Acessibilidade / Reportar erro

Precariedade e morte animal: pensando o luto para além do humano em Clarice Lispector

Precariousness and animal death: rethinking grief beyond the human through Clarice Lispector

Precariedad y muerte animal: repensando el duelo más allá de lo humano a través de Clarice Lispector

Resumo

Tendo em vista que a cisão humano-animal produz também os enquadramentos que determinam quais vidas são matáveis e quais vidas são dignas de viver bem, este trabalho analisa a escrita de Clarice Lispector em conversa com Judith Butler e Jacques Derrida, com atenção especial à inscrição da precariedade e da morte animal em textos como “Ir para” (1967), “Morte de uma baleia” (1968) e “O crime do professor de matemática” (1960). Aponta-se, a partir desta investigação, que a produção ficcional de Clarice Lispector coloca em destaque a precariedade como elemento que perpassa por todos(as), sem distinção de espécie, frisando que o exercício do luto e da disponibilidade para o outro, quando acionado sem modulações hierárquicas, configura um gesto capaz de nos fazer vislumbrar um modo de vida descentrado da figura humana.

Palavras-chave:
Clarice Lispector; luto; animalidade

Abstract

Considering that the human-animal division also produces frameworks that determine which lives are killable and which lives are worthy of living well, this paper analyzes Clarice Lispector’s writing in conversation with Judith Butler and Jacques Derrida, with special attention to the inscription of precariousness and animal death in tales such as “Ir para” (1967) “Morte de uma baleia” (1968) and “O crime do professor de matemática” (1960). This investigation points out that Clarice Lispector’s fictional production highlights precariousness as an element that permeates all beings, regardless of species, emphasizing that the exercise of mourning and availability for the other, when activated without hierarchical modulations, constitutes a gesture capable of allowing us to glimpse a way of life that is not centered on the human figure.

Keywords:
Clarice Lispector; grief; animality

Resumen

Teniendo en cuenta que la división humano-animal también produce marcos que determinan qué vidas son matables y cuáles vidas merecen vivir bien, este trabajo analiza la escritura de Clarice Lispector en conversación con Judith Butler y Jacques Derrida, con especial atención a la inscripción de la precariedad y la muerte animal en textos como “Ir para” (1967), “Morte de uma baleia” (1968) e “O crime do professor de matemática” (1960). Esta investigación señala que la producción ficticia de Clarice Lispector destaca la precariedad como un elemento que atraviesa a todos, sin distinción de especie, enfatizando que el ejercicio del duelo y la disponibilidad para el otro, cuando se activan sin modulaciones jerárquicas, constituye un gesto capaz de permitirnos vislumbrar una forma de vida que no está centrada en la figura humana.

Palabras clave:
Clarice Lispector; duelo; animalidad

PRECARIEDADE E MORTE ANIMAL

Em crônica de título “Ir para”, publicada em 16 de setembro de 1967 no Jornal do Brasil, Clarice Lispector constrói um sujeito ficcional que, deparando-se com o sofrimento de um animal outro que humano, é tomado por um latente e genuíno estado de compaixão. Nota-se: “Esta noite um gato chorou tanto que tive uma das mais profundas compaixões pelo que é vivo. Parecia dor, e, em nossos termos humanos e animais, era” (Lispector, 2018LISPECTOR, Clarice (2018). Todas as crônicas. Rio de Janeiro: Rocco., p. 22). Há, no curto e não menos significativo instante ficcional, um movimento de escuta1 1 Não se pode deixar de notar que a dita “compaixão” surge com o apelo sonoro que se origina no choro do gato. Trata-se, nesse sentido, da escuta como gesto que, carregando um potencial de verdadeira abertura ao outro, aciona no sujeito à escuta uma efetiva e genuína recepção aos sentidos que vêm de fora com as mais diversas tonalidades, permitindo que ele reconheça, até mesmo, o outro - e lemos o outro, aqui, no âmbito da vida que escapa ao contorno de uma humanidade - como um igual digno de compaixão. Insisto ao longo deste trabalho na questão da escuta e suas relações com a animalidade em tentativa de dar continuidade a um exercício de reflexão crítica - que parte de um diálogo entre Clarice Lispector, Jean-Luc Nancy (2002) e Marília Librandi (2020) já iniciado em: “A escuta multiespécies em Clarice Lispector” (Sant’anna, 2023b) e À escuta do vivente: animalidade e biopolítica em Clarice Lispector (Sant’anna, 2023a). que, em primeiro plano, não faz distinções hierárquicas entre aquilo que é vivo e, em segundo, assume que a experiência da dor é compartilhada por humanos e animais com a mesma intensidade. O que pode ser dito da narrativa, portanto, é que ela dá forma a um campo textual que abriga uma personagem capaz de reconhecer a vida animal como instância que não difere da vida humana na medida em que ambas têm a precariedade como elemento em comum.

Ao pensar em precariedade, aqui, converso com uma das noções trabalhadas por Judith Butler em seu Frames of War, em que a categoria mencionada é compreendida como uma “condição compartilhada da vida”2 2 É importante frisar a distinção existente entre “precariedade” e “condição precária”, visto que em Butler ambos os conceitos se entrecruzam: “Vidas são, por definição, precárias: podem ser eliminadas de maneira proposital ou acidental; sua persistência não está, de modo algum, garantida. Em certo sentido, essa é uma característica de todas as vidas, e não há como pensar a vida como não precária” (Butler, 2018, p. 46), enquanto a condição precária é a condição politicamente induzida que certos viventes sofrem, condição que potencializa e maximiza suas exposições a situações de violência e violação. , como condição que une “animais humanos e não humanos” (Butler, 2018BUTLER, Judith (2018). Quadros de guerra: quando a vida é passível de luto? Trad. Sérgio Lamarão e Arnaldo Marques da Cunha. 5ª ed. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira., p. 30). No contexto conceitual levantado pela filósofa, “afirmar que uma vida é precária exige não apenas que a vida seja apreendida como uma vida, mas também que a precariedade seja um aspecto do que é apreendido no que está vivo” (Butler, 2018BUTLER, Judith (2018). Quadros de guerra: quando a vida é passível de luto? Trad. Sérgio Lamarão e Arnaldo Marques da Cunha. 5ª ed. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira., p. 30), sendo esse aspecto o fato de uma vida ser sempre dependente de outra, estar entregue a outra ou manter-se em relação com outra. A abertura auditiva acionada pela voz narrativa de “Ir para”, tangenciada pela compaixão que ela sente perante o sofrimento do animal - perante o sofrimento do “que é vivo” (Lispector, 2018LISPECTOR, Clarice (2018). Todas as crônicas. Rio de Janeiro: Rocco., p. 22) -, sublinha justamente a precariedade como aspecto a ser apreendido, a ser reconhecido, frisando que “a precariedade implica viver socialmente, isto é [...] que a vida de alguém está sempre, de alguma forma, nas mãos do outro” (Butler, 2018BUTLER, Judith (2018). Quadros de guerra: quando a vida é passível de luto? Trad. Sérgio Lamarão e Arnaldo Marques da Cunha. 5ª ed. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira., p. 31). Isso nos permite afirmar “que a vida precária implica a vida como um processo condicionado, e não como um aspecto interno de um indivíduo monádico ou qualquer outro constructo antropocêntrico” (Butler, 2018BUTLER, Judith (2018). Quadros de guerra: quando a vida é passível de luto? Trad. Sérgio Lamarão e Arnaldo Marques da Cunha. 5ª ed. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira., p. 43).

Ainda que a animalidade se apresente como uma questão que atravessa toda a economia ficcional clariceana, o sofrimento e a precariedade da vida animal - a contrapelo do que expõe a crônica citada - nem sempre despertam nas personagens a mesma compaixão ou inclinação para a escuta expressas acima. Se em A paixão segundo G.H. (Lispector, 2009LISPECTOR, Clarice (2009). A paixão segundo G.H. Rio de Janeiro: Rocco.) a morte da barata configura uma abertura para que a protagonista questione os limites de sua própria humanidade, enquanto a morte de animais como a galinha3 3 Para além do caso deste conto, a galinha é um animal que se destaca quando paramos para analisar suas relações com a inscrição da morte na escrita clariceana. Isso porque em A vida íntima de Laura (Lispector, 1999a) a morte da galinha também é naturalizada, bem como em Perto do coração selvagem (Lispector, 1998b), primeiro trabalho publicado pela autora, no qual se nota: “Encostando a testa na vidraça brilhante e fria olhava para o quintal do vizinho, para o grande mundo das galinhas-que-não-sabiam-que-iam-morrer” (Lispector, 1998b, p. 13). , personagem principal do conto “Uma galinha”, acompanha uma naturalidade que se justifica pelas hierarquias causadas pela cisão humano/animal, em “Ir para” há um apelo para que a vida humana e a vida animal sejam reconhecidas como diferentes ocupantes do mesmo campo na escala que determina quais viventes podem viver e quais serão abandonados à morte - apelo que, de uma forma ou de outra, frisa a precariedade como algo em comum. O que me interessa neste artigo é perseguir os sentidos abertos pela tensão que se instaura com o apreço pela vida animal, em um polo, e a indiferença em relação às violações que por vezes são direcionadas a ela, em outro. Parto dos seguintes questionamentos: quais são as possibilidades de ressignificação dos termos “vida”, “animalidade” e “humanidade” que a escrita de Clarice Lispector movimenta ao tratar dessa dualidade? Em que medida o texto clariceano, destacando o sofrimento que muitas vezes antecede a morte do animal e do humano animalizado, nos permite reorganizar os modos por meio dos quais compreendemos a própria política? Como é possível repensar nossas concepções de vulnerabilidade, precariedade e de vida em comunidade ao nos depararmos com essas constantes?

Voltando ao campo ficcional clariceano, destaco agora “Morte de uma baleia”, texto publicado no Jornal do Brasil em 17 de agosto de 1968. Nele, Clarice Lispector (2018LISPECTOR, Clarice (2018). Todas as crônicas. Rio de Janeiro: Rocco.) elabora uma narrativa que destaca com bastante sensibilidade uma personagem que, profundamente afetada por uma notícia que circulava a respeito do encalhe de uma baleia na praia do Leme e outra na praia do Leblon, inicia um intenso processo de reflexão voltado à experiência da morte e suas relações com o modo como ela apreendia o mundo a sua volta:

Em minutos espalhara-se a notícia: uma baleia no Leme e outra no Leblon haviam surgido na arrebentação de onde tinham tentado sair sem no entanto poder voltar. Eram descomunais apesar de apenas filhotes. Todos foram ver. Eu não fui: corria o boato de que ela agonizava já há oito horas e que até atirar nela haviam atirado mas ela continuava agonizando e sem morrer [...] Senti um horror diante do que contavam e que talvez não fossem estritamente os fatos reais, mas a lenda já estava formada em torno do extraordinário que enfim, enfim! acontecia [...] Não, não fui vê-la: detesto a morte (Lispector, 2018LISPECTOR, Clarice (2018). Todas as crônicas. Rio de Janeiro: Rocco., p. 133, grifos meus).

Como é possível notar, desde o seu início a crônica coloca em primeiro plano uma voz narrativa visivelmente afetada pela normalização direcionada ao sofrimento vivido pelas baleias. Tal posicionamento, semelhante ao da personagem que protagoniza o texto “Ir para”, atua como um gesto que coloca problemas para as hierarquias historicamente estabelecidas entre o humano e o animal: “Se fosse um homem que estivesse agonizando na praia durante oito horas nós o santificaríamos” (Lispector, 2018LISPECTOR, Clarice (2018). Todas as crônicas. Rio de Janeiro: Rocco., p. 133). É o que se narra no início da crônica, expandindo tacitamente o problema sobre as vidas animais “que são arrastadas, com facilidade e sem horror de muitos, para a morte, o abatimento e a agonia”, enquanto as vidas humanas “devem ser cuidados[as], alimentados[as] e protegidos[as], com o fim de mantê-los[as] saudáveis e com o direito ao futuro” (Costa; Holanda, 2020COSTA, Fabrício Lemos; HOLANDA, Sílvio Augusto (2020). “Morte de uma baleia”, de Clarice Lispector: por uma escritura biopolítica. Fólio - Revista de Letras, v. 12, n. 2, p. 515-532. https://doi.org/10.22481/folio.v12i2.7040
https://doi.org/https://doi.org/10.22481...
, p. 519). Essa marcação faz com que o(a) leitor(a) lide diretamente com o fato de que:

A condição compartilhada de precariedade conduz não ao reconhecimento recíproco, mas sim a uma exploração específica de populações-alvo, de vidas que não são exatamente vidas, que são consideradas “destrutíveis” e “não passíveis de luto”. Essas populações são “perdíveis”, ou podem ser sacrificadas, precisamente porque foram enquadradas como já tendo sido perdidas ou sacrificadas [...] Consequentemente, quando essas vidas são perdidas, não são objetos de lamentação, uma vez que, na lógica distorcida que racionaliza sua morte, a perda dessas populações é considerada necessária para proteger a vida dos “vivos” (Butler, 2018BUTLER, Judith (2018). Quadros de guerra: quando a vida é passível de luto? Trad. Sérgio Lamarão e Arnaldo Marques da Cunha. 5ª ed. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira., p. 53)4 4 Embora Butler (2018) se refira aos humanos, penso ser interessante dialogarmos com esse trecho por dois motivos: o primeiro diz respeito ao fato de o pensamento da filósofa ser capaz de nos conduzir a um processo crítico de questionamento mediante as hierarquias e cisões que separam o humano e o animal - sobretudo se considerarmos que, já em Frames of War, encontram-se fios argumentativos que tratam das relações entre “reconhecimento”, “humanidade” e “violação da vida”; o segundo vincula-se às relações entre “biopolítica”, “reconhecimento” e “humanidade’, no sentido de que a produção de vidas a abandonar gerada pelos ditamos biopolíticos é justamente o resultado de uma hierarquia que determina quais serão as vidas reconhecidas como humanas e quais serão reconhecidas como menos que humanas, tópico também explorado pela autora. .

