Open-access Editorial

Abrem este número de Educação e Pesquisa cinco artigos de autores brasileiros e argentinos sobre o ensino privado e suas tensas relações com o ensino público nos dois países. Esses textos resultam de um convênio entre Brasil e Argentina com vistas ao projeto de pesquisa Estudios sobre la configuración de la educación pública y privada en Argentina y Brasil, coordenado por Sandra Ziegler e desenvolvido em colaboração entre o Programa Educación, Conocimiento y Sociedad da FLACSO Argentina, o Departamento de Ciencias de la Educación de la Universidad Nacional de Córdoba e o Programa de Pós-Graduação em Estudos Culturais da EACH/USP. Os artigos aqui reunidos sob a coordenação de Graziela Serroni Perosa representam parte dos debates travados em duas jornadas internacionais de estudo, que reuniram os pesquisadores envolvidos. Apesar da grande importância do tema, o ensino privado é pouco estudado pela sociologia da educação em nossos países e os textos aqui apresentados significam uma contribuição decisiva para a compreensão de sua dinâmica, sua inserção no espaço urbano e no tecido social, assim como sua segmentação interna e seu papel na construção e manutenção das desigualdades sociais.

O artigo “A educação privada na Argentina e no Brasil”, de Ana Maria F. Almeida, Manuel Alejandro Giovine, Maria Teresa G. Alves e Sandra Ziegler, percorre – num amplo painel – a organização dos sistede ensino em ambos os países, desde o século XIX. E mostra como sua expansão se articula a processos de diferenciação da oferta escolar que contribuem para a produção e reprodução das desigualdades educacionais. Embora com temporalidades diversas em cada país, tanto no Brasil quanto na Argentina estes processos de segmentação vêm se apoiando na clivagem entre educação pública e privada.

Em seguida, Sebastián Fuentes analisa as escolhas universitárias de jovens dos setores médio-altos e altos de Buenos Aires, articulando segregação urbana e segregação educativa. Seu texto “Elegir la universidad privada en Buenos Aires: espacialización de la elección en contextos de diversificación” traz uma abordagem inovadora no âmbito da pesquisa socioantropológica sobre o ensino superior, a qual lhe permite indicar os sentidos e as relações de poder implicados nos processos de privatização da educação.

As razões que levam adultos responsáveis por crianças a escolherem determinados grupos de escolas privadas são o foco de “La educación privada y las experiencias formativas de la clase alta en la Argentina”. A autora, Victoria Gessaghi, indaga pelos modos que assumiu historicamente o vínculo entre a classe alta argentina e um circuito de escolas católicas que não se destacam por um alto nível acadêmico, mas pela garantia de uma sociabilidade entre pares restrita a esses setores privilegiados.

Um outro segmento das escolas privadas é o objeto dos dois artigos que completam essa seção, ambos focados no Brasil. “A opção da escola privada em famílias dos grupos populares”, de Graziela Serroni Perosa e Adriana Santiago Rosa Dantas, estuda a chegada de escolas particulares em um distrito da zona leste de São Paulo. Atentas às dimensões espaciais da segregação escolar e social, as autoras revelam que, para além das prestigiadas escolas privadas de bairros ricos da capital paulista, conhecidas por sua seletividade, existe uma miríade de pequenas escolas privadas nos bairros menos afluentes, instituições voltadas ao atendimento das frações superiores dos grupos populares.

Finalmente, Ana Rita Siqueira e Maria Alice de Lima Gomes Nogueira mostram como a recente melhoria das condições econômicas de uma parcela das classes populares brasileiras repercutiu na ampliação de matrículas em escolas particulares, fenômeno que elas estudam na cidade de Contagem, Minas Gerais. No artigo “Focalizando um segmento específico da rede privada de ensino: escolas particulares de baixo custo”, o centro da análise são duas escolas que cobram mensalidades de menor valor, sendo que o objetivo das autoras foi contribuir para o conhecimento das características desse segmento da rede particular de ensino.

