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Memória e Construção de Significados Sobre Substância Química: Uma Análise a Partir da Teoria da Rememoração

Memoria Y Construcción de Significados Sobre Sustancia Química: Un Análisis Desde La Teoría de la Rememoración

Memory and Meaning-Making about Chemical Substance: an Analysis from Remembering Theory

RESUMO:

O objetivo deste artigo é apresentar os resultados alcançados de uma análise acerca do início do processo de construção de significados do conceito de substância química por uma dupla de estudantes do ensino fundamental a partir da teoria da rememoração. Para isso, adotamos uma abordagem de pesquisa qualitativa e uma análise ideográfica, adaptamos o método da descrição de Bartlett, e a dupla de estudantes respondeu um questionário, explorou três materiais educativos sobre o conceito de substância química e depois respondeu três questões sobre o referido conceito no intervalo de trinta minutos, sete e quinze dias. O diálogo entre a dupla foi registrado em áudio e vídeo, durante a resolução das questões, para posterior transcrição e análise. Na análise observamos algumas modificações mnemônicas, tais como elaborações, transformações, transferências e importações. Essas modificações podem expressar a emergência de novos significados, a partir da ressignificação do conhecimento prévio frente ao novo.

Palavras-chave:
Rememoração; Memória; Construção de Significados

RESUMEN:

El objetivo de este artículo es presentar los resultados obtenidos de un análisis del inicio del proceso de construcción de significados del concepto de sustancia química por parte de una pareja de estudiantes de educación primaria utilizando la teoría de la rememoracíon. Para lograrlo, a través de una investigación cualitativa y un análisis ideográfico, adaptamos el método de descripción de Bartlett, y la pareja de estudiantes respondió un cuestionario, exploró tres materiales educativos sobre el concepto de sustancia química, y luego respondió tres preguntas sobre el concepto en intervalos de treinta minutos, siete días y quince días. El diálogo entre la pareja fue grabado en audio y video durante la resolución de las preguntas, para su posterior transcripción y análisis. En el análisis, observamos algunas modificaciones mnemónicas, como elaboraciones, transformaciones, transferencias e importaciones. Estas modificaciones pueden expresar la emergencia de nuevos significados a través de la resignificación del conocimiento previo a la luz de la nueva información.

Palabras-clave:
Rememoración; Memoria; Construcción de significados

ABSTRACT:

The aim of this article is to present the results obtained from an analysis of the beginning of the process of constructing meanings of the concept of chemical substance by a pair of elementary school students using the remembering theory. To achieve this, through qualitative research and ideographic analysis, we adapted Bartlett's description method, and the student pair answered a questionnaire, explored three educational materials on the concept of chemical substance, and then answered three questions about the concept in intervals of thirty minutes, seven days, and fifteen days. The dialogue between the pair was recorded in audio and video during the resolution of the questions, for subsequent transcription and analysis. In the analysis, we observed some mnemonic modifications, such as elaborations, transformations, transfers, and importation. These modifications can express the emergence of new meanings through the re-signification of prior knowledge in light of the new information.

Key words:
Remembering; Memory; Meaning Making

INTRODUÇÃO

Ideias sobre a natureza de processos mnemônicos datam desde a Grécia Antiga, quando a memória era considerada um presente da deusa Mnemosyne. A pessoa contemplada por esta dádiva era protegida do mal do esquecimento e deveria propagar suas memórias para outras pessoas (Wagoner, 2011Wagoner, B. (2011). Meaning construction in remembering: A synthesis of Bartlett and Vygotsky. In P. Stenner, J.; Cromby, J.; Motzkal; J. Yen(Eds.), Theoretical Psychology: Global Transformations and Challenges (pp. 105-114). Toronto: Captus Press.). A imagem de Mnemosyne segurando um livro e uma pluma de escrita remete a memória a um processo de transcrição, tal qual afirmava Platão. Segundo o filósofo grego, as memórias eram transcritas na mente humana de forma semelhante a inscrições talhadas em um bloco de cera. Essa analogia é utilizada em alguns estudos com viés mais cognitivista ou neurológico, tais como os estudos de Lombroso (2004Lombroso, P. (2004). Aprendizado e memória.Brazilian Journal of Psychiatry,26, 207-210. https://doi.org/10.1590/S1516-44462004000300011
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), Pavão (2008Pavão, R. (2008). Aprendizagem e memória.Revista da Biologia, 1, 16-20.) e Andrade et al. (2021Andrade, W. T. V. S., Silva, S. F. S., dos Santos, É. V. A., Dutra, M. L., de Melo, T. O., & de Oliveira Fermoseli, A. F. (2021). A relação neurofisiológica existente entre memória e aprendizagem: Uma revisão bibliográfica.Caderno de Graduação-Ciências Biológicas e da Saúde-UNIT-ALAGOAS, 6(3), 66-66.). Nesse sentido, é comum encontrar trabalhos na literatura que se preocupam em analisar a relação entre aprendizagem e memória, considerando esta como um local em que as informações são armazenadas de forma inscrita no substrato mental (Brandeis, Brandys &Yehuda,1989Brandeis, R., Brandys, Y., Yehuda, S. (1989). The use of the Morris water maze. In The Study of Memory and Learning. International Journal of Neuroscience (Vol. 48, pp. 29-69). https://doi.org/10.3109/00207458909002151
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; Kintsch & Bates,1997Kintsch, W., & Bates, E. (1977). Recognition Memory for Statements from a Classroom Lecture. Journal of Experimental Psychology: Human Learning and Memory (Vol. 3, No. 2, pp. 150-159). https://doi.org/10.1037//0278-7393.3.2.150
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). Mesmo aprender e memorizar sendo processos distintos, do ponto de vista cognitivo e neurológico, em tais trabalhos, o modelo de aprendizagem acaba sendo reduzido à ideia de boa memória, a partir da capacidade das pessoas em recuperar as informações anteriormente armazenadas, da forma mais acurada possível.

Por outro lado, alguns estudos de viés mais sociocultural (Northway, 1940Northway, M. L. (1940). The concept of “schema”: Part I. British Journal of Psychology, 30, 316-325. https://doi.org/10.1111/j.2044-8295.1940.tb00964.x
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; Edwards & Middleton, 1987Edwards, D., & Middleton, D. (1987). Conversation and remembering: Bartlett revisited. Applied Cognitive Psychology, 1, 77-92. https://doi.org/10.1002/acp.2350010202
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; Wagoner, 2011Wagoner, B. (2011). Meaning construction in remembering: A synthesis of Bartlett and Vygotsky. In P. Stenner, J.; Cromby, J.; Motzkal; J. Yen(Eds.), Theoretical Psychology: Global Transformations and Challenges (pp. 105-114). Toronto: Captus Press.; Valsiner, 2014Valsiner, J. (2014). An Invitation to Cultural Psychology. Londres:SAGE Publications Ltd. https://doi.org/10.4135/9781473905986
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; Wagoner & Gillespie, 2014Wagoner, B. (2013). Bartlett’s concept of schema in reconstruction. Theory & Psychology, 23(5), 553- 575. https://doi.org/10.1177/0959354313500166
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) têm apontado para um modelo alternativo para compreensão da memória, o qual considera a influência de elementos advindos da cultura nos processos mnemônicos. Esses estudos são baseados na teoria da rememoração desenvolvida por Bartlett (1932Bartlett, F. C. (1932). Remembering: a study in experimental and social psychology. New York: Cambridge University Press.). Nesta teoria, a memória é considerada como um processo de (re)construção, a partir da influência de elementos culturais, se opondo à ideia de memória como local de armazenamento ou inscrição. Neste sentido, Bartlett (1932Bartlett, F. C. (1932). Remembering: a study in experimental and social psychology. New York: Cambridge University Press.) afirma que não recuperamos nossas experiências passadas (aquelas mais complexas) de forma literal, mas reconstruímos nossas memórias, de acordo com a influência de elementos da cultura. Acreditamos, assim, que o modelo de memória considerado na teoria da rememoração pode parecer útil para compreender como estudantes constroem significados, em função de como o conhecimento prévio2 2 Neste artigo, consideramos o conhecimento prévio como todo conhecimento construído de forma espontânea ou oriundo de um passado de experiências do sujeito, não se restringindo apenas às concepções informais/alternativas. é rememorado em situações de aprendizagem. Dessa forma, a contribuição deste artigo está na possibilidade de compreender o papel da memória na aprendizagem a partir de um modelo memória com viés cultural, entendendo COMO processos mnemônicos refletem numa possível significação do conhecimento prévio dos estudantes. Assim, se afastando de modelos os quais consideram a memória apenas como um local de armazenamento e recuperação de informações.

