Open-access O ensino a distância e a falência da educação

Distance learning and the demise of education

Resumos

A partir da análise do discurso oficial em defesa do ensino superior a distância, identificam-se os silêncios que o estruturam. De um lado, esse discurso ignora a dimensão ideológica da ciência e da técnica; de outro, desconsidera a complexidade da relação pedagógica. A ausência de ambos os temas, tão fundamentais, faculta a defesa da aplicação de tecnologias de comunicação e de informação no processo educativo sem que sejam investigadas as consequências deletérias de tal procedimento sobre a formação do educando. O texto destaca a educação concebida como formação e a contrapõe à semi ou pseudoformação, nos termos de filósofos da Escola de Frankfurt. A partir de um exame da natureza das atividades previstas em cursos a distância, questiona-se a própria existência de um professor e de um aluno nessa modalidade de ensino, bem como de uma relação entre eles que garanta a formação ético-política de um educando atento às relações de poder presentes nas instituições sociais, no conhecimento científico e no exercício profissional. Tal estado de coisas demanda pesquisa sobre os resultados alcançados pelos cursos a distância, sobretudo por aqueles que se destinam à formação de professores.

Ensino a distância; Universidade virtual; Política educacional; Relação professor-aluno


An analysis of the official discourse in defense of distance learning in higher education identifies the silences that structure it. On the one hand, such discourse ignores the ideological dimension of science and technique; on the other, it disregards the complexity of the pedagogical relation. The absence of such fundamental themes makes it possible to defend the application of communication and information technologies in the education process without investigating the deleterious consequences of such procedure upon the formation of those being educated. The present text emphasizes education as formation, and contrasts it with semi- or pseudo-formation as described by the philosophers of the Frankfurt School. Based on an examination of the nature of the activities included in distance courses, we question the very existence of a teacher and of a pupil under such modality of teaching, as well as of a relationship between them that would contribute to the ethical-political formation of a student aware of the power relations present in social institutions, in scientific knowledge and in professional practice. Such state of affairs demands research on the results achieved by distance courses, particularly by those that aim at the formation of teachers.

Distance learning; Virtual university; Education policy; Teacher-student relation


ARTIGO

O ensino a distância e a falência da educação

Distance learning and the demise of education

Maria Helena Souza Patto

Universidade de São Paulo, São Paulo, SP, Brasil

RESUMO

A partir da análise do discurso oficial em defesa do ensino superior a distância, identificam-se os silêncios que o estruturam. De um lado, esse discurso ignora a dimensão ideológica da ciência e da técnica; de outro, desconsidera a complexidade da relação pedagógica. A ausência de ambos os temas, tão fundamentais, faculta a defesa da aplicação de tecnologias de comunicação e de informação no processo educativo sem que sejam investigadas as consequências deletérias de tal procedimento sobre a formação do educando. O texto destaca a educação concebida como formação e a contrapõe à semi ou pseudoformação, nos termos de filósofos da Escola de Frankfurt. A partir de um exame da natureza das atividades previstas em cursos a distância, questiona-se a própria existência de um professor e de um aluno nessa modalidade de ensino, bem como de uma relação entre eles que garanta a formação ético-política de um educando atento às relações de poder presentes nas instituições sociais, no conhecimento científico e no exercício profissional. Tal estado de coisas demanda pesquisa sobre os resultados alcançados pelos cursos a distância, sobretudo por aqueles que se destinam à formação de professores.

Palavras-chave: Ensino a distância - Universidade virtual - Política educacional - Relação professor-aluno.

ABSTRACT

An analysis of the official discourse in defense of distance learning in higher education identifies the silences that structure it. On the one hand, such discourse ignores the ideological dimension of science and technique; on the other, it disregards the complexity of the pedagogical relation. The absence of such fundamental themes makes it possible to defend the application of communication and information technologies in the education process without investigating the deleterious consequences of such procedure upon the formation of those being educated. The present text emphasizes education as formation, and contrasts it with semi- or pseudo-formation as described by the philosophers of the Frankfurt School. Based on an examination of the nature of the activities included in distance courses, we question the very existence of a teacher and of a pupil under such modality of teaching, as well as of a relationship between them that would contribute to the ethical-political formation of a student aware of the power relations present in social institutions, in scientific knowledge and in professional practice. Such state of affairs demands research on the results achieved by distance courses, particularly by those that aim at the formation of teachers.

Keywords: Distance learning - Virtual university - Education policy - Teacher-student relation.

Uma crítica que ponha em discussão o não discutido e em formulação o não formulado [só é possível] quando o mundo social perde o caráter de fenômeno natural.

Pierre Bourdieu

Sobre o discurso oficial

A criação da Secretaria de Ensino Superior pelo Decreto no 51.461, de 1º de janeiro de 2007, foi uma das iniciativas mais polêmicas da política educacional do governo do Estado de São Paulo na gestão 2006-2010. Se o embate entre representantes e defensores do governo e parcelas dos três segmentos que compõem as três universidades estaduais paulistas não chegou à extinção da nova Secretaria, levou a uma sensível mudança de rumo na definição de seus objetivos, e o projeto de criação da Universidade Virtual no Estado de São Paulo ocupou o primeiro plano. No entanto, o ensino a distância (EaD) não foi recurso arbitrário tirado do bolso do colete, pois já vinha sendo planejado nos bastidores do governo e das universidades estaduais como resposta a três problemas: o cumprimento do artigo no 253 da Constituição do Estado de São Paulo, que prevê a organização do sistema de ensino superior estadual para a ampliação do número de vagas; a cobrança social de inclusão do contingente de egressos do sistema público de ensino médio nessas universidades; o compromisso histórico da Universidade de São Paulo, desde sua fundação, de formar docentes para o nível médio. Criado pelo Decreto no 53.536, de 9 de outubro de 2008, o objetivo do programa Universidade Virtual do Estado de São Paulo (Univesp) é formar recursos humanos, ampliar o acesso às três universidades estaduais e buscar formas alternativas de oferta de formação universitária compatíveis com o atual estágio tecnológico da revolução eletrônica. Para esse fim, as novas tecnologias de comunicação e informação aplicadas à educação são tomadas como instrumentos "capazes de atingir alunos que de outra forma não teriam possibilidade de acesso à formação superior" (SÃO PAULO, 2008).