Assim, recusando-se a fazer coro ao espetáculo que se criara ao redor do sofrimento das baleias e destacando o fato de que, embora humanos e animais compartilhem da precariedade, essa condição compartilhada não necessariamente produz um reconhecimento recíproco capaz de proteger da morte aqueles que se localizam à periferia de um contorno humano, a voz narrativa demonstra compaixão pela vida do animal e, além disso, articula um olhar contundente para as violências direcionadas a ele:

Enquanto isso as notícias misturadas com lendas corriam pela cidade do Leme. Uns diziam que a baleia do Leblon ainda não morrera mas que sua carne retalhada em vida era vendida por quilos pois carne de baleia era ótimo de se comer, e era barato, era isso que corria pela cidade do Leme. E eu pensei: maldito seja aquele que a comerá por curiosidade [...] Outros, no limiar do horror, contavam que também a baleia do Leme, embora ainda viva e arfante, tinha seus quilos cortados para serem vendidos. Como acreditar que não se espera nem a morte para um ser comer outro ser? Não quero acreditar que alguém desrespeite tanto a vida e a morte, nossa criação humana, e que coma vorazmente, só por ser uma iguaria, aquilo que ainda agoniza, só porque é mais barato, só porque a fome humana é grande, só porque na verdade somos tão ferozes como um animal feroz, só porque queremos comer daquela montanha de inocência que é uma baleia, assim como comemos a inocência cantante de um pássaro. Eu ia dizer agora com horror: a viver desse modo, prefiro a morte (Lispector, 2018LISPECTOR, Clarice (2018). Todas as crônicas. Rio de Janeiro: Rocco., p. 136, grifos meus).

Ultrapassando a elaboração de uma sensibilidade perante o sofrimento animal, o que é narrado pelo sujeito ficcional nos permite questionar muitas das ações que, embora naturalizadas em nosso cotidiano, não deixam de ser um indicativo da mais absoluta barbárie contra o vivente: a baleia do Leblon, ainda viva, tinha sua carne retalhada para “ser vendida por quilos” simplesmente para suprir as vontades do sujeito humano, para quem se alimentar da carne animal é fonte de prazer. Esse posicionamento contundente que se alinha ao sujeito narrativo, a propósito, vibra no texto não apenas com o intermédio da urgência temática tratada pela crônica, mas também na forma da escrita, que assumindo uma sonoridade muito bem marcada pela repetição do “só porque” - como se a materialidade textual incorporasse o compasso de um metrônomo que dita o tempo de uma canção -, nos convoca a uma escuta atenta ao ironizar as justificativas frequentemente dadas para que a vida animal seja violentada.

Quando argumento a respeito de uma absoluta barbárie contra o vivente, não o faço com o objetivo de produzir um paralelismo que não leva em consideração as especificidades dos grandes genocídios cujos alvos foram vidas humanas - estas, animalizadas -, a exemplo da colonização, da escravização, do nazismo ou mesmo das sistemáticas formas de apagamento contemporâneas direcionadas aos viventes compreendidos como menos que humanos. Isso nos remete até mesmo às constantes pontuações de Jacques Derrida (2011DERRIDA, Jacques (2011). O animal que logo sou: (a seguir). Trad. Fábio Landa. 2. ed. São Paulo: Editora Unesp.) em seu O animal que logo sou, texto em que ele argumenta que as formas de violação que incidem sobre a vida animal poderiam ser comparadas “aos piores genocídios” (Derrida, 2011DERRIDA, Jacques (2011). O animal que logo sou: (a seguir). Trad. Fábio Landa. 2. ed. São Paulo: Editora Unesp., p. 52). Assim, afirmando que “da figura do genocídio não se deveria nem abusar nem se desembaraçar rápido demais” (Derrida, 2011DERRIDA, Jacques (2011). O animal que logo sou: (a seguir). Trad. Fábio Landa. 2. ed. São Paulo: Editora Unesp., p. 52), o filósofo franco-argelino demonstra que a complicação atrelada a esse debate se vincula à ainda pouco discutida realidade de que

o aniquilamento das espécies, de fato, estaria em marcha, porém passaria pela organização e a exploração de uma sobrevida artificial, infernal, virtualmente interminável, em condições que os homens do passado teriam julgado monstruosas, fora de todas as normas supostas da vida própria aos animais assim exterminados na sua sobrevivência ou na sua superpopulação mesmo. Como se, por exemplo, em lugar de jogar um povo nos fornos crematórios e nas câmaras de gás, os médicos ou os geneticistas (por exemplo, nazistas) tivessem decidido organizar por inseminação artificial a superprodução e supergeração de judeus, de ciganos e de homossexuais que, cada vez mais numerosos e mais nutridos, tivessem sido destinados, em número sempre crescente, ao mesmo inferno, o da experimentação genética imposta, o da exterminação pelo gás ou pelo fogo. Nos mesmos abatedouros (Derrida, 2011DERRIDA, Jacques (2011). O animal que logo sou: (a seguir). Trad. Fábio Landa. 2. ed. São Paulo: Editora Unesp., p. 52).

Considerando as crônicas “Morte de uma baleia” e “Ir para” em diálogo com os apontamentos de Jacques Derrida, o que se pode sugerir é que a escrita de Clarice Lispector, nesses casos, nos permite sobretudo rasurar a noção - fundamentada nos terrenos de uma tradição política ocidental de farta herança humanista e antropocêntrica - de que o sofrimento e a morte animal são inferiores e justificáveis se comparados ao sofrimento e a morte humana, e que sua precariedade e vida não são dignas de reconhecimento do mesmo modo que a vida e a precariedade humana o são. Nesse compasso, quando a personagem de “Ir para” anuncia que “parecia dor, e, em nossos termos humanos e animais, era” (Lispector, 2018LISPECTOR, Clarice (2018). Todas as crônicas. Rio de Janeiro: Rocco., p. 22, grifos meus) ao passo que a voz narrativa de “Morte de uma baleia” destaca “a viver desse modo, prefiro a morte” (Lispector, 2018LISPECTOR, Clarice (2018). Todas as crônicas. Rio de Janeiro: Rocco., p. 136), o que ressoa naqueles que se abrem à escuta são sentidos capazes de mobilizar um exercício de reflexão voltado à distribuição desigual dos enquadramentos que determinam os modos por meio dos quais nos afetamos pelo sofrimento do outro, acionando em seus/suas leitores(as) possíveis práticas de compaixão e responsabilidade desvinculadas das distinções interespecíficas que alocam o humano como superior e o animal como inferior em uma escala de valores que é tangenciada pelo funcionamento biopolítico.

O que entra em vigor, nesse panorama, é uma recusa ao desinteresse pelo sofrimento do outro - recusa que, por sua vez, em proximidade com o exercício de responsabilidade5 5 Aqui, dialogando com Lévinas (2002), trata-se de pensar a responsabilidade para com o outro como algo que se fundamenta no exercício constante de uma não indiferença para com a alteridade - seja ela qual for - e as especificidades que constituem sua diferença. Nas palavras do filósofo: “A responsabilidade para com o próximo consiste precisamente no que vai além do legal e obriga para além do contrato; ela me incumbe de aquém de minha liberdade, do não-presente, do imemorial. Entre mim e o outro escancara-se uma diferença que nenhuma unidade da percepção transcendental poderia recuperar. Minha responsabilidade por outrem é precisamente a não-indiferença dessa diferença: a proximidade do outro” (Lévinas, 2002, p. 105). em termos levinasianos, apresenta “a sensibilidade e a vulnerabilidade como modos de disponibilidade para o outro” (Souza, 2018SOUZA, José Tadeu (2018). O conceito de responsabilidade para além do ser em Lévinas. Problemata: Revista Internacional de Filosofia, v. 9, n. 4, p. 205-217. https://doi.org/10.7443/problemata.v9i4.43529
https://doi.org/https://doi.org/10.7443/...
, p. 215), seja ele humano ou não. Essa recusa, então, expandindo nossas formas de recepção para o outro, permite-nos refletir a respeito da implicação das posturas que assumimos diante de seu sofrimento - guiando-nos, assim, a um cotidiano menos calcado na constante isenção que damos à responsabilidade que também carregamos no que diz respeito ao posicionamento de certas vidas nos campos da animalidade e, portanto, da matabilidade. Nessa perspectiva, pode-se afirmar que essa forma de responsabilidade solidifica uma espécie de reconhecimento da precariedade como aspecto também inerente à vida animal, frisando que a precariedade em si, de um modo ou de outro,

tem de ser compreendida não apenas como um aspecto desta ou daquela vida, mas como uma condição generalizada cuja generalidade só pode ser negada negando-se a precariedade enquanto tal. E a obrigação de pensar a precariedade em termos de igualdade surge precisamente da irrefutável capacidade de generalização dessa condição. Partindo desse pressuposto, contesta-se a alocação diferencial da precariedade e da condição de ser lamentado. Além disso, a própria ideia de precariedade implica uma dependência de redes e condições sociais, o que sugere que aqui não se trata da “vida como tal”, mas sempre e apenas das condições de vida, da vida como algo que exige determinadas condições para se tornar uma vida vivível e, sobretudo, para tornar-se uma vida passível de luto (Butler, 2018BUTLER, Judith (2018). Quadros de guerra: quando a vida é passível de luto? Trad. Sérgio Lamarão e Arnaldo Marques da Cunha. 5ª ed. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira., p. 42).

É necessário sublinhar, além disso, o posicionamento incisivo da voz narrativa de “Morte de uma baleia” que, diante do violento fato, aloca o próprio humano na esfera da animalidade, de modo a embaralhar - tal como ocorre em “Ir para” - as posições que separam ambas as categorias: “na verdade somos tão ferozes como um animal feroz” (Lispector, 2018LISPECTOR, Clarice (2018). Todas as crônicas. Rio de Janeiro: Rocco., p. 136). Ressalto, ainda, que mediante uma experiência de extremo desconforto ao saber do sofrimento que a baleia vivenciava a personagem acena para uma espécie de consciência vinculada ao fato de que o que se compreende como humanidade é, na verdade, o resultado de um esforço que o vivente humano opera para livrar-se de sua própria animalidade; ou, em termos elaborados por G.H., que o que se compreende como humanidade não passa de uma montagem6 6 No início do romance A paixão segundo G.H. (Lispector, 2009), a voz narrativa declara o seguinte: “Ontem no entanto perdi durante horas e horas a minha montagem humana”, referindo-se à experiência quase limite configurada pelo seu encontro com a barata. : “Sou uma feroz entre os ferozes seres humanos - nós, os macacos de nós mesmos, nós, os macacos que idealizaram tornarem-se homens, e esta é também a nossa grandeza. Nunca atingiremos em nós o ser humano: a busca e o esforço serão permanentes” (Lispector, 2018LISPECTOR, Clarice (2018). Todas as crônicas. Rio de Janeiro: Rocco., p. 136, grifos meus). Os sentidos produzidos pela crônica, desse modo, trazendo à tona a humanidade como montagem e não como algo que compõe o vivente de maneira essencial, e ocupando o mesmo plano sobre o qual se situa o modo como a personagem se sensibiliza com o sofrimento do vivente outro que humano, permitem-nos questionar uma noção de humanidade enquanto fundamento capaz de justificar formas de hierarquia e distribuição de violências, visto que a própria noção de humanidade - formulada por “conceitos grossos” demais (Lispector, 2009LISPECTOR, Clarice (2009). A paixão segundo G.H. Rio de Janeiro: Rocco., p. 133), para dialogar novamente com G.H. - é posta em xeque.