Diante de tal contexto, o objetivo deste artigo é apresentar como duas estudantes do Ensino Fundamental constroem seus primeiros significados acerca do conceito de substância química a partir de indícios identificados com base na teoria da rememoração de Bartlett (1932Bartlett, F. C. (1932). Remembering: a study in experimental and social psychology. New York: Cambridge University Press.) e uma pesquisa qualitativa de análise ideográfica. Tal objetivo se relaciona com o seguinte problema de pesquisa proposto: como novos significados acerca do conceito de substância química podem ser representados a partir de modificações mnemônicas? Consideramos que o conceito de substância desempenha um papel fundamental na Química, assim como outros conceitos. Assim, a escolha do conceito de substância se justifica por este um conceito central da Química, possibilitando explicar vários aspectos e propriedades dos materiais (Bellas et al., 2019Bellas, R. R., Queiroz, I. R., Lima, L. R. F. C., & Silva, J. L. P. B. (2019). O conceito de substância química e seu ensino.Química Nova na Escola,41(1), 17-24. https://doi.org/10.21577/0104-8899.20160143
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).

FUDAMENTAÇÃO TEÓRICA

Sir Frederic Charles Bartlett (1886-1969) foi um psicólogo britânico e professor da Universidade de Cambridge (sendo o primeiro de Psicologia Experimental). Uma de suas principais obras é o livro Remembering: a study in experimental and social psychology, no qual apresenta um extensivo estudo sobre imaginação, percepção e memória. Segundo Wagoner (2011Wagoner, B. (2011). Meaning construction in remembering: A synthesis of Bartlett and Vygotsky. In P. Stenner, J.; Cromby, J.; Motzkal; J. Yen(Eds.), Theoretical Psychology: Global Transformations and Challenges (pp. 105-114). Toronto: Captus Press.), Bartlett explora características importantes da memória, se afastando de estudos que a consideram como um local de armazenamento, além de teorizar como ela é constituída no meio cultural, conduzindo uma série de experimentos sobre percepção, imaginação e memória, permitindo-o criar uma teoria que levasse em consideração todos esses processos conjuntamente. Em seus experimentos sobre memória, ele desenvolveu três métodos: o método da reprodução repetida, da reprodução em série e o método da descrição. Para o presente artigo, nos limitamos a apresentar o método da descrição, o qual adaptamos para nossa coleta e análise de dados.

No método da descrição, Bartlett (1932Bartlett, F. C. (1932). Remembering: a study in experimental and social psychology. New York: Cambridge University Press.) apresentou aos seus participantes cinco imagens de rostos de militares, como apresentamos na Figura 1.

Figura 1
Material usado no método da descrição (Bartlett, 1932Bartlett, F. C. (1932). Remembering: a study in experimental and social psychology. New York: Cambridge University Press., p. 47).

O experimento foi realizado com 20 participantes, durante os primeiros dias da primeira Guerra Mundial, momento em que estava sendo bastante difundido o interesse pelo serviço militar na Inglaterra. Bartlett (1932Bartlett, F. C. (1932). Remembering: a study in experimental and social psychology. New York: Cambridge University Press.) justifica o uso dessas figuras pelo fato de que elas eram suficientemente parecidas entre si para tornar o seu agrupamento fácil e, ao mesmo tempo, cada rosto tinha peculiaridades individuais bem definidas.

As figuras foram apresentadas com as faces viradas para baixo, em uma mesa de frente aos participantes, e a instrução dada foi que os participantes deveriam olhar cada figura durante 10 segundos e depois descrever cada uma e responder algumas perguntas sobre elas. Dessa forma, cada cartão foi visualizado duas vezes durante 10 segundos (inicialmente, com todos os cartões juntos, e depois, individualmente). Após a visualização de todos os cartões, houve uma pausa de 30 minutos. Durante este tempo, Bartlett conversou com seus participantes sobre assuntos de trabalho.

Após a pausa, foi solicitado que os participantes descrevessem em detalhes todos os cartões, seguindo a ordem de apresentação (Figura 1), e que respondessem algumas questões sobre as figuras. Uma semana depois, foi solicitado que os participantes fizessem outras descrições, além de responderem novas perguntas. O procedimento foi repetido seguindo intervalos maiores de tempo sem que os cartões fossem apresentados novamente e sem que os participantes soubessem que iria ser solicitada uma nova descrição.

Na análise de seus dados, Bartlett (1932Bartlett, F. C. (1932). Remembering: a study in experimental and social psychology. New York: Cambridge University Press.) apontou para algumas características da rememoração que representavam modificações mnemônicas:

  1. Transformação: substituição de elementos do material rememorado por outros que sejam familiares ao sujeito;

  2. Importação: novos elementos provenientes de outras experiências passadas emergem na rememoração, agregando novidades ao material que está sendo rememorado;

  3. Elaboração: novos elementos são criados pelo sujeito e inseridos durante o ato de rememorar;

  4. Transferência: características de um determinado material a ser rememorado são transferidas para outro durante a rememoração.

Bartlett (1932Bartlett, F. C. (1932). Remembering: a study in experimental and social psychology. New York: Cambridge University Press.) notou que quanto maior o intervalo de tempo para os participantes, mais modificações mnemônicas eram identificadas. Isso é uma evidência que demonstra que quanto maior o intervalo de tempo para a rememoração, existe uma maior tendência de os participantes criarem ou importarem novos elementos de diferentes contextos para cobrir lacunas de memória causadas pelo esquecimento ao longo do tempo (Bartlett, 1932Bartlett, F. C. (1932). Remembering: a study in experimental and social psychology. New York: Cambridge University Press.). Na perspectiva mnemônica aqui adotada, no ato da rememoração, os novos elementos incorporados na memória, a fim de cobrir lacunas, podem representar novos significados que o sujeito constrói acerca do material rememorado. É neste sentido que Bartlett (1932Bartlett, F. C. (1932). Remembering: a study in experimental and social psychology. New York: Cambridge University Press.) afirma que a rememoração também é um esforço para significar o objeto3 3 No texto original, Bartlett (1932) usa a expressão “effort after meaning”, para afirmar que ao tentar cobrir uma lacuna de memória, há um esforço para se atribuir um significado ao que está sendo rememorado. .

