura enfrenta no contexto catástrofes climáticas.

Palavras-chave:
Antropoceno; Daniel Galera; especulação; política; estética

Abstract

The article deals with Daniel Galera’s short story entitled “Tóquio”, published in 2021 in the book O Deus das Avencas. The first objective of this paper was to study the inclusion of the Anthropocene into the story, analyzing how climate change is presented by the author, in order to show that Galera (2021)GALERA, Daniel (2021). Tóquio. In: GALERA, Daniel. O Deus das Avencas: três novelas. São Paulo: Companhia das Letras. p. 65-169. extrapolates the scientific knowledge to create an inhospitable future where the characters live. Later, the paper investigated the plot, intending to explore the speculation over political and social organizations yielded by the spreading of the cybernetics based on contemporary sociological theories. Extrapolation and speculation are both procedures that combine to generate an antiutopian fiction that still depends on the literary conventions of the modern bourgeois novel, despite the presence of the Anthropocene. The final objective of the article was to evince that Galera’s (2021)GALERA, Daniel (2021). Tóquio. In: GALERA, Daniel. O Deus das Avencas: três novelas. São Paulo: Companhia das Letras. p. 65-169. short story suggests a relatively conservative position as far as the challenges and possibilities of literature in the context of climate catastrophes go.

Keywords:
Anthropocene; Daniel Galera; speculation; politics; aesthetics

Resumen

Este artículo trata de la novela “Tóquio”, publicada en 2021 por Daniel Galera y presente en el libro O Deus das Avencas. Su objetivo fue estudiar la inclusión del Antropoceno en la narrativa, de forma a analisar como los cambios climáticos son representados en ella. En seguida, el artículo muestra el modo como Galera (2021)GALERA, Daniel (2021). Tóquio. In: GALERA, Daniel. O Deus das Avencas: três novelas. São Paulo: Companhia das Letras. p. 65-169. extrapola el conocimiento científico para crear un futuro literario inhóspito donde viven sus personajes. Después, este texto investigó la trama de la novela, a fin de comprender la especulación que el autor hace sobre las condiciones políticas y sociales derivadas de la diseminación de la cibernética de acuerdo con las teorías sociológicas contemporáneas. Así que, concluyese, extrapolación y especulación son dos modos de creación literaria que se mesclan para generar una ficción antiutópica que todavía depende de las convenciones artísticas de la novela burguesa moderna, aún que el Antropoceno estea presente. El objetivo último del artículo fue evidenciar que la narrativa de Galera (2021)GALERA, Daniel (2021). Tóquio. In: GALERA, Daniel. O Deus das Avencas: três novelas. São Paulo: Companhia das Letras. p. 65-169. supone una posición conservadora respecto a los retos y posibilidades para la literatura en el contexto de catástrofes climáticas.

Palabras-clave:
Antropoceno; Daniel Galera; especulación; política; estética

O ANTROPOCENO E A LITERATURA

O ano de 2023 provavelmente entrará para a história como o ponto de virada no clima. Basta olhar o noticiário para verificar o número assombroso de eventos extremos concentrados em um pequeno intervalo de tempo: no Havaí, em agosto, os incêndios florestais que devastaram a ilha deixaram mais de cem mortos; na Grécia, em setembro, ao menos 14 pessoas morreram nas enchentes que assolaram o país; no mesmo mês, houve quase 50 mortos em decorrência do ciclone que devastou o Rio Grande do Sul; mais grave ainda foram as inundações na Líbia, também em setembro, que contabilizaram aproximadamente 11 mil vítimas fatais segundo relatórios da Organização das Nações Unidas (apud DW Brasil, 2023DW BRASIL. Mais de 11 mil mortos após enchentes na Líbia. DW Brasil, 17 set. 2023. Disponível em: https://www.dw.com/pt-br/onu-mais-de-11-mil-mortos-ap%C3%B3s-enchentes-na-l%C3%ADbia/a-66838520. Acesso em: 29 maio 2024.
https://www.dw.com/pt-br/onu-mais-de-11-...
); setembro também viu o recorde de temperatura média global sendo batido, superando em 1,4°C a média dos anos pré-industriais para o mesmo mês. Todos esses eventos dão testemunho do fato de que vivemos em uma nova era geológica: o Antropoceno1 1 O termo Antropoceno foi cunhado pelo químico holandês Paul Crutzen para referir-se às mudanças no clima introduzidas pela atividade humana. Entre as principais, destacam-se: a transformação de até metade da superfície da Terra em função de atividades agrícolas ou de extrativismo; a barragem de rios para fins de produção de energia; a produção química de fertilizantes muito além da capacidade natural de geração de nitrogênio; o crescimento acentuado da atividade pesqueira nas costas marítimas; e a utilização de mais da metade da água doce pelos humanos (Kolbert, 2015, p. 117). O mais decisivo, porém, é a alteração da composição da atmosfera pela emissão de gases de efeito estufa, em função da queima de combustíveis fósseis e da agropecuária, que, além disso, diminui a cobertura florestal do planeta, causando também a extinção de espécies de todo tipo. Para dados mais precisos sobre os efeitos do Antropoceno nos ecossistemas terrestres, indico a leitura de Marques (2023). .

Com efeito, o Antropoceno ainda não foi devidamente oficializado na área da geologia. Muito embora químicos, físicos e geólogos tendam a afirmar que houve uma ruptura recente no clima da Terra que transformou as condições relativamente estáveis do Holoceno, último período de mudança climática significativa após o grande degelo, o conceito tem maior respaldo atualmente nas áreas da sociologia, da filosofia e principalmente da antropologia.

Por isso, no âmbito da cultura, o aquecimento global e seus desdobramentos aparecem como um elemento destacado de preocupação e elucubração teórica. Ultimamente têm saído muitas e consideráveis publicações sobre o tema, tanto aquelas que colocam em xeque a atividade econômica, política e social humana, mostrando sua vinculação inquestionável com o aumento significativo da temperatura média global nos últimos decênios — como, por exemplo, Scranton (2015)SCRANTON, Roy (2015). Learning to die in the antropocene: reflections on the end of civilization. São Francisco: City Lights Books., Crary (2022)CRARY, Jonathan (2022). Scorched Earth: beyond the digital age to a post-capitalist world. Londres e Nova York: Verso. e Marques (2023)MARQUES, Luiz (2023). O decênio decisivo: propostas para uma política de sobrevivência. São Paulo: Elefante. —, quanto as que buscam mostrar os impactos do novo regime climático nas sociedades humanas, seja pelo viés da etnografia e dos desafios que o Antropoceno apresenta para novas formas de economia e sociabilidade (Tsing, 2015TSING, Anna Lowenhaupt (2015). The murshroom at the end of the world: on the possibility of life in capitalist ruins. Princeton e Oxford: Princeton University Press.; Povinelli, 2016POVINELLI, Elizabeth A. (2016). Geontologies: a requiem to late capitalism. Durham e Londres: Duke University Press.), seja pelo viés da filosofia e da crítica cultural, em busca de novas balizas para o entendimento e o enfrentamento das mudanças (Latour, 2020LATOUR, Bruno (2020). Diante de Gaia: oito conferências sobre a natureza no Antropoceno. Tradução de Maryalua Meyer. São Paulo: Ubu.; Chakrabarty, 2021CHAKRABARTY, Dipesh (2021). The climate of history in a planetary age. Chicago e Londres: University of Chicago Press.; Morton, 2023MORTON, Timothy (2023). O pensamento ecológico. Tradução de Renato Prelorentzou. São Paulo: Quina.).

Em todo caso, concordando com Ghosh (2016)GHOSH, Amitav (2016). The great derangement: climate change and the unthinkable. Chicago e Londres: University of Chicago Press., ao que parece a literatura ainda está desorientada diante do Antropoceno. Ainda que não se furtem a tentativas de enquadrar os fenômenos recentes, parece-nos que os escritores e as escritoras contemporâneos ainda não encontraram o tom adequado para lidar com as mudanças climáticas e seus efeitos na vida social. Diante da possibilidade concreta da sexta extinção em massa da vida na Terra (Kolbert, 2015KOLBERT, Elizabeth (2015). A sexta extinção: uma história não natural. Tradução de Mauro Pinheiro. Rio de Janeiro: Intrínseca.) e mesmo da alta probabilidade de transformação nos modos de produção e consumo ante a destruição das cadeias produtivas e de distribuição de mercadorias (Marques, 2023MARQUES, Luiz (2023). O decênio decisivo: propostas para uma política de sobrevivência. São Paulo: Elefante.), a literatura ainda patina em busca de formas sensíveis que não se resumam exclusivamente à documentação da catástrofe climática.

Não se trata apenas de propor como papel da literatura a mera representação das mudanças climáticas; trata-se, em vez disso, de encontrar no discurso estético-literário modos de percepção dessas mudanças em uma chave que envolva, antes de tudo, situar a própria humanidade como parte do problema e, ao mesmo tempo, como principal interessada em ações concretas para a evitação da catástrofe. Trata-se, portanto, de se obter uma compreensão estética em escala, conectando as duas vidas do Antropoceno (as medidas científicas e a escala geológica, de um lado, e, de outro, a percepção da crise ecológica na escala humana) em um sistema capaz de dar conta da complexidade de agentes envolvidos nas mudanças climáticas e implicados em suas consequências (Chakrabarty, 2021CHAKRABARTY, Dipesh (2021). The climate of history in a planetary age. Chicago e Londres: University of Chicago Press., p. 158), bem como da heterogeneidade de processos enredados na ecologia do clima e nas atividades socioeconômicas que a afetam, a fim de tomar medidas rápidas e efetivas para a mitigação do problema.

Mais agora do que nunca, talvez, a literatura se põe no dever de cumprir a sua suposta tarefa na formação de consciência social e de incitadora da transformação política, no entanto ainda assim ela, como muitas outras atividades sociais, parece confinar-se à sua impotência diante da magnitude dos problemas concretos que já nos assolam. Como bem afirma Ghosh (2016)GHOSH, Amitav (2016). The great derangement: climate change and the unthinkable. Chicago e Londres: University of Chicago Press., ao chamar esse momento histórico de the great derangement (o grande desatino):

In the era of global warming, nothing is really far away; there is no place where the orderly expectations of bourgeois life hold unchallenged sway. It is as though our earth had become literary critic and were laughing at Flaubert, Chatterjee, and their like, mocking their mochery of the “prodigious happenings” that occur so often in romances and epic poems.