Pode-se dizer que os demais artigos que completam este número de Educação e Pesquisa refletem a vitalidade e diversificação da pesquisa educacional produzida em língua portuguesa e castelhana. Além da valiosa contribuição de Alain Coulon, da França, publicamos nove textos escritos por autores(as) de diferentes estados brasileiros e três artigos vindos da Espanha, Colômbia e Argentina. A diversidade de suas temáticas, abordagens e referenciais expressa bem a linha editorial que norteia o trabalho de Educação e Pesquisa, aberta a toda contribuição relevante ao conhecimento e à pesquisa sobre educação, independentemente de seu posicionamento teórico-metodológico.

Dois desses estudos tratam de questões filosóficas: “Os ideais da formação humanista e o sentido da experiência escolar” e “A importância da discussão sobre a noção de sujeito: Foucault, Sartre, Merleau-Ponty”. No primeiro, José Sérgio Fonseca de Carvalho parte de certa percepção – bastante difundida – de que a educação escolar vive uma crise profunda no mundo contemporâneo. O autor indica o esvanecimento do sentido político e existencial da escola como uma dimensão decisiva e nem sempre percebida dessa crise, buscando então retomar, com Arendt e Koselleck, a experiência escolar como iniciação dos mais novos em heranças simbólicas capazes de dar inteligibilidade à experiência humana e durabilidade ao mundo comum.

Já Reinaldo Furlan, no artigo “A importância da discussão sobre a noção de sujeito: Foucault, Sartre, Merleau-Ponty”, destaca a centralidade para o campo educacional da discussão sobre a noção de sujeito. O autor a coloca sempre ao lado da noção de atividade, com o objetivo de introduzir variações na ideia de subjetivação, inserida num quadro amplo e intrincado, no qual a atividade do sujeito é inseparável de sua passividade e de suas relações com os outros.

Na sequência, Juvenal Zanchetta Junior, autor do artigo “O difícil diálogo entre escola e mídia”, reflete sobre o distanciamento entre essas duas instâncias, observando como a instituição escolar lidou com veículos e textos midiáticos no percurso do ensino secundário desde a década de 1930 até os dias atuais.

Por sua vez, Daniel Ríos Muñoz e David Herrera Araya, em um ensaio polêmico intitulado “Los desafíos de la evaluación por competencias en el ámbito educativo”, defendem o papel formativo da avaliação por competências, que consideram uma prática capaz de influenciar positivamente tanto as aprendizagens quanto as práticas pedagógicas.

Uma investigação documental sustenta as reflexões de Joana Brás Varanda Marques e Denise de Freitas sobre “Fatores de caracterização da educação não formal”. A partir de revisão da literatura, as autoras mostram que a educação não formal é um setor do conhecimento em que os termos empregados são polissêmicos e comportam diferentes definições. Apesar disso, elas encontraram um núcleo adotado com mais frequência, que utiliza fatores associados principalmente a características estruturais, como localização, grau de planejamento ou duração da aprendizagem.

O artigo “Diploma para quê? A educação superior e os praças da Polícia Militar de Minas Gerais”, de Vicente Riccio, trata de tema original e pouco estudado: o papel da formação em nível superior entre policiais de baixa patente. A partir de entrevistas, o autor indica que os “praças” consideram que essa formação lhes confere maior capacidade de discernimento, mas também reforça os conflitos com o oficialato. Além disso, não percebendo valorização do investimento nos estudos, esses policiais tendem a abandonar a carreira.

Apresenta igualmente uma contribuição original e muito atual o estudo de Pablo Ángel Meira Cartea, María Barba Núñez e Juan José Lorenzo Castiñeiras, “Crisis económica y profesionalización en el campo de la educación ambiental: comparativa 2007-2013 en Galicia”. Os autores buscam analisar como a crise social e econômica vivida pela Espanha incide sobre a educação ambiental e suas conclusões certamente têm muito a dizer aos brasileiros: eles percebem um desmantelamento do campo da educação ambiental, no contexto de degradação de um estado do bem estar que era incipiente, com o enfraquecimento sistemático dos serviços e recursos públicos.