Rememoração e construção de significados

Alguns autores problematizam a relação entre memória e aprendizagem em sala de aula (Kintsch & Bates, 1997Kintsch, W., & Bates, E. (1977). Recognition Memory for Statements from a Classroom Lecture. Journal of Experimental Psychology: Human Learning and Memory (Vol. 3, No. 2, pp. 150-159). https://doi.org/10.1037//0278-7393.3.2.150
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; Brandeis, Brandys & Yehuda, 1989Brandeis, R., Brandys, Y., Yehuda, S. (1989). The use of the Morris water maze. In The Study of Memory and Learning. International Journal of Neuroscience (Vol. 48, pp. 29-69). https://doi.org/10.3109/00207458909002151
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; Alloway & Gathercole, 2006Alloway, T.P. & Gathercole, S.E. (2006). Working memory and neurodevelopmental disorders. Hove, UK: Psychology Press., dentre outros). Tais trabalhos, apesar da contribuição nos campos da psicologia cognitiva e educacional, não respondem à questão de como se dá o processo de aprendizagem levando em consideração o papel da rememoração de conhecimentos prévios na construção de novos significados. Neste sentido, adotamos a teoria da rememoração como aporte teórico para compreensão de como a forma em que o conhecimento prévio do estudante é rememorado pode influenciar na aprendizagem, conferindo à memória um papel central no processo de construção de significados. Para isso, também lançamos mão dos conceitos de internalização e externalização.

Segundo o conceito de internalização, elaborado por Vigotski (1995Vigotski, L. S. (1995). Obras completas. Tomo cinco. Fundamentos de defectologia. Tradução do Programa de Ações Relativas às Pessoas com Necessidades Especiais (PEE).), o desenvolvimento cultural do sujeito acontece em dois estágios: primeiramente em um nível social - interpsicológico e depois em um nível individual - intrapsicológico. Assim, o autor afirma que as funções mentais superiores emergem a partir das trocas sociais sendo, progressivamente, internalizadas. Este processo é mediado pelos signos, sendo a linguagem, para Vigotski, o principal mediador nas relações sociais (Vigotski, 1995Vigotski, L. S. (1995). Obras completas. Tomo cinco. Fundamentos de defectologia. Tradução do Programa de Ações Relativas às Pessoas com Necessidades Especiais (PEE).). A todo momento, o sujeito internaliza elementos do seu dia a dia, a partir de sua relação com o ambiente e com os sujeitos que interagem (relações sociais). Porém, a forma como os significados compartilhados culturalmente são internalizados não será a mesma para todas as pessoas. O modo pelo qual o sujeito interage com o ambiente e com outras pessoas irá determinar como os significados serão internalizados e construídos (Vigotski, 1934Vigotski, L. S. (1934). The problem of the environment. In R.Van der Veer & J. Valsiner (Orgs.), The Vygotsky Reader(pp. 338-354). Oxford: Blackwell Publishers.).

Valsiner (2014Valsiner, J. (2014). An Invitation to Cultural Psychology. Londres:SAGE Publications Ltd. https://doi.org/10.4135/9781473905986
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), ao reelaborar a noção de internalização proposta por Vigotski, afirma que é um processo de análise da experiência externa de materiais semióticos e sua síntese numa nova forma no domínio intrapsicológico. Ou seja, diz respeito a como os sujeitos constroem significados sobre suas experiências no e do mundo. Além disso, Valsiner destaca o papel da externalização, que se caracteriza como um processo de análise dessas experiências, em nível subjetivo (materiais pessoais-culturais) e a sua transposição para o mundo externo, como de “dentro” para “fora” da pessoa. Nessa transposição, a pessoa comunica a sua nova síntese, podendo modificar, dessa forma, o ambiente externo (Valsiner, 2014Valsiner, J. (2014). An Invitation to Cultural Psychology. Londres:SAGE Publications Ltd. https://doi.org/10.4135/9781473905986
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). Essa nova síntese diz respeito a novos significados construídos.

Diante disso, consideramos que uma análise do processo pelo qual o sujeito externaliza seus conhecimentos prévios (a partir de experiências passadas), diante de uma situação de aprendizagem (posta em sala de aula), pode nos mostrar como novos significados são construídos. Numa perspectiva vigotskiana, esses novos significados são identificados a partir do uso funcional e intencional da palavra4 4 Em Vigotski (2000) a palavra é considerada o próprio conceito. Para ele, a palavra (conceito) sem significado se torna apenas um som vazio. em determinadas situações, representando uma síntese abstrata e generalizada do conceito construído (Vigotski, 2000Vigotski, L.S. (2000). A construção do pensamento e da linguagem. (P. Bezerra, Trad.). São Paulo: Martins Fontes.).

A utilização funcional e intencional dos conceitos se dá a partir do processo de externalização, quando o sujeito comunica suas novas sínteses e abstrações oriundas dos novos significados construídos. Neste sentido, a externalização, quando se dá de forma intencional e consciente, reflete em como o sujeito tomou consciência do significado do conceito, aplicando-o em diferentes situações e justificando seu uso. Numa perspectiva vigotskiana tomar consciência de uma operação significa transferir do plano da ação para a linguagem, recriando-a na imaginação fazendo com que se torne possível exprimi-la em palavras para o ambiente externo (Vigotski, 2000Vigotski, L.S. (2000). A construção do pensamento e da linguagem. (P. Bezerra, Trad.). São Paulo: Martins Fontes.).

Neste artigo, consideramos que o ato de externalizar/verbalizar de forma consciente um conceito se dá a partir do processo de rememoração que, segundo Bartlett (1932Bartlett, F. C. (1932). Remembering: a study in experimental and social psychology. New York: Cambridge University Press.), Wagoner (2011Wagoner, B. (2011). Meaning construction in remembering: A synthesis of Bartlett and Vygotsky. In P. Stenner, J.; Cromby, J.; Motzkal; J. Yen(Eds.), Theoretical Psychology: Global Transformations and Challenges (pp. 105-114). Toronto: Captus Press.) e Valsiner (2014Valsiner, J. (2014). An Invitation to Cultural Psychology. Londres:SAGE Publications Ltd. https://doi.org/10.4135/9781473905986
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), pode promover a construção de novos significados, visto que novos elementos são agregados ao conhecimento prévio que está sendo rememorado. Esses novos elementos podem emergir de acordo com as características da rememoração, já apresentadas anteriormente: transformação, importação, elaboração e transferência.

Com base nesses princípios, acreditamos que o processo de rememoração pode nos oferecer indícios de como o sujeito estabelece relações entre o conhecimento prévio (espontâneo ou científico) e o conteúdo posto em sala de aula. Essas relações irão depender dos significados atribuídos ao conceito, numa relação dinâmica com o ambiente (Vigotski, 1934Vigotski, L. S. (1934). The problem of the environment. In R.Van der Veer & J. Valsiner (Orgs.), The Vygotsky Reader(pp. 338-354). Oxford: Blackwell Publishers.). A cada nova demanda em um novo contexto, o conceito poderá sofrer mais ressignificações, a partir das constantes atualizações de experiências passadas, durante os processos de internalização e externalização.

Diante de uma situação de aprendizagem, como a resolução de um problema, por exemplo, pode-se observar a construção de significados a partir do momento que o sujeito rememora5 5 O recorte do presente artigo foca na memória, como processo cognitivo importante na construção de significados. Contudo, a rememoração por si só não é suficiente, pois tal construção exige a mobilização de outras funções que compõem o psiquismo humano, para além da memória. conhecimentos prévios que podem ser relevantes para sua solução. Ao rememorar aspectos conceituais relevantes, ele ressignifica seu conhecimento prévio, abrindo possibilidades de criação de novos signos que estarão relacionados a esses novos significados. Este processo pode ser explicado através de um modelo de looping (Figura 2), o qual representa como o sujeito rememora seu conhecimento prévio, diante de uma situação de aprendizagem, prospectando novos significados no futuro, frente ao novo conhecimento (científico) que está sendo construído.

