RESUMO
Este texto é um convite para entrar em relação com uma cartografia de uma pesquisa de mestrado e problematiza as macropolíticas de centralização curricular e de regulação da educação, que visam à padronização dos movimentos curriculares no cotidiano escolar. Na relação entre macro/micropolíticas, apresenta, em redes de conversações, as enunciações de professoras e crianças acerca das experimentações curriculares produzidas entre as políticas de alfabetização, em meio às linhas duras, flexíveis e de fuga que atravessam o cotidiano escolar, em movimentos que agenciam os processos de vida, num mapa aberto e suscetível, na intenção de problematizar os efeitos que as concepções de alfabetização, de currículos, de escola e de aprendizagem podem produzir nos processos educativos. Dialoga com Deleuze e Guattari para pensar a educação na perspectiva da invenção e argumentar que, nas fissuras das macropolíticas, é possível criar movimentos curriculares entrelaçados aos signos da arte, por meio da experimentação, como resistência às tentativas de reprodução. Conclui (sempre aberto às novas experimentações) que, no cotidiano escolar, entre formas e forças, há criação de movimentos curriculares coletivos de afirmação da vida num exercício de pensamento que se abre ao novo, ao impensável, rachando postulados e inventando modos outros de existir, com a arte.
Palavras-chave: Práticaspolíticas de Alfabetização; Currículos Coletivos; Diferença; Signos da Arte; Resistências Coletivas
ABSTRACT
This text is an invitation to join a cartography held during a master’s degree research problematizing the macro policies of curriculum centralization and education regulation, which aim to standardize curricular movements in everyday school life. In the relationship between macro/micro policies, the text presents the statements of teachers and children in conversation networks about the curricular experiences produced amidst the hard lines of literacy policies. These flexible and escaping lines cross the school daily life, in movements that agency life processes, an open and susceptible map to question the effects that literacy, curricula, school and learning concepts can produce in educational processes. The text dialogues with Deleuze and Guattari to think education from an invention perspective and argue that, within the fissures of macro politics, it is possible to create curricular movements intertwined with art signs through experimentation as resistance to reproduction attempts. It concludes (always open to new experiments) that, in everyday school life, between forms and forces, there are life-affirming collective curricular movements in an exercise of thought that opens up to the new, the unthinkable, splitting postulates and inventing other ways of existing, with art.
Keywords: Literacy PolicyPractices; Collective Curricula; Difference; Signs of Art; Collective Resistance
Introdução: Alguém disse que tem que ser assim: então, façamos de outro modo!
Em tempos de macropolíticas de centralização curricular e de regulação da educação, que visam à padronização dos movimentos curriculares no cotidiano escolar, há uma busca desenfreada por melhores resultados, que supostamente medem quem tem condições de progredir e quem está fadado ao fracasso. E, nessa lógica neoliberal e neoconservadora, a educação pública parece dar passos largos rumo à privatização dos currículos, das docências, com as crescentes investidas de instituições privadas no setor público, ditando modos de ser e de estar na escola. Junto a esse movimento, ocorre a ampliação da evasão escolar e, consequentemente, das desigualdades sociais.
O envolvimento da iniciativa privada na educação pública tem sido contundente desde o processo de aprovação à implementação da Base Nacional Comum Curricular (BNCC, 2017), na tentativa de hegemonizar sentidos para a qualidade da educação, o que nos põe diante de um desafio cotidiano de romper com essa lógica universal de uma concepção de educação e de escolarização na perspectiva de competências e habilidades, pautada em resultados. Concordamos com Macedo (2019, p. 41), ao corroborar que a aprovação dessa política constitui um momento de inflexão, pois, mesmo com alguma centralização curricular no Brasil, nunca se chegou “à definição do que deve ser ensinado em cada disciplina ao longo dos diferentes anos de escolarização em todo o território nacional”.
