RESUMO:
Discute-se, fundamentado na História Cultural da Ciência e nas perspectivas de uma Educação em Ciências para Justiça Social, como o estudo histórico-cultural da prática científica de registro de eclipses totais em fins do século XIX e início do século XX, em aulas de física, possibilitou reflexões a respeito da participação e visibilização do trabalho de diferentes atores sociais na ciência. Para tanto, apresentamos resultados de uma pesquisa empírica pautada na metodologia de Pesquisa-Ação Histórica e com foco no Eclipse de Sobral de 1919. Os resultados apontam que os estudantes, ao longo da pesquisa, problematizaram o papel de diferentes participantes daquela prática científica, incluindo aqueles que não são cientistas, e como as questões de desigualdade social se fazem presentes na visibilização dos trabalhos dos diferentes atores sociais na ciência.
Palavras-chave: História Cultural da Ciência; Justiça Social; Eclipse de Sobral
RESUMEN:
Basado en la Historia Cultural de la Ciencia y en las perspectivas de la Educación Científica para la Justicia Social, discutir cómo el estudio histórico-cultural de la práctica científica de registro de eclipses totales em clase de física, permite reflexionar sobre la participación y visibilización del trabajo de los diferentes actores sociales en la ciencia. Para eso, presentamos una investigación empírica, abordando el Eclipse de Sobral de 1919 y basada en la metodología de la Investigación Acción Histórica. Los resultados indican que los estudiantes, a lo largo de la investigación, problematizaron el papel de los diferentes participantes en esa práctica científica, incluidos aquellos que no son científicos, y cómo cuestiones de desigualdad social están presentes en la visibilidad del trabajo de los diferentes actores sociales en la ciencia.
Palabras clave: Historia Cultural de la Ciência; Justicia Social; Eclipse de Sobral
ABSTRACT:
Based on the Cultural History of Science and in the perspectives of Science Education for Social Justice, intends to discuss, in physics classes, how the historical-cultural study of the scientific practice of recording total eclipses allows for reflections on the participation and visibility of the work of different social actors in science. To this end, we present empirical research addressing the 1919 Sobral Eclipse and based on the Historical Action Research methodology. The results indicate that students, throughout the research, problematized the role of different participants in that scientific practice, including those who are not scientists, and how issues of social inequality are present in the visibility of the work of different social actors in science.
Keywords: Cultural History of Science; Social Justice; Sobral Eclipse
INTRODUÇÃO
A pesquisa apresentada foi desenvolvida no contexto da pandemia da COVID-19, no qual a desigualdade social se tornou mais evidente. No Brasil, a pandemia afetou principalmente a população negra, indígena e pobre. Esse cenário nos leva a perguntar qual o papel da educação em ciências (EC) na sociedade contemporânea.
Em consonância com pesquisadores da área de EC, defendemos o ensino sobre a ciência, na busca de caminhos que considerem as questões do mundo contemporâneo (Guerra, Moura, 2022; Moura, 2021). Assim, advoga-se por uma EC voltada para a Justiça Social (JS). Não há consenso a respeito dos aspectos prioritários da JS para EC, assim delimitamos nossa perspectiva nos filiando a autores como Morales-Doyle (2017), e defendemos ser crucial entender que a desigualdade na sociedade e, portanto, na EC, está incorporada na política, economia e ideologia do mundo que está inserida. A sociedade está estruturada de forma a marginalizar alguns atores sociais em benefício de outros (Sensöy, DiAngelo, 2017). Compreendemos, então, que toda a sociedade está sujeita a desigualdades de raça, gênero e classe que se mostram persistentes e prevalentes na EC (Morales-Doyle, 2017).
Sensöy e DiAngelo (2017) argumentam que um dos elementos-chave da desigualdade social envolve a afirmação de que o conhecimento científico é objetivo, neutro e universal. Enxergamos, como Harding (2015), que a ciência é um empreendimento humano e cultural, sendo co-produzido com a sociedade. E defendemos que as aulas de ciências devem ser espaços que promovam discussões sobre o contexto no qual determinado conhecimento foi construído, de forma a desmitificar a ideia de uma ciência esvaziada de valores. As questões de gênero, raça e classe precisam ser problematizadas de forma que os estudantes as entendam como relacionadas ao processo de construção da própria ciência. Dessa forma, cabe um olhar para as práticas científicas, que perfazem a produção do conhecimento, como práticas culturais realizadas por diferentes atores sociais - de forma voluntária ou não - que podem se tornar invisibilizados pela narrativa histórica, a depender de sua posição social.
Com base nessas reflexões, defendemos que discutir em sala de aula as práticas científicas como culturais possibilita caminhos para uma EC voltada para a JS. Isto porque este caminho pode mobilizar discussões capazes de elucidar que as desigualdades sociais implicadas na construção da ciência estão associadas às relações de poder do contexto, o que leva a alguns atores sociais serem mais beneficiados que outros (Nyhart, 2016). Esse posicionamento vai ao encontro de pesquisadores da área de EC que apontam ser fundamental uma EC que considere a realidade dos estudantes e as dimensões das relações de poder e das situações políticas e econômicas da sociedade na qual eles vivem (Bazzul, 2020; Bencze, Carter, 2020).
Para construir subsídios capazes de gerar reflexões a respeito da EC voltada para JS, desenvolvemos uma pesquisa empírica junto a estudantes de ensino médio (EM) em aulas de física. Considerando que a História da Ciência (HC) é um caminho para promover discussões sobre a ciência (Gandolfi, 2018), adotamos nessa pesquisa a vertente historiográfica da História Cultural da Ciência (HCC), que considera a ciência essencialmente como cultura (Pimentel, 2010). Com a HCC, estudamos o contexto no qual a produção do conhecimento está se desenvolvendo, para além das figuras de grandes cientistas e analisamos os atores sociais que participaram da construção da ciência, mas tiveram seu papel invisibilizado na HC, como técnicos, artesões, ilustradores e fabricantes de instrumentos (Morus, 2016).
Essas considerações nos levaram a indagar: “como o estudo histórico-cultural da prática científica de registro de eclipses totais, em fins do século XIX e início do XX, possibilitou, em aulas de física, reflexões a respeito da participação e visibilização do trabalho de diferentes atores sociais na ciência?”.
Dentre os eclipses totais registrados no período, o de 1919 na cidade de Sobral se destaca. Três expedições foram enviadas para a cidade, mas com propósitos distintos. A comitiva brasileira estava mais interessada em estudos relativos à coroa solar, a estadunidense se concentrava em fazer medidas do magnetismo terrestre e de eletricidade atmosférica, enquanto a inglesa voltava sua atenção para o registro do eclipse para cálculos referentes ao desvio da luz (Moreira, 2019). O interesse da comitiva inglesa residia na possibilidade de comprovação de um dos aspectos da Teoria da Relatividade Geral (TRG), proposta por Albert Einstein, motivação pela qual as mobilizações para registro do Eclipse de 1919 ficaram famosas.
As comitivas enviadas para Sobral eram pequenas, tornando necessária a mobilização da população local para a instalação dos equipamentos e construção de abrigos. O trabalho de pedreiros e carpinteiros daquela região foi considerado essencial para o êxito do registro do eclipse, mas seus nomes não aparecem nos relatórios oficiais (Crommelin, 1919; Dyson; Eddington; Davidson, 1920). Sobral se faz presente também quando consideramos a cultura material. A despeito dos diferentes equipamentos levados pelas comitivas, é um pote de barro (elemento cultural da cidade de Sobral) que possibilitou a revelação dos registros fotográficos de forma eficaz (Rodrigues, 2012).
Essas peculiaridades nos levam a considerar a discussão dessa prática científica como um caminho possível para construir espaços de reflexão acerca da injustiça social naquele contexto. Estudar o caso histórico do Eclipse de Sobral pode trazer à tona a visibilização de conhecimentos e atores sociais que tiveram importância para a concretização daquelas práticas científicas, mas por relações de poder daquela sociedade (Simões, 2019), diretamente ligadas às questões de raça, gênero e classe, não foram considerados nos documentos científicos da mesma forma que outros conhecimentos e atores sociais.