Tratando, agora, de outra produção narrativa clariceana, destaco Um sopro de vida (Lispector, 1999bLISPECTOR, Clarice (1999b). Um sopro de vida. Rio de Janeiro: Rocco.), texto publicado um ano após a morte da autora com o auxílio de Olga Borelli. Embora aqui a figuração da animalidade, ao menos nos termos que têm sido postos neste texto, seja pouco investigada pela crítica, também encontramos nesse romance constantes inscrições da vida animal. De um lado, destacam-se as aproximações que o Autor faz entre Ângela Pralini e a vida outra que humana em gestos que beiram a zoomorfização da personagem, que “brame, muge, geme, resfolega balindo e rosnando e grunhindo” (Lispector, 1999bLISPECTOR, Clarice (1999b). Um sopro de vida. Rio de Janeiro: Rocco., p. 31); de outro, o que se nota é a proposição da animalidade como fundamentação da construção da protagonista, alocada no romance como “gazela espavorida e borboleta amarela”, como vivente oblíquo “como o voo de pássaros” (Lispector, 1999bLISPECTOR, Clarice (1999b). Um sopro de vida. Rio de Janeiro: Rocco., p. 37), e que possuía os olhos “como os de vaca que está sendo ordenhada” (Lispector, 1999bLISPECTOR, Clarice (1999b). Um sopro de vida. Rio de Janeiro: Rocco., p. 43)7 7 Ainda a respeito dessa discussão, vale destacar a seguinte afirmação de Ângela: “Oh doce mistério animal, Oh alegria mansa. Que fascínio. Mas que fascínio tremendo é esse desafio da besta! Oh doce martírio de não saber falar e sim apenas latir” (Lispector, 1999b, p. 59). Essa caracterização, como bem nos lembra André Leão Moreira (2011) em A hora dos animais no romance de Clarice Lispector, configura outra “recusa da ficção de Clarice ao cartesianismo”, visto que o autor que constrói Ângela “sabe de sua criatura viva, mas esse saber escapa da racionalização”, de modo que ambos ultrapassam “o limite do considerado humano, transcendendo-o” (Moreira, 2011, p. 103). . Clarice Lispector, assim, ao elaborar uma personagem que queria “a mistura colorida, confusa e misteriosa da natureza” (Lispector, 1999bLISPECTOR, Clarice (1999b). Um sopro de vida. Rio de Janeiro: Rocco., p. 39), movimenta sentidos muito parecidos com os que transitam em seu primeiro romance, Perto do coração selvagem (Lispector, 1998bLISPECTOR, Clarice (1998b). Perto do coração selvagem. Rio de Janeiro: Rocco.), permitindo-nos levantar questões a respeito dos limites do humano enquanto elemento pronto e engessado.

Nesse romance, contudo, para além dessas encenações, a escrita clariceana também se encontra com o ponto nodal das crônicas mencionadas até aqui, isto é: salta aos olhos, em dado momento do texto, uma abertura ao exercício de compaixão perante o sofrimento e a morte do animal outro que humano. Nota-se:

Hoje matei um mosquito. Com a mais bruta das delicadezas. Por quê? Por que matar o que vive? Sinto-me uma assassina e uma culpada. E nunca mais vou esquecer esse mosquito. Cujo destino eu tracei. A grande matadora. Eu, como um guindaste, a lidar com um delicadíssimo átomo. Me perdoe, mosquitinho, me perdoe, não faço mais isso (Lispector, 1999bLISPECTOR, Clarice (1999b). Um sopro de vida. Rio de Janeiro: Rocco., p. 65).

A personagem, ao questionar-se a respeito dos motivos que levariam alguém a matar o que vive, assume o extermínio da vida animal - um mosquito, no caso - como prática de assassinato. Colocando-se como matadora, como alguém que “traçou” o “destino” de um vivente outro, por mais que esse outro ocupe um espaço de abjeção9 8 Penso no “abjeto como excluído paradoxal de um sistema normativo” que é rejeitado por “remeter ao impuro e desordeiro” (Rodrigues; Gruman, 2021, p. 73). - o mesmo ocupado pela barata de G.H. -, Ângela abre passagem para uma abertura que nos permite compreender a vida animal sob a mesma ótica que a vida humana costuma ser compreendida no bojo de um panorama biopolítico: como vida que merece ser vivida. Trata-se, então, quando paramos para analisar o protagonismo que é dado ao sofrimento e à morte animal, bem como a mobilização de um reconhecimento voltado a este sofrimento e a esta morte, seja nas crônicas aqui citadas, seja no trecho de Um sopro de vida (Lispector, 1999bLISPECTOR, Clarice (1999b). Um sopro de vida. Rio de Janeiro: Rocco.), de uma escrita que opera uma forma de antecipação daquilo que Peter Singer (2002SINGER, Peter (2002). Animal liberation. Nova York: Ecco Press.) - um dos expoentes intelectuais dedicados não apenas aos estudos animais, mas também às possibilidades de articulação do que se compreende como direito animal - anuncia em seu Animal Liberation:

Se um ser sofre, não pode haver justificativa moral para deixar de levar em conta esse sofrimento. Não importa a natureza do ser; o princípio da igualdade requer que seu sofrimento seja considerado da mesma maneira como o são os sofrimentos semelhantes - na medida em que comparações aproximadas possam ser feitas - de qualquer outro ser (Singer, 2002SINGER, Peter (2002). Animal liberation. Nova York: Ecco Press., p. 8).

Quando traço um paralelo entre a inscrição do sofrimento animal na escrita de Clarice Lispector e o pensamento de Peter Singer (2002SINGER, Peter (2002). Animal liberation. Nova York: Ecco Press.), refiro-me justamente a uma fissura nas justificativas morais comumente dadas para que a violação da vida animal se exerça. Isto é, embora o que foi elencado até aqui nos permita refletir sobre até que ponto a produção ficcional da autora nos possibilita pensar a respeito dos direitos dos animais, minha leitura sugere que seus textos apontam muito mais para uma espécie de mobilização de uma ética do vivente deslocada dos pressupostos - aqueles que separam o humano do animal - que fundam o próprio direito. Isso porque, de acordo com noções propostas por Derrida, “conferir ou reconhecer direitos aos animais é uma maneira sub-reptícia ou implícita de confirmar uma certa interpretação do sujeito humano, que terá sido alavancada da pior violência com respeito a seres vivos não humanos” (Derrida; Roudinesco, 2004DERRIDA, Jacques; ROUDINESCO, Elisabeth. De que amanhã... Trad. André Telles. Rio de Janeiro: Zahar, 2004., p. 84). Não se trata, pois, de ter em vista a inscrição de personagens clariceanas que se solidarizam com o sofrimento animal compreendendo essa forma de solidariedade como caminhos para se pensar um direito animal, dado que isso significaria “guardar a herança cartesiana” (Paixão, 2013PAIXÃO, Rita Leal (2013). Sob o olhar do outro: Derrida e o discurso da ética animal. Sapere Aude, v. 4, n. 7, p. 272-283., p. 279) sob a superfície das palavras que regem a sinfonia textual da autora.

Nessa perspectiva, considerando-se que “o problema com o discurso dos direitos animais é que ele baseia-se em um modelo de justiça, no qual um ser tem ou não direitos com base em ter ou não uma característica moralmente relevante que possa ser empiricamente derivada” (Paixão, 2013PAIXÃO, Rita Leal (2013). Sob o olhar do outro: Derrida e o discurso da ética animal. Sapere Aude, v. 4, n. 7, p. 272-283., p. 281), a escrita de Clarice Lispector, nas crônicas e nos breves trechos de Um sopro de vida (Lispector, 1999bLISPECTOR, Clarice (1999b). Um sopro de vida. Rio de Janeiro: Rocco.) frisados, ao pontuar o sofrimento animal e um modo de responsabilizar-se diante dele, coloca-nos diante do que Derrida menciona ao tratar da figura animal e sua “capacidade de interromper uma existência e inaugurar um encontro ético-político” (Paixão, 2013PAIXÃO, Rita Leal (2013). Sob o olhar do outro: Derrida e o discurso da ética animal. Sapere Aude, v. 4, n. 7, p. 272-283., p. 280) calcado na finitude da vida e na vulnerabilidade como pontos que tangenciam tanto o humano quanto aquilo que o ultrapassa:

Aí reside, como a maneira mais radical de pensar a finitude que compartilhamos com os animais, a mortalidade que pertence à finitude propriamente dita da vida, à experiência da compaixão, à possibilidade de compartilhar a possibilidade desse não poder, a possibilidade dessa impossibilidade, a angústia dessa vulnerabilidade e a vulnerabilidade dessa angústia (Derrida, 2011DERRIDA, Jacques (2011). O animal que logo sou: (a seguir). Trad. Fábio Landa. 2. ed. São Paulo: Editora Unesp., p. 55).

Pode-se propor, entretanto, que quando se analisa a inscrição da morte de determinadas personagens no material ficcional construído por Clarice Lispector, sejam essas personagens animais ou humanos animalizados, essa constante vem acompanhada de certo estado de indiferença e normalização - algumas vezes por parte dos sujeitos ficcionais que permanecem vivos, outras por parte da própria voz narrativa -, como é o caso, por exemplo, do desfecho do conto “Uma galinha”: “Até que um dia mataram-na, comeram-na e passaram-se anos” (Lispector, 2016LISPECTOR, Clarice (2016). Todos os contos. Rio de Janeiro: Rocco., p. 158). Isso não significa afirmar que os sentidos abertos pelo texto, que por sua vez atua como o espaço acústico que afeta o(a) leitor(a) clariceano(a) de modo a fazê-lo(a) questionar tal indiferença e normalização, operam o mesmo movimento. Trata-se, portanto, de ter em mente que, embora os textos de Clarice Lispector também sustentem, por parte de seus personagens ou de dada voz narrativa, uma postura de indiferença para com o sofrimento e a morte animal, eles têm o potencial de guiar seus leitores e leitoras a um exercício de reorganização dos modos por meio dos quais normalmente nos colocamos diante desse sofrimento e dessa morte. Essa reorganização, aliás, acompanha movimentos contraditórios, como é possível notar nos seguintes trechos de A vida íntima de Laura (1999aLISPECTOR, Clarice (1999a). A vida íntima de Laura. Rio de Janeiro: Rocco., p. 13):

Existe um modo de comer galinha que se chama “galinha ao molho pardo”. Você já comeu? O molho é feito com o sangue da galinha. Mas não adianta mandar comprar galinha morta: tem que ser viva e matada em casa para aproveitar o sangue. E isto eu não faço. Nada de matar galinha. Mas que é comida gostosa, é. A gente come com arroz bem branco e bem solto [...] É engraçado gostar de galinha viva mas ao mesmo tempo também gostar de comer galinha ao molho pardo. É que pessoas são uma gente meio esquisitona.

A leitura que proponho da escrita da autora, que de um modo ou de outro vem acompanhada de um gesto crítico interessado em pensar em outras formas de vivermos em comunidade, aposta justamente nessa reorganização que se articula por meio de inscrições semânticas sustentadas nessas contradições, nessas rotas de escape que nos permitem a elaboração de um estranhamento perante a normalização do sofrimento não só da vida animal, mas também do humano animalizado. Não se trata, pois, de tomar a economia ficcional da autora e a animalidade nela presente como uma fuga total dos estreitos limites que definem o humano; ou, ainda, uma fuga total das violências que se mantêm mediante a colocação do humano como vivente superior, absoluto e soberano se comparado aos outros viventes da terra. Trata-se, na verdade, de considerar a animalidade presente em seus textos como signo que desorganiza noções estritamente engessadas do que configura o humano e o animal e, com isso, nos permite entrever outras maneiras de conceber a alteridade e o mundo que nos cerca de modo afastado das hierarquias e classificações que recaem sobre os mais variados viventes.