No entanto, ressaltamos com Macedo (2019) que, embora a BNCC (2017) represente uma hegemonia de educação e de escolarização, tal política universal não é capaz de apagar o antagonismo. Afinal, quem disse que o conhecimento precisa ser organizado em caixinhas? Quem disse “é isto ou aquilo e pronto, não se questiona!” não se deu conta de que somos múltiplos. Precisa olhar mais de perto, com cuidado, para ver os detalhes, sentir os cheiros, os gostos, a vida que pulsa, que grita nos cotidianos escolares. Requer entrar em relação com a diferença (Deleuze, 2018) e deixá-la proliferar nos currículos. Essa tal de hegemonia curricular que insiste em apagar a diferença parece não se dar conta de que a vida não se deixa aprisionar.
Uma educação pautada em padrões curriculares que visam a resultados e produzem uma narrativa hegemônica sobre o que é qualidade na educação e como atingi-la, produz um discurso de controle do que será ensinado e aprendido (Macedo, 2014). Nesse movimento, insiste em tentar restringir o conhecimento, como se este fosse exclusividade da ciência (Machado, 2009). Mas quem disse que não pode haver outros modos de pensamento? A filosofia, com a criação de conceitos que nos mobilizam a agir no caos; a arte, com os perceptos que nos provocam a sair desse mundo sem sequer tirar os pés do chão; e a ciência, com suas funções que não são estáticas, são formas de pensamento (Deleuze, 2003).
E por que insistem em priorizar uma em detrimento da outra, se o que interessa são as relações entre filosofia, arte, ciência? Que efeitos esses modos de pensar podem provocar nos cotidianos escolares e nas práticaspolíticas1 de alfabetização? Os saberes são de naturezas diferentes, mas por que hierarquizá-los, se o curioso é atravessá-los e ser afetado por eles? E, nesse campo de disputa, entre as macropolíticas que tentam ditar modos de fazersentirpensar educação, apostamos nos movimentos de micropolíticas ativas e na criação de outros e novos sentidos de alfabetização, de currículos, de escola e de aprendizagem, num exercício de pensamento que ultrapassa o jogo do verdadeiro e do falso, do isto ou aquilo, para pensar a diferença nos currículos.
Entendemos como micropolíticas ativas os movimentos que atentam ao que afeta o cotidiano escolar, problematizam e propõem, coletivamente, outros possíveis para os currículos, para as docências, para o fazer educativo. Concordamos com Rolnik (2015) em que esses movimentos visam à conservação da potência do vivo. Nesse sentido, faz-se necessário um exercício constante de pensar outras configurações curriculares de afirmação da vida.
Para Deleuze (2003), pensar é criar. É mover-se como um andarilho nômade, errante, sem destino, vagueando num espaço aberto e escapando de qualquer tentativa de controle, de uniformização e padronização. É fazer circular agenciamentos de desejos em tempos não lineares, não cronometrados. Tempo intensivo, das multiplicidades. É não se deixar cronometrar, porque se move pela força de ação coletiva, fazendo conexões e combinações curriculares.
Porém, na lógica universal, o tempo de aprender alguém insiste em limitar, determinando uma idade certa para alfabetizar, para consolidar, para recuperar o que não se perdeu. Como é que se recupera o que não se teve? Esqueceram uma pandemia no meio do caminho e quiseram continuar de onde parou, como se a vida tivesse parado ali.
E, como se não bastasse, ainda querem ditar modos certos de aprenderensinar, como a Política Nacional de Alfabetização (Brasil, 2019), que preconiza a ciência cognitiva como único saber necessário, definindo a alfabetização como “o ensino das habilidades de leitura e de escrita em sistema alfabético” (Brasil, 2019, p. 18), numa lógica que deslegitima os demais saberes e tenta instaurar uma metodologia homogênea, que desconsidera as multiplicidades e exclui a diferença.