Para cumprir o objetivo da investigação, realizamos concomitantemente à pesquisa em sala de aula, um estudo histórico com base em fontes primárias e secundárias a respeito do Eclipse de 1919. Para relatar a pesquisa, iniciamos este artigo discutindo a fundamentação teórico-metodológica, apresentando a leitura do Eclipse de 1919 à luz da HCC e a metodologia escolhida, a Pesquisa-Ação Histórica (PAH) (Cardinot, Moura e Guerra, 2022) bem como o instrumento de coleta e análise de dados. Posteriormente, apresentamos os resultados e finalizamos com as considerações finais.
FUNDAMENTAÇÃO TEÓRICO-METODOLÓGICA
O Eclipse de Sobral à luz da História Cultural da Ciência
Ao considerar a ciência como um empreendimento co-produzido com a sociedade na qual ela está inserida (Harding, 2015) e lançando um olhar para as pessoas envolvidas nesse processo, enxergamos as práticas que perfazem a produção do conhecimento científico como práticas culturais. E, assim, locais, situadas e mutáveis. Afiliamo-nos, então, à vertente historiográfica da HCC, cujo foco do estudo de casos históricos são as práticas científicas, a cultura material e visual e as representações (Pimentel, 2010).
De acordo com Alvim e Zanotello (2014), com base na HCC, a ciência deve ser entendida como um conjunto de saberes, valores, crenças, expectativas, ações e normas que perfazem uma sociedade. E o foco na micro-história torna possível o resgate de atores sociais que participaram da construção da ciência sem que seus conhecimentos fossem devidamente valorizados pela HC (Morus, 2016). Dessa forma, é possível a problematização tanto a respeito da grande presença de homens brancos ocidentais nas narrativas comuns, quanto da ausência de atores sociais, como colonizados, homens do campo entre outros que participaram de práticas científicas (Moura e Guerra, 2016).
No olhar micro-histórico do Eclipse de Sobral, o estudo das práticas científicas de registro dos eclipses totais possibilita resgatar pessoas e conhecimentos invisibilizados. Com o aumento do interesse deste tipo registro em fins do século XIX, uma prática estabelecida foi a de expedições aos locais de totalidade (Barboza, 2006).
Para o eclipse solar de 1919, uma das localidades mais adequadas para registrar a totalidade era a cidade de Sobral, no Ceará. Apesar das diferentes intenções de cada uma das três comitivas destinadas à cidade, o evento ganhou notoriedade internacional pelas possibilidades de comprovação de um dos aspectos da TRG. As condições para esse tipo de viagem para o Brasil já eram conhecidas antes de 1919, devido a expedições anteriores que estabeleceram relações entre cientistas e propiciaram a escolha de Sobral para o evento de 1919 (Barboza, 2006; Barboza, 2012; Perrine, 1917). A escolha foi apoiada pelo Observatório do Rio de Janeiro, hoje Observatório Nacional, então comandado por Henrique Morize, que protagonizou a organização do evento (Barboza, 2010).
Apesar da mobilização para organização do evento, as comitivas enviadas a Sobral eram pequenas. Dessa forma, foi necessária a participação da população local para montar os equipamentos e construir abrigos para protegê-los (Barboza, 2010). Os responsáveis por essas construções foram pedreiros e carpinteiros da cidade de Sobral, que trabalharam de forma conjunta com os astrônomos através de intérpretes.
Os abrigos foram erguidos, com ranhuras produzidas no teto, de forma que o suporte de madeira do instrumento utilizado pudesse deslizar para acompanhar a mudança da declinação do Sol (Crommelin, 1919). É possível observar que os abrigos eram específicos para aqueles instrumentos, então sua construção foi realizada por pessoas que tinham conhecimento de marcenaria e edificações e, com o intercâmbio de informações com os astrônomos, compreenderam o funcionamento dos equipamentos a proteger.
Além do trabalho dos pedreiros e carpinteiros, podemos acrescentar a produção de chapéus e telhados de palha, feitos principalmente por mulheres, que se sustentavam a partir deste trabalho, e a utilização de potes de barro para revelação de registros fotográficos do eclipse (Rodrigues, 2012). O próprio comportamento da população, que se manteve em silêncio durante a totalidade, ainda que conduzido por Henrique Morize através da imprensa e por argumentos de que qualquer ação contrária seria considerada incivilizada, colaborou para que a prática pudesse ser realizada com sucesso (Morize, 1919; Videira, 2019).
Importante aqui destacar que Frank Dyson, que participara da organização, escreveu a Morize agradecendo seu trabalho e especificando que conhecia as dificuldades de expedições para observação de eclipse e entendia “até que ponto o sucesso depende da boa vontade e da assistência voluntária concedida aos observadores” (Dyson, 1919, p.1). Esse destaque demonstra que a participação da equipe brasileira foi reconhecida. A importância da participação de Morize e do governo brasileiro foi, também, pontuada no relatório final apresentado à Royal Society (Dyson; Eddington; Davidson, 1920).
O trabalho dos pedreiros e dos carpinteiros foi citado em documentos oficiais (Crommelin, 1919) como essenciais, com ênfase na habilidade dos trabalhadores para construção e reconstrução dos abrigos quando necessário. Contudo, esses atores sociais não tiveram seus nomes divulgados nos documentos oficiais e nem tiveram seus rostos registrados nas fotografias como fizeram com os chamados cientistas. O conhecimento dessas pessoas foi subjugado em detrimento de outros e, portanto, foram tornados invisíveis pela narrativa histórica.
Metodologia de Pesquisa
A investigação seguiu preceitos da pesquisa qualitativa, por possibilitar a análise da complexidade dos dados gerados com a imersão e interação entre os sujeitos na escola (Santos; Greca, 2013). Dentre as metodologias possíveis, escolhemos a Pesquisa-Ação Histórica (PAH) (Cardinot, Moura e Guerra, 2022), que é uma adaptação, para abordagens históricas, da pesquisa-ação (Thiollent, 1986) para contextos educacionais. Essa metodologia de pesquisa foi desenvolvida dentro do grupo de pesquisa do qual a pesquisadora faz parte, o Núcleo de Investigação em Ensino de Ciências e Cultura (NIEHCC). A PAH é utilizada, desde 2014, em diferentes contextos educacionais por integrantes do NIEHCC, a partir de discussão coletiva dos dados de todas as etapas da PAH em reuniões semanais. Os desenvolvimentos e resultados dessas pesquisas (Amaral, 2021; Cardinot, Moura e Guerra, 2022) indicaram que a PAH era um possível caminho para que a contextualização histórica pudesse responder a questões trazidas tanto pelos docentes quanto pelos discentes, o que nos levou a escolhê-la para esta pesquisa.
Como uma pesquisa ação educacional, a PAH se inicia com uma fase-exploratória, na qual é conhecido o contexto da pesquisa e os sujeitos envolvidos. Segundo Thiollent (1986), na pesquisa-ação é fundamental a interação entre todas as pessoas envolvidas na situação investigada. No caso de uma pesquisa educacional, isso inclui os pesquisadores, os estudantes e, nesse caso, também o grupo de pesquisa do qual a pesquisadora e o professor-regente (PR) da turma fazem parte. A PAH acrescenta uma etapa de investigação histórica no ciclo que normalmente define a pesquisa-ação. Nessa adaptação, incluímos essa etapa em todo o processo da pesquisa, ou seja, antes e após as intervenções com os estudantes, em um ciclo de ir-e-vir, considerando a reação dos estudantes para redirecionar o foco da pesquisa histórica.