A forma como as vidas são enquadradas ora pelos contornos da humanidade ora pelos contornos da animalidade é o que determina de que maneira ela será apreendida pelos sujeitos ou pelas forças políticas que com ela se chocam, o que inclui o próprio aparato biopolítico e suas estratégias capazes de fazer viver ou de abandonar à morte por meio de uma exclusão inclusiva (Cf. Agamben, 2014AGAMBEN, Giorgio (2014). Homo sacer: o poder soberano e a vida nua I. Trad. Henrique Burigo. Belo Horizonte: UFMG.). A vida, desse modo, é lida como o alvo em direção ao qual os vetores políticos presentes em um horizonte social e cultural sustentado sobre a divisão humano/animal são apontados. É, contudo, sem deixar de ter em mente esses entroncamentos presentes entre as noções de animalidade e vida que penso, pautado por Clarice Lispector, a respeito do sofrimento e da morte dos viventes que se enquadram no campo da animalidade, com atenção especial às mobilizações de um estado de compaixão que a eles se volta. É nesse sentido que vida e morte são aqui “compreendidas como categorias relacionais”, visto que “o valor atribuído a uma vida está diretamente ligado ao modo como a enlutamos” (Rodrigues, 2021RODRIGUES, Carla (2021). O luto entre clínica e política: Judith Butler para além do gênero. Belo Horizonte: Autêntica., p. 41) e nos sensibilizamos por seu sofrimento. É por esse motivo que busco me ater a como, ao tratar do sofrimento e da morte animal, a escrita clariceana nos encaminha a um estado de profunda “compaixão pelo que é vivo” (Lispector, 2018LISPECTOR, Clarice (2018). Todas as crônicas. Rio de Janeiro: Rocco., p. 22), nos afastando, com isso, de distinções interespecíficas alimentadas pelas mais variadas formas de hierarquia.

Perseguir esse tópico de análise caminha essencialmente ao lado de uma escuta aguçada - tal qual a que é anunciada em “Ir para” - perante as maneiras por meio das quais a morte do animal e a do humano animalizado nos permite repensar como nos afetamos pelas formas de violência e violação que recaem sobre o outro, seja ele humano ou não, de modo a acionar em nós um senso de responsabilidade perante o vivente em geral. Em concomitância a essa inclinação auditiva, que é também uma inclinação a como concebemos e construímos as mais diversas formas de habitabilidade com a alteridade, é preciso pensar em que medida a inscrição do sofrimento e da morte dos animais na escrita de Clarice Lispector abre passagens para possibilidades de questionamento a respeito dos dispositivos que tornam a vida humana animalizada - muito bem expressa pela figura de Macabéa, por exemplo -, uma vida matável, sobretudo porque é justamente pela negação da animalidade e das violências direcionadas à vida animal que se justificam as formas de exploração, controle e extermínio daqueles e daquelas que não correspondem aos ditames biopolíticos administrados pela cisão humano/animal (Cf. Giorgi, 2014GIORGI, Gabriel (2014). Formas comunes: animalidad, cultura, biopolítica. Buenos Aires: Eterna Cadencia.; Maciel, 2016MACIEL, Maria Esther (2016). Literatura e animalidade. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira.). Nessa perspectiva, o ponto sobre o qual me inclino para propor a presente análise concentra-se em considerar que a escrita clariceana, ao colocar em cena a morte e o sofrimento do animal outro que humano, lança luz sobre as formas de abatimento que se direcionam à vida do humano que é animalizado.

Meu apontamento crítico, nesse compasso, não se volta apenas à necessidade de considerar o sofrimento e a morte animal com base nos textos da autora. Trata-se também, em minha leitura - em minha inclinação à alteridade em sua forma radical -, de ter em vista que a cisão humano/animal incide sobre os próprios direitos humanos, ou seja: busco apreender os sentidos que se movem pela escrita de Clarice Lispector assumindo como máxima o fato de que, “no dia em que nenhum animal de outra espécie for humilhado, explorado, torturado e morto para atender a propósitos humanos” (Felipe, 2014FELIPE, Sônia T. (2014). Acertos abolicionistas: A vez dos animais. São José: Ecoânima., p. 43), isto é, no dia em que as divisões e hierarquias entre o que é humano e animal não mais adestrarem o nosso olhar e a nossa escuta em relação à diferença em sua forma mais profunda, “nenhum humano se sentirá autorizado” (Felipe, 2014FELIPE, Sônia T. (2014). Acertos abolicionistas: A vez dos animais. São José: Ecoânima., p. 43) a distribuir as mesmas violências a outros humanos - “afinal de contas, todos somos animais, capazes de sentir dor, de sofrer e de ter a vida atribulada pela demanda ególatra dos outros” (Felipe, 2014FELIPE, Sônia T. (2014). Acertos abolicionistas: A vez dos animais. São José: Ecoânima., p. 43).

É nesse sentido que venho dialogando, aqui, com Judith Butler e sua noção de precariedade, fato que a princípio até pode gerar certo estranhamento, visto que me atenho à figura do animal e esse não é o objeto de investigação central na organização teórica da filósofa. Contudo, como destacado em Frames of War:

Não faz sentido afirmar, por exemplo, que temos de nos centrar no que é característico a respeito da vida humana, uma vez que, se estamos preocupados com a “vida” da vida humana, é precisamente aí que não há nenhuma maneira sólida de distinguir, em termos absolutos, o bios do animal do bios do animal humano. Qualquer distinção desse tipo seria tênue e, uma vez mais, não levaria em conta que, por definição, o animal humano é ele mesmo um animal. Essa não é uma assertiva que diz respeito ao tipo ou à espécie de animal que o humano é, mas sim o reconhecimento de que a animalidade é uma precondição do humano, e não existe humano que não seja um animal humano (Butler, 2018BUTLER, Judith (2018). Quadros de guerra: quando a vida é passível de luto? Trad. Sérgio Lamarão e Arnaldo Marques da Cunha. 5ª ed. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira., p. 37).

O que precisa ser levado em conta, desse modo, é em que medida a abertura de um exercício de compaixão pela vida animal desperta nos sujeitos históricos um exercício de compaixão pela vida do humano que é animalizado por não corresponder aos ditames do funcionamento biopolítico. Macabéa, embora não possua um estatuto de vivente por ser um sujeito ficcional, ao ser construída por Rodrigo S.M. como a expressão de uma existência cuja humanidade não é reconhecida, permite-nos pensar com muita precisão a respeito daqueles e daquelas que são animalizados(as) pelo panorama biopolítico que organiza a sociedade em que vivemos. Esse exercício reflexivo se fortalece sobretudo com o modo como o narrador inscreve a morte da personagem, que ao ser atropelada pela Mercedez no final da novela é comparada a um cavalo morto: é comparada a um animal outro que humano. Sua morte, atrelada à figura animal, lança luz sobre os enquadramentos que são dados às maneiras com as quais nos afetamos pela morte do outro. A personagem, que ao longo do texto em questão se afasta das qualificações políticas que poderiam protegê-la das violências produzidas pelo aparato biopolítico - seja nos momentos em que é animalizada, seja nos momentos em que não se reconhecem nela quaisquer possibilidades de agência -, convoca-nos a todo instante à reflexão a respeito de uma distribuição desigual da vulnerabilidade que, por sua vez, determina quem será protegido e quem será abandonado à morte.

Rodrigo S. M., após narrar a morte de Macabéa, anuncia o seguinte: “E agora - agora só me resta acender um cigarro e ir para casa. Meu Deus, só agora me lembrei que a gente morre. Mas - mas eu também?!” (Lispector, 1998aLISPECTOR, Clarice (1998a). A hora da estrela. Rio de Janeiro: Rocco., p. 87). É a partir da inscrição da morte de Macabéa - personagem que nos remete aos viventes que são violentados pelas forças biopolíticas justamente por serem compreendidos como menos que humanos - que Rodrigo S. M. se dá conta de que a precariedade e a finitude da vida são elementos que perpassam pela existência de todos os viventes, sejam eles lidos como humanos ou não. Embora expostos(as) à morte de maneiras distintas, esta é uma experiência dada como certa tanto para aqueles e aquelas que se aproximam do grau de vida de Macabéa [zoé] quanto para Rodrigo S. M. e os(as) que se aproximam do grau de vida que o compõe [bios]. Destaco, contudo, que por mais que o narrador da novela tenha se atentado para o fio condutor que o liga a viventes como Macabéa, a composição da morte da personagem acompanha um estado de indiferença que tangencia Rodrigo S. M. Entra em cena, aqui, uma retomada da análise que pontuei acima: é preciso que se considere não apenas a relação do narrador com a inscrição da morte de sua personagem, mas também a relação que os leitores e leitoras do texto clariceano estabelecem com essa morte, de modo a operar, com base nela, uma reorganização das maneiras pelas quais nos afetamos pela morte do outro, sobretudo o outro animalizado e cuja vida não merece ser enlutada.

Nesse tom, o que sugiro é que, ao inscrever uma sensibilidade acentuada perante o sofrimento daqueles(as) que são alocados(as) na esfera da animalidade, de um lado, e tratando da ausência de disponibilidade para a alteridade quando esta é cercada por formas de violência e violação que potencializam sua morte, de outro, Clarice Lispector tensiona as relações entre os eixos “vida”, “animalidade” e “humanidade” justamente por evidenciar que os contornos dados ao sofrimento e à morte do vivente animalizado também atuam como dispositivos que manipulam as próprias distinções entre o que é o humano e o que é o animal - e, portanto, o que é ou não passível de luto. Os sentidos que transitam pela escrita clariceana quando essa tensão entra em destaque, então, permitem-nos repensar a própria forma como compreendemos a política e a comunidade na medida em que descentralizam o humano do diapasão que modaliza os modos com os quais apreendemos a precariedade, o outro e aquilo que o singulariza.

Assim, considerando que “a vulnerabilidade assume outro significado no momento em que é reconhecida” e que “o reconhecimento exerce o poder de reconstituir a vulnerabilidade” (Butler, 2019BUTLER, Judith (2019). Vida precária: os poderes do luto e da violência. Trad. Andreas Lieber. Belo Horizonte: Autêntica., p. 65), afirmo que o que a escrita de Clarice Lispector faz é abrir caminhos para o reconhecimento da vida alocada na esfera da animalidade de modo a reconstituir as comuns noções que se voltam à própria vulnerabilidade, bem como às distintas formas de compreender a precariedade, a morte do outro, e os modos como essas mortes são apreendidas no campo social. Isso nos conduz, consequentemente, a um exercício de reflexão acentuada acerca da morte animal e do humano animalizado, reflexão que nos direciona para o fato de que o que se destaca nos textos citados é a compreensão da vida animal como passível de luto - visto que reconhecer a vulnerabilidade e a precariedade como elemento que atravessa todos(as), sem distinção de espécie, é reconhecer que a morte do outro que humano também é digna de pesar.

Ainda partindo de Butler (2015BUTLER, Judith (2015). Notes Toward a Performative Theory of Assembly. Cambridge; Londres: Harvard University Press., p. 42), para quem “pensar criticamente sobre como a norma do humano é construída e mantida requer que assumamos uma posição fora de seus termos”, não só em nome dos animais e dos menos que humanos, mas “em uma forma de sociabilidade e interdependência que não se reduza às formas humanas de vida” (Butler, 2015BUTLER, Judith (2015). Notes Toward a Performative Theory of Assembly. Cambridge; Londres: Harvard University Press., p. 42), acredito que a escrita de Clarice Lispector, nos colocando diante do sofrimento e da morte animal, opere justamente a movimentação de sentidos que nos permitem assumir o que compreendemos como vida, morte e precariedade fora dos termos do próprio humano. Trata-se de uma escrita que, inscrevendo as mais variadas formas de reconhecimento da vulnerabilidade e da morte, aciona em seus leitores uma espécie de luto cujos contornos são marcados por uma dimensão evidentemente política, dado que ao sublinhar o reconhecimento da vulnerabilidade e da morte animal - assim como o de sua precariedade -, afastando-se de distinções interespecíficas, a tessitura clariceana compõe outras éticas e pedagogias do vivente.

A DIMENSÃO POLÍTICA DO LUTO E SEU EXERCÍCIO PARA ALÉM DO HUMANO

Posicionando a morte e como costumamos apreendê-la como protagonista de minha análise, trago agora para o campo do debate, em tentativa de ir costurando os fios desta proposta de escuta, Philippe Ariès (2012ARIÈS, Philippe (2012). História da morte no ocidente: da Idade Média aos nossos dias. Trad. Priscila Viana de Siqueira. Rio de Janeiro: Nova Fronteira.) em seu História da morte no ocidente. Delineando um percurso histórico atento às diferentes formas com que os sujeitos alocados no ocidente encaravam a morte via investigação que parte da Idade Média, passando pelas transformações modernas dos costumes ligados a ela e abrangendo certos reflexos dessas mudanças no horizonte social contemporâneo, o que se destaca no trabalho do historiador francês é a seguinte constatação: se no período medieval a morte possuía uma dimensão domesticada, sendo a morte de si a experiência que concentrava um caráter de maior perda, o estabelecimento da Idade Moderna em meados do século XVIII instaura um movimento contrário, o que significa afirmar que a morte do outro ocupa esse espaço - é lidar com a morte do outro, com a dor da partida do outro e com a ausência que esse outro deixa no cotidiano daqueles que permanecem o maior desafio quando da experiência em discussão.