Ao analisarmos essa política com Caldeira (2022, p. 6), compreendemos a PNA (2019) como reacionária e conservadora, que utiliza certos princípios para firmar determinados conhecimentos como única verdade aceitável para a alfabetização e, “ao desqualificar saberes e conhecimentos historicamente construídos no campo da alfabetização”, tenta estabelecer modos únicos de gerenciar a vida, o currículo e a escola. Afirmamos ainda com Caldeira (2022) que, ao dar ênfase à ciência cognitiva, a PNA (2019) afirma-se como verdade e nega outros conhecimentos, e estende esse pensamento para a formação de professores/as alfabetizadores/as, além de corresponsabilizar as famílias no trabalho com a educação de seus/suas filhos/as, de modo a colaborar para que estudantes-crianças alfabetizados/as deixem de ser um risco aos desafios econômicos da/na contemporaneidade. Criança alfabetizada, quanto antes, torna-se demanda no discurso dessa política.
Em 2023, mais uma macropolítica diz assumir um compromisso nacional com a alfabetização das crianças, por meio do Decreto nº 11.556, de 12 de junho de 2023, que institui uma nova política de alfabetização, o Compromisso Nacional Criança Alfabetizada, cujo objetivo afirma garantir o direito à alfabetização das crianças brasileiras para a construção de trajetórias escolares bem-sucedidas (Brasil, 2023). O XXIX Fórum Permanente de Alfabetização, Leitura e Escrita do Espírito Santo (2023), organizado pelo Núcleo de Estudos e Pesquisas em Alfabetização, Leitura e Escrita do Espírito Santo (NEPALES), problematizou essa macropolítica, enfatizando a necessidade de entrarmos em relação com o discurso que se propaga.
Nesse sentido, é importante perguntar: Que interesses podem atravessar as linhas desse compromisso? Uma política de alfabetização que se propõe a construir trajetórias bem-sucedidas está a serviço de quem? Uma política que traz à tona concepções e metodologias de ensino já problematizadas pretende atender a quem? Uma política que se justifica responsabilizando municípios e estados pela não garantia da alfabetização, em tempos de pandemia, quando a instância federal nem sequer parecia existir, quer convencer a quem?
Parecem esquecer que o contexto escolar não se resume apenas à escola. Atravessa toda a complexidade de uma sociedade (e é atravessado por ela), cujas mazelas estão imbricadas na ausência de políticas públicas de moradia, assistência social, saúde. Os efeitos dessa destituição de direitos resvalam na escola, nos currículos, nos modos de ser e de estar no mundo. Daí a importância de problematizar, no cotidiano escolar, os efeitos dessas políticas nos processos curriculares e pensar modos de resistências coletivas em meio a essas relações de poder. Os movimentos curriculares produzidos têm sentido para quê, por quê e para quem?
Nesse movimento, reafirmamos a necessidade de problematizarmos os interesses materializados no discurso das macropolíticas que atravessam o cotidiano escolar. O documento Orientações para a formulação e implementação das estratégias de formação continuada no âmbito do compromisso nacional criança alfabetizada (2023) apresenta, como atribuições e responsabilidades das secretarias municipais de educação, a colaboração na “identificação e na seleção de eventuais instituições formadoras parceiras que atuarão na implementação do Plano de Formação do Território Estadual” (Brasil, 2023, p. 23).
Como alerta à sociedade e aos gestores públicos acerca dos riscos de privatização que rondam os caminhos escolhidos, com a abertura cada vez mais alargada aos agentes privados nas escolas públicas, a Associação Brasileira de Alfabetização (ABALF) posicionou-se com um manifesto sobre o avanço de entes privados na escola pública. Concordamos com a ABALF, que, diante do que propõe o Compromisso Nacional Criança Alfabetizada (2023) com relação à escolha de instituições para a formação dos professores, é necessária atenção às propostas ofertadas e às concepções que “embasam os “pacotes” de ensino e avaliação da alfabetização, que sempre vêm acompanhados de “pacotes de treinamento” de professores alfabetizadores” (Manifesto ABALF, 2023, p. 3).