O texto de apresentação do programa da Universidade Virtual é escrito em tom celebrativo. Exaltam-se a democratização do ensino pela expansão de vagas; a formação universitária de recursos humanos, sobretudo de professores para a rede estadual de ensino fundamental e médio; as mudanças promissoras que a metodologia inovadora trará ao ensino tradicional; o uso intensivo, sem perda da qualidade do ensino, de tecnologias de informação e de comunicação; a aprendizagem eletrônica; a interação educativa virtual; a natureza semipresencial do programa; e a entrada do país no rol internacional das universidades virtuais.

Além dos professores, pretende-se atingir gradualmente "todo cidadão com anseio de dedicar-se aos estudos de nível superior" (SÃO PAULO, 2009, p. 14). Para isso, as atividades previstas dividem-se em três módulos: o primeiro abrange a formação de professores das redes pública e privada da educação básica; o segundo, a oferta de cursos de licenciatura em disciplinas que integram os currículos do ensino fundamental e médio; o terceiro, cursos de capacitação, extensão e pós-graduação a graduados em busca de educação continuada e aperfeiçoamento profissional. O "novo desafio" trazido por esse programa de "caráter inovador" é definido nos seguintes termos: que as universidades públicas paulistas "democratizem o acesso ao conhecimento" (SÃO PAULO, 2009, p. 77).

Longo espaço é dedicado à apresentação da Tidia-Ae (Tecnologia da Informação para o Desenvolvimento da Internet Avançada - Ambiente de aprendizagem eletrônica), escolhida como ambiente virtual de aprendizagem do programa Univesp, e das TICs (Tecnologias de Informação e Comunicação). A primeira é louvada porque

representa o Brasil na comunidade internacional de pesquisadores em aprendizagem eletrônica na condição de membro votante do IMS-Global Learning Consortium, uma iniciativa mundial de padronização em aprendizagem eletrônica, e no Framework Sakai. (SÃO PAULO, 2009, p. 17)

As TICs, porque revolucionaram a comunicação e possibilitaram a globalização. Mais da metade do livreto enaltece experiências internacionais e nacionais de educação a distância; as mudanças que a nova tecnologia introduziu no conceito de educação tradicional; a inclusão digital; e a possibilidade de criação de um ambiente análogo ao de uma escola por essa modalidade de ensino. As poucas passagens que se referem às atividades presenciais em polos de aprendizagem falam, na verdade, de atividades virtuais. Como afirmam os próprios autores do texto:

A virtualidade da Univesp é também, por paradoxal que seja a informação, o que lhe dá realidade, presença e necessidade no cenário da educação superior em São Paulo e no Brasil. (SÃO PAULO, 2009, p. 11)

Assim sendo, a menção aos aspectos presenciais mais parece estratégia de defesa contra eventuais críticas à virtualidade do programa.

As aulas virtuais, de 15 a 20 minutos de duração, transmitidas ao vivo pela Univesp-TV, divulgam "material didático televisivo" cujo conteúdo resulta da "transformação de conteúdos pedagógicos em produtos audiovisuais", o que não impede a afirmação de seu "caráter eminentemente pedagógico" (SÃO PAULO, 2009, p. 17-18). Aos tutores, o programa não reserva uma função docente, mas uma função mediadora, supervisora, animadora, de "diálogo permanente on-line com o aluno e com grupos de trabalho" e produtora de conteúdos que serão compartilhados em ambiente web. Nos polos de apoio, também chamados salas de aula, os tutores propõem atividades diretamente relacionadas às aulas virtuais, nas quais os alunos podem "encaminhar perguntas ao professor pela internet". A relação aluno-conteúdo também é essencialmente virtual, pois se dá principalmente "por meio do conjunto de atividades realizadas em ambiente virtual". A menção à relação aluno-aluno é feita de passagem: "a interação entre os alunos de um mesmo curso e de um mesmo grupo de trabalho" é garantida pelo "ambiente de aprendizagem Tidia-Ae" (SÃO PAULO, 2009, p. 21-23). O folheto nem sequer menciona situações genuínas de convívio institucional. A esse respeito, vale a leitura de uma análise do programa Universidade Aberta do Brasil, com foco na figura do tutor e do professor virtual para refletir sobre o ensino a distância como um ensino distante (ZUIN, 2006).

Debates em andamento vêm destacando não só imprecisões teórico-conceituais, abstrações e inversões ideológicas e equívocos de interpretação de dados estatísticos, mas também lacunas no discurso oficial sobre o EaD, entre as quais a omissão de fatos como: sua presença inexpressiva no cenário da educação superior da maioria dos países; o investimento, sobretudo pela Espanha, na produção e exportação de pacotes educacionais e de EaD; e a diferença marcante entre o Brasil e outros países quanto ao grau de mercantilização já existente na educação superior. Juntos, esses aspectos levam os críticos dessa modalidade de ensino a concluir que ela será um "filão comercial extremamente pernicioso que aprofundará, em curto espaço de tempo, essa mercantilização da educação" (ADUSP, 2005).

Para subsidiar o I Fórum de Debates sobre a EaD, realizado em 2009, a Associação de Docentes da Universidade de São Paulo (Adusp) formulou uma série de questões relativas à expansão do EaD, como a alegação oficial de inexistência de recursos para o ensino superior presencial, a generalização indevida do que seria solução para casos específicos e a continuidade da exclusão escolar sob o disfarce de inclusão (ADUSP, 2010). Nesse Fórum, o EaD foi defendido e criticado pelos integrantes das mesas. Defenderam-se, por exemplo, o estar junto virtual e o ensino virtual como únicas formas de sanar a falta de formação adequada de grande número de professores no país. Apresentaram-se críticas ao aligeiramento dos conteúdos, à fragmentação do processo de ensino que ele promove e à dualidade escolar imposta pelo crescimento vertiginoso de cursos a distância credenciados pelo MEC e vendidos por instituições privadas de ensino superior. Houve quem advertisse para a necessidade de contextualizar o EaD nas mudanças educacionais impostas por organismos internacionais e que transformaram a educação em mercadoria; houve menção à precariedade dessa modalidade de ensino não por eventual implementação descuidada, mas como resultado de características que lhe são inerentes (ADUSP, 2009a, 2009b, 2009c).