A partir dessa mudança, entra em cena o exercício do luto - com seus rituais, gestos e especificidades cotidianas - como marco no comportamento dos sujeitos históricos ocidentais que encaram a morte do outro. Nessa perspectiva, enquanto na Idade Média o enfrentamento da morte se alocava nas experiências individuais daqueles que estavam prestes a morrer, não configurando, ao menos se compararmos com as reações que permeiam a contemporaneidade, grandes formas de sofrimento ou lamento por parte de quem permanecia vivo, com as transformações da modernidade que ecoam em nossa realidade pensar a respeito da morte é também considerar o modo como, nas esferas individuais e coletivas, o luto, essa experiência comumente compreendida como um “conjunto de reações a uma perda significativa” (Bromberg, 2000BROMBERG, Maria Helena Pereira Franco (2000). A psicoterapia em situações de perdas e luto. Campinas: Livro Pleno., p. 15), assume papel fundamental. Tendo em vista esse cenário, meu objetivo agora é compreender de que maneira o luto reorganiza nossas relações uns com os outros quando seu exercício é acionado sem que as hierarquias entre o humano e o animal ditem sua condução. Sob essa ótica, permitindo que as reflexões acima propostas a respeito do sofrimento e da precariedade animal também ressoem aqui, o questionamento que levanto agora é o seguinte: como o luto descentrado da figura humana, assumindo uma dimensão política, é capaz de nos direcionar à construção de uma comunidade que não se sustenta com a exclusão daqueles e daquelas que são animalizados(as) e, por isso, abandonados à morte?

Embora o trabalho do historiador francês configure uma boa fonte secundária para pensarmos a respeito das categorias “morte” e “luto”, há uma lacuna que precisa ser preenchida: a análise historiográfica e de certa forma sociológica de Ariès (2012ARIÈS, Philippe (2012). História da morte no ocidente: da Idade Média aos nossos dias. Trad. Priscila Viana de Siqueira. Rio de Janeiro: Nova Fronteira.) volta-se exclusivamente para a morte dos viventes humanos, não havendo investigação aprofundada no que diz respeito às formas por meio das quais os sujeitos ocidentais experienciavam, fosse na dimensão de um luto, fosse da indiferente naturalização, a morte do animal outro que humano. É apoiada nos ecos produzidos por essa lacuna - ecos que se encontram com a figuração do sofrimento e da morte animal em Clarice Lispector - que minha análise do luto na escrita da autora se modaliza. Assim, para além da morte como elemento isolado e apreendido por meio de um recorte centrado no vivente humano, meu interesse situa-se sobretudo na maneira como as personagens clariceanas lidam com a morte do vivente alocado na esfera da animalidade e, com isso, como o(a) leitor(a) pode ser afetado(a) por ela a ponto de mobilizar uma espécie de luto direcionado à “diferença absoluta”, essa que “não se instaura de outro modo senão pela linguagem” (Lévinas, 1990LÉVINAS, Emmanuel (1990). Totalite et infini: essai sur l’extériorité. Paris: Kluwer Academic., p. 212).

Destaco, de início, que, quando me refiro à mobilização de um “luto” que pode ser elaborado mediante a morte animal na e com base na escrita de Clarice Lispector, não venho dialogando com a teoria freudiana, ainda que esta seja basilar para se pensar a respeito do tema em discussão. Para Freud (2011FREUD, Sigmund (2011). Luto e melancolia. São Paulo: Cosac Naify., p. 47), em seu Luto e melancolia:

o luto, via de regra, é a reação à perda de uma pessoa querida ou de uma abstração que esteja no lugar dela, como pátria, liberdade, ideal etc. Sob as mesmas influências, em muitas pessoas, se observa em lugar do luto uma melancolia, o que nos leva a suspeitar nelas uma disposição patológica. É também digno de nota que nunca nos ocorre considerar o luto como estado patológico, nem encaminhá-lo para tratamento médico, embora ele acarrete graves desvios de conduta normal da vida. Confiamos que será superado depois de algum tempo e consideramos inadequado e até mesmo prejudicial perturbá-lo.

Além disso, na psicanálise freudiana o trabalho realizado pelo luto é aquele que retira a libido antes depositada no objeto perdido e nas ligações que determinado sujeito mantinha com ele. Por outro lado, é preciso evidenciar que esse abandono da libido em relação ao que se perdera não é acionado com facilidade, “nem mesmo quando um substituto já lhe acena” (Freud, 2011FREUD, Sigmund (2011). Luto e melancolia. São Paulo: Cosac Naify., p. 49), isto é: nem mesmo quando há uma perspectiva de substituição do objeto perdido o sujeito que experiencia a perda se desvencilha de seu anterior investimento libidinal sem apresentar quaisquer resistências. Essa posição, aliás, “pode ser tão intensa que ocorre um afastamento da realidade e uma adesão ao objeto por meio de uma psicose alucinatória de desejo” (Freud, 2011FREUD, Sigmund (2011). Luto e melancolia. São Paulo: Cosac Naify., p. 49).

É possível considerar em certa medida, por exemplo, que G.H. experiencia uma espécie de luto aos moldes psicanalíticos propostos pela teoria freudiana. Se pararmos para analisar a construção da personagem e o modo como essa construção se encontra com a fissura de sua montagem humana, o que poderá ser notado é a perda de uma abstração - a humanidade como dado muito bem consolidado - e a dificuldade de lidar com essa perda. Quando G.H., em seu processo de escrita - que não deixa de ser configurado por uma forma alucinatória de processar a perda da própria humanidade9 9 Peres (2011, p. 58), em “Uma ferida a sangrar-lhe a alma”, afirma que “Freud insiste no que denomina ‘trabalho do luto’. Ele não menciona os rituais através dos quais, ao longo da história, o homem pranteia seus mortos, porém, ao marcar o luto como ato, o luto como trabalho do eu (ego), chama a atenção para as consequências do abandono e do esquecimento desses rituais como processos de simbolização da dor”. Considerando-se esse apontamento, é possível sugerir que o gatilho disparador para que G.H. se abrisse à escrita de sua experiência se vincula justamente ao luto como ato, ao luto pela perda de sua própria humanidade. -, inscreve nas páginas iniciais de seu relato a significativa imagem da terceira perna que lhe passou a fazer falta após toda a sua experiência com a barata morta, o que entra em destaque na materialidade textual é uma tentativa de retomada de um elemento sobre o qual seu investimento libidinal era direcionado; elemento que, inacessível no instante da escrita, passa por uma forma frustrada de reconstrução com o intermédio da própria escrita. Nota-se:

Perdi alguma coisa que me era essencial, e que já não me é mais. Não me é necessária, assim como se eu tivesse perdido uma terceira perna que até então me impossibilitava de andar mas que fazia de mim um tripé estável. Essa terceira perna eu perdi. E voltei a ser uma pessoa que nunca fui. Voltei a ter o que nunca tive: apenas as duas pernas. Sei que somente com duas pernas é que posso caminhar. Mas a ausência inútil da terceira me faz falta e me assusta, era ela que fazia de mim uma coisa encontrável por mim mesma, e sem sequer precisar me procurar (Lispector, 2009LISPECTOR, Clarice (2009). A paixão segundo G.H. Rio de Janeiro: Rocco., p. 9-10, grifos meus).

Essa pontuação me permite sugerir que o movimento de saída e retorno à “montagem humana” operado pela personagem é circunscrito, também, por um processo de luto. É preciso destacar, entretanto, que esse luto não se volta à barata, personagem que tem a vida interrompida pelo peso da mão de G.H. A morte do animal, na narrativa, embora seja o elemento que conduz a protagonista à experiência do luto - por atuar como o ponto que direciona a personagem ao processo de “desmontagem” pelo qual ela passa -, ao contrário do que ocorre com Ângela Pralini em Um sopro de vida (Lispector, 1999bLISPECTOR, Clarice (1999b). Um sopro de vida. Rio de Janeiro: Rocco., p. 65) e sua reflexão aguçada a respeito da morte de um mosquito, não mobiliza na personagem humana o reconhecimento da vida animal como vida digna de ser vivida, como vida cuja precariedade é compreendida. O luto em A paixão segundo G.H. (Lispector, 2009LISPECTOR, Clarice (2009). A paixão segundo G.H. Rio de Janeiro: Rocco.), portanto, não se vincula à morte da barata, mas parte de algo fundamentalmente individual, que é a momentânea diluição da forma humana que outrora estruturava G.H.

Destaco que, embora analisar a construção de G.H. em diálogo com os apontamentos a respeito do luto em Freud (2011FREUD, Sigmund (2011). Luto e melancolia. São Paulo: Cosac Naify.), na teoria psicanalítica e no campo da psicologia, configure um caminho fértil para que se compreendam as maneiras com que os sujeitos históricos lidam com a perda e com a morte do outro, “as teorias do luto que os psicólogos ensinam e que os cursos de filosofia ou de moral laica retransmitem são extremamente normativas e prescritivas” (Despret, 2021DESPRET, Vinciane (2021). O que diriam os animais? Trad. Letícia Mei. São Paulo: Ubu., p. 288). Isso porque “trata-se de um ‘trabalho’ a ser cumprido em fases, em que as pessoas devem aprender a confrontar-se com a realidade, a aceitar o fato de que seus mortos estão mortos e a desligar-se dos vínculos com o falecido; aprender a aceitar seu nada e substituí-los por outros objetos” (Despret, 2021DESPRET, Vinciane (2021). O que diriam os animais? Trad. Letícia Mei. São Paulo: Ubu., p. 288) sobre os quais o investimento libidinal será depositado - o que configura, enfim, uma forma de “conversão temática” (Despret, 2021DESPRET, Vinciane (2021). O que diriam os animais? Trad. Letícia Mei. São Paulo: Ubu., p. 288). É por isso que, em tentativa de me afastar desse viés psicanalítico, esse que considera o luto uma espécie de reorganização do investimento libidinal, sublinho que o que me leva a ler o luto na escrita de Clarice Lispector se vincula à evidenciação de uma distribuição desigual dos sentidos que configuram o modo pelo qual nos afetamos pelo sofrimento e pela morte do outro. Trata-se, antes de mais nada, de assumir o luto como um exercício de reconhecimento do outro - humano ou não - e de sua vulnerabilidade, não de compreendê-lo como o processo que teoricamente culminaria na superação de uma perda, seja ela qual for.

Pensar a respeito dessa distribuição desigual caminha fundamentalmente ao lado da noção de que “existem meios de distribuir vulnerabilidades, formas diferenciadas de alocação que tornam algumas populações mais suscetíveis à violência arbitrária do que outras” (Butler, 2004BUTLER, Judith (2004). Precarious life: the power of mourning and violence. Londres: Verso., p. XII) - sendo um desses meios a cisão humano/animal que hierarquiza as formas de vida de acordo com as qualificações políticas e culturais que são ou não atribuídas a ela. É nesse sentido que converso com Judith Butler. Analisando as razões políticas para se repensar “a possibilidade de comunidade com base na vulnerabilidade e na perda” (Butler, 2004BUTLER, Judith (2004). Precarious life: the power of mourning and violence. Londres: Verso., p. 39), a filósofa inicia seus debates acerca do luto com a questão do humano. Ao interrogar-se a respeito de quem conta como humano e de quais vidas contam como vidas, em tentativa de responder, enfim, “o que torna uma vida passível de luto” (Butler, 2004BUTLER, Judith (2004). Precarious life: the power of mourning and violence. Londres: Verso., p. 20), o que se destaca na reflexão teórica proposta por Butler é que “somos constituídos politicamente em parte pela vulnerabilidade social dos nossos corpos”, de modo que “a perda e a vulnerabilidade parecem se originar do fato de sermos corpos socialmente constituídos, apegados aos outros, correndo o risco de perder tais ligações, expostos a outros” (Butler, 2004BUTLER, Judith (2004). Precarious life: the power of mourning and violence. Londres: Verso., p. 20). Entra em cena, assim como em “Ir para” e “Morte de uma baleia”, a vulnerabilidade como um campo comum que não só reconfigura como apreendemos o outro, mas reelabora concepções humanocentradas do viver e do morrer em comunidade. Destaco, ainda com Butler (2004BUTLER, Judith (2004). Precarious life: the power of mourning and violence. Londres: Verso., p. 42-43), que:

Ao insistir em uma vulnerabilidade física “comum”, posso parecer estar postulando uma nova base para o humanismo. Isso pode ser verdade, mas estou propensa a considerar essa ideia de uma forma diferente. A vulnerabilidade deve ser percebida e reconhecida a fim de entrar no jogo no campo ético, e não há nenhuma garantia de que isso possa acontecer. Não apenas existe sempre a possibilidade de a vulnerabilidade não ser reconhecida e de ser constituída como “irreconhecível”, mas também a de, quando ela for reconhecida, esse reconhecimento ter o poder de alterar o significado e a estrutura da própria vulnerabilidade. Nesse sentido, se a vulnerabilidade é uma pré-condição para a humanização, e a humanização ocorre de maneira diferente por meio de normas variáveis de reconhecimento, entende-se que a vulnerabilidade depende fundamentalmente das normas existentes de reconhecimento a fim de ser atribuída a qualquer sujeito humano.

