Entre Brasil e África: construindo conhecimento e militância, da pesquisadora Petronilha Beatriz Gonçalves e Silva é mais uma de suas obras que nos prende por todas suas páginas por estar repleta de reflexões teóricas, definidas ou (re)significadas, que nos levam a ponderar sobre a relação da pesquisa científica e o real papel da pesquisa científica brasileira.
Redigido como parte de um memorial, o livro está dividido em 174 páginas, e dez capítulos, e consegue desde as primeiras páginas, em poesia, incitar-nos à reflexão sobre os meandros que nos levam a entendermo-nos como sujeitos do conhecimento. Sem adotar uma explícita postura rígida teórico-conceitual, mas sem abrir mão do rigor científico, a autora trabalha com dimensões interpretativas diversas, atreladas à sua história de vida enquanto pesquisadora, mulher negra e militante.
Partindo da opinião de que “Nós somos aquilo que conhecemos e fazemos” (p. 13), Petronilha revisa alguns momentos de sua história que influenciaram os caminhos rumados por sua trajetória acadêmico-profissional, construindo e indicando perspectivas possíveis para se compreender a formatação teórico-metodológica de investigações científicas nas áreas das ciências humanas, em especial para a Educação, na mesma ordem que discorre sobre o lugar do pesquisador enquanto sujeito coletivo.
Se utilizando de suas vivências enquanto pesquisadora, a autora explicita sua interpretação sobre o conceito de pesquisa, como sendo o do “trabalho rigorosamente sistematizado, informado por referências teóricas refletidas e refletidoras de compreensões e de buscas, com o propósito de apreender amplitude de significados e palavras, argumentos, gestos, posturas, comportamentos e posicionamentos” (p. 157). Partindo dessa rigorosidade citada, ela enfatiza a importância do olhar crítico-reflexivo sobre as limitações enfrentadas pela ciência quando dos critérios que se fazem a partir da interpretação desse conceito de pesquisa e sua relação com o de ciência, defendendo a ressignificação do entendimento de ciência para além da atual moldagem metódica e evidenciando uma iminente reestruturação entre o conhecimento científico aceito pela academia e os saberes outros que habitam a esfera popular.
Isso porque, para a autora, são os diálogos “entre saberes acadêmicos e populares que geram conhecimentos valiosos para a Pedagogia, entendida como ciência da educação, focada nos processos educativos” (p. 118), e é somente a partir dessa interação que se pode compreender com propriedade a ciência, em sua complexidade, e o real conhecimento científico. Tal conhecimento, nesta defesa, só pode ser validado se construído a partir da viabilidade de trânsito entre os significados acadêmico-científicos e a dimensão que este toma enquanto possibilidade de retorno social, estando o fazê-la (pesquisa) condicionado ao fato de que aquele que se propõe a pesquisar seja capaz de “controlar preconceitos, evitar julgamentos com base em conhecimentos anteriores e se dispor a conhecer o que há de peculiar no que se observa” (p. 78).
Tal perspectiva se faz critério básico para que o pesquisador seja capaz de vislumbrar um objeto realmente de significância para a pesquisa que propõe e a sociedade a esta vinculada. Objeto este que, na definição de Petronilha, “que se oferece ao conhecimento de cada pessoa por meio de seus sentidos, sua percepção, inclusive de seus sentimentos, e que ela tem interesse em compreender cada vez melhor” (p. 117). Esse objeto, ao considerar seu “oferecer-se” como resposta aos anseios do pesquisado, se faz carregado de significados para quem o propõe estudar, e os significados e significâncias se constroem à medida que os sentidos do pesquisador se permitem dialogar com os conhecimentos que dele podem ser formados. E neste ponto é onde reside a não passividade do objeto da pesquisa, defendida por Petronilha.
Para situar essa característica, e como ela influencia na escolha da fonte para a pesquisa, a autora nos leva a um rico detalhamento de sua investigação de doutoramento, realizada em uma comunidade negra sul-rio-grandense, denominada Limoeiro, e se utiliza de suas práticas para evidenciar indícios de como pode ser construída uma interpretação do conceito de fonte da pesquisa, este entendido por ela como o interseccionar de situações, saberes e indivíduos, todos envolvidos em processos que se articulam e dão sentido a estrutura à qual estão vinculados. Neste escopo, definir a fonte que alimentará a pesquisa é se fazer capaz de vislumbrar quais e como são se dão as articulações sociais que moldam determinado sistema.