O ensino a distância na mídia

No registro do elogio puro e simples do progresso tecnológico, o EaD é enaltecido em textos de divulgação que dispensam comentários:

A EaD começou a avançar a passos largos no Brasil e já responde por expressivo número de cursos oferecidos. [...] as avaliações de provas e concursos demonstram que já se conta entre os melhores classificados a presença de candidatos que só fizeram cursos a distância. É a inevitabilidade da era do conhecimento. [...] Por semestre, acrescentam-se ao patrimônio científico da humanidade mais de 30 milhões de novos saberes, que as antigas lições escolares não têm como classificar, ordenar, sistematizar e distribuir aos alunos dos cursos tradicionais. Só a eletrônica, com seus veículos informativos [...] passará a dar conta desse recado, não mais via professor em classe, e sim via alunos pesquisadores em rede, o que deve inspirar as escolas a formarem, daqui para frente [sic], não repetidores de lições transmitidas por docentes, e sim navegadores da internet em busca do saber necessário ao interesse de cada um. (SOUZA, 2009, p. 66)

Em recente matéria de capa de uma revista semanal - Como tirar seu diploma pela internet (GUIMARÃES, 2010) -, o objetivo valorizado é a melhoria de vida pela empregabilidade.1 Segundo a reportagem,

[...] a febre [do EaD] começou com cursos técnicos e de especialização, fenômeno mundial turbinado pela valorização do ensino. Muita gente está em busca de conhecimento, porque sentiu que ele garante mais oportunidades. (GUIMARÃES, 2010)

Números costuram um texto entusiasmado que, sem qualquer vestígio de crítica, comemora a crescente multidão de adeptos no país. Consta também um retrato do aluno adequado aos cursos a distância: motivado a competir; disciplinado (capaz de evitar dispersão e de cumprir horários); organizado (apto a dividir o tempo entre o estudo e os horários de atividades on-line); e disposto a ler textos virtuais ou apostilados. O nível de conhecimento alcançado dependeria, portanto, do perfil do aluno. Os que carecem dessas características seriam aqueles que integram as fileiras dos que abandonam os cursos virtuais, evasão tomada como prova do alto nível de exigência e da qualidade do ensino a distância. O texto termina lamentando o preconceito contra os cursos a distância manifesto no fato de que algumas redes públicas de ensino ainda se recusam a contratar professores concursados que se formaram a distância.

Os silêncios do discurso oficial

O que mais impressiona na apresentação de um programa virtual de ensino superior que envolve as três universidades estaduais paulistas - consideradas, no texto oficial a respeito da Univesp, as três melhores do país - é a ausência, mesmo nas entrelinhas, de questões fundamentais que há muito são matéria de reflexão e pesquisa nessas instituições. Nos debates e nas publicações oficiais, os argumentos dos que defendem a universidade virtual não raro ficam no plano do senso comum ou, na melhor das hipóteses, da racionalidade instrumental. Como regra, nenhuma reflexão sobre história, sociedade e relações de poder; sobre a ciência e a técnica como ideologia; sobre a política educacional numa sociedade de classes; sobre a cultura e os meios de comunicação de massa nas sociedades administradas; sobre o conceito de formação educacional; sobre a relação professor-aluno - temas que não podem ser desconsiderados pelo Estado quando se trata de pensar a democratização do ensino e as possibilidades e os limites de sua realização.

A concepção de história que perpassa os argumentos em defesa do EaD é claramente evolucionista: tudo se passa como se o processo histórico fosse uma sucessão natural e linear de estágios sucessivos. Os que defendem sem nenhum questionamento o progresso tecnológico acreditam piamente que estamos no estágio científico da racionalidade humana, motivo pelo qual qualquer saber que não se atenha aos fatos é tido como filosofia vã adotada por retrógados que se opõem à marcha do progresso. De costas para o passado, reféns do presente e concebendo o futuro como um admirável mundo novo gerado pelo avanço da ciência e da técnica, os que exaltam, sem mais nada, "as novas tecnologias de comunicação e informação" (SÃO PAULO, 2008), "a metodologia inovadora" (SÃO PAULO, 2009) e suas "formas alternativas e adequadas ao atual estágio tecnológico" (SÃO PAULO, 2007) deixam na penumbra as relações de poder vigentes em sociedades marcadas por desigualdades sociais congênitas, bem como os mecanismos sociais - entre os quais a política educacional - que perpetuam esse estado de coisas por meio de reformas que em essência nada mudam.

Na defesa da Universidade Virtual, ouve-se com frequência que não estamos mais na era da revolução industrial moderna, mas na era da revolução eletrônica pós-moderna, afirmação que desconsidera a reflexão acadêmica que desvela não só os pontos cegos e os compromissos políticos inerentes ao conceito de pós-modernidade, mas também os equívocos que lastreiam o próprio conceito. Segundo essas análises, a atualidade não é uma nova realidade resultante de uma revolução econômica e social, pois inexistem transformações que justifiquem denominá-la pós-industrial, pós-capitalista ou pós-moderna; a chamada pós-modernidade não é senão a lógica cultural do capitalismo em uma etapa avançada - ou seja, a lógica da modernização capitalista, que tem como centro a fragmentação e a aceleração do tempo, matéria-prima da mais-valia (HARVEY, 2007). As aulas de curta duração da Universidade Virtual mimetizam a nova relação com o tempo louvada na contemporaneidade e inviabilizam a educação como formação da inteligência e da sensibilidade. Submetida à compressão do tempo, a educação se afasta da reflexão não por mero erro técnico, mas por meio da invasão das instituições de ensino pela lógica produtivista. Enquanto as teorias críticas da sociedade moderna desvelam os mecanismos de controle incrustados na racionalidade técnica, as que louvam o mundo atual resignam-se à fragmentação, aderem às aparências, recusam as ferramentas teóricas que permitem desvelar o que subjaz às superfícies. A perda da temporalidade implica a perda de profundidade e de visão de totalidade: Estamos na era da revolução eletrônica? Então, bem-vindos os recursos eletrônicos, dizem explícita ou implicitamente os adeptos do tecnicismo educacional, alheios à relação entre tecnologia e poder. Fixados nas aparências, nas superfícies, no imediato, os "pós-modernos" são reféns da experiência reduzida a "uma série de presentes puros não relacionados com o tempo" (HARVEY, 2007, p. 57).