Dito isso, o luto na organização conceitual de Judith Butler - organização que nos permite ampliar os sentidos que se espalham pela escrita de Clarice Lispector quando analisamos a figuração da animalidade em seus textos -, muito além de conduzir o sujeito histórico à superação de uma perda, não importa em qual esfera essa perda esteja localizada, apresenta-se como um gesto ético e político que fortalece a noção de que nos constituímos uns nos outros, que somos apegados uns aos outros e que a vulnerabilidade e a precariedade são algo que perpassa por todos nós. Recompor o exercício do luto de modo a romper com as hierarquias que posicionam as vidas animais no campo da matabilidade é, portanto, ensaiar modos de estar no mundo que fissuram o humano como medida de distribuição da vulnerabilidade e de seu reconhecimento. Por isso é que iniciei o capítulo tratando da abertura auditiva que a voz narrativa de “Ir para” se permite agenciar diante do sofrimento animal, posto que o reconhecimento da vulnerabilidade e a disponibilidade direcionada ao outro que humano como caminhos iniciais para o exercício do luto exige que sejamos capazes de “escutar além do que somos capazes de escutar”, o que significa dizer que precisamos nos abrir para uma “narrativa que nos descentralize” (Butler, 2004BUTLER, Judith (2004). Precarious life: the power of mourning and violence. Londres: Verso., p. 18), como bem o faz a personagem da crônica. Cabe afirmar, portanto, que ao tratar da distribuição desigual da vulnerabilidade em gesto que descentraliza o humano a escrita clariceana lança luz sobre o seguinte fato:

se me percebo dentro do modelo humano, e se os tipos de luto público que estão disponíveis tornam claras as normas pelas quais o “humano” é constituído para mim, então me parece que me constituo tanto por aqueles que enluto quanto por aqueles cujas mortes nego, cujas mortes sem nome e sem rosto formam um histórico melancólico do meu mundo social (Butler, 2004BUTLER, Judith (2004). Precarious life: the power of mourning and violence. Londres: Verso., p. 46).

Outro trabalho de Clarice Lispector que nos permite levantar reflexões a respeito das relações entre a morte do animal outro que humano e o modo por meio do qual nos afetamos por ela - o que inclui tanto a ausência quanto o exercício do luto - é o conto “O crime do professor de matemática”, que compõe a coletânea Laços de família. O texto ficcional, que gira em torno de um personagem que enterra um cachorro morto desconhecido, coloca o(a) leitor(a) desde o seu início diante de um tom quase que ritualístico - seja pela maneira com que voz narrativa encadeia os fatos que compõem o conto, seja pelo seu tema central. O espaço que abriga os acontecimentos narrados, armando um cenário que inclui, também, uma igreja, remete-nos com muita precisão aos tradicionais sepultamentos feitos para aqueles(as) cujas mortes são lamentadas. A voz narrativa, ao posicionar o protagonista do conto no topo de uma das colinas afastadas da igreja que recebia uma espécie de culto, afirma o seguinte: “O ar estava mais claro e os sinos alegres tocaram novamente chamando os fiéis para o consolo da punição” (Lispector, 2016LISPECTOR, Clarice (2016). Todos os contos. Rio de Janeiro: Rocco., p. 241, grifos meus). O termo “punição”, neste texto, carrega um peso particularmente acentuado, dado que - como se descobrirá - o homem sepulta o cachorro desconhecido para lidar com a culpa de, no passado, ter abandonado seu próprio cão.

Surpreendeu-se refletindo que embaixo da árvore enterraria este cão. Mas se fosse o outro, o verdadeiro cão, enterrá-lo-ia na verdade onde ele próprio gostaria de ser sepultado se estivesse morto: no centro mesmo da chapada, a encarar de olhos vazios o sol. Então, já que o cão desconhecido substituía o “outro”, quis que ele, para maior perfeição do ato, recebesse precisamente o que o outro receberia (Lispector, 2016LISPECTOR, Clarice (2016). Todos os contos. Rio de Janeiro: Rocco., grifos meus).

Chama atenção, aqui, não só o fato de o personagem decidir sepultar um cão desconhecido - ainda que esse gesto tenha sido acionado como forma de compensar a ausência de disponibilidade dada ao seu antigo cão que fora abandonado -, mas a destituição de certa hierarquia, isto é: o homem opta por enterrar o cão como ele mesmo gostaria de ser sepultado se estivesse morto. Trata-se, aqui, de uma escolha que embaralha os lugares - muito bem afixados - que humanos e animais devem ocupar não só em uma escala de valores, mas também em uma escala de reconhecimento. Ademais, entra em destaque o fato de o cão sepultado, ainda que seja tratado com sensibilidade pelo personagem - “Quando com um choque descobriria um cão morto numa esquina, a ideia de enterrá-lo tornara seu coração tão pesado e surpreendido” (Lispector, 2016LISPECTOR, Clarice (2016). Todos os contos. Rio de Janeiro: Rocco., p. 242) -, servir como uma espécie de substituto do outro cão, atuando como o seu duplo. É essa substituição que, atravessada pelo peso simbólico - e expiatório, de certa forma, já que o ritual de enterrar o cão é também o que auxilia o personagem a lidar com a culpa do abandono passado - do sepultamento, permite que o personagem pense em seu antigo cachorro. Nota-se:

Pôs-se então a pensar com dificuldade no verdadeiro cão como se tentasse pensar com dificuldade na sua verdadeira vida. O fato do cachorro estar distante na outra cidade dificultava a tarefa, embora a saudade o aproximasse da lembrança [...] “Enquanto eu te fazia à minha imagem, tu me fazia à tua”, pensou então com o auxílio da saudade. “Dei-te o nome de José para te dar um nome que servisse ao mesmo tempo de alma. E tu - como saber jamais que nome me deste? Quanto me amaste mais do que te amei”, refletiu curioso [...] “Nós nos compreendíamos demais, tu com o nome humano que te dei, eu com o nome que me deste e que nunca pronunciaste senão com o olhar insistente”, pensou o homem sorrindo com carinho, livre agora de se lembrar à vontade” (Lispector, 2016LISPECTOR, Clarice (2016). Todos os contos. Rio de Janeiro: Rocco., p. 243).

É importante perceber que, embora as lembranças desencadeadas pelo personagem coloquem em evidência uma relação passada que se sustentava no companheirismo e na intertroca que permite o reconhecimento da alteridade em sua mais estrita singularidade - “enquanto eu te fazia à minha imagem, tu me fazia à tua” -, o modo como o homem apreendia o cachorro acompanhava uma noção de humano enquanto vivente superior. O fato de o personagem nomear o cachorro para lhe conferir uma alma vincula-se à visão clássica10 10 Em uma perspectiva clássica aristotélica, o elemento que que une a vida natural (animais e plantas) e os viventes humanos é a presença da Psyché - isto é, da alma -, reconhecido como o princípio do movimento ou do repouso (Cf. Zanuzzi, 2016). Sobre essa discussão conferir também o segundo capítulo da tese À escuta do vivente: animalidade e biopolítica em Clarice Lispector (Sant’anna, 2023a, p. 49-81). , visão essa que contribui para a cisão humano/animal e, portanto, para as hierarquias que permeiam essas duas categorias. Contudo, ainda que seja possível pontuar essas questões - que colocam problemas para os limites do humano -, o que interessa destacar agora é o motivo pelo qual o protagonista abandonou o seu cachorro, ou melhor, o fator que permitiu que ele o abandonasse:

“Há tantas formas de ser culpado e de perder-se para sempre e de se trair e de não se enfrentar. Eu escolhi a de ferir um cão”, pensou o homem. “Porque eu sabia que esse seria um crime menor e que ninguém vai para o Inferno por abandonar um cão que confiou num homem. Porque eu sabia que esse crime não era punível”. [...] Sentado na chapada, sua cabeça matemática estava fria e inteligente. Só agora ele parecia compreender, em toda sua gélida plenitude, que fizera com o cão algo realmente impune e para sempre. Pois ainda não haviam inventado castigo para o grandes crimes disfarçados e para as profundas traições (Lispector, 2016LISPECTOR, Clarice (2016). Todos os contos. Rio de Janeiro: Rocco., p. 246).

O conto, desse modo, lançando luz sobre o mesmo problema que atravessa a crônica “Morte de uma baleia” - isto é, o fato de a vida animal não ser considerada uma vida digna de proteção, digna de viver bem -, permite-nos repensar as classificações e hierarquias que atingem aquilo que compreendemos como humano e como animal, mas, indo além, impulsiona-nos ao gesto de reconhecimento da vida animal como vida que merece ser enlutada. Mesmo que o ritual de sepultamento do duplo do cão - que atua como uma espécie de luto tardio acionado pelo personagem - se sustente na culpa, o leitor ou leitora que se defronta com o material ficcional, movido(a) pelo tom sensível que compõe a narrativa e pelo arrependimento do personagem principal por suas ações passadas diante da vida animal, se solidariza com o cão outrora abandonado. Isto é, o cão morto ocupa a narrativa não só como elemento que permite que o personagem principal lide com sua culpa por meio de um luto, mas também como um signo político que faz o(a) leitor(a) movimentar o reconhecimento de uma vida que, no panorama biopolítico, não é enlutada - o reconhecimento de uma vida cujo abandono configura um “crime menor” e, portanto, um crime não punível11 11 Sobre “crime não punível”, aqui, cabe uma aproximação com a imagem do homo sacer - figura do direito romano analisada por Giorgio Agamben (2014) em seu Homo sacer: o poder soberano e a vida nua I -, o ser que, ao ser lido como vida nua, como zoé, carrega uma existência matável e insacrificável, isto é: embora o extermínio de sua vida seja condenável, seu assassinato não configurara nenhuma espécie de crime. .

O que pretendo sublinhar com esses apontamentos é que, no debate que envolve as categorias humano e animal em um conjunto teórico que leva em consideração o funcionamento biopolítico, “a perda de algumas vidas ocasiona o luto; de outras, não”. Isso torna possível afirmar que “a distribuição desigual do luto decide quais tipos de sujeitos são e devem ser enlutados, e quais tipos não devem” (Butler, 2019BUTLER, Judith (2019). Vida precária: os poderes do luto e da violência. Trad. Andreas Lieber. Belo Horizonte: Autêntica., p. 13), o que inclui os animais outros que humanos. Trata-se, em minha leitura, de considerar os modos por meio dos quais a escrita de Clarice Lispector, nos convocando ao exercício de disponibilidade para o vivente em geral, lança luz sobre o fato de que a distribuição desigual do luto, além de alocar os animais na esfera da vida que não merece ser enlutada, também mantém “certas concepções excludentes de quem é normativamente humano” (Butler, 2019BUTLER, Judith (2019). Vida precária: os poderes do luto e da violência. Trad. Andreas Lieber. Belo Horizonte: Autêntica., p. 13) - dado que mantém a cisão humano/animal - e, por isso, terá sua vida protegida das armadilhas de morte produzidas por uma organização política que é biopolítica e, consequentemente, humanocentrada.

Desse modo, quando analiso a animalidade e suas relações com o sofrimento e com a morte na escrita da autora, considero que “enlutar e transformar o luto em um recurso para a política não é resignar-se à inação” (Butler, 2004BUTLER, Judith (2004). Precarious life: the power of mourning and violence. Londres: Verso., p. 51), mas sim um gesto responsável por orquestrar um processo que, embora lento, nos permite criar “um ponto de identificação com o próprio sofrimento” (Butler, 2004BUTLER, Judith (2004). Precarious life: the power of mourning and violence. Londres: Verso., p. 51). A escrita de Clarice Lispector, assim, ao propor narrativas protagonizadas por personagens que se afetam consideravelmente pela morte do vivente animal, de um lado, e inscrevendo uma espécie de indiferença perante essa morte, de outro, encaminha-nos a um exercício de identificação com o sofrimento da alteridade - seja ela humana ou não - e de questionamento a respeito da ausência dessa identificação.

