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Recriar o espaço de voz do poeta: a memória entre dois mundos

Recreating the poet’s voice’s space: memory between two worlds

Resumo

Poeta, cantador repentista, declamador, folheteiro, gravador que, após uma trágica enfermidade nas cordas vocais, torna-se pesquisador e escritor, José Alves Sobrinho foi um dos maiores poetas-cantadores nômades do Nordeste brasileiro. Seu nome está ligado ao período considerado a idade de ouro da cantoria e traz um testemunho privilegiado desse momento efervescente, marcado pela transição para as novas tecnologias da informação. Embrenhado nessa movência, na qual a palavra cantada perdia progressivamente espaço para a palavra impressa, José Alves soube, perspicazmente, recriar um espaço de diálogo entre a letra e a poesia. Acompanhando seu percurso artístico e intelectual, este estudo busca debruçarse sobre a capacidade criativa desse poeta e de seus pares, visando compreender a recriação das possibilidades necessárias à manutenção, difusão, adaptação e sobrevivência dessa arte.

Palavras-chave:
oralidade; testemunho; poesia; cantoria; José Alves Sobrinho

Abstract

Poet, singer, reciter, engraver, who, after a tragic illness in the vocal cords became a researcher and a writer, José Alves Sobrinho was one of the main nomad poetsingers on Northeast Brazil. His name is linked to a period deemed the golden age of Brazilian cantoria and brings a privileged testimony of this effervescent moment, marked by the transition to new technologies of information. Deeply embedded in these changing times, where the sung word loses progressively space to the printed one, José Alves knew, cleverly, recreate a space of dialogue between the letter and the poem. Following his intellectual and artistic trajectory, we can realize the creative ability of this poet and his pears, in the sense of recreating the needed possibilities to the maintenance, spreading, adaptation and survival of his art.

Key words:
oral literature; testimony; poetry; cantoria; José Alves Sobrinho

Eu sou improvisador
de professor não preciso
A ciência de cantar
eu trago no meu juízo
Quando me faltar a das letras
intero no improviso 1 1 Improvisação realizada no nível da provocação através dos versos acima descritos por José Alves Sobrinho, aos 13 anos de idade, em resposta a um cantador repentista que se vangloriava de seu talento poético na tentativa de intimidar o adversário.
José Alves Sobrinho

O presente trabalho conta aspectos da trajetória excepcional de um poeta que vive entre dois mundos, o da oralidade e o da escrita. O mundo da poesia, a palavra rítmica improvisada e eternamente em movência, transmitida na boa regra da tradição que se refaz, de boca a ouvido, e, sobretudo, acreditada pelo público ouvinte que se reconhece na palavra do poeta. E o mundo da letra, a palavra poética elaborada para ser escrita, fixada no papel, condenada a uma procura incessante de hipotéticos leitores, a uma busca da palavra certa, bem colocada, bem dita, enfim, uma busca angustiante de um ritmo certo que - jamais - a palavra fixa conseguirá lhe restituir.

É no campo das memórias e do testemunho que a carreira de José Alves Sobrinho apresenta um grande valor para os estudiosos das tradições orais. Enquanto testemunho auricular e ocular de um período considerado a idade de ouro da cantoria, a experiência do poeta é significativa no sentido de compreendermos o modo de ser e de fazer dos menestréis de uma tradição tão presente que não cessou de se reconstruir e de se renovar. Mas a sua experiência vai muito além de sua performance pessoal. Como testemunho capital do processo de transformação das novas tecnologias da informação e da comunicação no Brasil, o perfil do poeta José Alves Sobrinho nesse processo de transição da oralidade para a escrita é merecedor de um estudo mais atento pelos pesquisadores: ele foi professor universitário e escritor. Foi como mestre da improvisação que ele fez nome na cantoria, tornou-se um exímio pesquisador das poéticas da oralidade, sem ainda se dar conta dessa imensa qualidade - inata - que ele descobrirá, décadas depois e de modo sistemático, com o intelectual Átila de Almeida. É por volta dos anos 1970 que, por iniciativa do historiador Horácio de Almeida, pai de Átila, que se inicia a grande parceria entre o filho, homem de letras, e o poeta da oralidade, José Alves Sobrinho. Desse encontro, nasce uma grande amizade e uma empatia mútua. Os dois homens tornam-se amigos, começam a trabalhar juntos e dessa parceria promissora surge o Dicionário bio-bibliográfico de repentistas e poetas de bancada. Foi com Átila de Almeida que Sobrinho enveredou para os caminhos da escritura acadêmica e científica, para, com o passar dos anos, tornar-se o pesquisador minucioso, exigente e cada vez mais autônomo do seu mentor intelectual, como reitera Átila de Almeida neste depoimento:

A Zé o que é de Zé:

[...] Em 1976 reapareceu fazendo ombro pr‘eu trepar e lá de cima escrever em parceria com ele um dicionário bio-bibliográfico de poetas populares, às vésperas de sair neste ano de 1982, em nova apresentação gráfica, com pretensões de abarcar o mundo com as pernas. Agora, deixa aqui, neste trabalho, a prova do quanto corre e vai correr por conta de dois, sendo de um só. Assim seja. (Almeida, prefácio a Sobrinho,1982______ (1982). Glossário da poesia popular. Campina Grande: Editel/UFPB.)

A afirmação de que “agora, deixa aqui, neste trabalho, a prova do quanto corre e vai correr por conta de dois, sendo de um só” faz menção ao trabalho realizado na época de sua parceria com o poeta: a confecção de um dicionário em apenas setenta dias. Obra realizada graças ao acúmulo de notas organizadas pelo poeta, anos a fio, durante suas andanças pelo sertão nordestino, décadas antes do encontro com o matemático. Tratavase, na realidade, de anotações compiladas em cadernetas e, muitas delas, em folhas avulsas, que, uma vez reunidas, foram acrescidas de outras informações e dados relativos aos poetas e repentistas da nova geração (nessa mesma década), coletadas pelo próprio poeta, quando do seu retorno aos palcos da cantoria. Isso no âmbito da pesquisa de campo, financiada inicialmente pelo professor Átila e, depois, pela Universidade Federal da Paraíba, no sentido de ampliar os dados já existentes2 2 Ver, a esse respeito, na tese de Joseilda de Sousa Diniz, intitulada José Alves Sobrinho Un poète entre deux mondes, defendida em dezembro de 2009 na Universidade de Poitiers (França), o capítulo IV: “L’après-trauma: réinventer la vie et le poète”, p. 204-23. .

José Alves Sobrinho tornou-se, após essa parceria, um exímio formador de uma nova geração de pesquisadores, como eu e muitos outros que cruzaram o seu caminho.

O percurso do poeta

Poeta, cantador repentista, um dos mais admiráveis e cortejados violeiros das décadas de 30 à 60 do século passado, esse poeta nômade, autodidata, como muitos dos maiores poetas nordestinos da época, José Alves Sobrinho fez parte de uma geração de poetas cantadores que se descobriu e se fez poeta ainda menino. O menino que é descoberto poeta tornar-se-á o “menino sensação”, nos seus dizeres, como também nas palavras de muitos de seus companheiros de profissão e do público da época. Inteligente e perspicaz, o “menino sensação” tornou-se uma lenda para gerações de poetas com os quais ele cantou e conviveu no período. O nome de José Alves Sobrinho está também ligado aos primeiros programas radiofônicos, em que era considerado uma das vozes mais belas e cativantes que o Nordeste descobria, em meio à efervescência do surgimento das primeiras emissoras de rádio. Como precursor desses programas radiofônicos no Brasil, em um momento-chave de transformação das novas tecnologias da informação e da comunicação, José Alves Sobrinho se profissionalizou, ampliando seu campo artístico, antes cativo das cantorias de parede, evoluindo para os programas de auditório até a organização dos primeiros congressos de violeiros. Sua voz do tipo contralto atravessou fronteiras, garantindo-lhe não somente a fama, a glória, mas sobretudo o reconhecimento e a riqueza.

A vida mítica do poeta-pássaro, chamado pelos companheiros de estrada de o Uirapuru, é tragicamente interrompida, no auge de sua carreira. Em fins dos anos 1960, José Alves Sobrinho perde a voz, tornando-se completamente afônico. A partir desse episódio, a voz do poeta - instrumento de coesão e de empatia -, ausente, distancia-o da interação público-artista, o que gradualmente vai afastá-lo do seu papel de mediador comunitário, de porta-voz reconhecido, legitimado no tempo e no espaço.