Para analisar as ações de cada intervenção realizamos encontros semanais com a pesquisadora, o PR e o grupo de pesquisa que, juntos, interpretaram os dados apresentados e discutiram resultados parciais, estabelecendo novas questões a serem aprofundadas no estudo histórico e novas atividades para os próximos encontros. Dessa forma, a análise dos dados foi realizada a partir de uma perspectiva narrativa e interpretativa (Cardinot, Moura e Guerra, 2022, p. 334).
Como instrumento para a coleta de dados, utilizou-se o material escrito pelos estudantes nas atividades propostas e um diário de campo, no qual se descreveu as aulas.1 Durante as aulas, quando não estava diretamente envolvida com a atividade, a pesquisadora fazia anotações das suas observações. Porém, após o término de todos as aulas, também aquelas nas quais participava da condução, a pesquisadora produzia um relato da aula observada, incluindo as falas de estudantes que conseguiu registrar. Importante destacar que como a pesquisadora interagiu com os estudantes antes do início da pesquisa, quando ela começou os registros no diário de campo, ela conhece todos os estudantes pelo nome e sabia identificá-los em sala, além de discutir o relato do dia com o PR e grupo de pesquisa.
Apesar disso, entende-se que a pesquisadora pode ter perdido alguma fala ou mesmo expressão dos estudantes. Dessa forma, o diário de campo apresenta limites por não descrever todos os detalhes daqueles encontros, porém pela disposição dos estudantes e da sala de aula, verificamos que gravar ou filmar as aulas seria inadequado.
Para descrever os resultados, com base na análise narrativa e interpretativa proferida junto ao grupo de pesquisa, construímos temáticas, a partir de questões trazidas pelos estudantes na fase exploratória e no Encontro I.
A pesquisadora acompanhou as aulas durante todo o ano letivo, tomando notas e conhecendo o contexto da turma e dos estudantes. Contudo, as intervenções nas quais foi possível encontrar a maior parte dos dados ocorreram no 3º bimestre daquele ano letivo, e essas intervenções foram descritas como “Encontros”. Em alguns encontros, atividades foram propostas em grupos, que variavam entre duplas e trios e que não permaneceram com a mesma formação ao longo da pesquisa. Por esse motivo, seguimos a junção de algarismos romanos e arábicos para identificar de quais grupos estamos falando. Por exemplo, quando estivermos falando do grupo 1 formado para o Encontro I, utilizamos I-1, no caso do grupo 1 do Encontro II, II-1, e assim por diante. Os estudantes foram identificados com letras.
CONTEXTO DA PESQUISA
Nesta seção, apresentamos o contexto no qual a pesquisa foi realizada.
A unidade escolar, a pesquisadora e o professor-regente
A pesquisa empírica foi realizada em aulas de física de uma turma de primeiro ano de EM de uma escola pública federal do município do Rio de Janeiro, em 2022. Este foi o primeiro ano letivo com turnos presenciais no colégio após a pandemia da COVID-19, porém com uso de máscaras sendo obrigatório até o início do 2º bimestre e recipientes com álcool em gel distribuídos pela escola. Também foi o primeiro ano no qual o colégio utilizou, como forma de ingresso, sorteios no lugar de provas como processo seletivo. O EM da instituição é integrado a cursos técnicos e a instituição também oferece cursos de nível superior e pós-graduação, com todos os estudantes compartilhando os mesmos espaços físicos. A escola tem boa estrutura e se localiza em um bairro central do Rio de Janeiro.
A pesquisadora era estudante de mestrado, licenciada em física e pessoa com deficiência auditiva. O PR é licenciado em física, com titulação de mestrado e doutorado na área de Educação em Ciências, sendo professor concursado da instituição há 8 anos. O PR já utilizava abordagens históricas como parte recorrente de sua prática docente. Ambos fazem parte do mesmo grupo de pesquisa, o NIEHCC, que participou de todas as etapas da PAH.
A turma escolhida para a realização da pesquisa era integrada ao curso técnico de Eventos2 composta por 25 estudantes, com idades entre 14 e 16 anos, dentre os quais 17 se identificavam como meninas e 8, como meninos. A pesquisadora entrou no início do ano letivo e tomou notas antes das intervenções da pesquisa, para conhecera os estudantes e o contexto da turma. Ressaltamos, como dito no último parágrafo da seção anterior, que foi garantido aos estudantes o anonimato, os identificando nesse texto, individualmente, por letras do alfabeto.
A Fase-Exploratória
Nesta subseção, apresentamos a fase-exploratória da PAH, que consiste em uma fase de levantamento do campo de pesquisa e os sujeitos nela interessados. Dessa forma, a pesquisadora acompanhou as aulas do PR desde o começo do ano letivo, interagindo com os estudantes, inclusive, tirando dúvidas sobre o tema das aulas, quando solicitada, e acompanhando atividades antes do início da pesquisa propriamente dita, para identificar uma questão para o desenvolvimento da fase-exploratória.
Durante o período em que acompanhava as aulas, antes do início da pesquisa, muitos estudantes relataram à pesquisadora problemas financeiros e dificuldades com os meios de transporte por morar longe da escola. O PR compartilhou com a pesquisadora que identificara que os estudantes apresentavam dificuldade com operações matemáticas. Fora isso, a maioria dos estudantes declarou à pesquisadora que gostava das aulas no início do ano quando o PR introduziu algumas discussões de HC, mas conforme as aulas foram se desenrolando, eles disseram que, apesar de gostar do PR, não queriam mais ir às aulas. Eles manifestaram não gostar de física, por achar muito difícil e que não precisavam de conhecer física e matemática para seguir uma carreira após o fim do EM. Inclusive, apontaram que escolheram o curso técnico de Eventos por acreditarem que não precisariam estudar ciências e matemática.
Esses aspectos nos sugeriram que a ciência e ser cientista eram conceitos distantes da realidade dos estudantes, que se sentiam estrangeiros em aulas de física, mesmo em uma escola de reconhecida “excelência científica”.
Então, a atividade escolhida para a fase-exploratória da PAH buscou conhecer as concepções e ideias dos estudantes a respeito de ciência e cientista. Essa atividade foi dividida em duas etapas. Na primeira etapa, foi pedido aos estudantes que respondessem, de forma individual, a pergunta “Quais profissionais você acredita que fazem parte da produção do conhecimento científico?”. Para a segunda etapa, os estudantes foram separados em grupos para apresentar como imaginavam ser o dia a dia dos profissionais que participavam da construção da ciência.
Em resposta à primeira etapa, 20 dentre os 22 estudantes que participaram dessa aula em específico, citaram profissões que são comuns de ser associadas à ciência (físicos, químicos e biólogos) e da área de saúde. Destacamos que 2 estudantes citaram nominalmente dois de seus professores, incluindo o PR e, dentre os outros exemplos, personalidades que foram mencionadas nas aulas anteriores de física. A reprodução de exemplos mencionados em sala dialoga com os dados de Amaral (2021) e Gandolfi (2018) a respeito do papel da sala de aula na construção de imagens de cientista por parte dos estudantes. A presença de uma variedade de citações a profissionais de saúde pode ser interpretada pelo fato de que, entre 2020 e 2022, muitos infectologistas apareceram em canais de comunicação para falar da pandemia.
Quanto à segunda etapa, todos os grupos escolheram representar pessoas solitárias, reforçando os resultados de Faria et al. (2014) de que os estudantes consideram o trabalho do cientista como algo isolado.
A PESQUISA-AÇÃO HISTÓRICA
Nesta seção, apresentamos o desenvolvimento da PAH. Embora a pesquisadora tenha permanecido em sala de aula ao longo ano letivo, seis foram as intervenções da pesquisa-ação, denominadas e aqui separadas por “Encontro”.
Encontro I
A partir da análise da fase-exploratória, entendemos que, para os estudantes, a atividade científica é performada exclusivamente por cientistas e estes trabalham isolados. Com base nos objetivos e contexto da pesquisa, a pesquisadora e o PR, em reunião com o grupo de pesquisa, decidiram que inicialmente seria discutido questões a respeito da curvatura espaço-tempo trazidas pela TRG. As intervenções com os estudantes precisavam ser realizadas de forma que não atrapalhassem o conteúdo programático, o que o levou o PR a delimitar que o Encontro I ocorreria após o estudo das Leis de Newton e a Lei da Gravitação Universal (LGU).