Embora a evolução das ciências não possa ser analisada exclusivamente a partir dos movimentos sociais que as rodeiam, não se pode desconsiderar que o pensamento científico é influenciado por questões externas a seu campo específico, o que é tanto mais verdade quanto mais adentramos o campo das ciências sociais (HOBSBAWM, 2009). Atentas a essa relação, análises revelam a dimensão ideológica da ciência e da técnica; as exigências da indústria e da política como o principal motor da pesquisa científica, agora voltada para finalidades muito claras: a implementação de novas formas de aceleração e de barateamento do processo produtivo que resultaram em dispensa brutal do trabalho humano; o aperfeiçoamento da indústria bélica a serviço do imperialismo; o aprofundamento do controle social; a justificação da crescente desigualdade nacional e internacional; a formação da mentalidade requerida a cada novo ciclo do modo de produção em vigor (HABERMAS, 1980). Nesse cenário, "a maioria dos pensadores pós-modernos está fascinada pelas novas possibilidades de informação e de produção, de análise e de transferência do conhecimento" (HARVEY, 2007, p. 53), sem a devida atenção aos determinantes sociais estruturais das novas tecnologias de comunicação. Noutras palavras:

Hoje a dominação se perpetua e se estende não apenas através da tecnologia, mas como tecnologia, e esta garante a grande legitimação do crescente poder político que absorve todas as esferas da cultura. (MARCUSE, 1973, p. 154)

Como bem observa David Harvey (2007, p. 61-63), os produtores culturais - aí incluídas as equipes de produtores de tecnologias de informação para o desenvolvimento da internet avançada e dos ambientes de ensino eletrônico - "aprenderam a explorar e usar novas tecnologias, a mídia e, em última análise, as possibilidades multimídia", aproximando a cultura erudita da cultura popular não mais por meio da autoria intelectual, mas por intermédio de uma "massa cultural" - os milhões de pessoas que, nos meios de comunicação, na indústria de propaganda, nas universidades e editoras, transformam objetos de cultura em objetos de consumo. Entre essas ferramentas, não se pode omitir a TV como instrumento de massificação planetária. A TV é parte deste momento da modernidade: "as preocupações pós-modernas com a superfície, por exemplo, podem remontar ao formato necessário das imagens televisivas". Como meio cultural que apresenta a realidade como uma colagem de fenômenos nivelados em importância, simultâneos e num fluxo ininterrupto, ela está nas salas de estar do mundo, veiculando o tempo todo uma percepção da história como "uma reserva interminável de eventos iguais". A cultura de massa é

[...] um apego antes às superfícies do que às raízes, à colagem em vez do trabalho em profundidade, a imagens superpostas e não às superfícies trabalhadas, a um sentido de tempo e de espaço decaído em lugar do artefato cultural solidamente realizado. (HARVEY, 2007, p. 61-63)

É como peça da indústria cultural, cuja essência é a transformação da cultura em produto a ser consumido e logo descartado, que a educação formal televisiva torna-se mercadoria oferecida a alunos transformados em consumidores de produtos culturais que mimetizam a realidade e injetam-na como ficção e como função na sensibilidade, o que certamente gera efeitos na vida e na ação social.2 Quando veiculados pela mídia, esses produtos transformam-se numa modalidade específica de ficção: a virtualidade como simulação que pode ir além da simulação, chegando a "um estado de réplica tão próxima da perfeição que a diferença entre o original e a cópia é quase impossível de ser percebida" (HARVEY, 2007, p. 261). Se assim é,

[...] a Realidade Virtual simplesmente generaliza esse processo de oferecer um produto esvaziado de sua substância: oferece a própria realidade esvaziada de sua substância, do núcleo duro e resistente do real - assim como o café descafeinado tem o aroma e o gosto do café de verdade sem ser café de verdade, a Realidade Virtual é sentida como a realidade sem o ser. (ZIZEK, 2003, p. 25)3

Entre as considerações sobre as aulas de programas de ensino a distância, vejamos o que diz uma professora de um curso virtual de pedagogia na reportagem já mencionada: "é um desafio, eu falo para 700, 1.000 alunos, mas na minha frente só tem uma câmera". Para adaptar-se a essa situação, ela "fez oficinas para treinar voz e postura. Assistiu palestras com especialistas. Gravou horas e horas de aulas para se ver no vídeo e corrigir as falhas" (GUIMARÃES, 2010, p. 84). Numa foto ilustrativa da matéria, ela está num estúdio, diante de uma máquina, como uma apresentadora de TV. Valendo-nos da frase Isto não é um cachimbo, sob o desenho de um cachimbo numa tela célebre de Magritte, podemos afirmar três coisas: sobre o estúdio, Isto não é uma sala de aula; sobre a apresentadora do programa, Isto não é uma professora; sobre o que ela faz diante da câmera, Isto não é uma aula. Uma aula virtual é apenas simulacro de uma aula presencial.