Figura 2
Rememoração e ressignificação de conhecimento prévio na resolução de problemas (fonte: própria).

METODOLOGIA

O presente artigo se trata de um recorte de uma pesquisa maior, desenvolvida no âmbito do doutorado. Neste recorte, apresentaremos o processo de análise de uma dupla de participantes, estudantes do 8º ano do ensino fundamental de uma escola pública no estado de Pernambuco. A dupla foi selecionada a partir da indicação da professora da turma, com o consentimento dos seus responsáveis para participação da pesquisa. O critério de escolha foi o perfil participativo das estudantes, no engajamento de discussões em sala de aula. A dupla, que recebeu os nomes fictícios de Aeris e Tifa, se tratou de duas estudantes do sexo feminino entre 12 e 13 anos de idade, não repetentes e que demonstravam afinidade com a disciplina de Ciências na escola.

Assim, esta pesquisa se caracteriza como uma análise ideográfica (Lucena, 2002Lucena, A. D. F. (2002). Análise ideográfica e nomotética na pesquisa qualitativa com abordagem fenomenológica.Revista HCPA, Porto Alegre.), a qual se concentra em compreender a singularidade e complexidade de indivíduos ou casos específicos, valorizando a profundidade em detrimento da amplitude. Por isso, optamos por incluir apenas duas estudantes neste recorte, sem a necessidade de uma ampla amostra para generalizar os resultados. Seguindo os princípios da pesquisa ideográfica, trabalhar com apenas duas participantes possibilitou uma análise detalhada das experiências individuais, revelando nuances e particularidades que poderiam se perder em amostras maiores.

Adaptamos o método da descrição (Bartlett, 1932Bartlett, F. C. (1932). Remembering: a study in experimental and social psychology. New York: Cambridge University Press.), colocando as participantes para trabalharem em dupla, de acordo com a proposta de Wagoner e Gillespie (2014Wagoner, B., & Gillespie, A. (2014). Sociocultural mediators of remembering: An extension of Bartlett’s method of repeated reproduction. British Journal of Social Psychology, 53(4), 622-639. https://doi.org/10.1111/bjso.12059
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). A justificativa das participantes trabalharem em dupla esteve na possibilidade de ambas externalizarem seus pensamentos a partir da discussão acerca das questões colocadas, permitindo acesso aos processos mnemônicos (Wagoner e Gillespie, 2014). De forma a contemplar a perspectiva ideográfica aqui adotada, de compreender a singularidade das participantes, o processo de análise se deu na categorização de forma individual das modificações mnemônicas, ainda que tais modificações tenham sido mediadas pela discussão e tenha havido uma contribuição mútua na construção de significados do conceito trabalhado. Além disso, justificamos a escolha de participantes do ensino fundamental pela necessidade de investigarmos o início do processo de significação, buscando participantes que nunca tivessem estudado o conceito de substância química formalmente na escola. O conteúdo de substâncias químicas bem como a diferenciação entre substância, elemento e mistura, normalmente, só é abordado a partir do 9º ano do ensino fundamental de acordo com o currículo do estado de Pernambuco. Esta pesquisa seguiu todos os procedimentos éticos, mantendo o anonimato das participantes e contando com a concordância dos responsáveis pelas estudantes menores de idade, a partir da assinatura do termo de compromisso e livre esclarecido (TCLE). Além disso, a presente pesquisa foi aprovada pelo comitê de ética sob o CAAE 57323216.3.0000.5208.

Construção dos dados

A coleta de dados compreendeu três momentos, descritos a seguir - questionário, internalização e externalização:

Momento 1: questionário inicial

As participantes responderam um questionário com perguntas para levantamento do conhecimento prévio/concepções informais sobre substância química -possíveis concepções que pudessem ser rememoradas posteriormente. As perguntas do pré-teste foram:

  1. ) Já estudou Química na escola? Se sim, quando?

  2. ) Já ouviu falar sobre substâncias químicas? Se sim, onde? E quando?

  3. ) Para você, o que é uma substância química?

  4. ) Cite exemplos de substâncias químicas que você conhece.

  5. ) Cite onde você aprendeu que os itens listados na questão anterior são substâncias químicas.

Momento 2: internalização

Contato com os objetos a serem rememorados para resolução de questões: ao longo de 1h os participantes tiveram contato com os seguintes materiais (análogos às imagens utilizadas por Bartlett no método da descrição):

  • Material A - capítulo sobre substâncias químicas retirado de um livro didático6 6 REIS, M. (2014). Química. vol. 1.São Paulo: Moderna. (contato com definições formais do conceito de substância em um material de instrução comumente utilizado na escola);

  • Material B - um artigo da Wikipedia7 7 Disponível em <https://pt.wikipedia.org/wiki/Subst%C3%A2ncia> acessado em 06/06/2024 sobre substância química (contato com definições formais do conceito de substância a partir de um material disponível na Internet e de acesso aberto, mas que não é utilizado, de forma convencional, em sala de aula);

  • Material C - Uma videoaula, com duração de 10 minutos, sobre substância química, disponível no YouTube8 8 Disponível em <https://www.youtube.com/watch?v=iDcTy55Nia0> acessado em 06/06/2024 (contato com definições formais do conceito de substância a partir de uma aula propriamente dita).

Os materiais A e B, que se tratavam de textos, foram lidos duas vezes seguidas, de acordo com a orientação disponível em Wagoner e Gillespie (2014Wagoner, B., & Gillespie, A. (2014). Sociocultural mediators of remembering: An extension of Bartlett’s method of repeated reproduction. British Journal of Social Psychology, 53(4), 622-639. https://doi.org/10.1111/bjso.12059
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). Já o material C, o vídeo, foi visualizado apenas uma vez. Entre a apresentação de cada material, houve tarefas distratoras9 9 No presente estudo as tarefas distratoras contemplaram: uma conversa com o pesquisador sobre o dia a dia da escola e um jogo em que as participantes tiveram que nomear personagens de desenhos animados a partir da apresentação destes em uma folha de papel. , seguindo os métodos utilizados por Bartlett (1932Bartlett, F. C. (1932). Remembering: a study in experimental and social psychology. New York: Cambridge University Press.), Wagoner e Gillespie (2014), de forma a tirar o foco das participantes do material consultado anteriormente.

Momento 3: externalização

Após uma pausa de 30 minutos as participantes responderam três questões sobre o conceito de substância química (Quadro 1). Antes de responder às questões, demos a seguinte instrução: “respondam às questões usando como base apenas as informações contidas nos materiais A, B e C (livro didático, artigo da Wikipedia e videoaula)”. A discussão entre as participantes foi registrada em áudio e vídeo, sem a presença do pesquisador. Posteriormente, os diálogos foram transcritos para análise.

Quadro 1
Questões apresentadas à dupla de participantes.

O objetivo das questões foi o de fomentar a rememoração de respostas que estavam presentes nos materiais apresentados, focando em perguntas objetivas e diretas para apresentação de definições e exemplos. Tendo em vista o nível de ensino das participantes, não esperávamos respostas bem elaboradas do ponto de vista científico, visto que algumas definições solicitadas envolvem níveis de abstração mais complexos. Assim, o foco foi observar em como as respostas presentes nos materiais eram rememoradas a fim de identificar indícios de significados construídos a partir das modificações mnemônicas.