This, then, is the first of the many ways in which the age of global warming defies both literary fiction and contemporary common sense: the weather events of this time have a very high degree of improbability. Indeed, it has even been proposed that this era should be named the “catastrophozoic” (others prefer such phrases as “the long emergency” and “the Penumbral Period”). It is certain in any case that these are not ordinary times: the events that mark them are not easily accommodated in the deliberately prosaic world of serious prose fiction (Ghosh, 2016GHOSH, Amitav (2016). The great derangement: climate change and the unthinkable. Chicago e Londres: University of Chicago Press., p. 26, destaque do autor.)

Nesses tempos de catástrofes ecológicas cada vez mais constantes, a imprevisibilidade do clima choca-se com a previsibilidade das formas de vida e sociabilidade desenvolvidas e cultivadas nos últimos séculos. Ghosh (2016)GHOSH, Amitav (2016). The great derangement: climate change and the unthinkable. Chicago e Londres: University of Chicago Press. alega que as peripécias pelas quais passam as personagens dos romances burgueses modernos dependem da estabilidade climática do Holoceno. Em outros termos, à medida que a natureza aparece como paisagem na sua amena perenidade, torna-se possível o engendramento de ações num âmbito estritamente humanista e antropocêntrico.

Como atesta Ghosh (2016GHOSH, Amitav (2016). The great derangement: climate change and the unthinkable. Chicago e Londres: University of Chicago Press., p. 23), “the modern novel, unlike geology, has never been forced to confront the centrality of the improbable: the concealment of its scaffolding of events continues to be essential to its functioning”, de modo que o desenrolar das ações no romance burguês moderno — a forma literária que acompanha a urbanização e a industrialização, intensificadoras do aquecimento global — se dá num regime sensível em que o provável está predeterminado pelos vínculos sociais das personagens, deixando de lado o meio ambiente. “Probability and the modern novel are in fact twins, born at about the same time, among the same people, under a shared star that destined them to work as vessels for the containment of the same kind of experience”, afirma Ghosh (2016GHOSH, Amitav (2016). The great derangement: climate change and the unthinkable. Chicago e Londres: University of Chicago Press., p. 16), de sorte que o provável — ou o verossímil — decorre da previsibilidade da natureza.

A maioria das personagens não é confrontada por condições climáticas adversas, nem sua trajetória é afetada por catástrofes naturais; quando isso ocorre, quase sempre prevalecem as histórias de superação moral sobre a natureza inclemente. Com isso, instaura-se um regime poético e sensível no qual os eventos narrados respondem a determinada organização da experiência — ou, em dado sentido, um “cálculo probabilístico”, do tipo “estatístico” (Ghosh, 2016GHOSH, Amitav (2016). The great derangement: climate change and the unthinkable. Chicago e Londres: University of Chicago Press., p. 25) — que toma como certa (take for granted)2 2 Ou, para recuperar o excelente jogo de palavras de Le Guin (2004), take for granite: “Huge heavy things come and stand on granite and the granite just stays there and doesn’t react and doesn’t give way and doesn’t adapt and doesn’t oblige and when the huge heavy things walk away the granite is there just the same as it was before, just exactly the same, admirably”. É como se a natureza fosse “tomada por granito” nas obras do romance burguês moderno, isto é, tal qual o granito, que não muda sua forma diante de nada, a natureza oferece um ponto de apoio firme e imutável sobre o qual as histórias burguesas podem se desdobrar. As catástrofes ocorrem somente na vida das pessoas, mas nunca em virtude de uma influência decisiva do clima. a estabilidade do clima em prol das histórias humanas.

Ora, num mundo assolado por notícias como as elencadas anteriormente, não podemos dizer que a humanidade ainda desfruta a estabilidade climática do Holoceno. Isso significa que a previsibilidade que respalda o romance burguês moderno dá lugar a outro regime sensível, no qual a imprevisibilidade climática entra como um fator importante. Uma vez que o aquecimento global provoca mudanças significativas na natureza, os eventos típicos que fazem parte da grande narrativa da humanidade não podem mais deixar de lado agentes naturais (ou geológicos) que integram os ecossistemas. Quer dizer, cada vez mais, à medida que imergimos no Antropoceno, não é mais possível desvincular a narrativa humana da narrativa de outros seres (viventes ou não) coimplicados na própria sobrevivência das condições de vida no planeta.

De acordo com Latour (2020LATOUR, Bruno (2020). Diante de Gaia: oito conferências sobre a natureza no Antropoceno. Tradução de Maryalua Meyer. São Paulo: Ubu., p. 125), é preciso lançar luz sobre os agentes não humanos que são parte de uma natureza não “(des)naturada”, não “desanimada” que, no contexto atual, com seu ritmo frenético e acelerado, se sobrepõe à história humana, mais passiva. Logo, a geontologia liberal inscrita na oposição vida × não vida (Povinelli, 2016POVINELLI, Elizabeth A. (2016). Geontologies: a requiem to late capitalism. Durham e Londres: Duke University Press.) deve dar lugar a uma ontologia criativa que possa dar conta das interações complexas entre as espécies, inaugurando narrativas mais sensíveis à inextrincabilidade da vida no planeta — mesmo no que tange às questões socioeconômicas, como demonstra Tsing (2015)TSING, Anna Lowenhaupt (2015). The murshroom at the end of the world: on the possibility of life in capitalist ruins. Princeton e Oxford: Princeton University Press. com o exemplo da cadeia produtiva do cogumelo matsutake.

Nessa medida, a sensibilidade literária precisa estar alerta para arregimentar formas de visibilidade e representabilidade dessa condição ecológica. Com isso, uma nova ordem de fenômenos passa a ser tangível, inaugurando, portanto, um novo regime de possibilidades que aponta tanto para uma nova materialidade da vida na Terra (a vida no Antropoceno) quanto para uma nova sensibilidade estética conjugada (as formas sensíveis dessa materialidade).

Não por acaso, talvez, a literatura do Antropoceno se abre para a ficção científica3 3 Aqui podemos citar, por exemplo, o livro de Stanislaw Lem, Solaris, referenciado por Ghosh (2016), bem como a ficção de Ursula Le Guin (A Mão Esquerda da Escuridão, A Floresta é o Nome do Mundo) e de Margaret Atwood (Oryx e Crake), entre muitos outros. ou para formas especulativas que almejam dar conta da realidade simbiótica cada vez mais palpável da vida no Antropoceno4 4 Já aqui vale a pena mencionar aquelas obras que mesclam diferentes registros discursivos, a fim de tornar visíveis outras formas de vida e os elos que a humanidade entretém com elas. São exemplos, entre alguns outros: Autobiografia de um Polvo, de Vinciane Despret, Escute as Feras, de Nastassja Martin, e Ficções Amazônicas, de Aparecida Vilaça e Francisco Vilaça Gaspar. . Nessas obras, nota-se um genuíno esforço para romper de algum modo com o regime sensível dos últimos dois séculos, abrindo caminho para elucubrações que, no limite, se aproximam daquilo que Nodari (2015NODARI, Alexandre (2015). A literatura como antropologia especulativa. Revista da Anpoll, Florianópolis, v. 1, n. 38, p. 75-85. https://doi.org/10.18309/anp.v1i38.836
https://doi.org/10.18309/anp.v1i38.836...
, p. 82-83) chamou de “literatura como antropologia especulativa” e Brito Jr. (2021BRITO JR., Antonio Barros de (2021). A excepcionalidade estética: agenciamento e produção de mundos. Organon, Porto Alegre, v. 36, n. 72, p. 286-305. https://doi.org/10.22456/2238-8915.119738
https://doi.org/10.22456/2238-8915.11973...
, p. 299) apresentou como a “excepcionalidade estética”. Contudo, em alguns desses esforços, muito embora o Antropoceno figure como um elemento na ficção, os modos de organização da experiência sensível ainda se vinculam às convenções do romance burguês moderno. É o caso da novela “Tóquio”, publicada por Daniel Galera no livro O Deus das Avencas (2021).

Nessa novela, Galera (2021)GALERA, Daniel (2021). Tóquio. In: GALERA, Daniel. O Deus das Avencas: três novelas. São Paulo: Companhia das Letras. p. 65-169. demonstra a preocupação com o Antropoceno5 5 A preocupação de Daniel Galera com as questões climáticas está manifesta também em outras contingências que talvez nos ajudem a evidenciar seu vínculo com o tema. Basta dizer, por exemplo, que ele esteve recentemente entre os participantes da mesa Literatura e Antropoceno, no evento Campus Antropoceno Brasil, realizado na cidade de Porto Alegre (RS) entre os dias 7 e 12 de novembro de 2022, bem como é tradutor do livro Maneiras de Ser, de James Bridle (2022), que trata, entre outras coisas, das relações simbiônticas entre humanos, animais, plantas e máquinas. Além disso, Galera tem se dedicado a oficinas de escrita criativa que têm como tema a literatura pós-antropocênica. , colocando-o mesmo como constitutivo da narrativa, juntamente com outros emblemas da vida contemporânea, como, por exemplo, a inteligência artificial, o capitalismo neoliberal e a cibernética. O narrador-personagem — empreendedor de uma fazenda urbana de aquaponia, filho de uma executiva da Heracle (uma megaempresa de computação que insere a consciência das pessoas em “pupas”, robôs hiper-realistas ou outros dispositivos eletrônicos que não necessariamente simulam a morfologia humana) e ex-namorado de Cristal, uma ativista das causas ambientais — conta-nos a história da relação traumática com sua progenitora, cujas consciência e personalidade implacável sobrevivem em um desses dispositivos.

Entre sessões de terapia coletiva com um terapeuta winnicottiano precarizado cuja renda provinha de contribuições espontâneas (Galera, 2021GALERA, Daniel (2021). Tóquio. In: GALERA, Daniel. O Deus das Avencas: três novelas. São Paulo: Companhia das Letras. p. 65-169., p. 67), em que os membros levavam seus respectivos parentes armazenados em distintos dispositivos, e a rememoração dos eventos críticos envolvendo seus relacionamentos conturbados com a mãe ausente e a ex-namorada padecente de lapsos de consciência, o narrador de Galera (2021)GALERA, Daniel (2021). Tóquio. In: GALERA, Daniel. O Deus das Avencas: três novelas. São Paulo: Companhia das Letras. p. 65-169. ambienta-nos num futuro inóspito em que o aumento da temperatura média da Terra devastou sociedades, desertificou solos, comprometeu a agricultura, disseminou vírus e tornou muito difíceis as condições de vida das pessoas nas grandes metrópoles.