Com uma voz irreconhecível, o poeta foi forçado a abandonar a cantoria para viver, segundo suas próprias palavras, “de assuntos alheios a sua vontade”. Quase um ano afastado dos palcos devido à rouquidão, o poeta tenta, em vão, até inícios dos anos 1970, um retorno aos palcos da cantoria, sem o sucesso alcançado anteriormente. Dessa constatação, nasce a dura e trágica amargura de um poeta que, desde então, vai viver entre dois mundos: o mundo da poesia improvisada, daquela emoção sentida e partilhada com o público ouvinte - atencioso e interativo, cocriador da sua poesia -, e o mundo solitário e individual do autor, sem a interação criadora com seu público de outrora.

Afastado dos palcos animados da cantoria, quer seja dos alpendres das fazendas, dos bailes elegantes frequentados pela aristocracia rural nordestina e/ou da burguesia seleta das capitais brasileiras, a vida do poeta se transformará radicalmente. A fama e a glória, assim como a riqueza acumulada, desaparecerão progressivamente, na medida em que o poeta se afasta da cantoria. Quando as informações sobre a sua afonia começam a se propagar, o público e os convites tornam-se escassos. Apreciado e adulado por intelectuais e o povo em geral, é no esquecimento que seu nome repousará durante muito tempo. Colegas de profissão e o seu público lamentarão o desaparecimento de um dos poetas mais excepcionais do período, como afirma Orlando Tejo3 3 A convite de José Alves Sobrinho, Orlando Tejo prefaciou o primeiro livro do poeta, Sabedoria de caboclo. :

Todo o Nordeste tomou conhecimento de que José Alves Sobrinho perdera a voz. Ninguém mais queria ouvir um cantador mudo. Era como um jogador de futebol que tivesse as pernas amputadas, ou um ourives que ficasse cego. (Tejo, 1974TEJO, Orlando (1974). Carta-prefacio de OrlandoTejo para o livro de José Alves Sobrinho, Sabedoria de caboco, como figura na bibliografia final do artigo, com data de aparição em agosto de 1975. Entretanto aqui está datado de 1974, porque esta é a data oficial da carta de Orlando Tejo a José Alves.)

Com a perda da voz, o poeta retornará ao anonimato e à solidão dos seus primeiros passos como aprendiz da cantoria. Sem as luzes do sucesso, ele envereda progressivamente num mundo feito de palavras fixas, rígidas, sem a interação com o seu público e a movência criadora desse face à face com a comunidade tradicional que o legitimava. A tragédia da perda da voz afinadíssima e atraente apreciada pelo auditório fiel funcionou como um divisor de águas na vida de José Alves Sobrinho. Sem a presença física e a interação com o público, José Alves Sobrinho construiu uma nova vida como pesquisador e escritor.

Nós sabemos que com a introdução das primeiras tipografias no Nordeste do Brasil, em fins do século XIX, as relações tradicionais existentes nas comunidades de tradição oral sofreram mudanças radicais na sua maneira de conceber, de ver e de lidar uns com os outros e com as culturas existentes no seio do território brasileiro. A era industrial, com as suas técnicas próprias para a época e a automatização, teve igualmente um papel decisivo nessa transformação de costumes e práticas socioculturais, no sentido de uma globalização cada vez mais presente. Quando as primeiras tipografias chegaram às cidadezinhas do interior, os poetas presenciaram essa lenta e progressiva marcha da modernidade se impor, obrigando-os a se renovarem, a se adaptarem ao novo mundo tipográfico que devorava ferozmente práticas tradicionais comunitárias de ser e fazer de sua gente.

Ao longo de sua trajetória de poeta cantador, José Alves Sobrinho viu o mundo de Gutenberg se impor, como um sistema revolucionário extraordinário, no qual ele conseguiu reconstruir o seu espaço de voz, antes fundado unicamente em interação com o público, depois manuscrevendo sua poesia improvizada e/ou relatando acontecimentos do dia a dia em forma de versos, no sentido de manter-se conectado com a movência da época (Mcluhan, 1977MCLUHAN, Marshall (1977a). La galaxie Gutenberg 1: la genèse de l’homme typographique. Trad. Jean Paré. Paris: Gallimard.). Razão pela qual ele enveredou para a “escritura”de alguns folhetos de cordel, muitas vezes auxiliado por tipográfos, que, ao passo que a demanda crescia pelos jornais do povo, propunham aos poetas mais dos serviços de formatação e ilustração, do trabalho de correção dos versos, a fim de que os textos dos poetas se tornassem mais atrativos e facilmente lidos por um público maior e mais diversificado.

José Alves Sobrinho viveu essa transição e transformações na arte da cantoria, cujas práticas estavam sempre em movimento; ele vivenciou todas as etapas desse processo, como testemunham muitos dos seus poemas e livros.

Mas apesar desse “entre dois mundos” no qual o poeta oscila, José Alves Sobrinho costuma dizer que, embora “amigo das letras, continua fiel às suas raízes” e é através dessa consciência - da força comunitária nele - que o seu espaço de pesquisa e estudo foi e é construído. O acesso ao mundo da escrita e os conflitos por ele gerados na sua poética oral, longe de ter-lhe extirpado a fluência e a energia fundadoras da poesia improvisada, consolidaram dinâmicas de composição e mantiveram acesos um fazer e ser poéticos próprios à oralidade e em constante diálogo com as tecnologias da comunicação.

Os passos da pesquisa: aprendizagem e questionamentos

No âmbito de minha pesquisa de campo4 4 Pesquisa de campo realizada em novembro e dezembro de 2006 em Campina Grande, na Paraíba, graças à Bourse à la mobilité internationale, do Ministère de la Recherche (França). no Brasil com o poeta, realizei quatro séries de entrevistas entre os anos de 1998 e 2006 que totalizam o meu corpus de tese. Cada uma dessas séries apresenta um panorama específico da evolução das etapas no contato humano e científico com o poeta. Em cada etapa, observei diferentes facetas desse poeta-escritor.

Esse trabalho se baseou, grosso modo, na observação e análise do funcionamento desse cantador repentista no seu fazer poético, ligado à rítmica, à empatia do seu público, à movência da palavra oral em relação àquele vivenciado por ele, enquanto escritor.

Apesar do estreitamento do poeta no universo letrado, José Alves é a prova viva de um homem que, consciente ou inconscientemente, permanece fiel às suas raízes fundadas numa cultura oral. Ele guarda na memória um corpo comunitário e o exercita constantemente, o que Ong (1998ONG, Walter (1998). Oralidade e cultura escrita: a tecnologia da palavra. Trad. Enid Abreu Dobranszky. Campinas: Papirus.) chama de “resídio oral “, porque a experiência é intelectualizada mnemonicamente.

Aliás, ele consegue habilmente transitar entre os dois mundos, mas sem aderir completamente à uniformidade e às concepções impostas pelo cânone literário. O acesso ao mundo da escrita o inibiu durante anos, conduzindo-o a duvidar do valor e autenticidade de sua poesia. Quando, em detrimento da força do ritmo, da verdade poética, tão fluentes em sua poesia improvisada, ele as silencia, ele passa a escrever nos moldes “eruditos “, distanciando-se da vocação de cantador popular.

José Alves vive o conflito que experimenta o escritor clássico, preso à composição individual e solitária, contrário ao papel de cantador repentista, cuja experiência é a da interação permanente entre público e artista, isto é, a obra poética é, antes de mais nada, coletiva, uma vez que a composição é alicerçada na comunicação e reconhecimento estabelecidos entre poeta e público.

A experiência da escrita vai gradualmente tomar uma grande parte das atividades poéticas e, progressivamente, científicas de José Alves Sobrinho. Razão pela qual nos perguntamos até que ponto essas influências acadêmico-científicas adquiridas transformaram o seu fazer poético de cantador repentista. Quais mecanismos ele utiliza para resgatar a força criadora da oralidade? As vozes poéticas da oralidade, bem mais visíveis na época da cantoria, ainda o revisitam, determinando um funcionamento próprio? A movência da palavra cantada, da poesia jorrada - aceita e acolhida - como se manifestava em suas performances diante do público da cantoria, permanece nele ou se mutila com a escrita?

Notamos que a poesia que se impõe ao poeta é àquela fundada no diálogo-inspiração estabelecido entre ele e o público, seja este composto de um ou vários indivíduos. A verdade rítmica está associada à cumplicidade e ao fazer do “outro” em relação à emergência da poesia compartilhada, reconhecida e legitimada pelo público ouvinte.