Contudo, evidenciando o quão complexa se faz tal estrutura, a autora pontua, em tempo, a necessária cautela para que esse processo não adote “rigidez, demarcações e limites” (p. 73) e demasia no interpretar da pesquisa, pois é aconselhável que essa se forme por meio do diálogo entre pesquisador, objeto e fonte, de maneira fluida, estando, por fim, nas referências teóricas a resultante desse dialogar. Para a autora, as referências teóricas, como integrante fundamental da pesquisa, se materializam ao explicitar posicionamentos, compreensões e conceitos formulados com base na “consulta a autores e obras que oferecem princípios científicos e ideológicos, apoio teórico-metodológico consistente para perseguir os objetivos traçados para a pesquisa” (p. 74).
Referências teóricas se constituem, então, na definição de linhas conceituais e existenciais reveladoras de “formas de compreender a vida, as pessoas e as relações que elas mantêm entre si, com a natureza e o ambiente onde vivem, indicadoras de fins e meios do agir humano, de seus resultados e repercussões” (p. 77). Se utilizando do adjetivo “sinalizador”, as referências teóricas dão o sentido da construção do conhecimento científico, à medida que carregam partes de outras relações que se dialogam com o objeto e com as fontes escolhidas. Entretanto, reforça a autora, estando na mesma perspectiva da interpretação constitutiva do objeto e da fonte que dão sentido à pesquisa, as referências, “ainda que orientem análises, interpretações, julgamentos, opções’ [...], também não possuem caráter normativo” (p.78), devendo elas ser entendidas como parte dos processos que regem a formulação da pesquisa como um todo, e não parte uníssona dela.
Dotada de enorme maestria, Petronilha consegue em dez capítulos nos guiar pelos encontros que convergiram na formação de sua identidade pesquisadora, sem nos deixar esquecer da Petronilha militante. Centrada, em toda a escrita, na vinculação entre academia e sociedade, ela transita suas perspectivas interpretativas entre a organicidade científica e sua postura crítico-social. Atrelando o papel dos movimentos sociais na manutenção para se alcançar uma sociedade mais justa, ao dar sua interpretação sobre o conceito de pesquisa, a autora nos exige refletir sobre a fundamental coexistência da militância e pesquisa acadêmico-científica. Para tanto, fundamentando seu posicionamento, ela define sua acepção para o conceito de militância, como sendo o “ato de combater ativamente ideologias, pensamentos, atitudes, posturas que cultivam e mantêm discriminações tais que concretizam, incentivam, naturalizam, por exemplo, o racismo, o machismo, a pretensa incompetência dos pobres” (p. 157).
Esmiuçando esse significado, e nos questionando que se “se realizam pesquisas, com objetivo, entre outros, de produzir conhecimentos que contribuam para sustentar a busca por justiça” (p.105), Petronilha defende que militância e pesquisa podem “se combinar num único esforço, com a finalidade de atingir compreensões de ações humanas, como a de se educar, indispensáveis para novas relações na sociedade” (p. 105). A somatória dessas duas concepções que se entrecruzam, permite a construção de uma configuração do perfil dos conhecimentos científicos muito mais próximos e acessíveis à sociedade como um todo, pois não partem de um campo externo à realidade social para interpretá-la, mas se constrói e se desenvolve dentro da própria dinâmica que rege as relações humanas que ali transitam.
É a partir da harmonização entre esses dois conceitos e centrando seus olhares no Movimento Social Negro brasileiro, que a autora lança três outras definições orientadoras para se compreender a gênese das relações raciais no panorama político, social e cultural brasileiro, dando o suporte conectivo entre academia, movimentos sociais e sociedade: “africanidades brasileiras” (p. 92), “valores de refúgio” (p. 83) e “enegrecer” (p. 101).
Com referência ao conceito de africanidades, da pesquisadora Lourdinha Siqueira (p. 93), a autora apresenta sua interpretação do que ela denomina de africanidade brasileira, situando-a como “às raízes da cultura brasileira que têm origem africana” (p. 92), envolvidas entre os “modos de ser, de viver, de organizar suas lutas, próprio dos negros brasileiros”, e “às marcas da cultura africana que, independentemente da origem étnica de cada brasileiro, fazem parte do seu dia a dia” (p. 92).
E a capacidade desse povo de manter-se em luta, na busca por mudanças em sua condição social, foi descrita com o que ela chama de valores de refúgio: “valores que sobrevivem à opressão da escravidão, da colonização, do racismo”, e que “mesmo tendo sido construídos nestas circunstâncias, se constituem possibilidades de proteção, segurança, fundamento para viver, pensar, construir” (p. 83). Centrando nesses valores de refúgio, a somativa de todo o reconhecimento da luta representada pelo Movimento Negro, e dando os caminhos possíveis para se desestabilizar a estrutura orgânica que mantém a desigualdade brasileira, centrando na educação das relações étnico-raciais o gargalo principal desse processo, a autora apresenta mais uma ferramenta interventiva que se entrelaça no processo de transformação: o enegrecer. Definido como “a maneira própria de os negros se porem no mundo ao receberem o mundo em si” (p. 101), enegrecer “é a face a face em que negro e branco se espelham, se comunicam, sem deixar de ser o que cada um é” (p. 101), sempre na busca pela reflexão a partir do autoconhecimento de si como parte da totalidade que é o Brasil.