A novela oscila entre “aquela Tóquio [que] seria desfigurada nas décadas seguintes pelo aquecimento do clima, pelas pandemias e pelas crises de abastecimento” (Galera, 2021GALERA, Daniel (2021). Tóquio. In: GALERA, Daniel. O Deus das Avencas: três novelas. São Paulo: Companhia das Letras. p. 65-169., p. 112) e São Paulo, que é como

a maioria das megacidades, uma mistura de habitações improvisadas, fazendas urbanas e mercados de pulgas interligados por túneis desinfetados e refrigerados, cercada por vastidões de território inóspito e parcialmente demolido onde a luta por sobrevivência ganhava feições que nós, os privilegiados que viviam no entorno das torres, tínhamos dificuldades para imaginar (Galera, 2021GALERA, Daniel (2021). Tóquio. In: GALERA, Daniel. O Deus das Avencas: três novelas. São Paulo: Companhia das Letras. p. 65-169., p. 112).

O texto exercita dois modos de cogitação a respeito do Antropoceno — e que demonstram uma inquietação estética em torno da derrocada do clima. De um lado, Galera (2021)GALERA, Daniel (2021). Tóquio. In: GALERA, Daniel. O Deus das Avencas: três novelas. São Paulo: Companhia das Letras. p. 65-169. investe naquilo que chamo de extrapolação, uma espécie de antecipação dos efeitos que o aumento da temperatura média causará ao planeta, de acordo com os principais relatórios científicos. De outro lado, o autor imagina como esses efeitos concretos na natureza e no clima incidirão, em alguma escala, nas formas de organização social e política do futuro — exercício que chamo de especulação.

EXTRAPOLAÇÃO: EXAGERAR A CIÊNCIA

No que diz respeito à extrapolação, Galera (2021)GALERA, Daniel (2021). Tóquio. In: GALERA, Daniel. O Deus das Avencas: três novelas. São Paulo: Companhia das Letras. p. 65-169. apenas segue em algum grau as predições que a ciência do sistema Terra (cf. Veiga, 2019VEIGA, José Eli da (2019). O antropoceno e a ciência do sistema Terra. São Paulo: 34.) tem feito, diante dos alarmantes níveis de concentração de gases de efeito estufa (GEE) na atmosfera e outras formas de poluição e degradação ambiental. Como nos mostra Marques (2023MARQUES, Luiz (2023). O decênio decisivo: propostas para uma política de sobrevivência. São Paulo: Elefante., p. 40), “o que caracteriza o nosso tempo, após setenta anos de crescentes emissões de GEE, de poluição e destruição da natureza, é a minimização dessa liberdade de escolhas de futuro”, deixando-nos cada vez mais sem condições de agir para impedir o processo de extinção global da vida e aumentando as probabilidades de que a previsão dos modelos científicos para o clima se torne de fato a nossa existência concreta nas próximas décadas.

Nesse sentido, o futuro que Galera (2021)GALERA, Daniel (2021). Tóquio. In: GALERA, Daniel. O Deus das Avencas: três novelas. São Paulo: Companhia das Letras. p. 65-169. apresenta em sua novela não discrepa do futuro da própria Terra, se a humanidade continuar na sua tendência de devastação ambiental e poluição atmosférica. Logo, ainda que esteja em jogo a imaginação do escritor, não se trata de uma autêntica invenção — não, pelo menos, no que tange à representação dos elementos que compõem o meio ambiente em que as personagens vivem. Isso porque, em que pese o fato de ser uma antecipação, o futuro que Galera (2021)GALERA, Daniel (2021). Tóquio. In: GALERA, Daniel. O Deus das Avencas: três novelas. São Paulo: Companhia das Letras. p. 65-169. imagina já está devidamente construído pelo discurso científico. Trexler (2015)TREXLER, Adam (2015). Anthropocene fictions: the novel in a time of climate change. Charlottesville e Londres: University of Virginia Press., por exemplo, é capaz de nos dar um vislumbre bastante alarmante do futuro, em uma linguagem que segue os parâmetros científicos, na mesma proporção em que se afasta da retórica literária:

Future impacts are predictions, not facts. Actual outcomes will be affected by future emissions, human efforts at adaptation, and, to some extent, geophysical forces beyond human control. Yet barring tremendous, immediate, and global interventions in emissions, global temperatures are likely to rise between 3 and 5 degrees centigrade by 2100, leading to a number of predictable geophysical, biological, social, and economic outcomes. Droughts, tropical cyclones, heat waves, crop failures, forest diebacks and fires, and erosion will become more extreme. Inadequate water supplies, malnutrition, diarrheal diseases, and infectious diseases will become more common. Flooding, drought, and water shortages will lead to mass migration and regional conflicts. Low-lying coastal areas, including island countries, will face risks from rising sea levels and more intense coastal storms. Over one billion people will face risks from reduced agricultural production. Traditional ways of life will be disrupted, particularly in polar regions. The Mediterranean, western North America, Southern Africa, southern Australia, and northeastern Brazil will face decreased precipitation and desertification. Ocean acidification is already occurring, and much of the world’s coral is likely to die. In polar regions, permafrost is already melting. Ice sheets in Greeland and West Antarctica would likely take centuries or millennia to melt, leading to significant rises in sea levels. Weather patterns will be disrupted, including the Gulf Stream, leading to persistente cooling in Greenland and Northwest Europe. This warming will lead to release of further greenhouse gases from permafrost, peat land, wetlands, and large stores of marine hydrates, exacerbating these problems. There will be significant losses of biodiversity, perhaps even the world’s sixth extinction event. Human societies and economies have considerable potential to adapt to these changes, but the economic costs of this adaptation are likely to be considerable and unequally distributed. Earth’s biological and geophysical systems have much less potential for adaptation. All of these systems are likely to be further effected by greater warming and more rapid changes (Trexler, 2015TREXLER, Adam (2015). Anthropocene fictions: the novel in a time of climate change. Charlottesville e Londres: University of Virginia Press., p. 1-2).

Esse vasto elenco de catástrofes não é uma invenção. Muito pelo contrário. O que está em evidência aqui é tão somente a confirmação dos piores cenários aventados pelos principais modelos científicos, de modo que, quando Galera (2021)GALERA, Daniel (2021). Tóquio. In: GALERA, Daniel. O Deus das Avencas: três novelas. São Paulo: Companhia das Letras. p. 65-169. internaliza alguns desses elementos em sua novela, ele não está propriamente inventando um ambiente inóspito. Ele descreve, em vez disso, possivelmente a realidade que nos espera — pelo menos no nível ecológico —, algo que é, portanto, criado pela sociedade capitalista em agência coletiva. Assim, as personagens do texto se movimentam em um ambiente saturado pelas mudanças climáticas e suas consequências prováveis do mesmo modo que nós, seus leitores, experimentaremos em breve. Trata-se, em última análise, de um expediente que os romances das décadas passadas deixaram de reproduzir, porque “disasters disassemble the illusion of realism, rupturing quotidian experience, devastating towns, fracturing the economy, and severing connections of bourgeois ecosystems” (Trexler, 2015TREXLER, Adam (2015). Anthropocene fictions: the novel in a time of climate change. Charlottesville e Londres: University of Virginia Press., p. 224), obrigando a obra a assemelhar-se aos gêneros menos nobres da literatura.

Isso coloca em outro prisma a questão da probabilidade na ficção, tal como entendida por Ghosh (2016)GHOSH, Amitav (2016). The great derangement: climate change and the unthinkable. Chicago e Londres: University of Chicago Press.. Se, de acordo com o crítico e romancista indiano, a probabilidade dos eventos que acontecem no romance burguês moderno depende da constância climática que os engloba, na novela de Galera (2021)GALERA, Daniel (2021). Tóquio. In: GALERA, Daniel. O Deus das Avencas: três novelas. São Paulo: Companhia das Letras. p. 65-169., por sua vez, a probabilidade diz respeito menos ao que é possível ocorrer aos personagens e mais ao que é possível que aconteça com a Terra.

Deslocada para o âmbito do meio ambiente, a questão da probabilidade se refere aqui a como criar um cenário para uma história do futuro que tem a ver não mais com a instabilidade sociopolítica e econômica do contexto em que as personagens se inserem, mas sim com as condições específicas para a vida e sua reprodução no planeta. Logo, o campo de possibilidades aberto à novela de Galera (2021)GALERA, Daniel (2021). Tóquio. In: GALERA, Daniel. O Deus das Avencas: três novelas. São Paulo: Companhia das Letras. p. 65-169. respeita, acima de tudo, as condicionantes de uma lógica do possível que é orientada não pela ficção, porém pela ciência. Então, se a narrativa dos séculos passados, segundo Ghosh (2016)GHOSH, Amitav (2016). The great derangement: climate change and the unthinkable. Chicago e Londres: University of Chicago Press., se moveu nas convenções literárias do provável em virtude da configuração do espaço social e cultural, estreitando as possibilidades em função da realidade socioeconômica e política dos sujeitos, para Galera (2021)GALERA, Daniel (2021). Tóquio. In: GALERA, Daniel. O Deus das Avencas: três novelas. São Paulo: Companhia das Letras. p. 65-169. se trata antes de sujeitar o meio ambiente à lógica do provável em função das mudanças climáticas empiricamente observáveis, rotulando como real o mundo devastado de sua novela.

Enquanto aguardava Cristal sair do banho, fiquei assistindo na TV uma reportagem sobre o avanço do mar em cidades litorâneas japonesas como Toba e Ito. Na esteira de mais um tufão, as águas avançavam em marolas sujas e sonolentas por centenas de metros de área urbana, alagando depósitos, vilarejos de pescadores e resorts de verão abandonados e lúgubres, evocando imagens antigas do maremoto que causou o acidente nuclear de Fukushima. Apareceram cenas da Groenlândia sem gelo no inverno e das queimadas na Amazônia. O mundo era um fósforo que queimava a pontinha dos dedos, mas a raça humana não ia soltar o palito, a luz da chama era nosso delírio e nossa perdição. De todo modo, era tarde demais (Galera, 2021GALERA, Daniel (2021). Tóquio. In: GALERA, Daniel. O Deus das Avencas: três novelas. São Paulo: Companhia das Letras. p. 65-169., p. 118).