A resolução das questões se deu em sucessivas rememorações (externalizações). Ou seja, as participantes foram convidadas a responder às mesmas questões após os seguintes intervalos: 30 minutos, 7 e 15 dias após o contato inicial com os materiais disponibilizados. Esses intervalos, segundo os experimentos sobre rememoração realizados em Bartlett (1932Bartlett, F. C. (1932). Remembering: a study in experimental and social psychology. New York: Cambridge University Press.) e Wagoner e Gillespie (2014Wagoner, B., & Gillespie, A. (2014). Sociocultural mediators of remembering: An extension of Bartlett’s method of repeated reproduction. British Journal of Social Psychology, 53(4), 622-639. https://doi.org/10.1111/bjso.12059
https://doi.org/10.1111/bjso.12059...
), serviram para proporcionar o esquecimento das informações consultadas nos materiais disponibilizados. De acordo com Bartlett (1932) sucessivos intervalos impedem que se tenha uma reprodução literal das informações rememoradas com uma grande frequência. Contudo, o autor destaca que não existe uma regra em relação a estes intervalos, visto que a capacidade de recuperação das informações pode variar em cada sujeito. Em seus experimentos, em intervalos mais curtos, ele sugere a utilização de tarefas distratoras ou conversações sobre temas aleatórios, de forma a tentar tirar o foco do participante do material consultado. Seguindo tais recomendações, acreditamos poder analisar o processo de rememoração a partir do esforço das participantes em cobrir lacunas de memória.

Análise dos dados

A análise dos dados se deu a partir da identificação de modificações mnemônicas (categorias), as quais podem refletir ressignificações do conhecimento prévio e possíveis novos significados construídos:

- Importação: inserção de elementos oriundos de outros contextos (outras experiências passadas) para o material rememorado. Por exemplo, ao exemplificar uma substância química, as participantes poderiam rememorar um composto estudado anteriormente na aula de Ciências em vez de alguma substância presente nos materiais disponibilizados;

- Elaboração: criação de novos elementos conceituais, indicando novas sínteses. Por exemplo, as participantes poderiam, com base na rememoração das informações nos materiais disponibilizados, elaborar uma definição própria para o conceito de substância química, sem necessariamente reproduzir de forma literal alguma ideia presente nos textos ou no vídeo;

- Transferência: transferência de elementos de um material para outro durante a rememoração. Nesta categoria, as participantes poderiam apresentar confusões conceituais, transferindo atributos de um conceito para o outro como, por exemplo, confundir elemento com substância química na tentativa de rememorar uma definição para um destes conceitos;

- Transformação: transformação de algum elemento original do material consultado em outro que fosse mais familiar durante a rememoração. Nesta categoria, as participantes, no ato de rememorar, poderiam trocar expressões ou termos específicos por outras palavras, como por exemplo trocar o termo “transformação química” por “reação química”, por este último ser mais familiar para elas.

As categorias foram propostas a partir das modificações mnemônicas identificadas por Bartlett (1932Bartlett, F. C. (1932). Remembering: a study in experimental and social psychology. New York: Cambridge University Press.) e foram validadas a partir da discussão em torno de um estudo piloto disponível em Silva, Lyra e Wagoner (2020Silva, J. R. R. T., Lyra, M. C., & Wagoner, B. (2020). The Microgenetic Analysis of Remembering and Imagining in the Process of Learning Scientific Concepts.Imagining the Past, Constructing the Future, 47-69. https://doi.org/10.1007/978-3-030-64175-7_4
https://doi.org/10.1007/978-3-030-64175-...
).

RESULTADOS E DISCUSSÃO

No que diz respeito ao conhecimento prévio, a partir das respostas ao questionário inicial, as participantes informaram que nunca haviam estudado Química na escola (Quadro 2 - linha 1). Porém, todas alegaram já terem ouvido falar sobre o conceito de substância química.

Quadro 2
Respostas ao questionário inicial pela dupla Aeris(A)/Tifa(T).

Segundo as respostas, as participantes ouviram falar do conceito de substância nas aulas de Ciências e em meios de comunicação, como a Internet e televisão (Quadro 2 - linhas 2 e 5). Além disso, possivelmente, devido a esse contato com o conceito de substância, Aeris, especificamente, foi capaz de esboçar alguns exemplos, citando nomes de compostos químicos (Quadro 2 - linha 4). Já Tifa mencionou termos genéricos referentes a materiais/misturas os quais possuem substâncias químicas em sua composição. Apesar de saberem exemplificar algumas substâncias e materiais, nenhuma das participantes esboçou corretamente, do ponto de vista científico, uma definição para o conceito10 10 Definições aceitas do ponto de vista científico deveriam envolver classificações a partir de dois sistemas conceituais diferentes, como aponta Rocha-Filho et al. (1988): um referente à natureza das substâncias (como uma porção da matéria que apresenta apenas um tipo de molécula) e outro referente à suas formas de apresentação (em que substâncias são formadas por moléculas ou redes cristalinas, e estas, por sua vez, formadas por átomos de elementos químicos). Do ponto de vista macroscópico, o conceito de substância se relaciona com suas propriedades que são manifestadas e aferidas no mundo real, por exemplo, o ponto de fusão e ebulição. Essas definições, dentro de um sistema conceitual mais amplo, são contempladas na definição do conceito de substância química apresentada pela IUPAC (2014): “Matéria de composição constante mais bem caracterizada pelas entidades (moléculas, fórmulas unitárias, átomos) de que é composta. Propriedades físicas tais como densidade, índice de refração, condutividade elétrica, ponto de fusão etc., caracterizam a substância química” (Bellas et al., 2019, p. 17). , expressando ideias provenientes do senso comum (Quadro 2 - linha 3). Essas ideias apresentadas sobre o conceito de substância química se relacionam com concepções informais presentes na literatura. Enquanto a concepção apresentada por Tifa possui uma natureza mais pragmática (Silva, J., 2017Silva, F. C. V. (2017). Análise de diferentes modos de pensar e formas de falar o conceito de ácido/base em uma experiência socialmente situada vivenciada por licenciandos em química. [Tese de Doutorado, Universidade Federal Rural de Pernambuco, Recife .), referente à ideia da utilidade e influência das substâncias nas nossas vidas, Aeris apresenta uma visão de natureza mais empírica (Silva, F., 2017Silva, F. C. V. (2017). Análise de diferentes modos de pensar e formas de falar o conceito de ácido/base em uma experiência socialmente situada vivenciada por licenciandos em química. [Tese de Doutorado, Universidade Federal Rural de Pernambuco, Recife .) relacionando o conceito de substância com algum processo de manipulação (diluição ou transformação química).

Análise da resolução das questões

A seguir apresentaremos a análise do processo de resolução das questões, a fim de identificar as modificações mnemônicas. A transcrição da discussão da dupla foi realizada de forma literal, mantendo a fidedignidade dos dados, e será apresentada a partir da divisão por turnos, em que cada turno se refere a fala de uma das participantes. A análise será apresentada focando em cada intervalo de tempo para resolução: 30 minutos, 7 dias e 15 dias após o contato inicial com os materiais disponibilizados.

Análise do 1º dia: 30 minutos após o contato com os materiais

No primeiro dia de resolução identificamos alguns momentos em que emergiram modificações mnemônicas, expressando possíveis novos significados. As categorias aqui destacadas dizem respeito ao processo mnemônico de recuperação das informações dos materiais disponibilizados para elaboração das respostas.

Na resolução da primeira questão (Quadro 3), notamos que houve momentos de importação, em que elementos, provenientes de um conhecimento prévio, foram incorporados nas respostas, mesmo não estando presentes em nenhum dos materiais disponibilizados.

Quadro 3
Características da rememoração na resolução da primeira questão 30 minutos após o contato com as fontes.