***

Como seria, diante desse quadro, um projeto de educação para a emancipação? Para responder, é preciso começar pelo exame dos objetivos da educação numa sociedade regida pela racionalidade totalitária. A resposta a essa questão torna-se ainda mais urgente diante da conhecida imprecisão conceitual que marca os textos oficiais brasileiros sobre política educacional, nos quais educação, formação, ensino, instrução, treino e até mesmo reciclagem são frequentemente usados como equivalentes. Em 1923, no terreno minado da economia e da política alemãs e da ascensão do nazismo, um grupo de filósofos fundou, em Frankfurt, o Instituto de Pesquisas Sociais, dedicou-se ao estudo da relação entre autoritarismo e instituições educativas e fez uma pergunta fundamental: "por que a humanidade, em vez de entrar em um estado verdadeiramente humano, está se afundando em uma nova espécie de barbárie?" No centro das reflexões, a crítica do elogio cego da ciência e da técnica como fontes indiscutíveis de progresso, "último vestígio de inocência diante dos costumes e tendências do espírito da época" (HORKHEIMER; ADORNO, 1985, p. 11).

A própria história desmentiu a crença iluminista de que o desenvolvimento científico e técnico tiraria o homem das trevas da ignorância e criaria as condições para uma vida individual e coletiva, livre e feliz. Nessa moldura, a inovação produzida por "dóceis especialistas" só faz reforçar "o poder da ordem existente que ela gostaria de romper" (HORKHEIMER; ADORNO, 1985, p. 11-15). Ao investir de poder o aparato técnico e os que o controlam, o modo de produção vigente anula o indivíduo que, integrado à massa, limita-se a consumir os bens a ele oferecidos em quantidade cada vez maior, aí incluída a produção da indústria cultural, que põe no mercado uma enxurrada de informações e diversões que ao mesmo tempo despertam e idiotizam as pessoas. Esclarecida nesses moldes, a civilização retorna à barbárie. É assim que "a terra totalmente esclarecida resplandece sob o signo de uma calamidade triunfal", que tem como paradigma o holocausto (HORKHEIMER; ADORNO, 1985, p. 19).

Diante desse quadro, uma pergunta: educação para quê? Na moldura da barbárie atual, de dimensão planetária, só existe uma resposta: "Qualquer debate acerca das metas educacionais carece de significado e importância frente a essa meta: que Auschwitz não se repita" (ADORNO, 1995, p. 119). Reflexão ausente nos lugares em que se define uma política educacional que se limita, como regra, à "preparação para o mercado de trabalho", o que na maioria dos casos não passa de fornecimento de um diploma a jovens que recebem uma educação escolar precária desde a escola fundamental.

Baseada nos princípios da rapidez e da eficiência, a escola pautada pela pedagogia moderna faz parte das instituições sociais que produzem o homem unidimensional - o homem que perdeu a autonomia necessária à crítica do existente ao internalizar a lógica objetiva nas instâncias mais profundas de sua subjetividade. Trata-se de uma concepção taylorista de educação, na qual caberia à escola, à imagem e semelhança das máquinas na produção industrial, processar a matéria-prima de modo a homogeneizar o produto final. Educação para a emancipação não é planejamento técnico que perde de vista os fins e faz dos meios fins em si mesmos; não é ordenamento cuidadoso e formalizado de passos previamente definidos em guias curriculares, procedimento que bloqueia o pensamento autônomo; não é imposição de uma visão de mundo constituída de conhecimento morto para ser memorizado; não é avaliação do êxito da aprendizagem pela repetição pelo aluno do que o professor ou o livro disseram, palavra por palavra; não é oferta de conhecimentos técnicos para uma futura inserção no mercado de trabalho; não é imposição de valores, muito menos educação moral e cívica; não é produção de conformismo; não é educar para o individualismo ou para a massificação; não é educar para a competição e para a frieza; não é controlar o aprendiz tendo em vista adaptá-lo ao existente. Na sociedade administrada, a educação não pode reduzir-se à mera produção de well adjusted people. A administração atual da subjetividade pela cultura de massa já faz isso além da conta, motivo pelo qual "a crítica deste realismo supervalorizado" é tarefa educacional decisiva (ADORNO, 1995, p. 143-145). Trata-se de uma exigência política: que a educação seja produtora de uma consciência que questiona o real, sem a qual não há decisões conscientes, não há sujeito e, portanto, não há possibilidade de democratização. ***

Nas sociedades atuais, é nítido o empobrecimento do repertório de imagens, de linguagem e de expressão, intimamente ligado ao empobrecimento da experiência:

[...] os homens não são mais aptos à experiência, mas interpõem entre eles e o que deveria ser experimentado uma camada estereotipada a que é preciso se opor. (ADORNO, 1995, p. 148-149)

Ou seja, as relações mediadas pela técnica empobrecem a experiência e geram uma nova barbárie:

Uma nova forma de miséria surgiu com esse monstruoso desenvolvimento da técnica, sobrepondo-se ao homem. [...] A natureza e a técnica, o primitivismo e o conforto se unificam completamente, e aos olhos das pessoas, fatigadas com as complicações infinitas da vida diária e que veem o objetivo da vida apenas como o mais remoto ponto de fuga numa interminável perspectiva de meios, surge uma existência que se basta a si mesma, em cada episódio, do modo mais simples e mais cômodo. [...] Ficamos pobres. Abandonamos uma depois da outra todas as peças do patrimônio humano. (BENJAMIN, 1993, p. 114-119, grifos nossos)

Tomando como ponto de partida essa reflexão de Walter Benjamin, o filósofo Giorgio Agamben (2008, p. 21-23) conclui:

Porém, nós hoje sabemos que, para a destruição da experiência, uma catástrofe não é de modo algum necessária, e que a pacífica existência cotidiana em uma grande cidade é, para esse fim, perfeitamente suficiente. Pois o dia a dia do homem contemporâneo não contém quase nada que seja traduzível em experiência. [...] O que não significa que hoje não existam mais experiências. Mas estas se efetuam fora do homem. [...] Posta diante das maiores maravilhas da terra, a esmagadora maioria da humanidade recusa-se hoje a experimentá-las: prefere que seja a máquina fotográfica a ter experiência delas.