Há exageros. Por isso é que chamo de extrapolação esse recurso utilizado por Galera (2021)GALERA, Daniel (2021). Tóquio. In: GALERA, Daniel. O Deus das Avencas: três novelas. São Paulo: Companhia das Letras. p. 65-169.. Mas é nesse cenário provável, embora amplificado, que se desdobram as histórias de vida das personagens da novela. Sendo assim, as ações que são narradas são devidamente condicionadas por esse ambiente. São notáveis, por exemplo, os momentos em que o narrador e sua companheira têm de andar de máscara pelos espaços urbanos ou se descontaminar quando entram em algum estabelecimento: “Entramos, fizemos os testes contra as doenças todas, tiramos as máscaras, nos desinfetamos” (Galera, 2021GALERA, Daniel (2021). Tóquio. In: GALERA, Daniel. O Deus das Avencas: três novelas. São Paulo: Companhia das Letras. p. 65-169., p. 91). Com isso, existe uma determinação do possível em termos ecológicos sobre o provável em termos sociais: a imprevisibilidade da natureza passa a ser o cenário no qual se dão as ações, orientando a forma como o escritor imagina o desenrolar das histórias individuais das personagens.

No desenvolvimento da novela, temos, de um lado, o fato consumado da catástrofe climática, que, nesse novo regime (o do Antropoceno), instaura a instabilidade como condição para a vida (doenças, tornados, calor extremo, escassez de alimentos), determinando assim o tipo de atividade que as personagens podem desempenhar na ficção; e, no outro, Galera (2021)GALERA, Daniel (2021). Tóquio. In: GALERA, Daniel. O Deus das Avencas: três novelas. São Paulo: Companhia das Letras. p. 65-169. faz da imprevisibilidade climática um palco para as ações das personagens, de modo que a narrativa é, ao mesmo tempo, o drama pessoal dos indivíduos e suas relações — principalmente as relações familiares entre as pupas e seus responsáveis — e o drama de se viver em condições climáticas extremas.

Nesse sentido, no tocante à relação entre a estética e o Antropoceno, o texto de Galera (2021)GALERA, Daniel (2021). Tóquio. In: GALERA, Daniel. O Deus das Avencas: três novelas. São Paulo: Companhia das Letras. p. 65-169. avança um pouco, uma vez que segue na direção de associar a história das relações sociais e daquilo que é estritamente humanístico à história das relações ecológicas entre a humanidade e o clima — mesmo que muitas vezes o aquecimento global apareça somente como pano de fundo.

Um tornado arrasou a maior usina de luz solar do planalto e arrancou quilômetros de túneis de trânsito urbanos como se fossem ervas daninhas. No litoral, conflitos entre acampamentos de milícias resultaram na destruição de cabos terrestres e submarinos que traziam energia das ilhas eólicas de Santos até a capital do estado. [...] Acidentes climáticos e ataques explosivos à precária infraestrutura de energia ocorriam sazonalmente e não era raro chegarem em ondas sobrepostas, causando transtornos que a maioria da população via como parte da vida (Galera, 2021GALERA, Daniel (2021). Tóquio. In: GALERA, Daniel. O Deus das Avencas: três novelas. São Paulo: Companhia das Letras. p. 65-169., p. 152-153).

Nesse trecho, há a imbricação do humano e do não humano. Ao passo que um tornado arrasa a maior usina de luz solar — indicativo forte de uma tentativa malograda e tardia de mudança na matriz energética a fim de mitigar o aquecimento global —, milícias destroem a infraestrutura urbana. Logo, o que poderíamos chamar de o “espaço de sociabilidade”, no qual as ações transcorrem, contém tanto o meio ambiente inóspito quanto agenciamentos sociais e políticos da velha ordem climática (conflitos, guerras, vandalismo etc.).

Nesse espaço, o que ocorre no plano social decorre do que sucede no âmbito ecológico, de modo que a natureza não é mais taken for granted. Os eventos relativos às vidas das pessoas são fruto dos desdobramentos da catástrofe climática, o que, por isso mesmo, limita o modo de atuação das personagens: locomoções limitadas por doenças e pelo calor abrasivo (os túneis de trânsito urbano servem para isso); necessidade e escassez de energia elétrica; anomia política que deflagra conflitos; cultivo de alimentos em fazendas urbanas; e, principalmente, interações familiares entre os dispositivos cibernéticos e seus familiares vivos. Tudo isso são as formas pelas quais o meio ambiente invade a vida prática dos humanos, influindo decididamente no tipo de experiência que pode ser vivida e, por conseguinte, contada.

Bento tinha quarenta e nova anos quando Otto nasceu. Seu único filho chegou algo tarde em sua vida, fruto do seu envolvimento com uma garota bem mais jovem, aluna de sua turma de história da arte na universidade pública, e o mundo que os aguardava não era o mesmo mundo em que ele havia nutrido, por décadas, o sonho da paternidade. Tinha criado o menino num planeta assolado por doenças novas, violências antigas e tecnologias traiçoeiras. Tecnologias que revolucionavam nossos hábitos numa velocidade que o corpo não podia acompanhar, que para serem produzidas exigiam uma enormidade insustentável de matérias-primas e trabalho invisível, que acabavam entrando em colapso antes que nossa fisiologia e nossa psique fossem capazes de arcar com as rupturas resultantes, nos deixando com um leque de novos problemas para cada solução introduzida. A família se acostumou a comer coisas que antes não se comia, a suportar extremos de temperatura que antes se considerava insuportáveis, a temer que a brutalidade entre indivíduos e nações por fim os erradicasse antes que pudessem reagir (Galera, 2021GALERA, Daniel (2021). Tóquio. In: GALERA, Daniel. O Deus das Avencas: três novelas. São Paulo: Companhia das Letras. p. 65-169., p. 98-99).

Todas as personagens, incluindo os coadjuvantes, estão sob a lógica da extrapolação, com base na qual Galera (2021)GALERA, Daniel (2021). Tóquio. In: GALERA, Daniel. O Deus das Avencas: três novelas. São Paulo: Companhia das Letras. p. 65-169. constrói sua novela. Nesse excerto, nota-se que alguns aspectos do nosso presente são sublinhados no futuro literário: temperaturas extremas, a obsolescência programada da tecnologia, o gasto energético para a manutenção das regalias da vida contemporânea, a mudança no regime alimentar etc. Mas, concomitantemente, flagramos nesse trecho a presença do outro elemento constitutivo da novela: a especulação.

ESPECULAÇÃO: CIBERNÉTICA, IMAGINAÇÃO POLÍTICA E ESTÉTICA

Mesmo que o meio ambiente ingresse na narrativa, alinhando-se com as projeções científicas e estreitando o campo do possível das ações das personagens, saindo, portanto, do ostracismo ao qual fora legado pela narrativa tradicional, a obra de Galera (2021)GALERA, Daniel (2021). Tóquio. In: GALERA, Daniel. O Deus das Avencas: três novelas. São Paulo: Companhia das Letras. p. 65-169. ainda está bastante presa a convenções literárias próprias do romance burguês moderno. No fundo, em primeiro plano está uma história de conflito entre mãe e filho, de modo que as emoções veiculadas pela novela transitam ainda no âmbito das relações estritamente humanas. É preciso, por outro lado, salientar que a crise no relacionamento entre ambos decorre principalmente da presença de outro elemento atuante no presente e relevante nos debates sobre o futuro da Terra e o Antropoceno: a cibernética.

A mãe do narrador tem uma carreira sólida em uma empresa que vende, além das pupas, a falsa utopia da singularidade (Kurzweil, 2018KURZWEIL, Ray (2018). A singularidade está próxima: quando os humanos transcendem a biologia. Tradução de Ana Goldberger. São Paulo: Iluminuras., p. 43), isto é, a perfeita integração entre o humano e a máquina. A presença dessa empresa é determinante nos rumos da narrativa. Por um lado, ela é decisiva na trama que envolve as responsabilidades afetivas da mãe em relação ao filho e as oportunidades de vida que o filho tem nesse futuro assolado pela catástrofe climática; por outro, porém, a empresa alastra-se por toda a estrutura social da vida nesse futuro, interferindo nas relações de inúmeros outros sujeitos — particularmente, os membros do grupo terapêutico do qual o narrador faz parte —, bem como influenciando a mentalidade das pessoas. Em um trecho em que o narrador, sua mãe e Cristal estão jantando em Tóquio, fica mais claro o modo como a empresa e a tecnofilia atuam no contexto desse futuro:

“Ouvi dizer que essas reuniões secretas em Hokkaido eram para colocar dinheiro em mais um projeto de burrice artificial que vai emitir quantidades alucinantes de carbono, usar trabalho escravo para extrair metais raros, substituir milhões de empregos, coisa e tal.”

Os projetos de minha mãe já eram assunto indigesto para mim naquela época. Eu sabia o quanto eles tinham de messiânico e irresponsável, a que casta seleta serviam enquanto se apregoavam como solução milagrosa e democrática para os impasses da civilização. Embora não hesitasse em criticá-los quando conversava com Cristal ou com meus amigos, eu jamais tinha confrontado minha mãe. O assunto nos rondava, mas era abafado por um mal-estar espesso que protegia nosso já precário vínculo de mãe e filho (Galera, 2021GALERA, Daniel (2021). Tóquio. In: GALERA, Daniel. O Deus das Avencas: três novelas. São Paulo: Companhia das Letras. p. 65-169., p. 126-127).