Em nossos estudos no grupo de pesquisa Com-Versações com as Teorias Pós-Críticas e Formação de Professores, coordenado pela professora Janete Magalhães Carvalho (UFES), seguimos afirmando a importância das resistências coletivas no cotidiano escolar em meio às relações de poder. Portanto, são nos movimentos de micropolíticas ativas que as problematizações acerca dos efeitos das políticas curriculares se engendram para pensar, coletivamente, outros possíveis para os currículos em meio às macropolíticas que não cessam de tentar ditar modos de fazersentirpensar educação.
Ao mapear o território da pesquisa2, uma escola pública de ensino fundamental no município da Serra3, no Espírito Santo, mergulhamos nos acontecimentos cotidianos, acompanhando os processos curriculares entre as linhas duras do rizoma (Deleuze; Guattari, 2011), com seus binarismos, linearidades, prescrições e controle, sabendo que (ainda bem!) as linhas podiam romper-se. E o que estava ali determinado, estabelecido, podia ser problematizado, desmanchado, pensado de outro modo e irrompido em linhas de fuga.
Em redes de conversações, na cartografia (Rolnik, 1989) do cotidiano escolar, durante o movimento de pesquisa, professoras e crianças enunciaram acerca da constituição curricular atravessada pelas macropolíticas. Utilizamos como critério para a participação na pesquisa o desejo de conversar com as pesquisadoras sobre os movimentos curriculares produzidos naquele espaçotempo. Os encontros com as professoras, de turmas do primeiro ao quarto ano, ocorreram no cotidiano escolar, nos horários de planejamento, no turno vespertino, na lógica de que uma cartografia não tem princípio nem fim, como um rizoma, não começa nem conclui, se encontra no meio (Deleuze; Guattari, 2011). As conversas com as crianças ocorreram na área externa da escola (que chamamos aqui de bosque, por ser cercada de muitas árvores), durante o horário das aulas, no turno vespertino.
No cotidiano escolar, conectamo-nos aos fluxos, às intensidades, de modo a produzir a realidade, e não simplesmente representá-la. Acompanhamos os movimentos que iam sendo engendrados e se faziam simultaneamente, desmanchando de certos mundos sua perda de sentidos e formando outros que se criavam para expressar afetos “em relação aos quais os objetos vigentes tornaram-se obsoletos” (Rolnik, 1989, p. 15).
Apresentamos ao longo do texto, em itálico, trechos de enunciações produzidas em redes de conversações com professoras e crianças que participaram da pesquisa. As enunciações foram gravadas durante as redes de conversas acerca dos movimentos curriculares produzidos entre macro/micropolíticas e seus efeitos nos processos educativos.
Apostamos que as enunciações das professoras e crianças apresentadas neste texto não fazem referência a um sujeito centrado, mas às multiplicidades, por isso não as nomeamos. Com Deleuze e Guattari (2011), compreendemos que a multiplicidade não tem sujeito nem objeto, apenas determinações, grandezas, dimensões, num jogo de forças que não é dado a priori, mas nas relações que são tecidas cotidianamente.
É importante ressaltar que a escola pública onde a pesquisa foi realizada se situa em um território por onde circulam crianças do primeiro ao nono ano do ensino fundamental, cujas famílias apresentam diferentes situações socioeconômico-culturais. Entramos em relação com aquele cotidiano como um território de multiplicidades e espaçotempo de saber, criação, acontecimentos, movimentos de desterritorialização e reterritorialização (Deleuze; Guattari, 2011), sempre provisórios.
As enunciações ao longo do texto intencionam provocar o pensamento acerca dos efeitos que as concepções de alfabetização, de currículos, de escola e de aprendizagem podem produzir nos processos educativos. Nesse movimento, fez-se necessário perguntar: Um currículo que tenta definir o que se tem de ensinar e ainda pune com testes que dizem comprovar quem não conseguiu avançar, produz que efeitos no cotidiano escolar?