A inaptidão à experiência não é ausência de funções ou incapacidade, mas aversão à educação num mundo em que a racionalidade se tornou simples instrumento de realização de planos existenciais pragmáticos que recusam a consideração de tudo o que não for útil. Os jovens atuais são, como regra, cada vez mais hostis a qualquer projeto educativo que não tenha a instrumentalidade como centro. A questão, portanto, não é simplesmente a ausência de formação, mas a hostilidade a ela. A educação que mimetiza esses meios e fins vem para reforçar a competição, o individualismo, a indiferença pelo outro, o isolamento, o empobrecimento da experiência, ingredientes da prontidão para a violência. Como reanimar o que foi depauperado? Formando pela e para a reflexão: "a única possibilidade que existe é tornar tudo isso consciente na educação". Formar não é desenvolver apenas a capacidade formal de pensar, que, embora necessária, limita a inteligência; "pensar é o mesmo que realizar experiências intelectuais" (ADORNO, 1995, p. 151-154). Florestan Fernandes (1989, p. 264) reiterou essa ideia: "O objetivo último da educação escolarizada não está em 'fazer a cabeça do estudante', mas em inventar e reinventar a civilização sem barbárie". O enfraquecimento da formação do eu é tanto maior, segundo Adorno, quanto mais a educação vai se transformando em ensino técnico, verdadeira obsessão atual das autoridades educacionais brasileiras. Fazer a crítica dessa modalidade de ensino não significa valorizar a educação do Homo sapiens em detrimento da educação do Homo faber, mas concebê-las, em companhia de Gramsci, como indissociáveis. Reduzida a qualificação para o mercado, a educação não é mais

[...] feita para os homens, mas para o sistema, pois aderida ao que Schiller considerava como 'a racionalidade daninha' [...] limitada à qualificação técnica de profissionais manuais e não manuais, à especialização que produz 'conselheiros', 'peritos', 'especialistas' para a máquina burocrática do capitalismo moderno. (MÉSZÁROS, 2006, p. 271-272)

No entanto, é preciso ressaltar que a recusa à mentalidade tecnicista não é recusa radical à televisão como recurso educativo. Os próprios críticos dessa maneira de pensar destacam o potencial educativo da TV, mas, para evitar mal-entendidos, esclarecem a natureza desse potencial: a serviço das TVs educativas, ela contribui para a formação cultural ao veicular o melhor da produção espiritual nos campos da filosofia, das ciências e das artes, de modo a interessar o grande público. É por essa via que a TV pode concorrer - de modo importante, embora sempre restrito, porque inevitavelmente superficial e de fora para dentro - para a abertura de "uma brecha na barreira do conformismo". Mas, mesmo nesse caso, ela não forma: "o conceito de informação é mais apropriado à TV do que o conceito de formação" (ADORNO, 1995, p. 79). De caráter essencialmente informativo e documentário, ela não tem como formar para a experiência do pensamento. Evidentemente, os conteúdos e métodos da educação presencial também se podem prestar à ideologização e resultar em mera aceitação do estabelecido, mas a reversão profunda disso - que se faz de dentro para fora - só pode acontecer numa instituição educativa real, ou seja, habitada por professores e alunos cujas relações face a face tecem a vida institucional.

A relação professor-aluno

Não por acaso, é no bojo da própria crítica do tecnicismo na educação escolar que a reflexão sobre a relação professor-aluno vem ganhando relevo na literatura educacional. Nos anos 1920, Gramsci (1978, p. 132) já advertia:

Um professor medíocre pode conseguir que seus alunos se tornem mais instruídos, mas não conseguirá que sejam mais cultos; ele desenvolverá - com escrúpulo e com consciência burocrática - a parte mecânica da escola.

Em 1939, dirigindo-se a jovens normalistas argentinas, o escritor Julio Cortázar falou-lhes da essência do ato de educar e do professor então mecanizado pelo tecnicismo da pedagogia moderna, embora não pudesse então imaginar a que ponto essa mecanização chegaria, meio século depois, com o progresso da tecnologia da comunicação:

Um número desoladoramente grande de professores fracassa. Fracassa silenciosamente, sem que o mecanismo do nosso ensino fundamental tome conhecimento de sua derrota; fracassa sem ele mesmo saber, porque nunca teve o conceito de sua missão. Fracassa tornando-se rotineiro, entregando-se ao cotidiano, ensinando o que os programas exigem e mais nada, prestando contas rigorosamente do comportamento e da disciplina de seus alunos. Fracassa transformando-se no que se costuma chamar de "professor correto". Um mecanismo de relojoaria, limpo e brilhante, mas submetido à condição servil de toda máquina. [...] Considero que o fracasso de tantos professores argentinos decorre da carência de uma verdadeira cultura, de uma cultura que não se apoie na mera acumulação de elementos intelectuais. [...] A cultura é isso e muito mais [...] [é] a atitude integralmente humana, sem mutilações, que resulta de um longo estudo e de uma ampla visão da realidade. (CORTÁZAR, 2010, p. 163-164)

Uma aula virtual não pode ter a intensidade de uma aula real, pois a relação professor-aluno é essencialmente imediata, sem intermediações, requer uma "situação de transferência" entre professor e aluno (ADORNO, 1995, p. 91). Essa relação tem sido uma das dimensões da educação mais pesquisadas nas universidades do país; com o boom dos programas de ensino a distância, cresce a reflexão sobre os males da formação virtual de professores (ver, por ex., GIOLO, 2008). Nas universidades estaduais paulistas, a contribuição da psicanálise vem se fazendo cada vez mais presente no entendimento da relação educativa como um encontro de subjetividades baseado numa relação de transferência. É no campo configurado pela presença de um professor que fala diante de seus alunos e se expõe pessoalmente - pois não se limita à leitura de um texto previamente preparado - que se dá o fenômeno da transferência, primeiramente do professor que fala, e depois dos alunos, quando estes começam a falar e a ser ouvidos pelo professor (KUPFER, 2010). Mas definir a relação pedagógica com uma relação transferencial de dupla mão não significa defendê-la como uma relação de amor - como uma pedagogia do amor -, nem pregar o amor para eliminar a frieza, e isso por três motivos: porque essa pregação não é suficiente para mudar a ordem social que produz e reproduz a frieza; porque o amor não pode ser exigido em relações profissionalmente intermediadas, como o é a relação professor-aluno; porque, transformado em dever, ele faz parte da ideologia que perpetua a indiferença ao outro (ADORNO, 1995). No entanto, se a demanda de acolhimento mútuo é necessária à construção da relação professor-aluno - o que, de novo, exclui o ensino virtual como terreno propício ao convívio entre o professor e seus alunos nos termos em que o definimos aqui -, ela não é suficiente; é necessário um terceiro elemento que rompa essa relação e a remeta à dimensão simbólica. No caso da educação escolar, esse terceiro é o desejo de saber do aluno, sem o qual não se constrói o lugar do professor.