O papel do porta-voz é trazer consigo, levar a voz àqueles que não a detêm, mas que participam da construção da poesia cantada. O auditório é ao mesmo tempo o inspirador e o incitador da poesia que “bate à porta”, como costuma dizer José Alves Sobrinho. Ele diz ser levado, conduzido, guiado - como que numa espécie de transe - pela voz poética. Muitos poetas costumam definir a proveniência de sua poesia como “espontânea “, “divina “, “genuína “. Todas essas conotações associamse à ideia de que na poesia improvisada não há controle, sistematização, limites impostos, exceto o do ritmo que determinará a verdade dos fatos e o reconhecimento, e a adesão ou não, do público.

Nesse sentido, como fechar à porta a poesia, quando esta teima em chegar? Essa consciência do dom da poesia ou “aptidão “ pode ser observada na experiência de muitos poetas, como Moacir Laurentino, Patativa do Assaré, José Alves Sobrinho. Este último, paradoxalmente, longe do palco em que a performance oral se manisfestava, mostra-se cético quanto à qualidade de sua poesia quando esta se encontra impressa. Vejamos, pois, o sentimento do poeta ao fixar por escrito a sua poesia:

Ao escrever este punhado de coisas alinhadas em forma de verso, não me passou pela mente a veleidade de ser considerado um poeta ou escritor. Não! Reconheço faltarem-me as imprescindíveis qualidades, a exuberância espontânea da inspiração, a capacidade intelectual e outros atributos do autêntico escritor. (Sobrinho, 1975SOBRINHO, José Alves (1975). Sabedoria de Caboclo. Campina Grande: Tipografia Bahiana.)

O que percebemos no depoimento de Sobrinho é que, antes da perda da voz, o ritmo e a melodia cadenciada eram as únicas bases portadoras de sentido para o poeta. Depois disso, ele passa a duvidar das qualidades essenciais de sua poesia. Esta, por sua vez, é apreendida diferentemente, com critérios muitas vezes alheios ao funcionamento natural do poeta - no tempo e no espaço -, bem diferentes da performance do cantador repentista. O tom dado à poesia já não é mais o mesmo. Como se posicionar, nessa nova fase de sua vida? A verdade rítmica garantida pela presença do auditório perde espaço para a maneira de bem dizer, de representar. Por escrito, o poeta prende-se ao olhar crítico dos eruditos. A poesia fixa é comparada a um “punhado de coisas alinhadas em forma de versos”. Ao aludir assim a sua poesia, o poeta antecipa as críticas que porventura lhe advenham, explicando as suas “deficiências” na forma de escrever.

A experiência vivenciada enquanto cantador por José, não é, e nem poderia ser, a mesma diante da empreitada da escrita e da arrogância subjacente ao mundo da escrita, detentor de uma “verdade literária” elitista e hierarquizante. O poeta vê-se confrontado com o difícil dilema de escrever conforme o modelo da poesia dita de excelência, em detrimento da poesia jorrada e concebida sem os atropelos da gramática nem das regras linguísticas. O poeta do povo é aquele fazedor de poesia matuta, “espontânea”, “simples”, atributos comumente associados à pouca ou quase nenhuma elaboração. A linguagem e o imaginário de um poetaescritor está quase sempre atrelada à sociedade e às tradições que lhes são próprias e que lhe legitimaram enquanto tal. Ferir essa regra é expor-se à ferocidade dos pressupostos erigidos pelo meio intelectual e às críticas e/ou ao menosprezo.

Para José Alves Sobrinho, a qualidade da poesia, independentemente dos pressupostos ligados a ela, implica um retorno às fontes de inspiração, ao simbolismo da palavra viva, comunitária, nas quais a influência do indivíduo comunitário é o que fecunda a criação poética.

O perfil do poeta-escritor está sempre em alternância e dualidade nesse encontro entre a performance oral, revisitada, e as estratégias de composição da palavra escrita, sobretudo na atitude do escritor erudito. A rigidez da composição escrita poética ou prosaica é dissimulada pelas nuances da voz criadora, a ela intrínsecas, como se ouvíssemos a textura da palavra pronunciada, recriada na performance do poeta em face do público. Vejamos o que diz a esse respeito Ria Lemaire:

Na verdade, a introdução da escrita provocou um longo processo de transição da oralidade primária, pura, para formas de expressões cada vez mais “escritas” no sentido moderno do termo. Essa evolução durou séculos; os seres humanos se apropriaram progressivamente dessa nova tecnologia da informação e da comunicação que é a escrita ou, como diria Eric Havelock, a musa aprendeu pouco a pouco, lentamente, a escrever e continuou, durante séculos ainda, a cantar, a declamar, a compor poesias de acordo com as regras e estratégias da poesia oral, tradicional. (Lemaire, 2007LEMAIRE, Ria (2006). “Des corps qui font foi aux corps suspects: historiciser les notions de témoignage et de corps”. In: PERRIN, Claire (org.). Corps et témoignage. Caen: PUC. p. 20-31.b, p. 123-74)

A esse respeito, José Alves costuma dizer que, na performance da oralidade, a improvisação é feito “cabra, correndo sem cabresto”, “porque, mesmo sendo domesticada, a “cabra “, não tendo amarras, só faz o que quer. Com a palavra improvisada, ocorre situação similar: quando esta não é sujeita ao esquema rígido, atropelado e circunscrito da escrita, ela desnuda o ritmo, a inspiração parece comandar o indivíduo, seguindo o ritmo de sua respiração, tornando-se o fôlego criador.

Ao perder a voz e deixar de cantar, a sua poesia oral vai cedendo espaço, pouco à pouco, para a prosa. E o resultado dessa transição afasta-o gradualmente da dinâmica da poesia improvisada, tal como ele a concebe, ou seja, não depende de cultura nem de técnica, é simples, espontânea, nasce da inspiração do povo. Nesse sentido, ao afastar-se do espaço comunitário, o poeta perde o diálogo essencial com o seu público, sem o qual ele nem é reconhecido nem legitimado como porta-voz. Ao perder o instrumento vivo desse elo, a voz, que o une ao mundo da oralidade, José Alves atrela-se ao proceder dos cultores da poesia erudita e se confronta com os limites que lhe são impostos pela Academia. José alia-se ao fazer dos cânones literários e à visão escriptocêntrica do mundo da escrita. Nessa reviravolta intelectual e cultural, o poeta passa a funcionar como o escritor individual, buscando a inspiração na palavra acabada, construída como um monumento, e afasta-se do momento da criação, do eco das vozes que se manifestam e alimentam a sua poesia através da presença do corpo comunitário. Prende-se às amarras da palavra “feita”, elaborada, segundo regras e preceitos da norma culta. Sem se aperceber, ele vai perdendo o caráter essencial da sua poesia improvisada e as regras de composições tão bem assimiladas e vividas na cantoria. A poesia ritmada, fluente como a sua respiração, cede espaço para a necessidade de explicar, documentar, selecionar, corrigir, própria às preocupações do homem letrado, quando a língua passa a ser arma de poder e de pressão. A palavra não é mais sinônimo de libertação, mas amarras aprisionando-o aos obstáculos que ela impõe.

A experiência que eu relato neste artigo diz respeito ao acompanhamento do poeta no seu fazer poético, processo observado no âmbito da pesquisa de campo, e que mostra, de um lado, as etapas de trabalho realizadas com ele e, de outro, a evolução das relações entre o pesquisador e o seu “objeto” de pesquisa. O presente relato refere-se à última estadia no Brasil, cujo caráter foi de “residência”, ou seja, de imersão total no cotidiano familiar do poeta e escritor. Nas pesquisas anteriores, eu mantive um contato mais espaçado com o poeta, com interrupções na semana: um dia sim, outro não. Num espaço de um mês, eu fui várias vezes à casa do poeta para entrevistá-lo. A última entrevista foi organizada unicamente no sentido de passar o máximo de tempo em contato com ele. Dessa vez, a pesquisa evoluiu do plano de observação “passiva” para o plano ativo e participante. A convite do poeta, eu aceitei a proposta de residir em sua casa, a fim de concluir a pesquisa de campo e finalizar a série de entrevistas com ele.

Durante o período em que eu morei na casa de José Alves Sobrinho, tive, inúmeras vezes, a oportunidade de ler e reler manuscritos antigos e/ou mais recentes do poeta, ter acesso a um verdadeiro conjunto documental, cuja preciosidade representa, decerto, um fecundo patrimônio da oralidade nordestina brasileira. Nesses arquivos empilhavam-se testemunhos de transeuntes que cruzaram o caminho do poeta-nômade: testemunhos de conterrâneos, de amigos e/ou colegas de passagem, de bar, de cantorias comuns com parceiros ou rivais, todos eles também nômades; sem paradeiro fixo, estabelecido, senão o caminho infinito das estradas do sertão. Por alguns momentos, e com o consentimento do poeta, esses arquivos abriam-se a mim, desvelando-me facetas do universo da cantoria e do repente, que eu conhecia só teoricamente. Ali, desbravavam-se encontros, desencontros de poetas aventureiros, forasteiros em busca da glória e da liberdade. José fazia parte desses andarilhos perseguidores de um destino melhor. Tratava-se de trovadores rebeldes que, na época, afirmavam suas opiniões com argúcia, elegância, tenacidade, humor e firmeza; verdadeiros agentes civilizacionais do período. Como o poeta, estes eram exímios promotores da cultura do seu povo, portadores de um saber coletivo.