“É aquilo, eu gosto muito da BNCC, eu acho que é um documento que ele dá muito norte pra gente, mas não é algo que tem que ser fechado. Mas basta? Não. Se tivesse outro documento que eu pudesse me respaldar, que eu pudesse criar mais, né, eu acho que seria melhor. Mas assim, [...] eu acho que me dá uma base boa, tanto é que é base, né”? (Enunciação docente).
Faz-se necessário, no cotidiano escolar, a problematização dos interesses e das tentativas de aprisionamento de macropolíticas, como a BNCC (Brasil, 2017), cujas estratégias estão atreladas às políticas neoliberais e neoconservadoras, de responsabilização docente/discente pelo fracasso escolar; à avaliação sob a lógica empresarial que separa quem sabe de quem não sabe e à premiação pelo desempenho, empurrando a educação pública na direção da privatização.
Com Alves (2019), aprendemos que, cotidianamente, professores e professoras criam práticasteorias necessárias e possíveis ao viver. Deleuze e Guattari (2010, 2011) nos provocam a resistir a essas macropolíticas, criando modos outros de fazersentirpensar currículos nas brechas do estabelecido. Criar currículos que têm que ver com a vida intensiva, currículos que criam linhas de fuga no entre das macropolíticas. Linhas de vida, de respiro, linhas que fazem gaguejar na própria língua.
Qualquer projeto de política que tenta engessar, responsabilizar, atribuir a qualidade da educação a resultados, que exclui a diferença e põe em risco o direito à alfabetização de todas as pessoas, precisa ser problematizado. Por isso, nos processos de aprendersensinar, é importante perguntar: De que modo as concepções de educação, de escola, de alfabetização nos ajudam a pensar os processos educativos? Em que se alicerçam esses conceitos? Na lógica privatista? Porque esta é diferente da pública. Que sentido tem uma política que reduz a vida a resultados? Apostamos em políticas de afirmação da vida. Políticas que se fazem também na escola com o reconhecimento do outro, não buscando consensos, mas um comum que afirme a diferença. Políticas que se fazem nas ações cotidianas com os praticantespensantes4 dos currículos, como as crianças, que trazem suas demandas para a composição curricular, como a professora enuncia:
“Acho que a partir do momento que você abre pra ouvi-las (as crianças), não tem como você não fazer isso, porque elas trazem suas próprias demandas. Elas vão trazer, então elas vão criando currículos com você, não é uma questão de planejamento, você pode sentar, faz o planejamento bonitinho, vai acontecer do jeito que você planejou? Nunca acontece, porque é vivo, é dinâmico”.
Apostamos em currículos como redes de conversações e ações complexas (Carvalho, 2009) que envolvem a participação ativa dos praticantespensantes nos processos de aprenderensinar. Movimentos curriculares que extrapolam a lógica das prescrições que visam a ordenar e definir o trabalho pedagógico. Apostamos nas rupturas desse modo único de pensar a docências, os currículos, a alfabetização. Apostamos em currículos da/na diferença que não se deixam aprisionar, porque são nômades e escapam, sempre.
Por isso, intencionamos, neste artigo científico, argumentar, em meio às enunciações de professoras e crianças nos movimentos imprevisíveis da cartografia, que lida com processos, e não com resultados cristalizados, que, nas fissuras das macropolíticas, é possível criar movimentos curriculares entrelaçados aos signos da arte, por meio da experimentação, como resistência às tentativas de reprodução. Concluímos (sempre abertas às experimentações) que, no cotidiano escolar, entre formas e forças, há criação de movimentos curriculares coletivos de afirmação da vida, num exercício de pensamento que se abre ao novo, ao impensável, rachando postulados e inventando modos outros de (re)existir, com a arte.