No Encontro I, o PR comparou a LGU, proposta por Isaac Newton, com a TRG e explicou que, como já haviam estudado, na teoria newtoniana a existência de uma força de atração entre dois corpos que possuem massa permitia explicar fenômenos como a queda dos corpos e o movimento da Lua em torno à Terra. E, com base na TRG, estes movimentos seriam explicados como consequência da deformação do espaço-tempo provocada por corpos que apresentam massa. O PR e a pesquisadora utilizaram animações para discutir que a deformação provocada pelo Sol, por exemplo, faria com que a luz emitida por estrelas sofresse desvio aparente quando observada da Terra e que o registro de um eclipse solar total possibilitaria analisar a ocorrência ou não de tal desvio, destacando que este só ocorre em uma faixa de totalidade. Por isso era necessário o deslocamento de equipes de observadores e seus instrumentos até um dos locais.
A pesquisadora, então, apresentou aos estudantes a atividade planejada: a turma dividida em dez grupos, formados por duplas ou trios, discutiria a organização de uma expedição para outro país, para registrar um eclipse total fictício. A pesquisadora pediu que escrevessem um texto sobre a organização da expedição criada, citando os países de origem e destino, os profissionais envolvidos, as fontes de financiamento, as dificuldades e vantagens, considerando a interação entre pessoas de diferentes países e outros fatores que considerassem relevantes para a expedição.
Ao todo, dez textos foram recolhidos e lidos. Após discussão com o grupo de pesquisa e conversa com os estudantes, a análise foi procedida com base em quatro temáticas, que serviram de fio condutor para as outras atividades da PAH, e serão apresentadas separadamente a seguir:
Profissionais envolvidos
Os estudantes perceberam que era necessário um grupo de diferentes pessoas trabalhando nas expedições, e alguns citaram profissionais que não eram cientistas; dados que contradiziam os resultados da fase-exploratória. Os estudantes, em grupo, citaram profissionais de diferentes áreas: astrônomo (grupos 2, 5, 6, 7, 8, 9, 10), biólogo (grupos 7 e 9), chef de cozinha (grupo 4), cientista (grupos 2 e 3), cosmólogo (grupos 7, 8 e 9), engenheiro espacial (grupo 2), físico (grupos 8, 9 e 10), fotógrafo (grupo 5), geógrafo (grupo 4), guia (grupos 4, 5, 7 e 8), historiador (grupo 10), meteorologista (grupos 2, 4, 5, 6, 7, 8, 9 e 10), motorista (grupo 7), navegador (grupo 5), pesquisador (grupos 1, 4 e 6), técnico (grupos 6, 7, 8 e 9) e tradutor (grupos 2, 4, 5, 8 e 9).
Contudo, esses outros profissionais não trabalhariam com os cientistas. O papel deles nas expedições era apenas de organizá-las, no sentido de garantir o deslocamento, alimento e outros provimentos para os envolvidos, a chegada do material e das pessoas no local estabelecido. Apenas o grupo I-5 inclui a presença de uma pessoa necessariamente nativa da região para se ter como guia. Destacamos que apenas o grupo I-8 forneceu exemplos de profissionais com flexão do gênero, especificando cientistas identificadas como mulheres como integrantes da expedição.
Financiamento
Essa temática refere-se à aquisição de orçamento para uma expedição científica. Os estudantes, além de indicar a fonte de financiamento, destacaram motivações para uma empresa privada ou pública financiar uma expedição. Os grupos que identificaram as instituições privadas justificaram que as empresas utilizariam daquele evento para vender seus produtos, em busca de lucro. O texto do grupo I-8, por exemplo, indica que a condição do financiamento da pesquisa fictícia por eles citada (“multinacional Astro”) é usar profissionais e equipamentos da empresa para ampliar visibilidade para seus produtos com o sucesso da observação. Os grupos que apontaram instituições públicas, por sua vez, citaram que o governo estava em busca de “obtenção de conhecimento”. O grupo I-2, por exemplo, escreveu que o governo financiava a pesquisa “levando em consideração o aprendizado de todos e por ser um marco na história que ficará registrado por nós”.
Imigração
A necessidade de autorização para a entrada em diferentes países com equipamentos volumosos foi trazida pela maioria, mesmo sem ter sido previamente destacada pelo PR, quando da descrição da atividade. Em alguns dos textos, os estudantes indicaram preocupação com “burocracias e passaportes” para a entrada em um país estrangeiro, bem como o envio seguro e correto dos instrumentos para o local de destino.
Difícilmente conseguiremos exportar todos os materiais necessários de uma vez só. Sendo assim, contatamos a empresa de pesquisa local das Filipinas para exportarmos pouco a pouco nossos materiais pesados. Com a permissão da fronteira local e da guarda intercontinental. Conosco, levaremos apenas o material leve, para não sofrermos apreensões e até mesmo, possivelmente, uma deportação (Fragmento do texto produzido pelo grupo I-10, 2023)
Alguns grupos, como o I-10, apontaram para a necessidade de ajuda de uma instituição do país a receber a expedição, o que, de certa forma, se relaciona com o caso de Sobral, quando a participação do governo e de instituições brasileiras foi importante para a chegada dos cientistas e instrumentos. Por ter sido despertada pelos estudantes, essa temática foi considerada um fio condutor importante a ser explorado na próxima atividade.
Interação entre pessoas de diferentes culturas
Encontramos, em cinco dos dez textos, menção à possibilidade de desavenças entre os integrantes das expedições e as pessoas locais devido ao choque cultural. Os estudantes explicitaram que pessoas de diferentes vivências poderiam não se entender.
O grupo I-10, colocou o evento como uma forma de conectar a “pesquisa com os moradores locais, para que eles também possuam uma experiência fora de seu cotidiano, evitando ao máximo inimizades e conflitos”. O grupo I-6 destacou a expedição como forma de distrair o povo da realidade nas quais eles viviam. O grupo I-1, por sua vez, mencionou que se o país for menos desenvolvido haveria dificuldade para as pessoas se relacionarem, “pois, a expedição é de alta tecnologia”.
Os fragmentos remetem a uma discussão destacada por Galamba e Matthews (2021), quando, discutindo o papel da EC num mundo marcado por governos de ultradireita, destacam que a falta de compreensão a respeito daquele que é diferente gera sentimentos que podem levar à falta de cooperação e a desavenças. Essa percepção aparece em metade dos textos recolhidos da turma, o que nos leva a compreender que esta temática deveria ser destacada em atividades posteriores como forma de potencializar discussões a respeito da JS.
Encontro II
Com base nas discussões com o grupo de pesquisa, entendemos que seria interessante a próxima atividade problematizar questões que foram levantadas pelos estudantes, mas não previstas pela pesquisadora, como: imigração e motivação de financiamento. A pesquisadora havia planejado uma atividade que desse prosseguimento à primeira, porém, antes de iniciar a atividade, ela considerou ser necessário engavetá-la em prol da continuidade dos debates mobilizados pelos textos dos estudantes. Esse é um movimento característico da pesquisa-ação e, portanto, da PAH. Dessa forma, a pesquisadora se debruçou sobre uma investigação histórica para debater as expedições para registro de eclipses totais organizadas para o Brasil, em 1912, e para a Crimeia, em 1914.
Sobre o registro do eclipse de 1912, a pesquisadora destacou que oito expedições foram enviadas a cidades brasileiras, sendo duas nacionais. Ela apresentou aos estudantes Henrique Morize, pois eles não conheciam o astrônomo franco-brasileiro, como responsável pela escolha de três cidades de Minas Gerais e uma de São Paulo, para sediar as expedições. Ela, também, ressaltou que, à época, a maioria das expedições estava planejando estudar a coroa solar ou trabalhar questões de espectroscopia. Apenas um componente das expedições, Charles Perrine, da comitiva argentina, estava interessado em registrar um possível desvio da luz por ter conhecido as ideias de Einstein através de um amigo em comum (Simões, 2019).