Ao deixar-me descobrir seus arquivos-manuscritos, José Alves Sobrinho convidava-me a um passeio de retorno às origens, às minhas próprias raízes, aos ditos populares e a um fazer e ser particulares que comigo partilharam, outrora, meus avós maternos, ao fecundo imaginário que povoou a minha infância em Campina Grande e nos confins do sertão - quando menina, eu via, ouvia e acompanhava a trajetória nômade de minha avó.

Como um verdadeiro mestre, José Alves Sobrinho revelava-me, pouco a pouco, os traços deixados por um passado não tão longínquo, um passado que parecia seu e, ao mesmo tempo, alternava-se com o meu, para voltar a um passado comum às tradições de nossa comunidade. Vasculhamos juntos esse passado-presente, por vezes mudo nas estantes do poeta. E, quando liberto, vozes em reboliço se dilaceravam, desnudando uma época e um funcionamento civilizacional riquíssimo. E que, graças à profunda curiosidade e sensibilidades do poeta José Alves, pôde ser conservado ao longo do tempo. Acompanhá-lo em diversas atividades do dia a dia, observando-o atentamente, como se observa um mestre que partilha com seu discípulo algo que ele deverá levar para as futuras gerações - tal como um testemunho vivo de cenas e situações -, eu me dei conta do meu papel naquele labirinto de coisas que me aconteciam, no meu reencontro com as minhas raízes

A convivência com José Alves Sobrinho reanimou em mim sensações e sensibilidades adormecidas e, essencialmente, uma profunda convicção: de que cada indivíduo em si já representa ele só um “patrimônio da humanidade “. A sociedade nordestina reúne nela todas as facetas de uma sociedade à parte. Nesse sentido, vejamos alguns trechos de uma entrevista em que o poeta José Alves Sobrinho também partilha dessa mesma convicção. Após anos de convivência e trabalho com o poeta, este me revela, reivindicativo, que o essencial sobre ele ainda não tinha sido dito, pelo menos não em verso. Daí a convicção, como ocorrera com Patativa do Assaré, segundo testemunho de Gilmar de Carvalho, de que o poeta só se realizava na performance oral. Ora, eu me convencia de que semelhante situação se produzia também com José Alves Sobrinho. Convicção reiterada por muitos poetas de que a verdade se encontra no ritmo, como ele prova neste testemunho: “Eu vou dizer pra você a minha biografia em duas estrofes, eu vou contar tudo em duas estrofes”. Nesse momento o poeta começa a improvisar:

Eu nasci em Picuí
Velho Curimataú
Da terra do xique-xique
Facheiro, mandacaru
Fui criado com batata
Feijão macaça e imbu
Nasci em Pedra Lavrada
No centro do Cariri
Porém depois de alguns anos
Vim morar no Cubati
Os dois principais distritos
Da vila de Picuí
E jamais esquecerei
A terra onde nasci.
Aí vai para você levar isso [fazendo alusão às suas origens]

Trata-se de um poema que o acompanha há décadas, sem que o poeta o tenha escrito; nele percebemos a importância do “lugarzinho” em que ele nasceu, cresceu e se fez homem e poeta, do lugar que alimentou toda a sua inspiração; da importância das suas raízes, da influência dos avós paternos.

E o poeta continua a contar, dessa vez em prosa:

Nasci num sítio, numa fazendola chamada Pedro Paulo. O povo chama Pedro Paulo, mas a fazenda, o nome é Pedro e Paulo. É uma homenagem que o meu bisavô prestava a são Pedro e a são Paulo. Pedro e Paulo. Eu nasci ali, aí eu fiz um soneto oferecido àquela localidadezinha onde eu nasci, aquele sitiozinho que eu quero tanto bem. Eu digo assim:

Pedro Paulo amigo
Meu berço adorado
Não devo tirar-te do meu pensamento
Tu vives comigo a todo momento
Sonhando, dormindo, vivendo acordado
O poço da pedra
A cacimba do gado
O banho dos poços, meu divertimento
As carnaubeiras de folhas ao vento
O riacho doce, o açude arrombado
E o bom casarão de adobes e telhas
Portão e janela olhando o nascente
Ao poente o serrote de pedras vermelhas
Ao norte o chiqueiro, curral e latada
Um pé de bonome na porta da frente
E um velho imbuzeiro na beira da estrada.
É o lugarzinho onde eu nasci, é isso aí.

Quando o poeta terminou a recitação do poema, dessa ode à terra natal, à infância na “fazendola” Pedro e Paulo, como ele costuma dizer, eu intervim, partilhando com ele a minha emoção em ouvi-lo, e percebo naquela performance do Zé Alves a grande energia motriz de sua inspiração. E sem tardar completo:

JSD: Que representa muito o que você é, não? Porque você sempre me disse que o fato de ter sido criado com seus avós, Alexandre Julino de Souto e Dionísia Leocádia da Anunciação, seus avós paternos, trouxe muita coisa para você. Uma das coisas é que eles eram letrados. Eles tinham muito conhecimento.

JAS: Eles eram folcloristas caseiros. Eles trouxeram pra mim… aquelas duas figuras, que eu considero pais, meus segundos pais, que eu considero os primeiros, quando me lembro deles, eu me lembro do folclore todo. Eles eram um folclore: eles sabiam história de trancoso, eles sabiam folheto, eles davam atenção a tudo no mundo, tudo. Eles só não gostavam de “sambiar”, mas rezavam àquelas rezas antigas.

E continuamos:

JSD: Seu José, esse repositório das tradições populares veio enraizada nos seus próprios avós?

JAS: Perfeitamente, perfeitamente. É no sítio em que eu fui criado. Tudo isso me inspirou a isso que eu procuro hoje.

Após cada sessão de entrevista com o poeta José Alves Sobrinho, que a priori, não eram estabelecidas como tal, uma vez que, como eu morei durante esses quarenta dias em sua casa, as discussões se realizavam naturalmente. Às vezes, eu nem me apercebia que estava ali com uma “missão” bem particular: a de confrontar os dados anteriormente coletados com o poeta e registrar outros mais recentes, como comumente eu fazia.

Por outro lado, a minha tarefa dessa vez perdia gradualmente a rigidez do objetivo inicial de minha pesquisa de campo: a de confrontar e analisar dados; agora, o trabalho ganhava outra dimensão, que se impunha progressivamente ao integrar-me à família, ao cotidiano de vida e das emoções ligadas àquele lar. Através dessa convivência, observando-os, acompanhando-os em momentos felizes e/ou infelizes do cotidiano, eu me tornava, apesar de mim mesma5 5 Essa ênfase em “apesar de mim mesma” significa a luta consciente entre a pesquisadora que está ali para coletar e confirmar dados e a filha da terra, abrindo espaços para ouvir e aprender com o poeta, livre dos prejulgamentos acadêmicos e científicos. , uma testemunha privilegiada: de cenas, de situações, de emoções do dia a dia. Instauravase ali um contato privilegiado entre nós. E que, graças a presença física naquele seio familiar, pelo fato de estar e de me sentir integrante daquele espaço cultural, humano e imaginário, me foi essencial para redescobrir e penetrar no universo íntimo da família Alves Sobrinho e no próprio funcionamento do poeta.

Ao mesmo tempo que a minha presença quebrava a monotonia da casa, eu passei a reagir, de certo modo, não como alguém de fora, mas como alguém que se sentia de dentro, apesar de não fazer parte da família. Nessa posição, o cotidiano passa a ser, inevitavelmente, também o nosso. Segundo Rossini Tavares de Lima (1972______ (1972). Abecê do folclore. 5. ed. São Paulo: Ricordi.), para poder realizar bem uma pesquisa, o investigador deve se transformar em um “observador participante“ integrando-se ao meio que pretende estudar. Lima alude ao universo do folclore brasileiro, cuja particularidade se encontra justamente numa observação atenta do homem cultural, do homem social nas suas expressões de cultura espontânea, do sentir, pensar, agir e reagir no âmbito da sociedade em que ele vive. Para o autor, é pertinente que o investigador se transforme em um observador participante, integrandose ao meio onde realizará a sua pesquisa até que o(s) investigado(s) o(s) acolha(m) e/ou o aceite(m) como “membro” do seu meio social. Enquanto Pauline V. Young acrescenta que é essencial que o(s) investigado(s) se acostume(m) com a presença do(s) investigador(es) até aceitá-lo(s) “cordialmente”, o que constitui a condição sine qua non para incorporálo(s) relativamente como um de seus membros.