Segundo Kupfer (2010), é a maneira especial com que o professor se relaciona com a matéria que escolheu, é seu estilo que desperta nos alunos o desejo de terem com o saber uma relação parecida, embora com o estilo próprio a cada um, sem o que seriam espelhos, robôs, clones do professor. Chauí (1980, p. 39) diz isso de outro modo: uma pedagogia centrada na consciência contraditória do professor e do aluno pressupõe "um professor que não tem modelos para imitar porque aceitou a contingência radical da experiência pedagógica". O que vale destacar é que:

[...] o trabalho pedagógico, por ser um trabalho, não é transmissão de conhecimentos (para isso existem outros instrumentos), mas também não é um diálogo, uma comunicação intersubjetiva entre o professor e seus alunos. (CHAUÍ, 1980, p. 39)

O que não significa que o diálogo esteja ausente: "Ao professor não cabe dizer: 'faça como eu', mas 'faça comigo'" (CHAUÍ, 1980, p. 39, grifo nosso). Assim como

[...] o professor de natação não pode ensinar o aluno a nadar na areia fazendo-o imitar os seus gestos, mas leva-o a lançar-se na água em sua companhia, para que aprenda a nadar lutando contra as ondas, fazendo seu corpo coexistir com o corpo ondulante que o acolhe e repele, revelando que odiálogo do aluno não se trava com seu professor de natação, mas com a água,

da mesma forma, "o diálogo do aluno na educação escolar é com o pensamento, com a cultura corporificada nas obras e nas práticas sociais" transmitidas pelo professor, diálogo impossível sem a presença dele (CHAUÍ, 1980, p. 32-33).

À guisa de inconclusão

São muitas as perguntas a respeito da instalação das máquinas no coração do ensino:

A quem interessa que a educação seja apenas mais um item da cultura de massa e da indústria cultural? Quem lucra, do ponto de vista econômico, com a fabricação desses recursos? Quem lucra, social e politicamente, com seu uso? A quem interessa que a democratização da cultura seja sinônimo de massificação, de tal modo que o "direito igual de todos à educação" se converta automaticamente na suposição de que para ser um "direito igual" a educação deva reduzir-se à vulgarização dos conhecimentos através dos "media"? [...] O recurso audiovisual tende a transformar a igualdade educacional em nivelamento cultural pelo baixo nível dos conhecimentos transmitidos (CHAUÍ, 1980, p. 32-33).

São muitas as questões suscitadas pelos programas de ensino a distância:

• Há de fato relação professor-aluno numa proposta de ensino em que o professor é mero veículo de textos e de exercícios previamente ordenados, pré-fabricados por outrem e impostos de cima e de fora?

• É possível avaliar a aprendizagem por meio de testes que exigem respostas que reproduzem a fala do professor e a letra dos textos? Em caso positivo, qual é a natureza da aprendizagem avaliada?

• Relação ao vivo, no sentido dessa expressão no campo da comunicação midiática, será sinônimo de convívio?

• Numa modalidade de ensino em que o professor se dirige a uma máquina e passa por treinamento para se adequar à linguagem verbal e gestual televisiva, há espaço para uma relação transferencial como condição da relação pedagógica?

• Diante de um docente engessado pelas exigências da técnica ou de um tutor limitado a atividades segmentadas e rigidamente encadeadas nos polos de apoio, o aluno terá alguma condição de aprender a nadar em companhia do professor, no corpo vivo do saber que o acolhe e repele?

• Que interesses alimentam o crescimento de programas de EaD neste momento da economia mundial e num país como o Brasil? Elitizar os cursos presenciais nas universidades estaduais paulistas, transformando-as em ilhas de excelência destinadas aos mais capazes? Criar uma universidade pública dual, que oferece cursos presenciais aos que tiveram acesso a instituições privadas de ensino fundamental e médio que os preparam para a Fuvest, e cursos a distância aos que estão à mercê do desmanche desses níveis de ensino na rede pública? Produzir um contingente de excluídos que estão dentro, segundo expressão de Bourdieu, ou seja, de excluídos do direito à educação que só aparentemente têm esse direito garantido, pois estão dentro das escolas?

• A quem interessa, num momento de horror econômico - do desemprego estrutural, que permite o sucateamento da educação escolarizada, e do capital sem pátria, que busca lugares do mundo onde é possível explorar ao máximo a força de trabalho -, a proliferação de escolas técnicas como o ensino que emprega?

• A quem interessa a volta, quarenta anos depois, da teoria do capital humano, que reduz formação educativa a formação profissional para o mercado de trabalho, como se o mercado de trabalho ainda fosse o mesmo na atualidade?

• A quem interessa a disseminação da expressão ensino de qualidade, sem que se defina o que se entende por isso numa época em que predomina a ideia de qualidade total, noção forjada por ideólogos do FMI e do Banco Mundial que reduz ensino a mercadoria, alunos a consumidores e instala uma pedagogia sem sujeito?4

• A quem interessa a avaliação quantitativa dos resultados da educação, dados que engordam estatísticas enganosas que em breve porão o Brasil entre os países com os maiores índices de escolaridade e ocultarão legiões de semianalfabetos portadores de diploma de nível superior?