Múltiplas teorias e produções curriculares: há receita para alfabetizar?
Quem disse que tem de ser por esse caminho ao invés daquele outro? Aliás, talvez seja mais ousado criar (des)caminhos, despropósitos, chegar de surpresa e agir na relação do encontro com as multiplicidades, na repetição cotidiana que nunca é do mesmo. Repetir, repetir, até a diferença proliferar e criar processos de diferenciação. Agir entre macro/micropolíticas, criando possibilidades outras em meio ao acontecimento, que é o próprio cotidiano com suas complexas tramas que não são controláveis.
A seguir, compartilhamos em itálico, agregadas ao texto, enunciações docentes, produzidas em redes de conversações, que expressam modos de fazersentirpensar os processos de alfabetização de crianças do primeiro ao quarto ano, de uma escola pública de ensino fundamental, na relação com as macropolíticas. Nossa intenção nessas redes de conversas com as professoras era problematizar os efeitos que as concepções de alfabetização, de currículos, de escola e de aprendizagem podem produzir nos processos educativos.
“A BNCC me fala que eu tenho que trabalhar com o aluno, partindo do texto para as partes. Eu trabalho partindo das partes para o todo, porque pra mim, eu já trabalho dessa forma e eu vejo um resultado muito melhor.”
O discurso docente sinaliza apoiar-se numa prática que tenta fazer desvios no modo de trabalho com a alfabetização, como proposto na BNCC (Brasil, 2017). No entanto, o objetivo do trabalho parece ainda estar atrelado ao da macropolítica, que visa a alcançar melhores resultados, colaborando para a lógica hegemônica de certa concepção de educação e escolarização, como já pontuamos. Nesse sentido, ainda que se modifiquem os modos de chegar ao resultado, os descritores presentes na BNCC (Brasil, 2017) “funcionam como prescrições que buscam ordenar e definir o trabalho docente, como dispositivo de uma normatividade neoliberal que ganha terreno” (Frangella, 2021, p. 1154).
“Eu vi os meus alunos lendo em 45 dias. Palavras. Eles leram palavras em 45 dias. Que depois foi muito tranquilo inserir eles no mundo das frases e depois veio o texto. Hoje eles interpretam textos [...] A gente ainda não produziu textos escritos, eu trabalho muitos textos orais.”
O discurso de uma prática que parece caminhar por rotas seguras, bem-definidas, onde não há possibilidades de desvios nem de atalhos, só há linearidade, sequências, padronizações, que podem atestar o processo (Frangella, 2021). Práticas que se aventuram a caminhar por um roteiro com começo, meio e fim bem-definidos cabem nas complexidades do cotidiano escolar? Abrem espaço para a diferença proliferar?
“Eu estou seguindo a discursiva, que é a partir do texto, pro aluno entender o contexto, só que aí a gente precisa de dar um pulinho lá, né, na forma tradicional de trabalhar uma família silábica, de trabalhar as questões de ortografia, estar retomando porque eles ainda têm muita dificuldade nessa questão ortográfica, mas a maioria já está lendo e interpretando, e assim, não é aquela leitura mecânica. Eles estão tendo o entendimento.”
Nessas idas e vindas entre os diferentes modos de fazersentirpensar os processos educativos, há rota definida para o aprender? Aliás, que concepção temos do aprender? Aprender que se dá apenas pela via da recognição? Aprender que firma como verdade a ciência cognitiva, como nos lembra Caldeira (2022), e nega outros conhecimentos? Preferimos o aprender que ocorre em meio às problematizações, às invenções dos próprios problemas (Deleuze, 2003) e não se limita às respostas prontas. Pode a alfabetização se dá pela via da invenção?
“Eu começo pelas letras, símbolos. Você reconhecer símbolos e os sons. Reconhecendo os símbolos e os sons, onde eu posso encontrar, dentro do que eu já tenho de vida, o que eu estou vendo naquele símbolo, naquele som? Perceber se eu uso no dia a dia aquele som. Se ela (a criança) vivencia a leitura na casa dela ou se ela ouve música, a questão da cultura eu também envolvo, porque querendo ou não é um bem cultural.”