Já Edson Carneiro (1954CARNEIRO, Edson (1954). Cultura e folclore. Ed. Comissão Catarinense de Folclore.) enfatiza a ideia de que quanto maior for a atitude respeitosa e cordial do pesquisador para com o entrevistado, maiores serão as chanches de ser considerado “‘pessoa de casa”, a quem todos, voluntariamente, prestem informações ou façam confidências. Ademais, como ilustra Oswaldo R. Cabral (apudLima, 1955LIMA, Rossini Tavares de (1955). Pesquisa de folclore. Comissão Nacional de Folclore.): “sem uma relativa intimidade, sem essa identificação com o grupo social, toda observação será incompleta ou imperfeita”.

A postura de observador participante, a qual Lima (1972______ (1972). Abecê do folclore. 5. ed. São Paulo: Ricordi., p. 39-40) se refere, impulsiona o investigador a uma maior conscientização da sua postura e atitudes ante os investigado(s). Para o autor, a pesquisa é, antes de tudo, uma aprendizagem, fazendo-se necessário que o pesquisador se posicione enquanto aprendiz ; que ele esteja imbuído de alguns prérequisitos que lhe facilitarão, decerto, a sua investigação, entre os quais destaca: a paciência, a perseverança, a honestidade, a atenção e discrição. Nestes termos, Lima exemplifica as qualidades essenciais do pesquisador:

Paciente, porque nem sempre os fenômenos ocorrem como deseja ou espera e também em virtude de que o momento de realizar o registro, às vezes, é ocasional. Perseverante, por ter necessidade de insistir em seus propósitos, para que obtenha bons resultados. Honesto, porque só deve anotar o que vê e ouve e recolher as peças que realmente possuam valor folclórico. Atento, por depender a maior ou menor fidelidade de suas anotações e registros dessa qualidade. Discreto, porque o que interessa não são as suas opiniões, atitudes e comportamento dos indivíduos que está investigando.

A qualidade do corpus e da relação de confiança a ser estabelecida no contato com os indivíduos e/ou o meio a ser estudado depende em parte desse conjunto de atitudes. Além do mais, uma pesquisa enraizada nessas bases terá necessariamente sucesso, pois implica que o investigador assume uma atitude de respeito e de espera, como enfatiza Lima: “uma pesquisa só será bem feita se não tivermos pressa, pois, às vezes, meses e anos de convivência com o grupo social nos esclarecem sobre uma porção de coisas que jamais poderíamos perceber em horas e dias”.

Nas tradições orais, nem sempre o momento que o(s) investigador(es) escolhe(m) para entrevistar, anotar, gravar, corresponde ao tempo e ao ritmo do(s) investigado(s). Por experiência própria, o relacionamento entre investigador/investigado pode ser posto em dificuldade desde os primeiros contatos, visto que o investigador, sendo o indivíduo que chega, por si só, já se posiciona numa situação delicada diante do investigado, que, por sua vez, acolhe. Em outras palavras, quem chega precisa provar, não somente dizer, portanto, deve se justificar permanentemente, isto é, do como, do porquê e do para quê. Temos, assim, um ciclo de questões subjacentes que delimitam de antemão o espaço do investigador: a razão de estar ali, a finalidade da visita, as pretensões e possíveis utilizações do que verá, participará e ouvirá, se aceito naquele espaço. Tal como em um ritual, a dimensão humana do indivíduo está intimamente ligada ao seu corpo social. Por isso a confluência do corpo social para o corpo individual do indivíduo: quem são (familiares), de onde são (as raízes), quem é (investigador), o que é, o que faz etc... Embora as primeiras provas pareçam duras, nada suporá a aceitação do indivíduo, muito pelo contrário, ele continuará sendo exposto, analisado, observado até o “julgamento” final, se é que realmente chegamos a ser totalmente aceitos.

Nos estudos sobre as tradições orais, verificou-se que cada encontro é único e a empatia que dele decorre é fundamental para se alinhavar as bases de uma pesquisa de qualidade. Pelo fato de os poetas evoluírem de maneiras diferentes, nenhum estudo deverá ser visto como regra, senão como pano de fundo para construir-se os caminhos pelos quais, nós pesquisadores, poderemos observar, analisar e refletir sobre os pressupostos que nos animam e as realidades que se impõem na pesquisa de campo. Algumas perguntas se fazem necessárias, como me fez compreender José Alves Sobrinho.

Esse “outro”que é o sujeito procurado, é, no meu proceder de pesquisador, meramente o meu “objeto” de pesquisa, cujos pressupostos eu irei colar até verificar que estes se adequam ou não às teorias estudadas ou será ele um meio pelo qual eu, como investigador vindo de longe, me posicionarei com o devido respeito e atenção, tentando construir com ele e a partir dele uma leitura do seu ser e fazer coletivo e individual?

Apesar de existirem receitas de pesquisa, nem sempre estas poderão se ajustar às diversas culturas e aos indivíduos ligados às tradições orais. A verdade de cada sujeito de pesquisa é particular e bem relativa à sua experiência de vida. Quase sempre, os melhores momentos de registro de cenas, de coleta de informações, de partilha acontecem ocasionalmente.

A postura de investigação com relação às entrevistas com o poeta José Alves Sobrinho foi em grande parte fundamentada nessa perspectiva de trabalho, como veremos a seguir.

Por assim dizer, a(s) “entrevista(s)“, propriamente dita(s), não funcionaria(m) tão bem, do ponto de vista humano, se fosse(m) tratada(s) e/ou reivindicada(s) como tal(is). Se desmatelarmos a palavra entrevista6 6 Entrevista. S.f. Encontro combinado, conferência de duas ou mais pessoas, em lugar combinado. Prestação de informações ou de opiniões a um jornalista, feita oralmente para posterior publicação. na sua acepção clássica, dividindo-a em duas partes, teríamos uma forte imagem da relação que o povo nordestino, o brasileiro de uma maneira geral, estabelece na sua relação com o “outro “. Vejamos: entre e vista. A preposição “entre”, do latim inter, denota: no meio de; junto a certos verbos, indica ação recíproca, como no exemplo “os dois entreolharamse”. A imagem do verbo entreolhar denota a força do que na oralidade é fundamental, que é a presença de dois corpos que se reconhecem e que, de certa forma, partilham imaginários e sensibilidades comuns. Tudo se passa no olhar. Nas impressões deixadas pelo “outro”. Já o termo “vista” implica a faculdade de ver, maneira de encarar, de apreciar. Como se nesse face à face de olhares, cada um, entrevistado/entrevistador, doasse um pouco de si para comporem juntos a nota musical da “entrevista”. Nesse tipo de relação, ambos são inconscientemente impulsionados a adivinhar o funcionamento do outro, buscando, a priori, uma sensibilidade, uma partilha de conhecimentos de mundo, enfim, posicionar-se ante o “outro”, ante a esse encontro e/ou reencontro, sem máscaras, sem artifícios, simplesmente atentando para uma postura respeitável, coerente e recíproca para com os sujeitos da ação. A entrevista ganha então toda a sua dimensão humana de reciprocidade: o meu “eu” não se desnuda nem se expõe sem que o “tu” ponha algo de si, precisamente traga algo de si; do contrário, o verbo partilhar não teria o sentido de testemunho que ele comporta no âmbito das tradições orais.

Esse funcionamento e importância do “corpo presente“, do corpotestemunho de uma realidade, como descrito anteriormente, poderá ser visto em outras culturas, como é o caso do povo senegalês. Segundo me relatou um amigo senegalês, Carlos Barbosa7 7 O amigo em questão é de origem cabo-verdiana, mas nasceu e cresceu no Senegal. Daí o fértil imaginário estar ligado essencialmente a essas origens. , na língua wolof, no Senegal8 8 No Senegal, a língua oficial é o francês, compreendido por uma grande parte da população. Todavia, existem seis línguas nacionais (wolof , a mais utilizada, serene, diola, puular, soninké, mandingue) e muito outros dialetos. , uma pessoa que encontra outra pergunta: “como é que você vai?”. Em Wolof: “Na nga def)?”. Em francês: “comment vas-tu?” (que fais-tu). Em vez de responder, como responderia um cidadão francês, “je veux bien”(eu vou bem), o sujeito diz: “Je suis là” (eu estou aqui /Maangi fi). Essa resposta, no mínimo inesperada, poderia causar um grande estranhamento para indivíduos que não partilham códigos socioculturais e ou imaginários do senegalês. Portanto, a mesma cena com interlocutores da mesma comunidade implicaria dizer: que o fato do sujeito estar ali, diante do outro, já consistia em um elemento essencial para ele reagir, para ele ler, para ele reconhecer e até mesmo “adivinhar” o estado emocional do interrogado.