No trecho destacado no Quadro 3, a dupla inicia discutindo a primeira parte da questão, a qual solicitava uma definição para o conceito de substância química. Assim, entre os Turnos 1 e 11 Aeris e Tifa buscam uma definição, tomando como base a videoaula disponibilizada. Apesar de notarmos uma diferença na definição apresentada pela dupla no Quadro 3 e a resposta fornecida no questionário inicial, para a mesma pergunta, não é possível afirmar que houve de fato uma ressignificação do conhecimento prévio. Porque a definição apresentada pela dupla de que uma substância química é formada por elementos químicos e possui fórmula (Turnos 1 ao 10) é uma reprodução literal da explicação presente na videoaula, quando o professor diferencia substâncias de misturas. Dessa forma, ao rememorar o conteúdo presente na videoaula, houve uma repetição das informações, não sendo possível identificar modificações mnemônicas e, consequentemente, indícios da construção de novos significados. Na resposta final ainda é mencionado que substâncias (“algo”) são formadas por elementos químicos, informação esta que também estava presente nos três materiais disponibilizados.

Contudo, a partir do Turno 12, é possível identificar modificações mnemônicas que apontam para possíveis novos significados que começaram a ser construídos. Destacamos a fala de Aeris no Turno 16, em que ela propõe o enxofre como um exemplo de substância química, conforme a questão solicitava. O enxofre não estava presente em nenhum dos materiais disponibilizados, tendo sido importado de algum outro contexto, possivelmente das aulas de Ciências. De fato, ao observarmos o Quadro 2 - linha 4, Aeris cita o dióxido de enxofre como um dos exemplos de substâncias químicas que ela já conhecia, sendo um indício de que o termo “enxofre” já era familiar para ela. Assim, tal fato se caracteriza como uma importação do conhecimento prévio no ato da rememoração que, ao ser combinado com as novas informações disponíveis nos materiais, pode direcionar para novos significados por parte de Aeris. Assim como a glicose, o exemplo do enxofre também não aparece na resposta final.

Outros termos parecem surgir sendo importados de outros contextos, como mostrado nos Turnos 21, 23 e 27 por ambas as participantes. No Turno 16, Aeris justifica o uso do exemplo do gás oxigênio por ser o ar que respiramos, logo o encontramos no dia a dia, então é uma substância. Essa justificativa não está de acordo com o ponto de vista científico, visto que no dia a dia encontramos com maior frequência misturas de substâncias, a não ser que determinado material tenha passado por processos de purificação. Porém, o exemplo do gás oxigênio, que estava presente na videoaula, parece ter sido significativo para ela, ao retomá-lo e incorporá-lo a uma justificativa que não se encontrava em nenhum dos materiais disponibilizados. Mais uma vez, é possível que tal informação tenha sido importada das aulas de Ciências. Podemos considerar que essa importação suporta um possível novo significado que estava sendo construído, a partir da ideia de que as substâncias são entidades que encontramos no nosso dia a dia. É uma possível nova síntese que emerge a partir do ato de rememorar, a fim de resolver a questão colocada.

A glicose (Turno 23) também é caracterizada como um elemento de importação (sendo bastante frequente em outros momentos), possivelmente como um tema discutido nas aulas de Ciências na escola, pois ela foi mencionada no questionário inicial. Porém, é importante destacar que o exemplo da glicose também foi abordado no texto da Wikipedia, o que pode ser um indício de importação também de um dos materiais disponibilizados. Importante destacar que o exemplo da glicose não pareceu tão relevante, visto que não aparece na resposta final da dupla.

Por fim, no Turno 27, Tifa propõe o exemplo do cloreto de sódio para a resposta, com a concordância de Aeris no Turno 28. Aeris classifica o cloreto de sódio como sal, demonstrando conhecimento da função inorgânica deste composto, sendo um elemento importado de outro contexto. O fato de Aeris saber que o cloreto de sódio se trata de um sal pode configurar um conhecimento prévio construído a partir de outros contextos e que foi incorporado à resposta final, mesmo não estando presente nos materiais disponibilizados. Importante destacar que entre os Turnos 12 e 29, a justificativa de estar presente no dia a dia parece ser o critério mais relevante para as participantes ao classificarem uma substância química.

As categorias que representam modificações mnemônicas apresentadas no Quadro 3 podem ser explicadas a partir de um movimento em looping descrito no modelo proposto na Figura 2. As importações, ao longo do diálogo, mostram como o processo de rememoração implica em um movimento em que experiências diversas do passado se relacionam entre si diante da demanda no presente (Figura 3).

Figura 3
Importações de elementos provenientes de experiências passadas para resolução do primeiro problema 30 minutos após o contato com os materiais (fonte: própria).

As importações dos elementos em destaque na Figura 3 mostram como informações de outros contextos, não somente aquelas disponibilizadas nos materiais antes da resolução, podem ser incorporadas a fim de que se construa algum significado sobre o conceito em questão frente à demanda apresentada. Assim, em uma situação de aprendizagem em sala de aula, o ato de rememorar pode extrapolar o que se é apresentado pelo(a) professor(a), visto que, diante de uma demanda, há uma tendência de ocorrer a rememoração de diversos tipos de conhecimento, provenientes de vários contextos (passado de experiências). Neste sentido, é importante destacar a relevância do conhecimento prévio e de como este é rememorado na construção de novos significados.

Análise do 2º dia: 7 dias após o contato com os materiais

De uma forma geral, 7 dias após o contato com os materiais, notamos que as respostas se tornaram mais concisas e objetivas. As modificações mnemônicas, que podem expressar novos significados, emergiram de forma semelhante ao primeiro dia.

Para o segundo dia, selecionamos a resolução da segunda questão, a qual solicitava que as participantes diferenciassem elemento, substância e mistura, além da composição dos materiais que encontramos no dia a dia. No diálogo entre Aeris e Tifa identificamos duas modificações mnemônicas: transformação e elaboração (Quadro 4).

Quadro 4
Modificações mnemônicas na resolução da segunda questão 7 dias após o contato com os materiais.

Entre os Turnos 1 e 3 (Quadro 4) é possível notar que o critério de diferenciação entre substâncias e misturas (possuir ou não uma fórmula) utilizada na videoaula continua sendo relevante para Aeris e Tifa, assim como foi no primeiro dia, aparecendo também na resposta final. Para além deste critério, é possível notar que Aeris, no Turno 1, em concordância com Tifa, afirma que mistura é um conjunto de substâncias. A palavra conjunto não apareceu em nenhum dos materiais para definir o conceito de mistura, sendo usados outros termos, tais como “sistema” (Wikipedia) e “juntos” (videoaula). Assim, o termo “conjunto”, utilizado pela dupla, parece ser algo mais próximo de uma linguagem mais familiar para as participantes, sendo para elas um termo mais adequado para o uso na elaboração da resposta. A partir do que foi rememorado dos materiais disponibilizados, identificamos uma transformação a qual pode apontar para uma construção de significados de acordo com o ponto de vista científico, visto que afirmar que mistura é um conjunto de substâncias não está totalmente errado em termos químicos (Figura 4).

Figura 4
Transformação durante a rememoração de informações para resolução da segunda questão 7 dias após o contato com os materiais (fonte: própria).

Além disso, houve um momento de elaboração, quando Tifa, no Turno 6, elabora a ideia de que elementos não são encontrados na natureza. Além dessa informação não constar em qualquer dos materiais, não se caracteriza como uma definição que é apresentada e discutida no nível de ensino que as participantes se encontravam. Assim, percebemos que a ideia de que elementos não são encontrados na natureza pode ser advinda de uma elaboração que expressa significados construídos a partir da noção de que elementos são corpos simples (abordada nos materiais). O fato de elementos serem representados por átomos simples, como discutido na videoaula, pode ter levado Tifa a concluir que não são espécies químicas comuns de se encontrar livremente na natureza. Tais átomos de elementos são encontrados na composição de substâncias simples ou compostas e, consequentemente, em misturas. Notamos que a construção de significados que emerge a partir de uma elaboração ocorre quando há uma reflexão sobre algo que está sendo rememorado.