Orientado pela descrição teórica que fundamenta a relação entre pesquisa e militância, e pontuando a resultante dessa simbiose como os valores de refúgio, o enegrecer e as africanidades brasileiras, a autora acaba por direcionar reflexões que permitem a identificação valorativa dos sujeitos pesquisadores enquanto parte da formulação histórico-social, enfatizando que “a produção acadêmica representa um dos instrumentos de luta com que contamos contra as desigualdades e o racismo” (p. 127).
Tais conceitos, bem como toda a narrativa que marca e caracteriza positivamente a leitura deste livro, assumem uma dimensão analítica para as relações étnico-raciais, culturais, político-estruturais e geracionais que envolvem a Educação brasileira, se traduzindo assim como uma leitura necessária para os pesquisadores desta área, ao evidenciar as “ciências da educação” (p. 118) como um campo propício para o reformular da natureza teórico-conceitual que caracteriza o conhecimento científico oficialmente.
O conceito de africanidades, proposto pela autora em diálogo com as obras de Lourdinha Siqueira (SIQUEIRA, 2006SIQUEIRA, M. L. Ancestralidade e produção do conhecimento. In: SIQUEIRA, M. L. Siyayma: uma visão africana do mundo. Edição da autora, 2006. p. 29-35.) e Kabengele Muganga (1984MUNANGA, K. O universo cultural africano. Revista Fundação João Pinheiro, Belo Horizonte: Fundação João Pinheiro, 14(1-10), jul.-out. 1984. ), é um conceito fundante da área de Educação das Relações Étnico-Raciais no Brasil e o tratamento dado no livro é atual e relevante para compreender o processo de disputa por espaço no currículo da escola brasileira ao longo do século XXI (SILVA, 2001SILVA, P. Aprendizagem e ensino das africanidades brasileiras. In: MUNANGA, K. (Org.). Superando o racismo na escola. Brasília: Ministério da Educação/Secretaria de Educação Fundamental, 2001. p. 151-168. ; OLIVEIRA, 2009OLIVEIRA, J. M. Africanidades e educação: ancestralidade, identidade e oralidade no pensamento de Kabengele Munanga. 2009. 324 f. Tese (Doutorado em Educação) - Universidade de São Paulo - USP, São Paulo, 2009. Disponível em: <Disponível em: http://www.teses.usp.br/teses/disponiveis/48/48134/tde-20042010-153811/pt-br.php
>. Acesso em: 10 fev. 2018.
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).
Permeado de sinalizações de interpretação, e sem uma pretensão pré-anunciada, a pesquisadora negra, militante e professora, Petronilha Beatriz Gonçalves e Silva, disponibiliza em sua obra uma gama de reflexões e definições que, se refletidas criticamente junto ao fazer da pesquisa, colaborando com o fortalecimento de uma proposta de academia que se valha do conhecimento por muito tempo subalternizado pelas correntes teóricas etnocêntricas, e valorizando a utilização de definições mais próximas da realidade brasileira, e latino-americana, por ser formulada dentro da estrutura social a que se propõe a pesquisa, e não de fora para dentro dela. Perspectiva essa sinalizada na reflexão da autora de que as “certezas se convertem em incertezas, as quais propiciam novas certezas” (p. 170).
REFERÊNCIAS
- MUNANGA, K. O universo cultural africano. Revista Fundação João Pinheiro, Belo Horizonte: Fundação João Pinheiro, 14(1-10), jul.-out. 1984.
- OLIVEIRA, J. M. Africanidades e educação: ancestralidade, identidade e oralidade no pensamento de Kabengele Munanga. 2009. 324 f. Tese (Doutorado em Educação) - Universidade de São Paulo - USP, São Paulo, 2009. Disponível em: <Disponível em: http://www.teses.usp.br/teses/disponiveis/48/48134/tde-20042010-153811/pt-br.php >. Acesso em: 10 fev. 2018.
» http://www.teses.usp.br/teses/disponiveis/48/48134/tde-20042010-153811/pt-br.php - SILVA, P. Aprendizagem e ensino das africanidades brasileiras. In: MUNANGA, K. (Org.). Superando o racismo na escola Brasília: Ministério da Educação/Secretaria de Educação Fundamental, 2001. p. 151-168.
- SIQUEIRA, M. L. Ancestralidade e produção do conhecimento. In: SIQUEIRA, M. L. Siyayma: uma visão africana do mundo. Edição da autora, 2006. p. 29-35.
Datas de Publicação
-
Publicação nesta coleção
May-Jun 2018
Histórico
-
Recebido
29 Dez 2017 -
Aceito
13 Mar 2018