A expressão senegaleza, todavia, evoluiu com o passar dos anos, tornando-se: “Maa gni fii rek”. Na época em que o amigo em questão viveu no Senegal, a expressão habitual era aquela, com o uso do advérbio de lugar (aqui) no final da expressão. O que implica que: cabe ao outro saber como o sujeito está, descobrir como ele realmente se encontra. Tal como me foi dito em francês: “À toi de voir, comme je suis” (a você de ver como eu estou). Com o acréscimo do novo vocábulo, uma nova perspectiva se associa àquela inicialmente conhecida pelo meu amigo. A expressão Maa ngi fi rekk (je suis là seulement/eu estou aqui, somente). O uso do advérbio “seulement” nos revela outra faceta da presença do corpo, do indivíduo em face do seu interloctor. Para Carlos Barbosa, o acréscimo do advérbio de estado “seulement” revela que o sujeito que é interpelado quer dizer mais do que o fato de ele estar ali presente. Ele evidencia a natureza do que representa o ser humano, daquilo que ele é capaz de ser, de parecer, o que o corpo pode revelar de sofrimento e/ou esperança. O corpo é, pois, revelador das escolhas que o indivíduo fez ou deixou de fazer, da maneira como ele vive, reage, do modo como ele se posiciona diante do outro, do mundo. O corpo é capaz de dizer mais do que as palavras poderiam descrever.

Ao pensar no meu amigo Carlos, lembrei do que ele me disse (em discussão telefônica) ao falar das dificuldades que ele presenciou no Senegal, da falta de respeito da nova geração para com o meio ambiente, para com o outro. Que, como em todas as sociedades capitalistas, as pessoas consomem mais e por isso prestam menos atenção ao indivíduo que se encontra ao seu lado. Terminou dizendo: “A vida no Senegal tornou-se muito difícil, há muito individualismo, as preocupações cotidianas fazem com que as pessoas se esqueçam da importância do corpo”9 9 “La vie au Sénégal devient très difficile, il y a beaucoup d’individualisme, leurs préoccupations quotidiennes font que les gens oublient leurs corps.” . O corpo é, antes de mais nada, uma coerência coletiva; essa metáfora do “esquecer seu corpo” alude à sensibilidade de ir em direção do outro. Dessa percepção de descobrir de que matéria viva é feita esse outro em face de você. Temos cada vez menos tempo para ver os outros, perdendo a sensibilidade de acolher antes de recusar, de selecionar antes de descobrir.

De modo geral, a comunidade nosdestina apresenta uma maneira de ser e um funcionamento distintos daqueles dos países europeus, que comumente concebem os relacionamentos de modo mais individuais, mais distanciados. Muitas vezes, o valor do indivíduo restringe-se a seu status quo. Em parte, essa concepção está associada à ferocidade do capitalismo neoliberal mundial, que antes de tudo exclui, reorienta, massifica tudo e todos à nossa volta. Em consequência, tornamo-nos presas facilmente manipuláveis pela confusão recriada em torno de nós. Se essa experiência é real no mundo material, ela é perceptível igualmente no universo das relações e posições para e com o outro: em vez de conquistar, seduzir - aprivoiser - tão bem expresso na língua francesa, reapropriar-se.

No Nordeste, é a presença do corpo social, histórico e cultural - esse encontro e relação com o outro - que fundamenta as bases do nosso saber comunitário, da nossa relação com o mundo.

O meu trabalho com José Alves pode ser um exemplo dessa dinâmica construída, reinventada, transformada continuamente sob a égide da empatia, simpatia nas relações interpessoais que construímos entre as duas famílias. É através desse funcionamento, e essencialmente dele, que construímos nossos encontros e mantivemos uma base de diálogo uns com os outros. Há dez anos, desde o meu primeiro encontro com o poeta, apesar da distância geográfica que nos separa entre a França e o Brasil, conseguimos estabelecer e manter aceso um diálogo feito de afeição, amizade e respeito mútuo. Através dessa empatia, fomos capazes de superar as dificuldades e as incompreensões geradas pelo tempo, espaço e ritmos de vida totalmente opostos e susceptíveis de causar constrangimentos pela ausência do contato e da presença física. Ademais, a minha pesquisa de campo com o poeta se realizou num intervalo de dois anos inicialmente entre cada encontro, ou seja, de 1998 a 2002, sendo a última realizada excepcionalmente em um intervalo de quatro anos, em 2006. Quer dizer, entre as três primeiras experiências de pesquisa de campo e na última, todas mantiveram intervalos significantemente longos. Esse fato nem sempre me favoreceu. O espaçamento de tempo sem ver o poeta, sem ouvi-lo nem discutir com ele, sem interagir face à face, tornou-se, muitas vezes, um empecilho para o desenvolvimento do trabalho científico e, sobretudo, para a perenização da confiança no investigador, no tempo dedicado a ele e na expectativa em receber o resultado final.

O meu retorno à Campina Grande, em novembro de 2006, permitiu-me usufruir do espaço de observação, de vivência e de performance do poeta. Eu me tornei a testemunha de vista do fazer poético de Alves Sobrinho. O termo em questão associa-se à importância da imagem, que utilizamos comumente para designar a “testemunha de vista“. Não necessariamente aquela que vê com os olhos, mas a que participa, com o grau de todos os seus sentidos reunidos: ver, ouvir, realizar com e para, estar em um tempo e um espaço comuns. Desse modo, ela é aceita, participa, se reconhece e é reconhecida pelo meio que a acolhe.

Do latim spectatore, o termo designa: que, ou quem assiste a um espetáculo, auditório, que ou o que observa ou vê qualquer ato. Daí a importância dada ao corpo presente e/ou “testemunha de vista” nas tradições de minha comunidade. Só é capaz de testemunhar um acontecido, um instante, uma emoção, aquele que viu e, por extensão, ouviu em algum momento o testemunho de quem, antes dele, viu, ouviu, viveu e, em seguida, passou adiante.

Com efeito, essa consciência da importância desse corpo-presente do pesquisador foi-me essencial para um amadurecimento não só do meu corpus de tese, mas sobretudo do questionamento da minha postura de pesquisadora, ainda preocupada em preencher dados, em detrimento do ritmo e do tempo do indivíduo investigado. Em alguns momentos da observação do fazer poético cotidiano de José Alves Sobrinho, eu solicitava a autorização do poeta para gravar, anotar muito do que me foi partilhado oralmente, repetindo a mecânica dos encontros precedentes com o poeta, quando eu tinha medo de esquecer dados importantes e a minha impaciência perturbava as relações de confiança e respeito para com ele. Vale salientar, no entanto, que essa postura nem sempre foi sistemática, muito do que eu ouvia permanecia em memória. A emoção me guiava, deixando-me confiante na cadência rítmica, tão espontânea e própria da memória de cada um de nós, quando exercitada. Assim, nos momentos de pausa para as refeições e/ou cestas da casa, eu me debruçava sobre as minhas recordações cotidianas e as transcrevia.

No universo das tradições orais é imprescindível manter uma coerência no tipo de relação que devemos instaurar para com o nosso entrevistado e/ou interlocutor. A capacidade de escutar, de se pôr na posição do outro, de se mostrar atento, de dar o tempo que for necessário para compreender o meio e o indivíduo investigado é cada vez mais difícil. Porque não fomos sensibilizados em nossa formação acadêmicacientífica a ver o outro diante de nós como um igual e sim como um objeto, ao qual devemos “dissecar” através da investigação e chegarmos às respostas preestabelecidas das questões levantadas no início da pesquisa. Paradoxalmente, somos guiados pela ideia de que, quanto mais distantes formos do objeto, mais objetivos e científicos nos tornamos aos olhos da academia. As razões que nos levam para a pesquisa de campo não estão fundamentadas no respeito ao outro, enquanto indíviduo, e sim no instrumento-objeto que ele constitui para o nosso foco de pesquisa. Esse outro é, comumente, o caminho que eu, enquanto pesquisador, vou trilhar para refletir sobre pressupostos que eu tento confirmar em detrimento da realidade do meu investigado. Nesse processo de observação, nunca saimos isentos da experiência. Uma pesquisa etnográfica é por si só um doar-se mutuamente. Mesmo se nosso comportamento estiver contaminado por uma postura escriptocêntrica, a qualidade da pesquisa de campo será decisiva para a qualidade dos resultados.