Cristal manifesta a contrariedade quanto aos métodos de atuação da empresa e à mentalidade propagada pelos seus executivos e entusiastas. O narrador, por sua vez, admite que tem reservas em relação à ocupação da mãe, que, por sua vez, se mostra, ao longo dessa conversa, renitente quanto aos malefícios que empresas desse tipo causam à humanidade e especialmente ao clima. Em todo caso, o que interessa salientar aqui é o fato de que Galera (2021)GALERA, Daniel (2021). Tóquio. In: GALERA, Daniel. O Deus das Avencas: três novelas. São Paulo: Companhia das Letras. p. 65-169. pega um elemento constitutivo do presente, importante no quadro atual do agravamento das relações sociopolíticas, econômicas e sobretudo ecológicas, e projeta sua figura de modo ampliado na novela. Quer dizer, é sabido que as big techs, por meio de sua atuação econômica, social e política, não apenas influenciam as formas de concepção da realidade, como também prejudicam o ecossistema terrestre como um todo, mediante o extrativismo e a poluição — e Galera (2021)GALERA, Daniel (2021). Tóquio. In: GALERA, Daniel. O Deus das Avencas: três novelas. São Paulo: Companhia das Letras. p. 65-169., parece-me, é consciente de algumas dessas leituras.

Fisher (2023)FISHER, Max (2023). A máquina do caos: como as redes sociais reprogramaram nossa mente e nosso mundo. Tradução de Érico Assis. São Paulo: Todavia., por exemplo, demonstra como as redes sociais manipulam as pessoas, radicalizando-as conforme elas se envolvem com os aplicativos, de maneira que os algoritmos acabam levando os usuários a não apenas entrarem em contato com ideias nocivas do ponto de vista da sua saúde mental e de segurança pública, mas adotando comportamentos incisivos em função da exposição a essas ideias. Nessa mesma linha, Cesarino (2022)CESARINO, Letícia (2022). O mundo do avesso: verdade e política na era digital. São Paulo: Ubu. mostra como a arquitetura das redes favorece a propagação de teorias conspiratórias que, no limite, acabam promovendo processos de ruptura social de tipo cismogênico, por meio de uma lógica de reconhecimento bifurcado em que o usuário se vê como parte de um grupo que, por sua vez, antagoniza com outro coletivo de indivíduos, acirrando diferenças culturais — mais ou menos como ocorre entre Cristal e a mãe do narrador.

Zuboff (2020)ZUBOFF, Shoshana (2020). A era do capitalismo de vigilância: a luta por um futuro humano na nova fronteira do poder. Tradução de George Schlesinger. Rio de Janeiro: Intrínseca., por seu turno, evidencia o papel que as big techs assumiram na cadeia produtiva, o de invadir regiões outrora infranqueáveis pelo capitalismo, chegando, agora, ao capitalismo de vigilância, que renderiza vários aspectos da vida privada do indivíduo para, ao fornecer-lhe supostas facilidades a título de customização da vida prática, impõe a ele formas de consumo e de sociabilidade à custa de sua privacidade.

Por fim, Crary (2022CRARY, Jonathan (2022). Scorched Earth: beyond the digital age to a post-capitalist world. Londres e Nova York: Verso., p. 7) advoga que “the internet complex quickly became an integral part of neoliberal austerity in its ongoing erosion of civil society and its replacement by monetized, online simulations of social relations”. Mais do que isso, para ele, o complexo cibernético que envolve a internet e o capitalismo de plataformas (Srnicek, 2018SRNICEK, Nick (2018). Capitalismo de plataformas. Tradução de Aldo Giacometti. Buenos Aires: Caja Negra.) não apenas nos levou a uma existência mediada pelo trabalho 24 horas por dia, sete dias da semana, como também, por conta disso, aumentou os níveis de produtividade e consumo, integrando o mundo num sistema tecnocapitalista de larga escala que ameaça erradicar os ecossistemas, transformando o planeta em uma “terra calcinada” ou “terra arrasada” (“scorched earth”):

In a more general sense, a scorched earth is one on which thriving regions have been reduced to a state of barrenness and have lost their capacity for regeneration. It is a parched earth deprived of water, its rivers and aquifers poisoned, air polluted and soils afflicted by drought and chemical agriculture. Scorched earth capitalism destroys whatever allows groups and communities to pursue modes of self-sufficient subsistence, of self-governance or of mutual support. This occurs with extreme violence in the Global South where extraction, deforestation, and toxic dumping create uninhabitable wastelands, and cities in which the poor become desperate, internal exiles (Crary, 2022CRARY, Jonathan (2022). Scorched Earth: beyond the digital age to a post-capitalist world. Londres e Nova York: Verso., p. 34-35).

Nesse sentido, o que a novela de Galera (2021)GALERA, Daniel (2021). Tóquio. In: GALERA, Daniel. O Deus das Avencas: três novelas. São Paulo: Companhia das Letras. p. 65-169. expõe é também uma especulação sobre o papel da cibernética em um futuro assolado pela crise climática que ela mesma ajudou a criar. A São Paulo e a Tóquio descritas no livro são muito similares à “scorched earth” de Crary (2022)CRARY, Jonathan (2022). Scorched Earth: beyond the digital age to a post-capitalist world. Londres e Nova York: Verso.. Mas, além da paisagem devastada, o que se salienta é a tecnofilia, representada pela mãe do protagonista (e disseminada pelas demais personagens, com exceção de Cristal).

Essa mentalidade, cujas “posições políticas, que consistiam numa mistura de patriotismo cínico, anarcocapitalismo e um darwinismo socioeconômico convenientemente talhado para justificar pessoas como ela” (Galera, 2021GALERA, Daniel (2021). Tóquio. In: GALERA, Daniel. O Deus das Avencas: três novelas. São Paulo: Companhia das Letras. p. 65-169., p. 89), não apenas faz parte do cenário em que as ações se desenvolvem como também integra aquilo que diretamente incide sobre a ficção. A posição socioeconômica da mãe — sua necessidade de estar constantemente a serviço da empresa — faz com que o filho seja privado dos cuidados maternos supostamente mais adequados à posição materna no âmbito da sociedade moderna, porém é essa condição de vida e trabalho que permite que o narrador-protagonista desfrute uma vida plena e economicamente garantida, num planeta em que as condições básicas de existência e lazer são regalias.

Com isso, o que está em funcionamento aqui é uma projeção bem distinta daquela que vimos antes. Diferentemente da extrapolação da realidade do presente em um futuro alarmante, apoiada em dados científicos, nesse ponto existe uma especulação a respeito do papel da tecnologia e de como a mentalidade a ela associada organizará as ações no futuro. Não se trata, pois, de simplesmente exacerbar características do presente, afinal o tipo de elucubração envolvida nessa tarefa se escora em uma tese que é, para todos os efeitos, de outra natureza, bastante diversa daquela erigida e veiculada pelas ciências duras que atuam na observação do clima. Trata-se, antes, de sublinhar impressões sociológicas e de caráter político para criar um mundo ficcional no qual alguns traços do presente se tornam mais efetivos no futuro. Em outros termos, trata-se de criar uma antiutopia.

Assim, o que configura a novela de Galera (2021)GALERA, Daniel (2021). Tóquio. In: GALERA, Daniel. O Deus das Avencas: três novelas. São Paulo: Companhia das Letras. p. 65-169. como distópica (para usar o jargão) não é a projeção de um futuro climático assombroso. No que tange ao clima, a situação que o autor descreve não é nem um pouco “ficcional”, muito menos “distópica”, uma vez que parece coincidir com aquilo que a ciência projeta para as próximas décadas. O que faz o texto flertar com esse gênero literário é, em vez disso, a especulação acerca da organização social em virtude da acentuação do capitalismo cibernético e de suas consequências sobre a vida das pessoas. Com base em estudos sociológicos e políticos, Galera (2021)GALERA, Daniel (2021). Tóquio. In: GALERA, Daniel. O Deus das Avencas: três novelas. São Paulo: Companhia das Letras. p. 65-169. cria um mundo fictício em que a desintegração social e o apartheid se fazem presentes como resultantes da devastação climática.

Ora, esse tipo de causalidade não é inerente aos processos geológicos, físicos nem químicos desencadeados pelo aquecimento global e seus efeitos. Essa ordem de eventos é de outra cepa, que concerne ao âmbito das relações humanas, que, em geral, faz parte das especulações literárias desde o início da ficção moderna. Embora Galera (2021)GALERA, Daniel (2021). Tóquio. In: GALERA, Daniel. O Deus das Avencas: três novelas. São Paulo: Companhia das Letras. p. 65-169. evite o tom moralizante e não crie de fato uma história edificante — afinal, o tom pessimista e alarmista perpassa o texto de cabo a rabo —, não restam dúvidas de que sua narrativa resvala no aspecto moral ao colocar em perspectiva as ações humanas em um cenário de devastação global.

Nesse sentido, chama a atenção o fato de que, na novela, aquilo que permanece como o âmago do estético — ou seja, do que é sensível e dizível, nos termos de Rancière (2015)RANCIÈRE, Jacques (2015). A partilha do sensível: estética e política. Tradução de Mônica Costa Netto. São Paulo: 34. — ainda são as relações pessoais das classes abastadas, em detrimento da vida das demais pessoas, que, pertencentes também a esse mundo, são menos “visíveis” (e, por isso, causam menos comoção) do que os membros da elite. Sendo assim, Galera (2021)GALERA, Daniel (2021). Tóquio. In: GALERA, Daniel. O Deus das Avencas: três novelas. São Paulo: Companhia das Letras. p. 65-169., ao especular sobre o futuro com base em teses sociológicas e políticas que se posicionam claramente na contracorrente do avanço tecnológico e da utopia cibernética, ainda assim cria um mundo fictício no qual a lógica do sensível — isto é, a ordem das coisas possíveis de serem dignas de representação — adere a formas tradicionais e potencialmente desmobilizantes politicamente (ao menos no terreno da estética).

Isso ocorre, penso, porque no mundo criado por Galera (2021)GALERA, Daniel (2021). Tóquio. In: GALERA, Daniel. O Deus das Avencas: três novelas. São Paulo: Companhia das Letras. p. 65-169. não existem somente o narrador-protagonista, sua mãe, Cristal e os membros do grupo terapêutico. Muito embora esses abastados façam parte do núcleo de personagens responsável pelas principais ações da narrativa, existem outros sujeitos presentes nos espaços frequentados por eles. Refiro-me aos sujeitos que aparentemente formam um grupo de marginalizados, vítimas das mudanças climáticas tanto quanto das políticas implementadas e que aparecem incidentalmente no texto.