• Por que a insistência oficial na crença de que medidas técnicas podem resolver os problemas da escola pública brasileira, quando pesquisas já mostraram o fracasso delas e os males que elas causam?5 A quem interessa uma sociedade sem cidadãos pensantes?

• Por que a política educacional se faz de costas para o melhor da produção universitária sobre educação financiada por verbas públicas? A quem interessa a total ausência de atitude filosófica num programa que enaltece a excelência das três universidades estaduais paulistas? Por que os encarregados de elaborá-lo ignoram o melhor da teoria e da pesquisa nelas produzidas sobre os impasses da educação escolar brasileira, decisão que faz do programa Univesp um exemplo desconcertante do ditado casa de ferreiro, espeto de pau? Por que a cúpula dessas universidades aderiu tão prontamente à Universidade Virtual sem evocar o saber acumulado por muitos de seus docentes e pesquisadores e sem convocá-los para discutir a criação de um programa que os tornou parceiros por decreto?

A deterioração da concepção de universidade é um desastre em curso desde os anos 1970, quando, segundo análise de Franklin Leopoldo e Silva (2001, p. 296), um diagnóstico de estrangulamento do acesso à universidade levou os governos militares, orientados por uma "ideia perversa de expansão e democratização do ensino superior", a ampliar as vagas sem onerar o poder público - ou seja, abrindo as portas desse nível de ensino à iniciativa privada. Com uma mentalidade organizacional bem-sucedida no ensino fundamental e médio, as empresas usaram-na com êxito no novo empreendimento:

Os parâmetros de eficiência e lucratividade excluíam qualquer ideário pedagógico mais consistente, o que foi substituído pelo senso de oportunidade comercial na organização e venda de serviços segundo o critério da demanda. Esse tipo de atitude compunha-se muito bem com o regime autoritário, que entendia a universidade como formadora de "recursos humanos", de acordo com a ideologia do desenvolvimento e da segurança nacionais. Dessa forma, a ditadura encontrou na expansão do ensino privado tanto um meio de se desonerar da responsabilidade educativa quando um instrumento ideológico eficaz na adaptação do alunado às regras de comportamento político (ou apolítico) vigentes. Há de se entender também que os parâmetros de lucratividade e eficiência repercutiam diretamente na questão da qualidade e do nível de ensino ministrado. A dependência da clientela para a sobrevivência econômica da empresa gerava naturalmente um nivelamento por baixo das exigências didáticas. Como esse rebaixamento redundava num aumento visível do número de graduados em nível superior, isso também vinha ao encontro das expectativas do governo, na medida em que constituía uma maneira de alimentar com ilusões e falsas esperanças os anseios de ascensão da classe média. (SILVA, 2001, p. 295-296)

Se a expansão do ensino superior privado como mercadoria ainda era pouco clara nos governos da ditadura, hoje "trata-se de algo plenamente manifesto na vigência das escolhas neoliberais" (SILVA, 2001, p. 299). Por isso mesmo, na contracorrente de uma instituição privada que responde às necessidades sociais filtradas pelo mercado, cabe às universidades públicas preservar a cultura, apropriar-se dela e refletir criticamente sobre ela. Para que isso aconteça, elas não podem entrar no círculo perverso de produção e consumo que invade tudo, inclusive os bens culturais, e os atrela a determinações pragmáticas e economicistas. São os critérios extrínsecos de utilidade e oportunidade que alimentam uma crítica da universidade que a denigre "por abrigar tantas coisas 'inúteis', tais como a Filosofia, as Letras Clássicas, os Estudos Literários etc.", até mesmo as Ciências Sociais e Humanas, e as colocam "no rol dos ornamentos supérfluos, a menos que se prestem diretamente a se transformar em instrumentos de poder tecnocrático" (SILVA, 2001, p. 303). A relação intrínseca com a cultura é condição da autonomia das universidades públicas e só existe quando elas se preservam como espaço verdadeiramente público, ou seja, como espaço

[...] de preservação, de apropriação e de reflexão da cultura que permite que o acesso não seja filtrado por dispositivos discriminadores montados em outras instâncias da vida social. (SILVA, 2001, p. 303-304)

É esse o silêncio do discurso e das medidas oficiais sobre o ensino superior que hoje mais ameaça a integridade das universidades públicas brasileiras.

Contato: spmhelena@gmail.com

Recebido em: 28.09.2012

Aprovado em: 14.11.2012

Maria Helena Souza Patto é docente do Instituto de Psicologia da Universidade de São Paulo.

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  • 1
    - Em propaganda televisiva de uma empresa privada de ensino superior, uma jovem afirma: "Se você não tiver conhecimento, está fora do mercado".
  • 2
    - Em 2009, aos 85 anos, a atriz Cleyde Yáconis fez uma reflexão interessante sobre o esvaziamento dos teatros nas últimas décadas: "em 1950, fazíamos dez sessões por semana. Hoje, são dez por mês". Mas ela não concorda que a causa seja o preço dos ingressos: "O relacionamento humano hoje é através da máquina. E o teatro é uma comunicação de gente para gente" (BERGAMO, 2009).
  • 3
    - Muito próximo dessa leitura sobre a realidade virtual e suas consequências nas relações intersubjetivas, o psicanalista francês Jean-Claude Filloux levantou a hipótese de que a invasão da vida pela virtualidade e pelos videogames violentos encontra-se entre os determinantes da violência fria e gratuita tão frequente no mundo atual (I Colóquio de Laboratório de Estudos e Pesquisas Psicanalíticas e Educacionais sobre a Infância, IP-Feusp, 1999).
  • 4
    - Sobre o aluno como mercadoria a ser vendida no mercado de trabalho e, assim, impedido como sujeito, ver pesquisa de Bueno (2003).
  • 5
    - Sobre essa característica da política educacional e seus males, ver o trabalho de Carvalho (2001).
  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      23 Maio 2013
    • Data do Fascículo
      Jun 2013

    Histórico

    • Recebido
      28 Set 2012
    • Aceito
      14 Nov 2012
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