A postura do pesquisador de hoje está ainda atrelada às verdades herdadas em sua formação em ciências humanas, na incapacidade de assumir uma postura humilde de quem precisa aprender, em pé de igualdade com o sujeito de pesquisa. A postura acadêmica ensina e incita os seus estudantes a se prevalecer do seu conhecimento acadêmico para se impor. Portanto, essa capacidade de se posicionar em segundo plano mostrou-se eficaz, no sentido de mudarmos alguns paradigmas tão enraizados em nós. A geração de pesquisadores de hoje ainda traz consigo as amarras de uma atitude arrogante e vaidosa daqueles pesquisadores de gerações precedentes, ou seja, que iam para o campo de pesquisa presos à pressupostos escriptocêntricos, capazes de esmagar os seus interlocutores com perguntas direcionadas e tendenciosas, no intuito de esclarecer seus próprios posicionamentos, como José Alves descreveu no poema dedicado à postura dos pesquisadores ao longo de sua carreira:

E tem gente que chega
Pra um problema resolver
Perguntando muita coisa,
Que eu nem posso compreender
Pois já pergunta insinuando
O que é que quer saber

A minha experiência com José é muito reveladora das influências adquiridas na minha formação acadêmico-científica e aceitas por muito tempo como referencial, em detrimento da consciência de quem eu sou, de onde eu venho, além do conhecimento, da vivência e da sensibilidade partilhadas nesse meio. Vivendo entre dois mundos, como o poeta José Alves Sobrinho, e em permanente conflito pessoal, também como ele, eu me confrontei regularmente com as dificuldades no posicionamento a ser tomado nesse entrecruzamento da oralidade e da escrita. Como transitar entre as riquezas advindas da experiência de “dentro” e os limites dos conhecimentos de “fora”? Como aceitar como normal a ideia tão longamente veiculada de que o objeto de pesquisa é feito para ser observado, sem se implicar, sem dar de si nas relações interpessoais no âmbito da pesquisa de campo?

Junto do poeta José Alves Sobrinho, eu percebi as mudanças na minha maneira de funcionar e nas dificuldades em manter um diálogo entre o espaço privado familiar, feito de empatia, próximo da oralidade, e o espaço público, objetivo, distanciado, circunscrito do mundo da escrita.

Quando eu me posicionava de outra maneira, me vinha sempre uma observação em forma de sentença, Ei-la: Joseilda, você pode escrever depois? Preste atenção, minha filha! A “recomendação” do poeta parecia-me dura demais; contudo, de uma extrema coerência e perspicácia, sem mencionar o aprendizado diante de algumas constatações.

Como eu poderia seguir o testemunho do poeta se a preocupação maior era a de anotar tudo, sem perder nenhuma vírgula? E o respeito para com o homem? Minha atitude não era simplesmente aquela do pesquisador científico tradicional, que delimita o seu objeto de pesquisa em detrimento do indivíduo diante dele? A preocupação não seria meramente preencher as lacunas do meu corpus?

Todas essas questões me atormentaram por alguns anos. Ao cabo de minha segunda viagem de pesquisa de campo ao Brasil, em 2000, percebi e fiz as pazes comigo mesma, convicta de que as informações recebidas ao longo desses anos de pesquisa com o poeta vinham enraizadas numa memória oral fluida, de testemunho vivo, numa partilha de confiança e respeito. Nessa perspectiva, como estabelecer um verdadeiro espaço de testemunho, sem que o entrevistador faça ele mesmo o esforço de acompanhar, registrar no seu imaginário e trazê-lo de volta em forma de testemunho? Essa relação impunha-se a mim como condição sine qua non para a manutenção de um equilíbrio entre entrevistado e entrevistador. Esse equilíbrio encontrava-se exatamente no respeito pelo indivíduo, pela generosidade que ele foi capaz de revelar ao abrir as portas de sua casa, de sua família, de sua vida, dando de si toda uma energia e um tempo que lhe são tão preciosos.

Na realidade, as discussões constantes e, sobretudo, a partilha de conhecimentos com Zé Alves permitiram-me descobrir diferentes facetas do universo das tradições orais que, até então, eu estudava numa perspectiva teórica. Imaginava-o, por vezes, enquanto indivíduo que fazia parte da mesma civilização, que partilhava sensações comuns e sensibilidades afins e, portanto, não se apercebia sempre de reações e funcionamentos tão previsíveis, tão naturais, pois, distantes, esses códigos socioculturais se perdiam, causando um desconhecimento da minha gente e do seu espaço.

Com efeito, ao me apropriar do espaço de trabalho do poeta como espectadora, atenta ao funcionamento, ao respeito e ao ritmo do homem, do poeta-pesquisador, eu me dei conta de coisas que desabrochavam em mim progressivamente. Como se a sensibilidade em mim, da filha da terra, renascesse, descobrindo códigos comuns que somente um indíviduo de dentro daquela cultura poderia partilhar, poderia testemunhar e, principalmente, poderia contar com maior fidelidade o seu funcionamento.

Entre o poeta e eu, como pesquisadora, instaurava-se mais do que um novo contato, estada científica, acumulação de dados, como acontecera no nosso primeiro encontro, em julho de 1998. Essa nova etapa consolidava uma relação de confiança, de amizade, de respeito pelo trabalho em comum, por objetivos afins, por testemunhos e imaginários partilhados, e sem dúvida, muita admiração. Todas esses pré-requisitos, gradualmente conquistados nesses últimos anos de pesquisa com José Alves Sobrinho, mostravam-se cada vez mais significativos e pertinentes. Por essa razão, o testemunho das entrevistas, do reencontro com o meu pseudo “objeto de trabalho”, revelava-se com mais clareza. Sem dúvida, a convivência com o poeta foi, para mim, um grande privilégio que poucos pesquisadores ainda podem usufruir no âmbito das pesquisas com as tradições orais.

Quanto ao processo de criação propriamente dito, eu pude acompanhar de perto a realização de alguns manuscritos; desde a sua performance oral, sua transcrição para o papel, as transformações do manuscrito inicial nas suas diferentes variantes, até a reprodução e correção na tipografia. Fui não somente espectadora, como interlocutora do poeta, trabalhavámos conjuntamente para “dar forma final” aos seus folhetos. Esse duplo estatuto concedeu-me algumas vantagens excepcionais: primeiro, porque eu era a primeira a observar o funcionamento do poeta em plena ação; segundo, eu pude ver e discutir com ele procedimentos curiosos para um escritor que insiste em assumir uma postura de escritor clássico.

Ao discutirmos esses pontos, eu lhe perguntei por que que é que sobre um mesmo texto havia duas ou, às vezes, três versões diferentes. O poeta respondeu-me:

O pensamento sai tão ligeiro, com tanta força que a mão não consegue alcançar. Quando eu estou inspirado é como a concentração, se alguém perguntar alguma coisa eu já não consigo recuperar. Sai ligeiro demais […].

[…] se Lourdes me perguntar uma coisa, já não volto, não me lembro mais onde eu tava […]

Para o poeta José Alves Sobrinho, a escrita, em vez de ajudar a registrar o pensamento, faz é atropelá-lo. Essa constatação é uma das primícias que revela a grande capacidade de criação poética oral através do improviso, mas sobretudo a incapacidade de recriar textualmente a mesma força da performance oral. Pois ao descrevê-la, o poeta seleciona, aprimora linguisticamente o seu canto inicial, deixando muitas vezes de lado as emoções das primeiras palavras jorradas espontaneamente.

A criação poética é algo que “se arranca da alma” por felicidade, ou seja, pela alegria em ser portador do gênio poético, pela honra de ter recebido esse dom divino, um dom “jorrado” dos céus, como chuva despejada em solo árido em tempo de seca, que, ao cair, tudo faz germinar, tal como nos revela José Alves nestes versos:

Obrigado pela palma/Que eu não sou merecedor/Sou apenas cantador/Que arranca versos da alma […]/Mas eu nunca soube cantar,/porque quem canta improviso não sabe./Tá fazendo o que não sabe./Sai por uma felicidade…

Ao me defrontar com os manuscritos que o poeta me entregava ao final de algumas horas em que ele se debruçava para “preencher” as folhas avulsas do seu papelzinho pautado, devidamente dobrado e calculado para conter cinco estrofes por folha, eu me entusiasmava com o que eu via no funcionamento do poeta-escritor. À medida que ele ia preenchendo os espaços em branco daquelas tiras de papel, tal como os folheteiros faziam, ele me fornecia a prova incontestável de sua transição da oralidade para a escrita. Na realidade, ele conserva reminiscências de sua vida nômade de cantador repentista.