Os horrores do mundo não a [Cristal] intimidavam. De um esconderijo do prédio, cigarro na boca, parecendo uma sniper, ela disparava uma espingarda de pressão contra as milícias higienistas que atormentavam os moradores de rua no centro para que fugissem para o lado de lá dos muros. Recolhia restos de alimentos nos outros apartamentos e os transformava em refeições deliciosas, que ela chamava de “curry do apocalipse”, para enviar a abrigos da cidade (Galera, 2021GALERA, Daniel (2021). Tóquio. In: GALERA, Daniel. O Deus das Avencas: três novelas. São Paulo: Companhia das Letras. p. 65-169., p. 92).

Embora seja vago sobre isso, chama a atenção o fato de que o autor reconhece, também com base em uma especulação sobre impressões sociológicas e políticas do presente, certa fatalidade relativa à organização social num contexto de imprevisibilidade climática e devastação ecológica. Ao mencionar as atitudes contestadoras de Cristal, o narrador expõe-nos à presença de mazelas sociais que, perceptíveis no contexto presente dos leitores, são colocadas como estruturantes da vida social do futuro fictício. Quer dizer, aquilo que no nosso presente aparece como indício da falência dos mecanismos sociais de proteção à vida — já tão recorrentes nas grandes metrópoles brasileiras — na antiutopia de Galera (2021)GALERA, Daniel (2021). Tóquio. In: GALERA, Daniel. O Deus das Avencas: três novelas. São Paulo: Companhia das Letras. p. 65-169. surge como algo ao mesmo tempo episódico e ainda assim determinante.

Isso porque, ao lado das peripécias do narrador herdeiro, de sua namorada militante de classe média alta e de sua mãe executiva, existem também “vultos humanos [que] corriam para se esconder [...], alguns envoltos em panos como beduínos dos trópicos, outros magérrimos e despidos, mas enfeitados com adornos espalhafatosos que ressignificavam metal, plástico e silício deixados pra trás” (Galera, 2021GALERA, Daniel (2021). Tóquio. In: GALERA, Daniel. O Deus das Avencas: três novelas. São Paulo: Companhia das Letras. p. 65-169., p. 168). Esses dois conjuntos de pessoas são fruto da especulação literária de Galera (2021)GALERA, Daniel (2021). Tóquio. In: GALERA, Daniel. O Deus das Avencas: três novelas. São Paulo: Companhia das Letras. p. 65-169., que assume que existe uma clivagem social mais aguda do que a que atualmente divide as classes sociais.

Ao que parece, o autor investe com tudo na ideia de que, num mundo assolado pela catástrofe climática e pelo domínio do capitalismo cibernético, haverá uma espécie de neofeudalização. Kotkin (2023KOTKIN, Joel (2023). The coming of neo feodalism: a warning to the global middle class. Nova York e Londres: Encounter Books., p. 28) situa a emergência de uma nova oligarquia entre os magnatas do Vale do Silício, na Califórnia, Estados Unidos, e alega que, “to a remarkable extent, the tech elites have presented themselves as dynamic, entrepreneurial outsiders who want to make the world better”, mas, em vez disso, “a technocratic economy is engendering a new kind of hierarchy, favoring highly skilled technicians and engineers. Their dominance will grow as technology plays an even greater role in the economy, while the value of labor further declines” (Kotkin, 2023KOTKIN, Joel (2023). The coming of neo feodalism: a warning to the global middle class. Nova York e Londres: Encounter Books., p. 31-32).

Essa tese, a propósito, reforça a concepção de Wark (2019)WARK, McKenzie (2019). Capital is dead. Londres e Nova York: Verso., segundo a qual nossa sociedade se divide entre duas classes sociais que substituem a antiga polarização entre burgueses e proletários: a emergente e dominadora classe vetorialista e a subalterna classe hacker — ou, respectivamente, uma que controla a informação e, por isso, não necessita mais controlar os meios de produção e outra que trabalha para produzir a arquitetura cibernética necessária para o fluxo de informações e a extração de mais-valia a partir disso. Segundo Wark (2019WARK, McKenzie (2019). Capital is dead. Londres e Nova York: Verso., p. 55), “if the capitalist class owns the means of production, the vectorialist class owns the vectors of information”, ou, mais precisamente, ela detém as licenças, as patentes, as marcas, mas sobretudo a logística que acelera a informação e a transforma em capital.

Pensando na configuração social da novela, que, ao especular, intensifica os traços vislumbrados por esses críticos da cibernetização da sociedade, o narrador e sua mãe pertencem definitivamente à classe vetorialista — ou, se não totalmente, estão na mesma zona de influência dela, extraindo mais-valia do trabalho da classe hacker. Ao terem suas histórias narradas, fazem pensar que, do ponto de vista da lógica do sensível, que serve de base para a criação de Galera (2021)GALERA, Daniel (2021). Tóquio. In: GALERA, Daniel. O Deus das Avencas: três novelas. São Paulo: Companhia das Letras. p. 65-169., é digna de representação apenas a vida que está em conformidade com os limites do vivível, as condições climáticas existentes na novela. De outro modo, num mundo assolado pela crise climática, em que a própria vida parece ter se reduzido às condições de mera sobrevivência para um número significativo de pessoas (“os vultos humanos”, “beduínos dos trópicos”), somente aqueles que dispõem efetivamente de condições materiais abundantes ou, no mínimo, estáveis é que podem realizar as ações dignas, as ações transformadoras ou, no nível estritamente poético, as ações que comovem.

Então, quando Galera (2021)GALERA, Daniel (2021). Tóquio. In: GALERA, Daniel. O Deus das Avencas: três novelas. São Paulo: Companhia das Letras. p. 65-169. resolve contar-nos indiretamente a história do Antropoceno mediante a história edípica do relacionamento entre mãe tecnofílica e o filho ressentido, sua decisão reforça o viés político do estético, numa direção não exatamente contrária aos parâmetros do romance burguês moderno. Ghosh (2016GHOSH, Amitav (2016). The great derangement: climate change and the unthinkable. Chicago e Londres: University of Chicago Press., p. 62-63) enfatiza: “The Antropocene has reversed the temporal order of modernity: those at the margins are now the first to experience the future that awaits all of us”. Logo, ao concentrar sua atenção nas camadas abastadas da sociedade pós-catástrofe climática, Galera (2021)GALERA, Daniel (2021). Tóquio. In: GALERA, Daniel. O Deus das Avencas: três novelas. São Paulo: Companhia das Letras. p. 65-169. assume que as histórias possíveis de serem contadas ainda estão circunscritas àqueles que sofrem por último as consequências do Antropoceno6 6 Embora não especifique em nenhum ponto quais são as características físicas ou o lugar de pertencimento social dos “vultos humanos”, é possível depreender que Galera (2021) está fazendo referência aos indivíduos que, mesmo no presente das mudanças climáticas, são racializados e marginalizados pelos efeitos do racismo ambiental. Acentuando a história da degradação ambiental iniciada com as plantations (Ferdinand, 2022), que submeteram os escravizados africanos às condições de trabalho que possibilitaram o advento do capitalismo moderno, o capitalismo de plataformas é um prolongamento do fato indisputável de que as populações negras e periféricas do antigo “Terceiro Mundo” são as primeiras a sofrerem as consequências mais agudas e nefandas do aquecimento global. Como bem afirma Chaudhary (2024, p. 12), “Climate change is not the apocalypse and it does not fall on all equally or, in at least a few senses, on everyone at all”. Por isso, embora não haja nenhuma relação necessária entre os “sem parte” (Rancière, 2015) e as minorias políticas consideradas do ponto de vista socioeconômico e histórico, creio que seja possível relacionar os “beduínos” da ficção de Galera (2021) com a população periférica que sofre primeiramente e mais agudamente os efeitos deletérios climáticos e sociais da devastação dos ecossistemas terrestres. .

Se, concordando com Rancière (2018RANCIÈRE, Jacques (2018). Les temps modernes: art, temps, politique. Paris: La Fabrique Éditions., p. 14), “la fiction n’est pas l’invention d’êtres imaginaires. Elle est d’abord une structure de rationalité. Elle est la construction d’un cadre au sein duquel des sujets, des choses, des situations sont perçus comme appartenant à un monde commun”, então importa salientar o fato de que Galera (2021)GALERA, Daniel (2021). Tóquio. In: GALERA, Daniel. O Deus das Avencas: três novelas. São Paulo: Companhia das Letras. p. 65-169. investe numa “estrutura de racionalidade” segundo a qual tem pertinência e merece ser narrado o imbróglio edípico saturado de especulação sobre o futuro da humanidade dominado pela cibernética, mas não aquelas vidas que estão na franja mais vulnerável da sociedade. Mais do que isso, mesmo tratando da cibernética, o autor opta por contar histórias de humanos e máquinas sem levar em consideração, por exemplo, os potenciais que uma “ecologia da tecnologia” e seus desdobramentos para uma consciência mais que humana (Bridle, 2022BRIDLE, James (2022). Maneiras de ser: animais, plantas, máquinas: a busca por uma inteligência planetária. Tradução de Daniel Galera. São Paulo: Todavia., p. 393) podem gerar.

Com isso, Galera (2021)GALERA, Daniel (2021). Tóquio. In: GALERA, Daniel. O Deus das Avencas: três novelas. São Paulo: Companhia das Letras. p. 65-169. de alguma maneira reinstaura o edifício clássico, mimético e aristotélico que vicejou na ficção pré-moderna, anterior ao período democrático ou à conflagração do “regime estético das artes” (Rancière, 2021RANCIÈRE, Jacques (2021). Aisthesis: cenas do regime estético da arte. Tradução de Dilson Ferreira da Cruz. São Paulo: 34., p. 10) — e vigorou mesmo depois, nas formas literárias burguesas. Esse edifício repousa numa dicotomia que separa aqueles sujeitos que têm tempo livre e cujo encadeamento de ações são decisivas para os desdobramentos da vida comum daquelas pessoas que vivem no tempo ordinário da vida, da manufatura, em ações que não se distinguem pela sua relevância. Em ambos os casos, define-se uma partilha do sensível (Rancière, 2015RANCIÈRE, Jacques (2015). A partilha do sensível: estética e política. Tradução de Mônica Costa Netto. São Paulo: 34.), estrutura-se um campo de sensibilidades comum no qual importa saber quem pertence ou não a ele.