A explicação sobre ambos os registros foi intercalada com perguntas para debater como a política e a diplomacia influenciam as práticas científicas. A pesquisadora explicou que, em ocasião do eclipse de 1912, o então presidente do Brasil, Marechal Hermes da Fonseca, esteve presente em Passa Quatro (MG) com uma grande comitiva (Barboza, 2010). Quando perguntados a respeito de qual seria o interesse de um político em um evento dessa magnitude, os estudantes A e B começaram um debate entre si, que não possível ser registrada no diário de campo. Porém, em voz alta o estudante A concluiu que o presidente tinha interesse em obter reconhecimento e prestígio caso o evento fosse um sucesso. A pesquisadora, ainda, fez perguntas relacionadas ao financiamento envolvido. As respostas foram, como na atividade anterior, relacionando a intenção do governo a ganhar conhecimento. O estudante A novamente tomou a palavra para dizer que “essas pesquisas retornam em forma de tecnologia”, para justificar o gasto governamental.
Referente ao eclipse de 1914, a pesquisadora explicou que o mundo experienciava uma guerra de proporções nunca vistas antes e perguntou como seriam as expedições considerando esse contexto, com a intenção de discutir como as relações internacionais afetam a ciência. Os estudantes ressaltaram que um diplomata deveria ser um membro da equipe, para garantir que não teriam espiões e nem que os integrantes fossem confundidos com estes. O estudante B acrescentou que o diplomata poderia intermediar conversas entre um grupo e outro, por exemplo, mostrar os instrumentos e especificar que seriam apenas utilizados para observação do eclipse.
A pesquisadora explicou que os planos para registro os eclipses de 1912 e 1914 foram frustrados em função das condições meteorológicas. A estudante C disse que os meteorologistas deveriam conhecer o clima de uma região antes de mobilizar uma expedição. Os estudantes, então, se posicionaram a respeito da imprevisibilidade do clima, e o estudante B trouxe questões de sua cidade natal, no Maranhão, que era muito quente e que chovia de repente. À fala do colega, a estudante C concluiu que “pelo menos os meteorologistas aprenderam algo com isso”, se referindo às expedições.
Essa discussão sugere que os estudantes entenderam que mesmo que uma expedição específica não tenha êxito, seu desenvolvimento pode trazer conhecimento para a organização de outras. Houve, também, espaço para debater sobre os atores sociais envolvidos naquela prática científica e seus interesses particulares. Com diferentes atores sociais sendo colocados em evidência durante essa intervenção, entendemos que, na próxima atividade, deveríamos focar nos que participaram do Eclipse de Sobral de 1919.
Encontro III
No terceiro encontro, foi desenvolvida uma atividade focando nos atores sociais envolvidos no Eclipse de 1919. O principal recurso foi o conjunto de fotografias, fontes primárias, tiradas em Sobral por ocasião da organização e registro do eclipse solar.
Em grupo, os estudantes receberam diferentes fotografias impressas, que representavam pessoas, e 4 questões: “o que chama a atenção de vocês na fotografia?”, “Quem são as pessoas que aparecem na fotografia?”, “O que imaginam que o fotógrafo gostaria de registrar com a imagem?”, “Escrevam quaisquer pensamentos do grupo quanto à fotografia”.
Os estudantes responderam em grupo as questões, com a pesquisadora e PR passando por suas mesas. A partir da análise das respostas, das discussões em sala de aula e da reunião com o grupo de pesquisa, decidiu-se retomar três fotografias no Encontro IV, para ilustrar as discussões a respeitos dos diferentes atores sociais envolvidos e diferentes questões de desigualdade. Escolhemos apresentar algumas das questões trazidas pelos estudantes no Encontro III nas subseções seguintes, nos contextos em que elas foram retomadas pela pesquisadora com os estudantes em classe.
Encontro IV
Esse encontro foi o primeiro em que os estudantes foram apresentados ao Eclipse de 1919. A partir da discussão das três fotografias selecionadas, a pesquisadora apresentou a narrativa construída à luz da HCC sobre o registro do eclipse.
A Figura 1 foi a primeira fotografia projetada:
Quando a pesquisadora compartilhou a imagem, a estudante D, que participara do grupo que discutira essa fotografia, destacou que, a princípio, o grupo pensara que os dois homens de branco com chapéus na mão seguravam bolos (de confeiteiro) por serem diferentes dos outros. E acrescentou que chamou atenção o fato de apenas duas mulheres estarem presentes na fotografia. A pesquisadora perguntou se gostaria de compartilhar quem ela achava que eram aquelas mulheres. A estudante D disse que a primeira mulher sentada, da esquerda para a direita, seria a esposa do homem sentado ao seu lado, que seria o organizador da expedição. E acrescentou que a segunda mulher era a babá da criança. A pesquisadora perguntou se havia um porquê para vê-la como a babá. A estudante E disse que aquela mulher usava uma roupa mais simples.
A estudante F, que não costumava se colocar oralmente nas aulas, disse que concordava com o grupo que discutiu a foto e que as duas mulheres não eram cientistas por causa da época da fotografia, pois mesmo atualmente muito preconceito estava envolvido para mulheres cientistas. Ela, contudo, disse que achava que todos os homens eram cientistas. O estudante G afirmou que os homens da imagem pareciam importantes porque estavam bem-vestidos, e perguntou se o prefeito estava ali “fiscalizando”.
Os relatos destacados anteriormente, produzidos com base no diário de campo, foram compreendidos, em discussão com o grupo de pesquisa, como um dos momentos em que questões de desigualdade surgiram em sala. As falas das estudantes D e F, que não viram aquelas mulheres como cientistas, remontam à questão de desigualdade de gênero na ciência. Enquanto as falas da estudante E e do estudante G levam a uma reflexão a respeito das roupas das pessoas e como isso representa hierarquia social em nossa sociedade.
A pesquisadora explicou que os homens eram os membros das comitivas em Sobral, mas que as mulheres eram as esposas de dois deles. Apontou que a mulher com a roupa mais escura era Rosa Morize, esposa de Morize. A outra mulher era Dona Pequenina, mãe da criança também presente na foto e esposa de Domingos Costa, membro da comitiva brasileira (Castiñeiras; Crispino, 2019).
O slide projetado em seguida continha a figura 2:
O grupo III-3, que trabalhou com figura 2, escreveu em seu texto que as pessoas retratadas eram “um astrônomo e um trabalhador”. Durante a discussão com o grupo de pesquisa a respeito da análise dos textos, a pesquisadora se questionou sobre a escolha das palavras, porque os estudantes não usaram “faxineiro” ao se referirem a segunda pessoa na foto. A conclusão foi de que os estudantes poderiam ter usado a palavra trabalhador por entender que esta palavra se relacionava a trabalho braçal. O grupo de pesquisa considerou a distinção entre tipos de trabalho um assunto com o potencial de promover a discussão relacionada à desigualdade de classe, a ser debatido com a turma no Encontro IV, narrado nessa subseção.
Quando a pesquisadora perguntou se alguém tinha algo a dizer sobre a fotografia, a estudante J afirmou que o homem com a vassoura parecia ser um escravizado e a pesquisadora pediu que ela explicasse o seu posicionamento. Ela disse que a roupa do homem era “esfarrapada” e, por isso, ele seria um escravizado. O estudante A interferiu, dizendo que não havia escravidão em 1919. A estudante J se mostrou constrangida, mas disse que foi o que pensou. A pesquisadora disse que ela poderia falar o que quisesse, e explicou que ainda nos dias de hoje, mesmo sendo ilegal, encontramos registros de pessoas mantidas em situação de escravidão, ainda que não fosse o caso do homem na imagem. O estudante A disse que o homem parecia ser um “criado geral”, um funcionário que faria mais de uma tarefa.