Ao recolher as diferentes variantes dos manuscritos que ele me entregava ao passo que ia preenchendo e, sobretudo, ao observar sua dinâmica de trabalho, eu diria, quase que simultaneamente ao momento de inspiração do poeta, eu transcrevia no computador os versos de algumas folhas já preenchidas que eu recolhia naturalmente.

Através da empatia estabelecida entre nós, que nos permitia uma grande liberdade, inconscientemente eu dispus-me a trabalhar no ritmo do poeta: quanto mais ele preenchia, mais eu digitava. O verbo “preencher” aqui ganha toda a sua força, pois é exatamente essa a sensação deixada por José Alves Sobrinho quando ele “escreve” ou manuscreve. A sensação era exatamente o sentido daquilo que o verbo preencher denota: pôr, despejar. Após a perda da voz, José viu-se obrigado a adaptar-se, a acomodar-se ao mundo da escrita, que ele redescobria gradualmente com a avidez de quem deseja chegar ao nível dos melhores; ele tentava habilmente ascender ao mundo da tipografia e das novas tecnologias. No entanto, a adaptação que poderia afastá-lo de um fazer e ser no mundo da oralidade cria outras formas de comunicação enquanto poeta.

A partir daí, eu me dava conta de que algumas folhas se repetiam com relação a mesma numeração; e, portanto, nem sempre as estrofes correspondiam umas às outras, isto é, traziam em intervalos diferentes estrofes completamente diferentes. Para minha grande surpresa, esses manuscritos diziam mais do que meramente a repetição de estrofes já transcritas. Em nenhuma hipótese, poderíamos dizer que se tratava unicamente de cópias das estrofes que o poeta punha por escrito. Uma criação feita na hora, quer dizer, criada na cabeça e “despejada” no papel já prontinha, como explica Ria Lemaire (2007______ (2007a). “Reler os textos: resgatar as vozes?”. In: FUNK, G. (org.). Tradições populares Açorianas. Ponta Delgada/Açores: Ed. da Universidade.b10 10 Uma primeira versão, menos detalhada desse artigo, foi publicacada em português com o título “Reler os textos: resgatar as vozes”, em Gabriela Funk (org.), Estudos sobre o patrimônio oral, Câmara Municipal de Ponta Delgada, 2007, p. 171-97. ):

Se atualmente muitos poetas sabem ler e escrever, e até produzir seus folhetos em computador, enviá-los e vendê-los pela internet, a literatura de cordel deles não se tornou, por conta disso, uma literatura escrita no sentido moderno do termo. Eles continuam, na maioria das vezes, criando, compondo seus textos mentalmente e anotando por escrito uma vez terminado o processo da composição. Como disse Patativa do Assaré, considerado o maior poeta popular brasileiro do século XX: “Fazer na memória, reter e passar para o papel”.

A minha primeira ideia ao confrontar-me com manuscritos quase que similares era a de interrogá-lo sobre as variantes anteriores que eu acabara de ler e/ou digitar. Ao contrário do que eu imaginava, tratava-se, ali, de outras variantes da poesia improvisada pelo poeta. O que em um primeiro momento poderíamos atribuir a simples cópias torna-se cada vez mais evidente tratar-se de variantes de um texto que procura uma voz e um ritmo sentidos e que o resultado por escrito nem sempre satisfaz ao poeta. Como José Alves Sobrinho sempre reiterou, o pensamento saía tão rápido que era descrevê-lo por escrito, ele penava para acompanhar o raciocínio. Apesar de o papel da escrita absorver completamente a atividade poética e intelectual de José Alves Sobrinho, é graças à sua dinâmica de criação oral, segundo ele, que se mantém presente a sua arte maior. Poderíamos falar de um mecanismo inconsciente através do qual a voz criadora, latente no poeta, tenta recriar momentos da performance do cantador diante do seu público, e que a escrita não conseguiu completamente silenciar.

Essa constatação é uma das primícias que revela a grande capacidade de criação poética oral através do improviso, mas sobretudo a incapacidade de recriar textualmente a mesma força da performance oral. Pois, ao descrevê-la, o poeta seleciona, aprimora linguisticamente o seu canto inicial, deixando muitas vezes de lado as emoções das primeiras palavras jorradas espontaneamente.

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  • ______ (s.d.). “Entre oralidade e escrita: as verdades da verdade”. In: SARAIVA, Arnaldo (org.). Actas do congresso Literaturas marginais. Porto: Ed. da Universidade do Porto.
  • LIMA, Rossini Tavares de (1955). Pesquisa de folclore. Comissão Nacional de Folclore.
  • ______ (1972). Abecê do folclore. 5. ed. São Paulo: Ricordi.
  • MCLUHAN, Marshall (1977a). La galaxie Gutenberg 1: la genèse de l’homme typographique. Trad. Jean Paré. Paris: Gallimard.
  • ______ (1977b). La galaxie Gutenberg 2: la genèse de l’homme typographique. Trad. Jean Paré. Paris: Gallimard.
  • ONG, Walter (1998). Oralidade e cultura escrita: a tecnologia da palavra. Trad. Enid Abreu Dobranszky. Campinas: Papirus.
  • SOBRINHO, José Alves (1975). Sabedoria de Caboclo. Campina Grande: Tipografia Bahiana.
  • ______ (1982). Glossário da poesia popular. Campina Grande: Editel/UFPB.
  • TEJO, Orlando (1974). Carta-prefacio de OrlandoTejo para o livro de José Alves Sobrinho, Sabedoria de caboco, como figura na bibliografia final do artigo, com data de aparição em agosto de 1975. Entretanto aqui está datado de 1974, porque esta é a data oficial da carta de Orlando Tejo a José Alves.
  • 1
    Improvisação realizada no nível da provocação através dos versos acima descritos por José Alves Sobrinho, aos 13 anos de idade, em resposta a um cantador repentista que se vangloriava de seu talento poético na tentativa de intimidar o adversário.
  • 2
    Ver, a esse respeito, na tese de Joseilda de Sousa Diniz, intitulada José Alves Sobrinho Un poète entre deux mondes, defendida em dezembro de 2009 na Universidade de Poitiers (França), o capítulo IV: “L’après-trauma: réinventer la vie et le poète”, p. 204-23.
  • 3
    A convite de José Alves Sobrinho, Orlando Tejo prefaciou o primeiro livro do poeta, Sabedoria de caboclo.
  • 4
    Pesquisa de campo realizada em novembro e dezembro de 2006 em Campina Grande, na Paraíba, graças à Bourse à la mobilité internationale, do Ministère de la Recherche (França).
  • 5
    Essa ênfase em “apesar de mim mesma” significa a luta consciente entre a pesquisadora que está ali para coletar e confirmar dados e a filha da terra, abrindo espaços para ouvir e aprender com o poeta, livre dos prejulgamentos acadêmicos e científicos.
  • 6
    Entrevista. S.f. Encontro combinado, conferência de duas ou mais pessoas, em lugar combinado. Prestação de informações ou de opiniões a um jornalista, feita oralmente para posterior publicação.
  • 7
    O amigo em questão é de origem cabo-verdiana, mas nasceu e cresceu no Senegal. Daí o fértil imaginário estar ligado essencialmente a essas origens.
  • 8
    No Senegal, a língua oficial é o francês, compreendido por uma grande parte da população. Todavia, existem seis línguas nacionais (wolof , a mais utilizada, serene, diola, puular, soninké, mandingue) e muito outros dialetos.
  • 9
    “La vie au Sénégal devient très difficile, il y a beaucoup d’individualisme, leurs préoccupations quotidiennes font que les gens oublient leurs corps.”
  • 10
    Uma primeira versão, menos detalhada desse artigo, foi publicacada em português com o título “Reler os textos: resgatar as vozes”, em Gabriela Funk (org.), Estudos sobre o patrimônio oral, Câmara Municipal de Ponta Delgada, 2007, p. 171-97.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    24 Out 2019
  • Data do Fascículo
    Jan-Jun 2010

Histórico

  • Recebido
    Abr 2010
  • Aceito
    Maio 2010
Grupo de Estudos em Literatura Brasileira Contemporânea, Programa de Pós-Graduação em Literatura da Universidade de Brasília (UnB) Programa de Pós-Graduação em Literatura, Departamento de Teoria Literária e Literaturas, Universidade de Brasília , ICC Sul, Ala B, Sobreloja, sala B1-8, Campus Universitário Darcy Ribeiro , CEP 70910-900 – Brasília/DF – Brasil, Tel.: 55 61 3107-7213 - Brasília - DF - Brazil
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