Já o artigo “O currículo de história na reforma da Secretaria Municipal de Educação do Rio de Janeiro” inova na metodologia. As autoras Caroline da Luz Moraes e Luisa Kaufman Spindola comparam duas pesquisas sobre as mudanças realizadas no currículo de história da rede municipal do Rio de Janeiro, entre 2009 e 2013, a primeira focada nos formuladores do novo material pedagógico e a segunda nos professores que atuavam em sala de aula. Essa comparação lhes permite evidenciar de forma nítida o ciclo dessa política de reforma curricular que, ao circular pelos contextos estudados, não foi simplesmente recebida e incorporada, mas modificada pelos sujeitos envolvidos, que produziram sentidos diferentes.

As vivências em atividades de pesquisa, ensino e extensão do Projeto Escrileituras: um modo de ler-escrever em meio à vida e a produção de dados realizada por meio de instrumentos elaborados especificamente para dar a ler sua concretude são analisadas em “Processos tradutórios na pesquisa em educação: o Projeto Escrileituras”, de Máximo Daniel Lamela Adó, Sandra Mara Corazza e Maria Idalina Krause de Campos.

Noutra direção, as opiniões de professores sobre o uso de computadores nas provas de ingresso ao ensino superior na Espanha são o foco do artigo “Actitudes docentes hacia los ejercicios de la Prueba de Acceso a la Universidad informatizada”, de autoria de Ana Sevilla-Pavón, Ana Gimeno-Sanz e Jesús García-Laborda.

Vem da Colômbia outra reflexão sobre as ideias de professores, no artigo “Percepción y conocimiento de los docentes universitarios sobre los procesos investigativos universitarios: estudio de caso”. Os autores, Alejandro Valencia-Arias, Daniela Morales-Zapata, Laura Vanegas-Rendón e Martha Luz Benjumea-Arias, investigaram as percepções de docentes sobre a produção de conhecimento na universidade.

Ainda no campo da construção de conhecimento a partir das universidades, Amélia Artes e Jesús Mena-Chalco apresentam minucioso levantamento da produção sobre relações raciais no Brasil. No artigo “Expansão da temática relações raciais no banco de dados de teses e dissertações da Capes”, analisam a evolução dos estudos sobre relações raciais considerando como fonte de dados os trabalhos de mestrado e doutorado registrados no acervo de produções acadêmicas de titulação da Capes nos últimos 25 anos, e apontam um crescente interesse sobre o assunto.

Encerra este número o artigo “O ofício de estudante: a entrada na vida universitária” de Alain Coulon, professor na Universidade Paris 8, seguido de entrevista com o autor. Herdeiro da rica tradição sociológica francesa, Alain Coulon tem seu nome associado ao desenvolvimento da etnometodologia e seu uso na pesquisa educacional, assim como ao tema da universidade e seus estudantes. Interessado na compreensão do processo de abertura vivido pelo ensino superior francês a partir dos anos 1980, Coulon se dedicou à investigação sobre a experiência acadêmica do recente e heterogêneo público que a ela passa a ter acesso, inovando metodologias e categorias de análise. Não por acaso, o contexto atual de expansão de vagas e de políticas afirmativas no ensino superior brasileiro renovou o interesse por sua obra, aqui representada por um artigo inédito, no qual ele traça paralelos entre a expansão do acesso na França e no Brasil e comenta os desafios de contribuir para que os novos universitários aprendam o ofício de estudante. Na entrevista, concedida a Marilia Pontes Sposito, Belmira Oliveira Bueno e Ana Maria Freitas Teixeira, o leitor tem a oportunidade de entrar em contato com a rica trajetória de docência e pesquisa de Coulon e com o conjunto das reflexões que ele desenvolveu em sua extensa obra.

Cabe ainda destacar que seis dos textos que compõem esta edição estão disponíveis também em inglês e um em francês. Com isso, esperamos contribuir para que o leitor estrangeiro possa cada vez mais conhecer a qualidade da produção acadêmica do campo educacional latino-americano.

Marília Pinto de Carvalho

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    Oct-Dec 2017
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