Quando notamos em crônicas como “Morte de uma baleia” o nível de importância que a personagem atribui à vida da baleia, por exemplo, somos levados(as) a acionar, em nosso interior, uma abertura para a mobilização dessa mesma importância. Por “importância”, aqui, não me refiro apenas ao nível de significância que determinado elemento tem para dado sujeito, mas chamo a atenção para a origem etimológica da própria palavra, in portare (Cunha, 1982CUNHA, Antônio Geraldo da (1982). Dicionário etimológico Nova Fronteira da Língua Portuguesa. Rio de Janeiro: Nova Fronteira., p. 28), isto é, trazer para dentro. O que a escrita clariceana opera, ao tratar da animalidade nesses termos, é justamente um caminho para que possamos importar - e aqui não se pode deixar de considerar o apelo à escuta presente na materialidade textual da autora -, em nós, o gesto de reconhecimento da vida do outro, sem que esse reconhecimento seja modalizado por distinções de espécie. Encena-se, portanto, uma escrita que atua como a extensão de uma pedagogia que nos auxilia na construção de contrapontos às normalizações do sofrimento do outro que humano, bem como da indiferença que incide sobre sua morte - tornando possível sugerir, assim, que a dimensão política do luto à qual me refiro vincula-se ao exercício do luto agenciado por aqueles e aquelas que se defrontam com o material literário clariceano que põe em cena o sofrimento e a morte do animal outro que não o humano.

Ademais, é preciso sublinhar que, quando as personagens de “Ir para” e “Morte de uma baleia” nos permitem levantar reflexões acerca da precariedade que humanos compartilham com animais, bem como a respeito do sofrimento que antecede a morte animal, o que se fortalece no imaginário de quem se abre à escuta não é apenas o reconhecimento da vida animal como vida constantemente violentada, mas a noção de que essa falta de reconhecimento - que se alia à falta de disponibilidade para o outro - é o que permite que certas vidas humanas, aquelas que não recebem as qualificações políticas muito bem encapsuladas pelos dispositivos da racialidade, do gênero e da sexualidade, bem como por uma ordem econômica e social, sejam de igual forma violentadas. Reorganizar os modos como compreendemos o luto em um panorama biopolítico com base na escrita de Clarice Lispector e na inscrição da animalidade em seus textos, desse modo, auxilia-nos também no processo de reflexão voltado às violências que herdamos de nosso passado colonial e de nossa atual política, estritamente calcada nos pilares da colonialidade, visto que foi justamente esse passado que solidificou, enquanto auxiliava na fundamentação da própria operabilidade biopolítica, a ideia de que apenas certos corpos - masculinos, brancos, europeus, heterossexuais - são compreendidos como humanos e, portanto, são passíveis de luto e compaixão. Nesse compasso, o que sugiro neste momento é que, ao nos convocar ao exercício de conferir importância à vida de animais como uma baleia, um gato, uma galinha, um cachorro ou mesmo um mosquito, a escrita de Clarice Lispector possibilita-nos uma abertura ao reconhecimento, também, de vidas humanas animalizadas como a de Macabéa, por exemplo. Isso porque se é a cisão humano/animal o dispositivo que permite que vidas como a de Macabéa sejam extermináveis e não enlutáveis, nos abrirmos ao reconhecimento da vida animal configura um gesto que rompe com os ditames dessa própria cisão, permitindo-nos, assim, acionar um exercício de disponibilidade para o outro violentado - aquele lido como zoé - por um funcionamento político que é biopolítico e centrado na figura humana.

Assim, se a princípio as vidas de Macabéa e dos animais citados até então parecem ser distintas, dado que uma corresponde à vida animalizada e a outra à vida animal, ao passo que suas mortes são compreendidas com o intermédio de diferentes pesares - de diferentes formas de afetação -, em leitura atenta o que se percebe é que a escrita de Clarice Lispector tensiona, mais uma vez, as categorias de humanidade e animalidade ao colocar em evidência o que Judith Butler (2004BUTLER, Judith (2004). Precarious life: the power of mourning and violence. Londres: Verso., p. 32) aponta como uma “hierarquia do luto”. Trata-se de pensar que Clarice Lispector, nesse caso - alocando a morte e o sofrimento do animal e do humano animalizado como eixos temáticos que aguçam em seus leitores e leitoras diferentes formas de apreensão do outro -, pode ressignificar o que comumente se compreende como luto ao apresentá-lo também como dispositivo que abre caminhos que nos permitem colocar problemas para o humano e seus limites. É considerando esse movimento de escrita em diálogo com Judith Butler, para quem “confrontar o que funciona, para alguns, como um limite do humano é um desafio de repensar o humano. E o trabalho de repensar o humano é parte da trajetória democrática de uma jurisprudência evolutiva dos direitos humanos” (Butler, 2004BUTLER, Judith (2004). Precarious life: the power of mourning and violence. Londres: Verso., p. 90), que sugiro que os sentidos que se deslocam pelo material ficcional da autora também nos apontam possibilidades de questionar as formas de violência e violação que incidem sobre aqueles compreendidos como menos que humanos, aqueles que são animalizados pelo funcionamento biopolítico e, consequentemente, aqueles cujas vidas não são passíveis de luto.

O que pode ser sublinhado, partindo da escrita de Clarice Lispector, é que o que constitui o humano não é só a marcação de qualificações políticas que conferem humanidade ao vivente, mas também a negação do luto voltado à morte do animal e a do humano animalizado, ou seja: a naturalização das violências que recaem sobre o animal e que antecedem sua morte marca não só a hierarquia que separa o humano do animal, mas confirma a própria humanidade por meio do extermínio daqueles que são compreendidos como animais ou são animalizados pela operabilidade biopolítica. A ausência do luto voltado ao outro que não o humano no sentido que passa pela ausência de reconhecimento de sua vida como digna de ser vivida configura uma forma de manter o funcionamento político e social que dizima determinadas formas de vida com base em qualificações hierárquicas cujas delimitações se originam na cisão humano/animal.

É sob essa ótica que afirmo que há no luto uma dimensão política, dado que sua prática está intrinsecamente relacionada às qualificações que modelam os modos por meio dos quais nossa vulnerabilidade é compreendida pelo funcionamento biopolítico, operando enquadramentos que ditam como nos afetamos pelo sofrimento do outro. Considerando esse panorama, e tendo em vista que “nossos atos não são formados por nós mesmos, mas condicionados”, isto é, que “somos, ao mesmo tempo, influenciados e influenciadores”, e que nossa responsabilidade se localiza na confluência desses dois polos (Butler, 2004BUTLER, Judith (2004). Precarious life: the power of mourning and violence. Londres: Verso., p. 16), o que deve ser ressaltado quando analisamos essas constantes na escrita de Clarice Lispector é que:

Não é que o luto seja o objetivo da política, mas sem a capacidade de enlutar perdemos aquela noção mais afiada de vida que necessitamos para que possamos nos opor à violência. E, embora para alguns o luto só possa ser resolvido pela violência, parece claro que a violência só acarreta mais perdas, e a incapacidade de considerar o apelo da precariedade da vida apenas leva, repetidamente, à frieza do luto em uma raiva política interminável. E enquanto algumas formas de luto público são prolongadas e ritualizadas [...] nem todas as formas de luto são vistas assim (Butler, 2004BUTLER, Judith (2004). Precarious life: the power of mourning and violence. Londres: Verso., p. XVIII-XIV, grifos meus).

Dessa maneira, ao analisarmos a figuração da morte animal, bem como o reconhecimento da precariedade como elemento que também atravessa suas vidas, o que se percebe é que a escrita de Clarice Lispector - com o intermédio de sua convocação à escuta e à entrega à alteridade em sua forma radical - permite que seus/suas leitores(as) afinem justamente sua capacidade de enlutar. Isso quer dizer, no fim das contas, que a economia ficcional clariceana nos permite levantar questões a respeito da responsabilidade implicada na morte do outro, visto que nos coloca não só diante de nossa constante incapacidade de enlutar os viventes animalizados, mas também nos lembra que somos agentes - de forma direta ou indireta - na produção do sofrimento e da morte dos(as) que não são reconhecidos(as) como humanos. Trata-se, portanto, não apenas de uma reorganização do que se compreende por “precariedade”, “vida” e “luto” por parte do panorama ficcional sobre o qual suas personagens se posicionam, mas de um convite para o exercício de uma ética do vivente capaz de fissurar as comuns noções - calcadas na cisão humano/animal - usadas como justificativas para que se violente não só a vida do animal, mas também a do humano animalizado.

Referências

  • AGAMBEN, Giorgio (2014). Homo sacer: o poder soberano e a vida nua I Trad. Henrique Burigo. Belo Horizonte: UFMG.
  • ARIÈS, Philippe (2012). História da morte no ocidente: da Idade Média aos nossos dias. Trad. Priscila Viana de Siqueira. Rio de Janeiro: Nova Fronteira.
  • BROMBERG, Maria Helena Pereira Franco (2000). A psicoterapia em situações de perdas e luto Campinas: Livro Pleno.
  • BUTLER, Judith (2004). Precarious life: the power of mourning and violence. Londres: Verso.
  • BUTLER, Judith (2015). Notes Toward a Performative Theory of Assembly Cambridge; Londres: Harvard University Press.
  • BUTLER, Judith (2018). Quadros de guerra: quando a vida é passível de luto? Trad. Sérgio Lamarão e Arnaldo Marques da Cunha. 5ª ed. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira.
  • BUTLER, Judith (2019). Vida precária: os poderes do luto e da violência. Trad. Andreas Lieber. Belo Horizonte: Autêntica.
  • COSTA, Fabrício Lemos; HOLANDA, Sílvio Augusto (2020). “Morte de uma baleia”, de Clarice Lispector: por uma escritura biopolítica. Fólio - Revista de Letras, v. 12, n. 2, p. 515-532. https://doi.org/10.22481/folio.v12i2.7040
    » https://doi.org/https://doi.org/10.22481/folio.v12i2.7040
  • CUNHA, Antônio Geraldo da (1982). Dicionário etimológico Nova Fronteira da Língua Portuguesa Rio de Janeiro: Nova Fronteira.
  • DERRIDA, Jacques (2011). O animal que logo sou: (a seguir). Trad. Fábio Landa. 2. ed. São Paulo: Editora Unesp.
  • DERRIDA, Jacques; ROUDINESCO, Elisabeth. De que amanhã... Trad. André Telles. Rio de Janeiro: Zahar, 2004.
  • DESPRET, Vinciane (2021). O que diriam os animais? Trad. Letícia Mei. São Paulo: Ubu.
  • FELIPE, Sônia T. (2014). Acertos abolicionistas: A vez dos animais. São José: Ecoânima.
  • FREUD, Sigmund (2011). Luto e melancolia São Paulo: Cosac Naify.
  • GIORGI, Gabriel (2014). Formas comunes: animalidad, cultura, biopolítica. Buenos Aires: Eterna Cadencia.
  • LÉVINAS, Emmanuel (1990). Totalite et infini: essai sur l’extériorité. Paris: Kluwer Academic.
  • LÉVINAS, Emmanuel (2002). De Deus que vem a ideia Trad de. Pergentino Stefano Pivatto. 2. ed. Petrópolis: Vozes.
  • LIBRANDI, Marília (2020). Escrever de ouvido: Clarice Lispector e os romances da escuta. Trad. Jamille Pinheiro Dias e Sheyla Miranda. Belo Horizonte: Relicário.
  • LISPECTOR, Clarice (1998a). A hora da estrela Rio de Janeiro: Rocco.
  • LISPECTOR, Clarice (1998b). Perto do coração selvagem Rio de Janeiro: Rocco.
  • LISPECTOR, Clarice (1999a). A vida íntima de Laura Rio de Janeiro: Rocco.
  • LISPECTOR, Clarice (1999b). Um sopro de vida Rio de Janeiro: Rocco.
  • LISPECTOR, Clarice (2009). A paixão segundo G.H. Rio de Janeiro: Rocco.
  • LISPECTOR, Clarice (2016). Todos os contos Rio de Janeiro: Rocco.
  • LISPECTOR, Clarice (2018). Todas as crônicas Rio de Janeiro: Rocco.
  • MACIEL, Maria Esther (2016). Literatura e animalidade Rio de Janeiro: Civilização Brasileira.
  • MOREIRA, Andre Leão (2011). A hora dos animais no romance de Clarice Lispector Dissertação (Mestrado em Letras) - Faculdade de Letras, Universidade Federal de Minas Gerais, Belo Horizonte.
  • NANCY, Jean-Luc (2002). À l’écoute Paris: Galilée.
  • PAIXÃO, Rita Leal (2013). Sob o olhar do outro: Derrida e o discurso da ética animal. Sapere Aude, v. 4, n. 7, p. 272-283.
  • PERES, Urania Tourinho (2011). Uma ferida a sangrar-lhe a alma. In: FREUD, Sigmund. Luto e melancolia São Paulo: Cosac Naify. p. 103-136.
  • RODRIGUES, Carla (2021). O luto entre clínica e política: Judith Butler para além do gênero. Belo Horizonte: Autêntica.
  • RODRIGUES, Carla; GRUMAN, Paula (2021). Do abjeto ao não-enlutável: o problema da inteligibilidade na filosofia de Butler. Anuário Antropológico, v. 46, n. 3, p. 67-84. https://doi.org/10.4000/aa.8933
    » https://doi.org/https://doi.org/10.4000/aa.8933
  • SANT’ANNA, Evandro (2023a). À escuta do vivente: animalidade e biopolítica em Clarice Lispector Tese (Doutorado em Letras - Estudos Literários) - Universidade Federal do Espírito Santo, Vitória, 2023a.
  • SANT’ANNA, Evandro (2023b). A escuta multiespécies em Clarice Lispector. Em Tese, v. 29, n. 1, p. 222-249. https://doi.org/10.17851/1982-0739.29.1.222-249
    » https://doi.org/https://doi.org/10.17851/1982-0739.29.1.222-249
  • SINGER, Peter (2002). Animal liberation Nova York: Ecco Press.
  • SOUZA, José Tadeu (2018). O conceito de responsabilidade para além do ser em Lévinas. Problemata: Revista Internacional de Filosofia, v. 9, n. 4, p. 205-217. https://doi.org/10.7443/problemata.v9i4.43529
    » https://doi.org/https://doi.org/10.7443/problemata.v9i4.43529
  • ZANUZZI, Inara (2016). Aristóteles e os animais. In: OLIVEIRA, Jelson (org.). Filosofia Animal: humano, animal, animalidade. Curitiba: PUCPRess. p. 25-44.