No trecho apresentado no Quadro 4, a elaboração aparece em função da ideia de que elementos são “coisas” simples. Essa elaboração pode ser advinda, também, a partir de uma discussão que a videoaula apresenta sobre as características das substâncias. No vídeo, o professor afirma que substâncias puras não são encontradas na natureza. Possivelmente, a elaboração que identificamos em relação ao conceito de elemento pode ser resultado, também, de uma possível transferência, em que características de um conceito passaram a ser atribuídos a outro.

Por fim, na resposta final, é possível observar uma transformação, a partir de uma confusão conceitual apresentada pela dupla. Durante o diálogo, é possível notar, a partir do Turno 1, que uma mistura seria o conjunto de substâncias. Contudo, na resposta final, a dupla afirma que mistura é o “conjunto de elementos”. Nesse caso, o termo “substância” se transformou em “elemento”, sem uma justificativa muito clara, o que pode representar apenas um lapso ou confusão conceitual.

Análise do 3º dia: 15 dias após o contato com os materiais

No terceiro dia, observamos que a dupla repetia algumas ideias explicitadas nas resoluções anteriores, além de respostas mais concisas. Apesar de que com 15 dias lacunas de memórias poderiam ser maiores, não observamos um esforço em cobri-las de forma a significar o que estava sendo rememorado, o que seria previsto pela teoria da rememoração. Talvez, pela natureza do que estava sendo rememorado (definições de conceitos científicos em vez de imagens ou histórias, como nos experimentos de Bartlett), observamos que o processo de rememoração caminhava para uma estabilização de respostas em que a dupla julgava estarem corretas do ponto de vista científico. Diante disso, no processo de resolução dos problemas, houve pouca interação entre as participantes, fazendo com que poucas modificações mnemônicas fossem identificadas. No Quadro 5, apresentamos um trecho relativo à resolução da segunda questão, no qual identificamos uma transferência.

Quadro 5
Modificações mnemônicas na resolução da segunda questão 15 dias após o contato com os materiais

Quadro 5. Modificações mnemônicas na resolução da segunda questão 15 dias após o contato com os materiais No Quadro 5 é possível notar que Aeris e Tifa constroem suas próprias definições para os conceitos de elemento, mistura e substância, sendo a resposta final uma síntese dos significados negociados ao longo do diálogo em função do que era rememorado dos materiais consultados 15 dias antes. No Turno 1 é possível notar uma transferência, a partir de uma confusão conceitual que, na resposta final, é resolvida. Tifa transfere um determinado atributo do conceito de elemento para substância, ao afirmar que substância seria “a parte mais simples da...”. Aeris ajuda Tifa a desfazer a confusão conceitual e nos Turnos subsequentes é notado um certo esforço das participantes em lembrar de uma definição para o conceito de substância (Turnos 4 a 14). A tentativa em cobrir esta lacuna de memória, na teoria da rememoração, é entendida como o momento em que o sujeito pode significar o que está sendo rememorado externalizando novas sínteses. Assim, a dupla elabora a definição de que substâncias “são conjuntos de elementos que formam fórmula”. A ideia de que substâncias são conjuntos de elementos apresenta uma inconsistência conceitual, visto que não é o conjunto em si, mas a combinação (de átomos) de elementos químicos que formam uma substância.

Além disso, dois pontos importantes a serem observados: 1) a ideia de que elementos químicos não são encontrados de forma isolada na natureza se mantém, parecendo significativa para a dupla; 2) assim como no primeiro dia de resolução, o critério de possuir ou não uma fórmula parece ser relevante para a dupla ao diferenciar misturas de substâncias.

Rememoração e possíveis novos significados

Ao tentar observar a emergência de novos significados sobre o conceito de substância química, ao longo das sucessivas rememorações a partir da resolução de questões, de forma geral, podemos sintetizar os resultados como apresentado no Quadro 6:

Quadro 6
Possíveis novos significados sobre substância química ao longo das rememorações (A - Aeris; T - Tifa) - as repostas foram transcritas de forma literal, sem ajustes e/ou correções, a fim de manter a fidedignidade delas.

Importante destacar que o objetivo aqui é apresentar indícios de possíveis novos significados construídos ou o início do processo de significação, visto que a intervenção colocada não seria suficiente para proporcionar de fato uma aprendizagem sobre o conceito. Diante disso, acerca do que está posto no Quadro 6, destacamos:

  1. Sobre a definição do conceito de substância: no questionário inicial, Aeris e Tifa apresentaram concepções baseadas no senso comum, externalizando ideias informais. Depois do contato com os materiais, é possível notar que uma nova definição foi usada para o conceito de substância, aproximando-se mais do ponto de vista científico. Esta definição foi reproduzida quase que literalmente da videoaula, material que pareceu mais relevante para a dupla basear suas respostas (notar a persistência da ideia de ter ou não uma fórmula molecular para definir o conceito). Como houve uma repetição da definição, é difícil afirmar que a resposta se trata de uma nova síntese, o que se caracterizaria como possíveis novos significados construídos. Isso se confirma no Quadro 3, quando nenhuma modificação mnemônica foi identificada. Contudo, como a ideia se repete nas rememorações seguintes com a adição de novos elementos e sem uma retomada das definições apresentadas no questionário inicial, pode-se afirmar que, possivelmente, um novo significado estava emergindo na última resposta (15 dias após o contato com os materiais). Um indício disso é a substituição (ou transformação, nos termos da teoria da rememoração) do termo genérico “algo” por “conjunto”, que se trata de um termo menos genérico, mesmo que ainda inconsistente do ponto de vista científico;

  2. Sobre a diferenciação em relação aos conceitos de elemento e/ou mistura: essa diferenciação não foi solicitada no questionário inicial. Contudo, no recorte aqui apresentado, foi uma das questões apresentadas depois da consulta aos materiais disponibilizados, o que nos permitiu observar como algumas informações foram rememoradas e possíveis novos significados emergiram. Mais uma vez, a ideia de possuir ou não uma fórmula aparece como principal critério para diferenciar misturas e substâncias. Na segunda resolução, 7 dias depois, há uma transferência como modificação mnemônica, visto que o conceito de mistura é definido como um conjunto de elementos. A transferência é justificada quando este critério é utilizado para definir substâncias e não misturas em respostas subsequentes. Tal confusão entre os conceitos é solucionada na última resolução. O ponto novo aqui está na diferenciação em relação ao conceito de elemento químico. A partir do que foi rememorado, a dupla define elemento químico como algo que não é possível encontrar de forma isolada na natureza. Como modificação mnemônica, que reflete um possível novo significado, a dupla elabora uma definição própria a partir do que foi rememorado da videoaula. Entre a segunda e a terceira resolução também é possível notar a transformação do termo “fórmulas” (em “elementos são fórmulas mais simples”) por “átomos” (em “elementos são átomos”). Ainda não há uma clareza do ponto de vista científico, contudo são indícios que apontam para um processo de significação que estava ocorrendo naquele momento;

  3. Sobre exemplos de substâncias químicas conhecidas: no recorte aqui apresentado, apenas na resolução do primeiro dia, observamos a dupla lembrando de exemplos de substâncias químicas. Já no primeiro dia, a dupla rememora não só exemplos presentes nos materiais, mas importados de outros contextos, possivelmente das aulas de ciências. Tal importação, como modificação mnemônica, pode refletir como ideias prévias podem ser agregadas ao conhecimento novo de forma a auxiliar na resolução de demandas postas em salas de aula. Ademais, em relação ao questionário inicial, a dupla se afasta de exemplos genéricos e inconsistentes para a menção de compostos químicos. Apesar de não constar no recorte aqui apresentado, nas demais resoluções, a dupla continuou mencionando compostos químicos como exemplos, adicionando o gás carbônico e o gás nitrogênio nas respostas posteriores.