Aproveitando este momento, a pesquisadora expôs que o grupo que ficara com a imagem definira um homem como astrônomo e outro como trabalhador. Ela problematizou o uso da palavra trabalhador, questionando se o astrônomo também não poderia ser definido dessa forma. A estudante F disse que achava que trabalhador era uma palavra mais utilizada para um trabalho braçal, enquanto o trabalho do astrônomo seria intelectual. O estudante A afirmou “trabalhador é aquele que não detém os meios de produção, o astrônomo...”, e então se interrompeu e ficou em silêncio por alguns segundos. A pesquisadora incentivou que ele falasse o que estava pensando. O estudante A disse que percebeu, enquanto falava, que o astrônomo também não detinha os meios de produção. O resto da turma acompanhou o riso do estudante.
Ainda sobre a figura 2, a pesquisadora levantou questões sobre financiamento, expondo que o grupo que discutiu a fotografia havia questionado em seu texto os porquês de investir para observação de um fenômeno que estava acontecendo fora da Terra enquanto, no planeta, havia pessoas passando necessidade. A turma ficou em silêncio até que a estudante J admitiu nunca ter pensado a respeito. O estudante A disse que investir em ciência não implicava em deixar de investir na melhoria da qualidade de vida das pessoas, que uma coisa não tinha a ver com a outra e complementou que esse investimento significava um avanço tecnológico, algo benéfico para a sociedade. Após isso, a pesquisadora passou para a projeção da figura 3:
A estudante F disse que parecia ser uma fazenda, enquanto a estudante K disse que pareciam cabanas para proteger os pesquisadores e seus equipamentos.
A discussão com as fotografias foi encerrada e a pesquisadora apresentou um mapa para destacar qual foi o trajeto da comitiva inglesa de Londres a Sobral. Ela, então, perguntou aos estudantes como eles achavam que escolheram Sobral como cidade para o registro do eclipse, dentro de uma faixa de totalidade que apresentava outras opções. O estudante A interrompeu para tirar dúvidas a respeito da necessidade do eclipse para a comprovação da TRG, ao que a pesquisadora respondeu fazendo uma breve recapitulação. O estudante A disse, então, ter entendido, e a pesquisadora prosseguiu com a narrativa, explicando que Henrique Morize era reconhecido e respeitado internacionalmente como cientista.
De fato, Charles Perrine, em sua carta, indicou que reconhecia a experiência de Morize em outros eclipses (Perrine, 1917). Morize ficou com a responsabilidade de determinar quais seriam as informações relevantes para compartilhar com os demais interessados na expedição e indicou as melhores localidades para registrar o eclipse. Ele e Domingos da Costa foram a Sobral antes do evento para organizar não apenas a chegada das expedições, mas para garantir as condições para a construção de abrigos, calibração dos equipamentos e registro do eclipse no dia 29 de maio de 1919. A pesquisadora perguntou aos estudantes os possíveis motivos que o levaram a escolher Sobral. A estudante J disse que seria “por causa daquilo que você falou na outra aula, do clima”, remetendo ao Encontro II, quando a turma foi apresentada a expedições anteriores.
A pesquisadora prosseguiu, destacando que a comitiva inglesa, formada por Andrew Crommelin e Charles Davidson, aportou no Brasil em Belém do Pará, e como partiram para Sobral um mês depois, conheceram a Floresta Amazônica (Crommelin, 1919). De Belém a Sobral, a comitiva tomou um barco para Camocim, Ceará, e depois um trem no qual viajaram por 6 horas até chegar a Sobral (Dyson; Eddington; Davidson, 1920), três semanas antes do eclipse. A pesquisadora perguntou aos estudantes como eles achavam que os pesquisadores foram recebidos pelos sobralenses, e onde eles ficaram hospedados. A estudante C respondeu que o prefeito da cidade receberia os cientistas e que alguns moradores locais poderiam ir ver quem era, de curiosidade.
A pesquisadora, então, leu o seguinte trecho do relatório de Crommelin:
Desfrutamos de quartos confortáveis e arejados, com a vantagem de um abastecimento de água permanente. Os Saboyas são os donos da fábrica de algodão de Sobral, e suas casas são abastecidas pelo mesmo poço grande, a uma milha de distância, que foi feito para abastecer a fábrica. Muitos habitantes da cidade carregam sua água diariamente de buracos cavados no leito seco do rio. Isso nos ajudou a apreciar a bênção de nosso suprimento constante (Crommelin, 1919, p. 369).
No diário de campo a pesquisadora relatou que alguns estudantes riram e a aluna C disse “Claro, eles queriam dar do bom e do melhor para os estrangeiros”. A pesquisadora acrescentou que, em 1919, seis dos estados do nordeste estavam lidando com surtos de febre amarela (Ministério da Saúde, 1999) e que havia preocupação devido à vinda dos estrangeiros (Crispino, Lima, 2018). A estudante H disse “mas com a população não?”, em um tom indignado. A turma começou, então, um acalorado debate, dizendo que isso era um descaso e lembrava a questão das vacinas para COVID-19, atrasadas de forma proposital pelo então presidente.
Após os ânimos se acalmarem, a pesquisadora explicou que a equipe estadunidense e a brasileira chegaram nove dias depois da britânica por conta de um atraso da verba para viagem. O que levou o estudante A a dizer “É o Brasil sendo Brasil”, em um tom depreciativo. Quando questionado pela pesquisadora, o estudante disse que sempre havia algum problema relacionado à verba quando o Brasil estava envolvido em organização.
Após isso, a pesquisadora perguntou o que eles achavam que os membros da comitiva britânica fizeram enquanto esperavam a chegada dos demais pesquisadores. A estudante J disse que os pesquisadores passeariam e conheceriam a cultura local, além de andar a cavalos. A pesquisadora perguntou à estudante se ela não achava que eles começaram os preparativos para o evento, passando para o slide que incluía a figura 3 e uma pergunta. “Davidson e Crommelin construíram os abrigos da imagem?”, ao que a estudante J respondeu que “claro que não foram os ingleses, eles colocaram o povo da cidade para trabalhar”.
A pesquisadora apresentou uma fotografia de um dos abrigos construídos para os instrumentos e destacou que pedreiros e carpinteiros foram mobilizados para construí-los. Ela, ainda, ressaltou que seus trabalhos foram citados por Crommelin em seu relatório como essencial, quando uma ventania derrubou alguns dos abrigos e os pedreiros e carpinteiros os reconstruíram com rapidez, de forma que não houve danos aos equipamentos (Crommelin, 1919). Para finalizar, ela disse que discutiriam mais esse ponto na próxima aula, mas adiantou que eram abrigos muito específicos, porque serviam apenas para aqueles instrumentos. O estudante L disse, em resposta, que os astrônomos foram conduzindo a construção com auxílio do tradutor.
Na reunião com o grupo de pesquisa, a fala do estudante A, dizendo “Brasil sendo Brasil” mobilizou o desenrolar de um fio que problematizasse no próximo encontro discussões a respeito da importância da ciência brasileira para o sucesso daquele evento. A fala do estudante L, afirmando que os astrônomos teriam meramente conduzido os pedreiros em seus trabalhos, sugeriu que, para aqueles estudantes, esses profissionais não possuíam conhecimento especializado próprio que os permitissem compreender como mobilizar esse conhecimento para resolver os problemas que enfrentavam. Isso tornou mais latente a necessidade de expor os diferentes conhecimentos envolvidos naquela prática.
Encontro V
Para responder as questões destacadas no Encontro IV, a pesquisadora iniciou este encontro explicando aos estudantes que a aula seria como a anterior, intercalando a narração com perguntas. Ela destacou que as comitivas levaram para Sobral equipamentos necessários para os propósitos de suas expedições. Para exemplificar, apresentou, por meio de fotografias e esquemas, o celóstato e o telescópio utilizados pela equipe inglesa para observação e registro do eclipse.