Ce n’est pas pour rien que la rationalité causale de l’action fictionnelle reçoit deux modalités équivalentes: elle peut être nécessaire ou vraisemblable. La nécessité des enchaînements de faits et la vraisemblance des inventions poétiques relèvent de la même forme de rationalité. Mais il vaut la peine d’insister sur le partage des temporalités qui soutient ce modele de rationalité. Ce partage oppose un temps rationnel de la fiction où les choses sont liées par des liens de causalité à un temps de la réalité ordinaire où eles arrivent simplement les unes après les autres. La hiérarchie des temps qui fonde le privilège poétique définit aussi les conditions de la rationalité causale. Celle-ci a son lieu là où l’on sort de l’univers de ceux qui vivent au jour le jour. La hiérarchie des temps qui fonde la rationalité de l’action humaine correspond à une hiérarchie des places qui sépare deux catégories d’êtres humains. Il y a ceux qui vivent dans le temps des événements qui peuvent arriver, le temps de l’action et de ses fins, qui est aussi le temps de la connaissance et du loisir. Ceux-là, de l’Antiquité jusqu’au XIXe siècle, ont été désignés comme hommes actifs ou hommes de loisir. Et il y a ceux qui vivent dans le temps des choses qui arrivent les unes après les autres, le temps rétréci et répétitif de ceux qu’on appelle hommes passifs ou mécaniques, parce qu’ils vivent dans l’univers des simples moyens sans avoir part aux fins de l’action non plus qu’à la fin en soi du loisir. La rationalité du déroulement horizontal du temps repose sur une hiérarchie verticale qui sépare deux formes de vie, deux manières d’être dans le temps, on pourrait dire simplement: la manière de ceux qui ont le temps et la manière de ceux que ne l’ont pas (Rancière, 2018RANCIÈRE, Jacques (2018). Les temps modernes: art, temps, politique. Paris: La Fabrique Éditions., p. 19-21).

Não ignoro o fato de que “Tóquio” não é uma tentativa explícita de restauração do regime mimético e da hierarquia das ações e dos sujeitos. O empreendimento de Galera (2021)GALERA, Daniel (2021). Tóquio. In: GALERA, Daniel. O Deus das Avencas: três novelas. São Paulo: Companhia das Letras. p. 65-169. é fruto das revoluções literárias desencadeadas pela instauração do regime estético, porém existe de fato uma dicotomia na sua novela, e ela diz respeito, acima de tudo, à qualidade daquilo que é sensível em uma ordem de fatores constituída da crise climática. O que, portanto, distancia o autor do regime autenticamente estético de Rancière (2021)RANCIÈRE, Jacques (2021). Aisthesis: cenas do regime estético da arte. Tradução de Dilson Ferreira da Cruz. São Paulo: 34. é a certa incapacidade de alternar entre os níveis de sentido que as ações das personagens podem eventualmente adquirir.

À medida que deixa de fora os marginalizados — ou melhor, que os coloca apenas como índices de uma degradação social cujo intuito é reforçar o grau de anomia social no qual as personagens relevantes vivem —, Galera (2021)GALERA, Daniel (2021). Tóquio. In: GALERA, Daniel. O Deus das Avencas: três novelas. São Paulo: Companhia das Letras. p. 65-169. robustece a sensação de que, para todos os efeitos, a literatura tem a ver sobretudo com a história daqueles que dispõem de um excedente de recursos, de uma mais-valia de vida, que não estão presos à condição bestializada da mera existência (à condição do “jour à jour”), como figurantes na paisagem inóspita pintada em cores vibrantes com a ajuda da ciência.

Ao especular sobre a vida no pior momento do Antropoceno, Galera (2021)GALERA, Daniel (2021). Tóquio. In: GALERA, Daniel. O Deus das Avencas: três novelas. São Paulo: Companhia das Letras. p. 65-169. torna alguns sujeitos apenas objetos de representação, e não agentes imprescindíveis na história. E, ao fazê-lo, revolve a tradição do romance burguês moderno para virá-la apenas um pouco do avesso. Isso porque ele parte da conquista desse gênero — sua capacidade de dizer tudo, redefinindo o campo do sensível na repartilha do dizível e do visível — para de alguma forma recrudescer e determinar que, no horizonte da crise climática, em que grassa o neofeudalismo promovido pelo capitalismo cibernético, há um segmento social que vive enquanto outro padece.

Na obra, o que mantém ainda a lógica sensível do regime estético — isto é, os “moments de bascule entre l’événement et le non-événement, la parole et le mutisme, le sens et le non-sens” (Rancière, 2017RANCIÈRE, Jacques (2017). Les bords de la fiction. Paris: Éditions du Seuil., p. 154) — é o fato de que a história principal é absolutamente banal. Mas, isso à parte, a sugestão de que há praticamente duas castas de indivíduos, escoradas na especulação literária que imagina (profetiza?) uma organização social baseada nos traços marcantes do nosso atual regime climático e da nossa configuração política e socioeconômica contemporânea, regride politicamente, uma vez que mostra um autor que, mesmo renunciando ao otimismo cruel (Berlant, 2020BERLANT, Lauren (2020). El optimismo cruel. Tradução de Hugo Salas. Buenos Aires: Caja Negra.), não apenas capitulou o realismo capitalista (Fisher, 2016FISHER, Mark (2016). Realismo capitalista. Tradução de Claudio Iglesias. Buenos Aires: Caja Negra.), como também recrudesceu no campo da política na estética, afastando-se do pensamento ecológico autêntico, aquele que, segundo Morton (2023MORTON, Timothy (2023). O pensamento ecológico. Tradução de Renato Prelorentzou. São Paulo: Quina., p. 107), “corrói a distinção vida/não vida” ao elevar nossa consciência para além das questões mundanas.

A ideia de um mundo bifurcado entre os vetorialistas e a ralé de fato decorre das observações empíricas de uma sociologia emergente, porém essa concepção não é uma fatalidade — não da mesma ordem dos eventos extremos que a degradação ambiental está nos trazendo. Sendo assim, organizar a ficção em torno dessas duas probabilidades — primeiramente, a probabilidade de que a sociedade do Antropoceno seguirá esse caminho e, em segundo lugar, as ações possíveis e dignas de serem narradas só se encontram entre aqueles que vivem relativamente bem mesmo em condições climáticas extremas — tem como efeito certo pessimismo político que, muito embora pretensamente busque acender um tímido alerta, não consegue oferecer uma alternativa vigorosa para os problemas que a literatura enfrenta ante os desafios do mundo no Antropoceno — caindo numa espécie de representação mundana que foca no particular e no individual no máximo como sintomas do “inconsciente do Antropoceno” (Bould, 2021BOULD, Mark (2021). The antropocene unconscious: climate, catastrophe, culture. Londres e Nova York: Verso.).

Estruturada como está, a novela de Galera (2021)GALERA, Daniel (2021). Tóquio. In: GALERA, Daniel. O Deus das Avencas: três novelas. São Paulo: Companhia das Letras. p. 65-169. ressoa a falência política de um sistema neoliberal que percorre o caminho da neofeudalização. Talvez seja um sintoma — o autor, considerando o estado atual das coisas, imagina que o pior está por vir e que a literatura pode especular a respeito disso, consolidando a sua visão pessoal no texto literário —, contudo, mesmo que o seja, ao galvanizar a hierarquia social e dar preferência àqueles que vivem histórias banais de dentro de seus privilégios no mundo assolado pela crise climática, Galera (2021)GALERA, Daniel (2021). Tóquio. In: GALERA, Daniel. O Deus das Avencas: três novelas. São Paulo: Companhia das Letras. p. 65-169. prefere não tomar a parte dos sem parte.

Finalmente, sua especulação não alcança o nível de sofisticação que Nodari (2015NODARI, Alexandre (2015). A literatura como antropologia especulativa. Revista da Anpoll, Florianópolis, v. 1, n. 38, p. 75-85. https://doi.org/10.18309/anp.v1i38.836
https://doi.org/10.18309/anp.v1i38.836...
, p. 82) vislumbra na ficção de modo geral: a Galera (2021)GALERA, Daniel (2021). Tóquio. In: GALERA, Daniel. O Deus das Avencas: três novelas. São Paulo: Companhia das Letras. p. 65-169. falta a “modificação dos polos”, a “ponte intersticial” que conecta os dois mundos (a “scorched earth” da novela e a realidade política do presente), de modo que eles não se “redefinem reciprocamente”. A especulação da novela apenas nos dá a ver que o mundo depois do despertar da cultura para o Antropoceno pode perfeitamente ser como o mundo que o engendrou.