Notas

  • 1
    Não se pode deixar de notar que a dita “compaixão” surge com o apelo sonoro que se origina no choro do gato. Trata-se, nesse sentido, da escuta como gesto que, carregando um potencial de verdadeira abertura ao outro, aciona no sujeito à escuta uma efetiva e genuína recepção aos sentidos que vêm de fora com as mais diversas tonalidades, permitindo que ele reconheça, até mesmo, o outro - e lemos o outro, aqui, no âmbito da vida que escapa ao contorno de uma humanidade - como um igual digno de compaixão. Insisto ao longo deste trabalho na questão da escuta e suas relações com a animalidade em tentativa de dar continuidade a um exercício de reflexão crítica - que parte de um diálogo entre Clarice Lispector, Jean-Luc Nancy (2002NANCY, Jean-Luc (2002). À l’écoute. Paris: Galilée.) e Marília Librandi (2020LIBRANDI, Marília (2020). Escrever de ouvido: Clarice Lispector e os romances da escuta. Trad. Jamille Pinheiro Dias e Sheyla Miranda. Belo Horizonte: Relicário.) já iniciado em: “A escuta multiespécies em Clarice Lispector” (Sant’anna, 2023bSANT’ANNA, Evandro (2023b). A escuta multiespécies em Clarice Lispector. Em Tese, v. 29, n. 1, p. 222-249. https://doi.org/10.17851/1982-0739.29.1.222-249
    https://doi.org/https://doi.org/10.17851...
    ) e À escuta do vivente: animalidade e biopolítica em Clarice Lispector (Sant’anna, 2023aSANT’ANNA, Evandro (2023a). À escuta do vivente: animalidade e biopolítica em Clarice Lispector. Tese (Doutorado em Letras - Estudos Literários) - Universidade Federal do Espírito Santo, Vitória, 2023a.).
  • 2
    É importante frisar a distinção existente entre “precariedade” e “condição precária”, visto que em Butler ambos os conceitos se entrecruzam: “Vidas são, por definição, precárias: podem ser eliminadas de maneira proposital ou acidental; sua persistência não está, de modo algum, garantida. Em certo sentido, essa é uma característica de todas as vidas, e não há como pensar a vida como não precária” (Butler, 2018BUTLER, Judith (2018). Quadros de guerra: quando a vida é passível de luto? Trad. Sérgio Lamarão e Arnaldo Marques da Cunha. 5ª ed. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira., p. 46), enquanto a condição precária é a condição politicamente induzida que certos viventes sofrem, condição que potencializa e maximiza suas exposições a situações de violência e violação.
  • 3
    Para além do caso deste conto, a galinha é um animal que se destaca quando paramos para analisar suas relações com a inscrição da morte na escrita clariceana. Isso porque em A vida íntima de Laura (Lispector, 1999aLISPECTOR, Clarice (1999a). A vida íntima de Laura. Rio de Janeiro: Rocco.) a morte da galinha também é naturalizada, bem como em Perto do coração selvagem (Lispector, 1998bLISPECTOR, Clarice (1998b). Perto do coração selvagem. Rio de Janeiro: Rocco.), primeiro trabalho publicado pela autora, no qual se nota: “Encostando a testa na vidraça brilhante e fria olhava para o quintal do vizinho, para o grande mundo das galinhas-que-não-sabiam-que-iam-morrer” (Lispector, 1998bLISPECTOR, Clarice (1998b). Perto do coração selvagem. Rio de Janeiro: Rocco., p. 13).
  • 4
    Embora Butler (2018BUTLER, Judith (2018). Quadros de guerra: quando a vida é passível de luto? Trad. Sérgio Lamarão e Arnaldo Marques da Cunha. 5ª ed. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira.) se refira aos humanos, penso ser interessante dialogarmos com esse trecho por dois motivos: o primeiro diz respeito ao fato de o pensamento da filósofa ser capaz de nos conduzir a um processo crítico de questionamento mediante as hierarquias e cisões que separam o humano e o animal - sobretudo se considerarmos que, já em Frames of War, encontram-se fios argumentativos que tratam das relações entre “reconhecimento”, “humanidade” e “violação da vida”; o segundo vincula-se às relações entre “biopolítica”, “reconhecimento” e “humanidade’, no sentido de que a produção de vidas a abandonar gerada pelos ditamos biopolíticos é justamente o resultado de uma hierarquia que determina quais serão as vidas reconhecidas como humanas e quais serão reconhecidas como menos que humanas, tópico também explorado pela autora.
  • 5
    Aqui, dialogando com Lévinas (2002LÉVINAS, Emmanuel (2002). De Deus que vem a ideia. Trad de. Pergentino Stefano Pivatto. 2. ed. Petrópolis: Vozes.), trata-se de pensar a responsabilidade para com o outro como algo que se fundamenta no exercício constante de uma não indiferença para com a alteridade - seja ela qual for - e as especificidades que constituem sua diferença. Nas palavras do filósofo: “A responsabilidade para com o próximo consiste precisamente no que vai além do legal e obriga para além do contrato; ela me incumbe de aquém de minha liberdade, do não-presente, do imemorial. Entre mim e o outro escancara-se uma diferença que nenhuma unidade da percepção transcendental poderia recuperar. Minha responsabilidade por outrem é precisamente a não-indiferença dessa diferença: a proximidade do outro” (Lévinas, 2002LÉVINAS, Emmanuel (2002). De Deus que vem a ideia. Trad de. Pergentino Stefano Pivatto. 2. ed. Petrópolis: Vozes., p. 105).
  • 6
    No início do romance A paixão segundo G.H. (Lispector, 2009LISPECTOR, Clarice (2009). A paixão segundo G.H. Rio de Janeiro: Rocco.), a voz narrativa declara o seguinte: “Ontem no entanto perdi durante horas e horas a minha montagem humana”, referindo-se à experiência quase limite configurada pelo seu encontro com a barata.
  • 7
    Ainda a respeito dessa discussão, vale destacar a seguinte afirmação de Ângela: “Oh doce mistério animal, Oh alegria mansa. Que fascínio. Mas que fascínio tremendo é esse desafio da besta! Oh doce martírio de não saber falar e sim apenas latir” (Lispector, 1999bLISPECTOR, Clarice (1999b). Um sopro de vida. Rio de Janeiro: Rocco., p. 59). Essa caracterização, como bem nos lembra André Leão Moreira (2011MOREIRA, Andre Leão (2011). A hora dos animais no romance de Clarice Lispector. Dissertação (Mestrado em Letras) - Faculdade de Letras, Universidade Federal de Minas Gerais, Belo Horizonte.) em A hora dos animais no romance de Clarice Lispector, configura outra “recusa da ficção de Clarice ao cartesianismo”, visto que o autor que constrói Ângela “sabe de sua criatura viva, mas esse saber escapa da racionalização”, de modo que ambos ultrapassam “o limite do considerado humano, transcendendo-o” (Moreira, 2011MOREIRA, Andre Leão (2011). A hora dos animais no romance de Clarice Lispector. Dissertação (Mestrado em Letras) - Faculdade de Letras, Universidade Federal de Minas Gerais, Belo Horizonte., p. 103).
  • 8
    Penso no “abjeto como excluído paradoxal de um sistema normativo” que é rejeitado por “remeter ao impuro e desordeiro” (Rodrigues; Gruman, 2021RODRIGUES, Carla; GRUMAN, Paula (2021). Do abjeto ao não-enlutável: o problema da inteligibilidade na filosofia de Butler. Anuário Antropológico, v. 46, n. 3, p. 67-84. https://doi.org/10.4000/aa.8933
    https://doi.org/https://doi.org/10.4000/...
    , p. 73).
  • 9
    Peres (2011PERES, Urania Tourinho (2011). Uma ferida a sangrar-lhe a alma. In: FREUD, Sigmund. Luto e melancolia. São Paulo: Cosac Naify. p. 103-136., p. 58), em “Uma ferida a sangrar-lhe a alma”, afirma que “Freud insiste no que denomina ‘trabalho do luto’. Ele não menciona os rituais através dos quais, ao longo da história, o homem pranteia seus mortos, porém, ao marcar o luto como ato, o luto como trabalho do eu (ego), chama a atenção para as consequências do abandono e do esquecimento desses rituais como processos de simbolização da dor”. Considerando-se esse apontamento, é possível sugerir que o gatilho disparador para que G.H. se abrisse à escrita de sua experiência se vincula justamente ao luto como ato, ao luto pela perda de sua própria humanidade.
  • 10
    Em uma perspectiva clássica aristotélica, o elemento que que une a vida natural (animais e plantas) e os viventes humanos é a presença da Psyché - isto é, da alma -, reconhecido como o princípio do movimento ou do repouso (Cf. Zanuzzi, 2016ZANUZZI, Inara (2016). Aristóteles e os animais. In: OLIVEIRA, Jelson (org.). Filosofia Animal: humano, animal, animalidade. Curitiba: PUCPRess. p. 25-44.). Sobre essa discussão conferir também o segundo capítulo da tese À escuta do vivente: animalidade e biopolítica em Clarice Lispector (Sant’anna, 2023aSANT’ANNA, Evandro (2023a). À escuta do vivente: animalidade e biopolítica em Clarice Lispector. Tese (Doutorado em Letras - Estudos Literários) - Universidade Federal do Espírito Santo, Vitória, 2023a., p. 49-81).
  • 11
    Sobre “crime não punível”, aqui, cabe uma aproximação com a imagem do homo sacer - figura do direito romano analisada por Giorgio Agamben (2014AGAMBEN, Giorgio (2014). Homo sacer: o poder soberano e a vida nua I. Trad. Henrique Burigo. Belo Horizonte: UFMG.) em seu Homo sacer: o poder soberano e a vida nua I -, o ser que, ao ser lido como vida nua, como zoé, carrega uma existência matável e insacrificável, isto é: embora o extermínio de sua vida seja condenável, seu assassinato não configurara nenhuma espécie de crime.
  • Financiamento: Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior - Código de Financiamento 001.
Editor: Paulo César Thomaz

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    02 Set 2024
  • Data do Fascículo
    2024

Histórico

  • Recebido
    30 Mar 2024
  • Aceito
    12 Jun 2024
Grupo de Estudos em Literatura Brasileira Contemporânea, Programa de Pós-Graduação em Literatura da Universidade de Brasília (UnB) Programa de Pós-Graduação em Literatura, Departamento de Teoria Literária e Literaturas, Universidade de Brasília , ICC Sul, Ala B, Sobreloja, sala B1-8, Campus Universitário Darcy Ribeiro , CEP 70910-900 – Brasília/DF – Brasil, Tel.: 55 61 3107-7213 - Brasília - DF - Brazil
E-mail: revistaestudos@gmail.com