Ela relembrou aos estudantes que esses equipamentos não vinham montados, mas separados em caixas e perguntou quem eles achavam que participou da montagem. A estudante J respondeu que foram os astrônomos. A pesquisadora deu ênfase no fato de que até conhecimentos de relojoaria estavam envolvidos na montagem dos equipamentos. A estudante J, então, respondeu que os astrônomos não teriam dificuldade para encontrar pessoas que soubessem fazer a montagem e a estudante M disse que eles chamaram um técnico para participar. No Encontro I, quando os estudantes em grupos criaram uma expedição, a profissão de técnico foi citada por vários grupos. Porém, tal profissão só volta a ser mencionada pelos estudantes, a partir da discussão e demonstração de que os astrônomos sozinhos não dariam conta da montagem dos equipamentos.
A pesquisadora, então, ressaltou que o Brasil estava à frente na organização da expedição. Desde a carta enviada por Perrine a Morize (Perrine, 1917), a equipe do Observatório do Rio de Janeiro participou dos preparativos do evento, definindo tanto o local em que os membros de cada comitiva se hospedariam, quanto o da instalação dos equipamentos. Além disso, mobilizou trabalhadores da região para participarem da instalação e calibração dos equipamentos. Ou seja, diferentes atores sociais brasileiros, de diferentes classes sociais, estavam envolvidos na organização para que o registro do eclipse fosse possível.
A pesquisadora explicou, por meio de fotografias registradas à época da organização do evento, que os instrumentos eram muito sensíveis a variações de temperatura e a movimentação. E que, para proteger da poeira e do calor, abrigos foram erguidos com telas protetoras (Crommelin, 1919). Foi enfatizado que era preciso proteger os equipamentos sem comprometer seu funcionamento. A pesquisadora perguntou quem foram os pedreiros, carpinteiros e marceneiros que participaram da construção dos abrigos e se eles tinham o conhecimento necessário, explicando que não havia registros dos nomes desses profissionais. Ela retomou a fala do estudante L da aula anterior, em que ele destacou que os pedreiros trabalharam, seguindo exatamente as instruções dos astrônomos através de tradutores. O PR perguntou se eles consideravam que os astrônomos tinham o conhecimento de marcenaria necessário para construir aqueles abrigos. A estudante E se manifestou para dizer que “talvez seria uma troca de experiência” entre os astrônomos e os pedreiros, remetendo ao trabalho em conjunto de ambas as profissões.
A pesquisadora destacou que, apesar das citações em relatórios oficiais (Crommelin, 1919) da participação e habilidade de trabalhadores sobralenses, esses atores não tinham registros em fotos. Em seguida, projetou novamente a figura 1, agora apresentando os membros das comitivas e suas funções na expedição. Ela relembrou aos estudantes que Morize esteve à frente da organização não apenas do evento de 1919, mas também do de 1912 e comentou que ele era respeitado internacionalmente por sua atuação em registro de fenômenos celestes (Videira, 2019). A pesquisadora destacou que ele trabalhou ativamente nas organizações, viajando até Sobral duas semanas entre os meses de março e abril daquele ano. A visita teve como objetivo verificar disponibilidade de alojamento, escolher os locais de observação e reconhecer capacidades de construção de abrigos, calibração e reparo de instrumentos (Videira, 2019).
Morize estava preocupado com o comportamento da população, assim escreveu artigos para jornais sobralenses, durante a estada em março, explicando como seria o evento e que era necessário silêncio total durante o eclipse. Ele ainda destacou que algazarra durante o evento não seria próprio de um povo verdadeiramente civilizado (Morize, 1919). A pesquisadora leu um desses artigos de jornal e perguntou aos estudantes “Qual a leitura de Morize sobre a população sobralense?”.
A primeira a responder foi a estudante D, que destacou que Morize era um “babaca”, sendo acompanhada pelos colegas em um riso. O estudante L disse que “é como se a população tivesse de provar alguma coisa a ele” e o estudante A destacou que Morize olhava para a população sobralense através de uma lente eurocêntrica, impondo o que considerava o padrão europeu. A estudante D disse que concordava, acrescentando que Morize enxergava o povo de Sobral como inferior. Dessa forma, entendemos que a turma discutiu questões de JS de forma mais explícita ao debater sobre o olhar de Morize a seus próprios conterrâneos, considerando que alguns deles eram inferiores ainda que tenha considerado os trabalhadores daquela região como aptos para construir abrigos e participar da montagem dos equipamentos.
A pesquisadora perguntou como os estudantes imaginavam que a população se comportou no dia do eclipse. A estudante J disse que as pessoas se comportariam como num festival, dando as mãos e fariam uma roda, pois era algo raro de acontecer. O estudante L discordou, dizendo que achava que a população tinha ficado quieta. A pesquisadora confirmou que o silêncio se instaurou, apesar da grande quantidade de pessoas presentes no local. Não há menção, nos relatórios oficiais, de barulho por parte da população (Dyson; Eddington; Davidson, 1920; Crommelin, 1919). A pesquisadora perguntou aos estudantes se eles acreditavam que o povo havia seguido as instruções por entender a importância do evento ou se o fizeram pelo que Morize impôs. Apenas um estudante, L, respondeu, dizendo que se comportaram daquela forma “para não serem chamados de incivilizados, sendo, então, submissos”. Consideramos este um outro momento em que questões relativas a relações de poder relacionadas aos diferentes grupos sociais foi problematizada pelos estudantes.
O estudante A pediu para explicarem novamente porque era importante fazer silêncio naquele momento. O PR respondeu que os observadores tinham apenas cerca de 5 minutos (que correspondia ao tempo da totalidade) para realizar seus registros e falatório, lançamento de fogos e foguetes, por exemplo, poderia, além de atrapalhar a concentração, prejudicar o registro fotográfico. Assim, a população ter ficado em silêncio foi essencial para aquela prática científica ter êxito.
Em seguida, destacou-se que todas as três comitivas alcançaram seus objetivos, ainda que seus resultados por completo só pudessem ser verificados nos dias posteriores. O reconhecimento da importância do trabalho de Morize e do governo brasileiro foi, também, pontuada pela pesquisadora.
Ela explicou que após o registro do eclipse, os cientistas ainda precisaram revelar as chapas fotográficas e a melhor opção seria fazê-lo em Sobral. Para que o resultado fosse satisfatório, a temperatura da água utilizada no processo deveria ser de aproximadamente 20ºC, mas o clima na cidade dificultava a obtenção de água a essa temperatura. Crommelin (1919) explicitou, em seu relatório, que a solução para a revelação foi utilizar utensílios da região: os porosos potes de barro (Rodrigues, 2012). Esse é um destaque para a importância da cultura material daquela cidade para o sucesso do evento.
Por fim, a pesquisadora explicou que esse sucesso foi divulgado internacionalmente por meio de jornais e revistas, que falavam da importância da comprovação da TRG com o registro do Eclipse de 1919, destacando o nome de Einstein para o grande público. Nesse instante, o estudante A, o mesmo que dissera em tom depreciativo “Brasil sendo Brasil”, disse “então, peraí... Sem o Ceará, Einstein não seria nada!”, ao que a pesquisadora respondeu que, como ele ficou ainda mais famoso devido à TRG e os resultados obtidos em Sobral foram superiores ao da outra expedição com mesmo objetivo enviada à Ilha de Príncipe, não seria exagero dizer isso. Essa fala é embasada no fato de que a divulgação entusiasmada na grande imprensa sobre os resultados do registro do Eclipse de 1919 são considerados por historiadores como importantes para Einstein alcançar a fama de cientista genial (Videira, 2005).