CONSIDERAÇOES FINAIS

Os resultados apresentados nos mostram como a construção de significados pode estar relacionada com a rememoração de conhecimentos prévios. A ideia de que as modificações identificadas no ato de rememorar fatos, objetos e eventos não são distorções mnemônicas, mas externalização de possíveis novos significados, é discutida pelo próprio Bartlett (1932Bartlett, F. C. (1932). Remembering: a study in experimental and social psychology. New York: Cambridge University Press.), e nos trabalhos de Northway (1940Northway, M. L. (1940). The concept of “schema”: Part I. British Journal of Psychology, 30, 316-325. https://doi.org/10.1111/j.2044-8295.1940.tb00964.x
https://doi.org/10.1111/j.2044-8295.1940...
), Wagoner (2013Wagoner, B. (2013). Bartlett’s concept of schema in reconstruction. Theory & Psychology, 23(5), 553- 575. https://doi.org/10.1177/0959354313500166
https://doi.org/10.1177/0959354313500166...
) e Valsiner (2014Valsiner, J. (2014). An Invitation to Cultural Psychology. Londres:SAGE Publications Ltd. https://doi.org/10.4135/9781473905986
https://doi.org/10.4135/9781473905986...
). A novidade que trazemos em nosso estudo é a utilização de tal modelo de memória para compreender como essas modificações mnemônicas também podem refletir possíveis novos significados quando se trata da rememoração de conhecimentos prévios diante de situações de aprendizagem de conceitos científicos. Dessa forma, contribuímos na compreensão da relação dos processos de memória e aprendizagem.

Durante a análise, observamos a natureza social do processo de rememoração e construção de significados, através da contribuição mútua entre as participantes para resolução das questões. Contudo, destacamos uma limitação no presente estudo, visto que, com base nas ideias de Vigotski (1995Vigotski, L. S. (1995). Obras completas. Tomo cinco. Fundamentos de defectologia. Tradução do Programa de Ações Relativas às Pessoas com Necessidades Especiais (PEE).), se houvesse um sujeito mais experiente, como um(a) professor(a), mediando a discussão sobre as questões colocadas, poderíamos ter observado de forma mais explícita a construção de novos significados, sendo esta potencializada pela intervenção do(a) professor(a). Assim, ressaltamos a necessidade de, em estudos futuros, investigar a relação entre memória e aprendizagem a partir da mediação do(a) professor(a) e com todos os participantes envolvidos na dinâmica da sala de aula.

Como prevê a teoria da rememoração (Bartlett, 1932Bartlett, F. C. (1932). Remembering: a study in experimental and social psychology. New York: Cambridge University Press.) ao longo das rememorações/resoluções das questões, algumas ideias se mantiveram fixas, sendo repetidas ao longo das respostas com a alteração de alguns detalhes. Exemplos disso foram as ideias de que elementos não podem ser encontrados de forma isolada na natureza e de que substâncias se diferenciam de misturas a partir da presença ou não de uma fórmula química. Em nossos dados, podemos justificar isso, possivelmente, pela tentativa das participantes em solucionar as questões com uma resposta que se aproximasse de uma visão aceita do ponto de vista científico. Ou seja, ao longo das rememorações/resoluções, os participantes externalizam significados que estavam sendo construídos e que “caminhavam” em direção ao que a dupla julgava estar correto do ponto de vista científico.

Destacamos a intrínseca relação entre os processos da memória e aprendizagem, os quais agem conjuntamente, não sendo possível considerá-los como faculdades isoladas. O processo de rememoração, ou seja, o ato de lembrar, com base na teoria da rememoração (Bartlett, 1932Bartlett, F. C. (1932). Remembering: a study in experimental and social psychology. New York: Cambridge University Press.), reflete como a memória está relacionada com um processo dinâmico de construção de significados, se diferenciando, assim, do modelo clássico de memória que a considera como um local de armazenamento.

AGRADECIMENTOS

A CAPES pelo financiamento ao desenvolvimento desta pesquisa (processo 88881.134150/2016-01).

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  • 2
    Neste artigo, consideramos o conhecimento prévio como todo conhecimento construído de forma espontânea ou oriundo de um passado de experiências do sujeito, não se restringindo apenas às concepções informais/alternativas.
  • 3
    No texto original, Bartlett (1932) usa a expressão “effort after meaning”, para afirmar que ao tentar cobrir uma lacuna de memória, há um esforço para se atribuir um significado ao que está sendo rememorado.
  • 4
    Em Vigotski (2000) a palavra é considerada o próprio conceito. Para ele, a palavra (conceito) sem significado se torna apenas um som vazio.
  • 5
    O recorte do presente artigo foca na memória, como processo cognitivo importante na construção de significados. Contudo, a rememoração por si só não é suficiente, pois tal construção exige a mobilização de outras funções que compõem o psiquismo humano, para além da memória.
  • 6
    REIS, M. (2014). Química. vol. 1.São Paulo: Moderna.
  • 7
    Disponível em <https://pt.wikipedia.org/wiki/Subst%C3%A2ncia> acessado em 06/06/2024
  • 8
    Disponível em <https://www.youtube.com/watch?v=iDcTy55Nia0> acessado em 06/06/2024
  • 9
    No presente estudo as tarefas distratoras contemplaram: uma conversa com o pesquisador sobre o dia a dia da escola e um jogo em que as participantes tiveram que nomear personagens de desenhos animados a partir da apresentação destes em uma folha de papel.
  • 10
    Definições aceitas do ponto de vista científico deveriam envolver classificações a partir de dois sistemas conceituais diferentes, como aponta Rocha-Filho et al. (1988): um referente à natureza das substâncias (como uma porção da matéria que apresenta apenas um tipo de molécula) e outro referente à suas formas de apresentação (em que substâncias são formadas por moléculas ou redes cristalinas, e estas, por sua vez, formadas por átomos de elementos químicos). Do ponto de vista macroscópico, o conceito de substância se relaciona com suas propriedades que são manifestadas e aferidas no mundo real, por exemplo, o ponto de fusão e ebulição. Essas definições, dentro de um sistema conceitual mais amplo, são contempladas na definição do conceito de substância química apresentada pela IUPAC (2014): “Matéria de composição constante mais bem caracterizada pelas entidades (moléculas, fórmulas unitárias, átomos) de que é composta. Propriedades físicas tais como densidade, índice de refração, condutividade elétrica, ponto de fusão etc., caracterizam a substância química” (Bellas et al., 2019, p. 17).
  • Declaração de disponibilidade de dados

    O conjunto de dados que dá suporte aos resultados deste estudo foi disponibilizado no Dataverse da SciELO e pode ser acessado emhttps://doi.org/10.48331/scielodata.EZZOSL
  • O CECIMIG agradece ao CNPq (Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico) e à Universidade Federal de Ouro Preto pela verba para editoração do artigo.

Editado por

Marina Rodrigues Martins

Disponibilidade de dados

O conjunto de dados que dá suporte aos resultados deste estudo foi disponibilizado no Dataverse da SciELO e pode ser acessado emhttps://doi.org/10.48331/scielodata.EZZOSL

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    27 Set 2024
  • Data do Fascículo
    2024

Histórico

  • Recebido
    12 Abr 2024
  • Aceito
    08 Ago 2024
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