Notas

  • 1
    O termo Antropoceno foi cunhado pelo químico holandês Paul Crutzen para referir-se às mudanças no clima introduzidas pela atividade humana. Entre as principais, destacam-se: a transformação de até metade da superfície da Terra em função de atividades agrícolas ou de extrativismo; a barragem de rios para fins de produção de energia; a produção química de fertilizantes muito além da capacidade natural de geração de nitrogênio; o crescimento acentuado da atividade pesqueira nas costas marítimas; e a utilização de mais da metade da água doce pelos humanos (Kolbert, 2015KOLBERT, Elizabeth (2015). A sexta extinção: uma história não natural. Tradução de Mauro Pinheiro. Rio de Janeiro: Intrínseca., p. 117). O mais decisivo, porém, é a alteração da composição da atmosfera pela emissão de gases de efeito estufa, em função da queima de combustíveis fósseis e da agropecuária, que, além disso, diminui a cobertura florestal do planeta, causando também a extinção de espécies de todo tipo. Para dados mais precisos sobre os efeitos do Antropoceno nos ecossistemas terrestres, indico a leitura de Marques (2023)MARQUES, Luiz (2023). O decênio decisivo: propostas para uma política de sobrevivência. São Paulo: Elefante..
  • 2
    Ou, para recuperar o excelente jogo de palavras de Le Guin (2004)LE GUIN, Ursula (2004). Being taken for granite. In: LE GUIN, Ursula. The wave in the mind: talks and essays on the writer, the reader, and the imagination. Boston: Shambhala., take for granite: “Huge heavy things come and stand on granite and the granite just stays there and doesn’t react and doesn’t give way and doesn’t adapt and doesn’t oblige and when the huge heavy things walk away the granite is there just the same as it was before, just exactly the same, admirably”. É como se a natureza fosse “tomada por granito” nas obras do romance burguês moderno, isto é, tal qual o granito, que não muda sua forma diante de nada, a natureza oferece um ponto de apoio firme e imutável sobre o qual as histórias burguesas podem se desdobrar. As catástrofes ocorrem somente na vida das pessoas, mas nunca em virtude de uma influência decisiva do clima.
  • 3
    Aqui podemos citar, por exemplo, o livro de Stanislaw Lem, Solaris, referenciado por Ghosh (2016)GHOSH, Amitav (2016). The great derangement: climate change and the unthinkable. Chicago e Londres: University of Chicago Press., bem como a ficção de Ursula Le Guin (A Mão Esquerda da Escuridão, A Floresta é o Nome do Mundo) e de Margaret Atwood (Oryx e Crake), entre muitos outros.
  • 4
    Já aqui vale a pena mencionar aquelas obras que mesclam diferentes registros discursivos, a fim de tornar visíveis outras formas de vida e os elos que a humanidade entretém com elas. São exemplos, entre alguns outros: Autobiografia de um Polvo, de Vinciane Despret, Escute as Feras, de Nastassja Martin, e Ficções Amazônicas, de Aparecida Vilaça e Francisco Vilaça Gaspar.
  • 5
    A preocupação de Daniel Galera com as questões climáticas está manifesta também em outras contingências que talvez nos ajudem a evidenciar seu vínculo com o tema. Basta dizer, por exemplo, que ele esteve recentemente entre os participantes da mesa Literatura e Antropoceno, no evento Campus Antropoceno Brasil, realizado na cidade de Porto Alegre (RS) entre os dias 7 e 12 de novembro de 2022, bem como é tradutor do livro Maneiras de Ser, de James Bridle (2022)BRIDLE, James (2022). Maneiras de ser: animais, plantas, máquinas: a busca por uma inteligência planetária. Tradução de Daniel Galera. São Paulo: Todavia., que trata, entre outras coisas, das relações simbiônticas entre humanos, animais, plantas e máquinas. Além disso, Galera tem se dedicado a oficinas de escrita criativa que têm como tema a literatura pós-antropocênica.
  • 6
    Embora não especifique em nenhum ponto quais são as características físicas ou o lugar de pertencimento social dos “vultos humanos”, é possível depreender que Galera (2021)GALERA, Daniel (2021). Tóquio. In: GALERA, Daniel. O Deus das Avencas: três novelas. São Paulo: Companhia das Letras. p. 65-169. está fazendo referência aos indivíduos que, mesmo no presente das mudanças climáticas, são racializados e marginalizados pelos efeitos do racismo ambiental. Acentuando a história da degradação ambiental iniciada com as plantations (Ferdinand, 2022FERDINAND, Malcom (2022). Uma ecologia decolonial: pensar a partir do mundo caribenho. Tradução de Letícia Mei. São Paulo: Ubu.), que submeteram os escravizados africanos às condições de trabalho que possibilitaram o advento do capitalismo moderno, o capitalismo de plataformas é um prolongamento do fato indisputável de que as populações negras e periféricas do antigo “Terceiro Mundo” são as primeiras a sofrerem as consequências mais agudas e nefandas do aquecimento global. Como bem afirma Chaudhary (2024CHAUDHARY, Ajay Singh (2024). The exhausted of the Earth: politics in a burning world. Londres: Repeater., p. 12), “Climate change is not the apocalypse and it does not fall on all equally or, in at least a few senses, on everyone at all”. Por isso, embora não haja nenhuma relação necessária entre os “sem parte” (Rancière, 2015RANCIÈRE, Jacques (2015). A partilha do sensível: estética e política. Tradução de Mônica Costa Netto. São Paulo: 34.) e as minorias políticas consideradas do ponto de vista socioeconômico e histórico, creio que seja possível relacionar os “beduínos” da ficção de Galera (2021)GALERA, Daniel (2021). Tóquio. In: GALERA, Daniel. O Deus das Avencas: três novelas. São Paulo: Companhia das Letras. p. 65-169. com a população periférica que sofre primeiramente e mais agudamente os efeitos deletérios climáticos e sociais da devastação dos ecossistemas terrestres.

Referências

  • BERLANT, Lauren (2020). El optimismo cruel Tradução de Hugo Salas. Buenos Aires: Caja Negra.
  • BOULD, Mark (2021). The antropocene unconscious: climate, catastrophe, culture. Londres e Nova York: Verso.
  • BRIDLE, James (2022). Maneiras de ser: animais, plantas, máquinas: a busca por uma inteligência planetária. Tradução de Daniel Galera. São Paulo: Todavia.
  • BRITO JR., Antonio Barros de (2021). A excepcionalidade estética: agenciamento e produção de mundos. Organon, Porto Alegre, v. 36, n. 72, p. 286-305. https://doi.org/10.22456/2238-8915.119738
    » https://doi.org/10.22456/2238-8915.119738
  • CESARINO, Letícia (2022). O mundo do avesso: verdade e política na era digital. São Paulo: Ubu.
  • CHAKRABARTY, Dipesh (2021). The climate of history in a planetary age Chicago e Londres: University of Chicago Press.
  • CHAUDHARY, Ajay Singh (2024). The exhausted of the Earth: politics in a burning world. Londres: Repeater.
  • CRARY, Jonathan (2022). Scorched Earth: beyond the digital age to a post-capitalist world. Londres e Nova York: Verso.
  • DW BRASIL. Mais de 11 mil mortos após enchentes na Líbia. DW Brasil, 17 set. 2023. Disponível em: https://www.dw.com/pt-br/onu-mais-de-11-mil-mortos-ap%C3%B3s-enchentes-na-l%C3%ADbia/a-66838520 Acesso em: 29 maio 2024.
    » https://www.dw.com/pt-br/onu-mais-de-11-mil-mortos-ap%C3%B3s-enchentes-na-l%C3%ADbia/a-66838520
  • FERDINAND, Malcom (2022). Uma ecologia decolonial: pensar a partir do mundo caribenho. Tradução de Letícia Mei. São Paulo: Ubu.
  • FISHER, Mark (2016). Realismo capitalista Tradução de Claudio Iglesias. Buenos Aires: Caja Negra.
  • FISHER, Max (2023). A máquina do caos: como as redes sociais reprogramaram nossa mente e nosso mundo. Tradução de Érico Assis. São Paulo: Todavia.
  • GALERA, Daniel (2021). Tóquio. In: GALERA, Daniel. O Deus das Avencas: três novelas. São Paulo: Companhia das Letras. p. 65-169.
  • GHOSH, Amitav (2016). The great derangement: climate change and the unthinkable. Chicago e Londres: University of Chicago Press.
  • KOLBERT, Elizabeth (2015). A sexta extinção: uma história não natural. Tradução de Mauro Pinheiro. Rio de Janeiro: Intrínseca.
  • KOTKIN, Joel (2023). The coming of neo feodalism: a warning to the global middle class. Nova York e Londres: Encounter Books.
  • KURZWEIL, Ray (2018). A singularidade está próxima: quando os humanos transcendem a biologia. Tradução de Ana Goldberger. São Paulo: Iluminuras.
  • LATOUR, Bruno (2020). Diante de Gaia: oito conferências sobre a natureza no Antropoceno. Tradução de Maryalua Meyer. São Paulo: Ubu.
  • LE GUIN, Ursula (2004). Being taken for granite. In: LE GUIN, Ursula. The wave in the mind: talks and essays on the writer, the reader, and the imagination. Boston: Shambhala.
  • MARQUES, Luiz (2023). O decênio decisivo: propostas para uma política de sobrevivência. São Paulo: Elefante.
  • MORTON, Timothy (2023). O pensamento ecológico Tradução de Renato Prelorentzou. São Paulo: Quina.
  • NODARI, Alexandre (2015). A literatura como antropologia especulativa. Revista da Anpoll, Florianópolis, v. 1, n. 38, p. 75-85. https://doi.org/10.18309/anp.v1i38.836
    » https://doi.org/10.18309/anp.v1i38.836
  • POVINELLI, Elizabeth A. (2016). Geontologies: a requiem to late capitalism. Durham e Londres: Duke University Press.
  • RANCIÈRE, Jacques (2015). A partilha do sensível: estética e política. Tradução de Mônica Costa Netto. São Paulo: 34.
  • RANCIÈRE, Jacques (2017). Les bords de la fiction Paris: Éditions du Seuil.
  • RANCIÈRE, Jacques (2018). Les temps modernes: art, temps, politique. Paris: La Fabrique Éditions.
  • RANCIÈRE, Jacques (2021). Aisthesis: cenas do regime estético da arte. Tradução de Dilson Ferreira da Cruz. São Paulo: 34.
  • SCRANTON, Roy (2015). Learning to die in the antropocene: reflections on the end of civilization. São Francisco: City Lights Books.
  • SRNICEK, Nick (2018). Capitalismo de plataformas Tradução de Aldo Giacometti. Buenos Aires: Caja Negra.
  • TREXLER, Adam (2015). Anthropocene fictions: the novel in a time of climate change. Charlottesville e Londres: University of Virginia Press.
  • TSING, Anna Lowenhaupt (2015). The murshroom at the end of the world: on the possibility of life in capitalist ruins. Princeton e Oxford: Princeton University Press.
  • VEIGA, José Eli da (2019). O antropoceno e a ciência do sistema Terra São Paulo: 34.
  • WARK, McKenzie (2019). Capital is dead Londres e Nova York: Verso.
  • ZUBOFF, Shoshana (2020). A era do capitalismo de vigilância: a luta por um futuro humano na nova fronteira do poder. Tradução de George Schlesinger. Rio de Janeiro: Intrínseca.

Editores:

Paulo César Thomaz e Rejane Pivetta

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    29 Jul 2024
  • Data do Fascículo
    2024

Histórico

  • Recebido
    09 Nov 2023
  • Aceito
    14 Maio 2024
Grupo de Estudos em Literatura Brasileira Contemporânea, Programa de Pós-Graduação em Literatura da Universidade de Brasília (UnB) Programa de Pós-Graduação em Literatura, Departamento de Teoria Literária e Literaturas, Universidade de Brasília , ICC Sul, Ala B, Sobreloja, sala B1-8, Campus Universitário Darcy Ribeiro , CEP 70910-900 – Brasília/DF – Brasil, Tel.: 55 61 3107-7213 - Brasília - DF - Brazil
E-mail: revistaestudos@gmail.com