Encontro VI
Para essa atividade, os estudantes em grupo produziram um texto destacando o que consideraram importante para entender o Eclipse de Sobral. Nestes textos, os grupos identificaram que as práticas científicas relacionadas ao Eclipse de Sobral foram performadas por diferentes atores sociais, mobilizando diferentes conhecimentos. Esse fato nos remete ao Encontro I, os estudantes mencionaram não apenas cientistas e astrônomos como participantes das expedições que criaram, mas o fizeram apenas relacionando-os às viagens e hospedagem dos cientistas no local do evento. Porém, nos textos produzidos neste encontro, identificamos que o conhecimento de atores sociais que não eram cientistas foi considerado importante para a concretização daquela prática científica.
Todos os grupos citaram exemplos de profissionais que estariam envolvidos na prática científica do Eclipse de Sobral. À exceção do grupo VI-5, todos citaram nominalmente Einstein em seus textos e mencionaram astrônomos como pessoas participantes daquela prática. Houve ainda menções às seguintes profissões: meteorologista (grupos 1, 2, 4 e 7), cientista (grupos 1, 2, 6, 7 e 8), carpinteiro (grupos 2, 5 e 7), matemático (grupos 1, 4, e 7), fotógrafo (grupos 1 e 4), tradutor (grupos 2 e 6), químico (grupos 1 e 4), marceneiro (grupos 1 e 4), navegador (grupo 2), mecânico (grupo 6) e pedreiro (grupo 5). O grupo VI-7 destacou, em seu texto, que os sobralenses trabalharam nas estruturas dos abrigos.
Os textos dos grupos VI-2, 5, 6 e 7 apontaram uma tendência a considerar o encontro entre as pessoas de Sobral e as que para lá se deslocaram, para registrar o eclipse, como desigual. Como exemplo, trazemos o grupo VI-2 que escreveu, interpretando um integrante da expedição a Sobral, Primo Flores, que “conhecer os cidadãos da cidade e ver como eles viviam [...], os costumes e a cultura foi único”. O grupo expressou como os sobralenses seriam diferentes do “mundo do qual vinham os integrantes da expedição”. O grupo VI-6, por sua vez, escreveu:
‘Podemos fazer boas parcerias nesse sentido, nós com nossa criatividade, e a Inglaterra com a sua tradição em pesquisa’, diz a física [nome da estudante C], diretora do MAST. Sem cooperação, inexiste ciência. (Fragmento do texto do grupo VI-6, 2023)
O grupo VI-6, em seu texto, apresenta uma colaboração entre o Museu de Astronomia e Ciências Afins e cientistas ingleses e explica a importância da parceria entre ingleses e brasileiros por terem qualidades distintas. Nesse caso, os ingleses foram colocados como aqueles com mais conhecimento, por sua tradição em pesquisa, e os brasileiros, como criativos.
A ideia do outro, daquele que é diferente, também se faz presente no texto do grupo VI-5, quando narraram a chegada das expedições a Sobral:
Chegou um monte de gente com cara de estribado trazendo um monte de coisas grandes. Diziam que era pra tirar foto do Sol, que ele ia desaparecer. A cidade ficou num vai-e-vem sem fim. A prefeitura colocou aí os pedreiros e carpinteiros pra fazer as estruturas pra essas coisas grandes (Fragmento do texto do grupo VI-5, 2023)
Estribado é uma gíria utilizada no Ceará para se referir a pessoas com boas condições financeiras. Os estudantes desse grupo, então, fazem seu personagem imaginar os integrantes das expedições como pessoas ricas, fazendo referência explícita às desigualdades de classe entre os recém-chegados e as pessoas que viviam em Sobral.
Importante ressaltar que, nos oito textos, foram observadas ênfases na participação decisiva do povo sobralense e na colaboração dos trabalhadores locais com os cientistas para o êxito do evento. Por exemplo, o grupo VI-7 menciona a importância dos potes de barro para o êxito da prática.
Outra assistência essencial às comitivas fora o ensinamento local da resfriação da água em moringas de barro para revelação das fotos. Sem este conhecimento nada do feito teria sido registrado e nada teria valido à pena (Fragmento do texto do grupo VI-6)
O texto elaborado pelo grupo VI-5 também destaca a importância da participação e conhecimento dos sobralenses para o sucesso do Eclipse de Sobral, ressaltando que os pedreiros e carpinteiros construíram as estruturas. Entretanto, eles apontaram que aquilo não agregou “em nada para a vida de Sobral após o eclipse de 1919”, ainda que a cidade tenha ficado famosa pela ocasião, ao finalizar com um personagem se despedindo com a colocação: “então tá, brigado pela história mah. Vou lá trocar meu vidro que minha casa tá cheia de poeira das ventanias daqui”.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Como considerações finais, entendemos que os resultados sugerem que o estudo focado na prática científica de observação e registro de eclipses totais em fins do século XIX e início do XX, à luz da HCC, permitiu a construção de atividades que possibilitaram aos estudantes relacionar a ciência aos diferentes atores sociais que participam de sua produção, bem como as condições de sua participação, quem se beneficiou ou não com ela (Nyhart, 2016).
Conforme o estudo da prática se desenvolvia, os estudantes debateram as diferentes funções que um profissional (cientista ou não) pode ter no desenvolvimento científico, propósitos para o financiamento da ciência, a falta de participação feminina, como a ciência nacional se estabelece como importante em um cenário internacional e como a troca de conhecimento entre diferentes pessoas, de diferentes profissões e culturas, é parte do fazer científico. Esses são aspectos capazes de exemplificar como discussões de casos históricos em específicas vertentes historiográficas, como por exemplo a HCC, têm o potencial de suscitar debates a respeito de justiça e desigualdade social, como já apontado por Amaral (2021) e Gandolfi (2018), quando exploraram outros casos em outros contextos escolares.
A metodologia da PAH, por seu ir-e-vir, permitiu aos estudantes participarem de forma ativa da pesquisa. As questões levantadas durante as aulas impulsionaram a pesquisadora a enfatizar determinados aspectos da temática não considerados anteriormente, o que implicou em que ela, junto ao grupo de pesquisa, ampliasse o estudo do caso histórico delimitado.
Os resultados indicam que o estudo histórico-cultural da ciência permitiu a problematização a respeito das relações do poder na sociedade, como advogam pesquisadores como Bazzul (2020), Bencze e Carter (2020) e Morales-Doyle (2017). Entendemos que aquelas aulas proporcionaram um espaço para refletir a respeito de como as questões de desigualdade social se fazem presentes na construção da própria ciência, como advogam Sensöy e DiAngelo (2017), e para pensar caminhos possíveis para uma sociedade mais justa.
Por fim, a pesquisa sugere que problematizar as relações de poder, as diferentes pessoas que participaram da construção da ciência e as condições de sua participação contribui para a ampliação do conceito de humanização, em consonância com Guerra e Moura (2022), por possibilitar compreender que atores sociais que não foram cientistas foram essenciais para o desenvolvimento da ciência.
AGRADECIMENTOS
O presente trabalho foi realizado com apoio da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior - Brasil (CAPES) - Código de Financiamento 001 e do CNPq, bolsa de produtividade.
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A coleta de dados começou após a aprovação do projeto submetido na Plataforma Brasil (CAAE: 55293321000005268), com autorização assinada pelos estudantes envolvidos na pesquisa e por seus respectivos responsáveis, tendo sido reservado o anonimato dos estudantes.
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O curso técnico de Eventos oferecido pela instituição de ensino foca nas áreas de turismo, hospitalidade e lazer. As disciplinas que os estudantes desse curso fazem, além das do núcleo básico, são voltadas à linguagem, produção textual e organização de eventos.
Disponibilidade de dados
Todo o conjunto de dados que dá suporte aos resultados deste estudo foi publicado no próprio artigo. De acordo com a aprovação do projeto em comitê de ética, terão acesso aos dados coletados unicamente as pessoas autoras do trabalho.
Datas de Publicação
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Publicação nesta coleção
09 Ago 2024 -
Data do Fascículo
2024
Histórico
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Recebido
03 Out 2023 -
Aceito
26 Maio 2024