Atentar-se ao que faz sentido para os praticantespensantes dos currículos pode fazer fissuras nas macropolíticas que insistem em definir o que aprenderensinar? Entre macropolíticas que apresentam a ciência cognitiva como modo universal, nos processos de alfabetização, o que é importante considerar? Talvez seja necessário desterritorializar. Interrogar os modos de aprenderensinar e as verdades que carregamos em nossos processos formativos. Abrir-se ao novo, ao inesperado, experimentar outros modos de fazersentirpensar a alfabetização.
“Eu tenho a preocupação também com relação à escuta deles. Então, quando eu faço alguma atividade, ah, supondo, a gente estava trabalhando as biunívocas, teve uma contação de histórias, peguei palavras do texto e a gente foi conversando e aí pedi pra eles trazerem palavras que eles conheciam que tinha aquele som e aí eles foram trazendo tudo junto, tipo, ah, o p, ah, pato, pato é com p [...]. Esses dias a gente estava revisando o som do G, e aí um aluno falou Gohan, que é de um desenho que eles gostam, justo, é o som do G, coloquei no quadro. Então, se é da cultura deles e faz mais sentido pra eles, eu uso. Tento trazer o que eles já estão acostumados, o que eles consomem, até pra entender, o que eles consomem? Que narrativas têm no que eles consomem? Trabalhar isso também porque essas narrativas exigem um lugar no mundo. Isso constitui a gente, a gente é narrativa. Então essas coisas da cultura deles, do dia a dia, eu vou tentando usar na aula. Então, é a partir do texto. Já usam a língua conhecida por eles. Eles falam o tempo todo, fazem uso da língua, só não sabem ler e escrever. Então é a partir da relação que eles têm com a língua. Pelo menos é assim que eu tento trabalhar.”
As enunciações docentes provocam-nos a pensar nos efeitos que as concepções de alfabetização, de currículos, de escola e de aprendizagem, implicadas em diferentes apostas teórico-metodológicas, podem provocar nos processos de aprenderensinar. O que surge na relação do encontro com esses movimentos? Criação? Reprodução?
Pensamos com Paraíso (2023) que as diferentes teorias de currículo apresentam definições e dimensões inseridas em práticas culturais, sendo o currículo um campo de disputa, de luta, território incontrolável. E as decisões acerca de suas possibilidades cabem ao docente, daí a importância do conhecimento das diferentes dimensões das teorias de currículo para uma atuação antenada e comprometida com os dilemas da atualidade.
Temos, então, um compromisso ético-político-estético na constituição de modos de existência nas práticas curriculares. Nesse sentido, é importante perguntar: Que sentido têm os currículos que estamos produzindo? Que movimentos coletivos necessitamos agenciar para pensar outros modos de curricular?
Afirmamos com Lopes (2013) que a noção de currículo como seleção de determinados conhecimentos em detrimento de outros e a lógica de que há um sujeito centrado e com identidade fixa, bem como a de sujeito emancipado e consciente capaz de dirigir a transformação social, são problematizadas, quando apostamos que o conhecimento é discurso conectado às relações de poder. Ao longo da história do campo do currículo, verdades de uma tradição foram construídas, criando um único modo de pensar currículo, o que, muitas vezes, desqualifica outros saberesfazeres docentes e outras formas de pensamento (Deleuze, 2003), como a filosofia e a arte.
Não poder provocar mudanças no âmbito das macropolíticas não invalida as tentativas de agir nas fissuras delas nem de usar o acontecimento a nosso favor. São nas relações de poder que as resistências acontecem. Na tensão entre macro/micropolíticas, a vida grita e quer vazar. Vamos apenas assistir à vida gritar para não ser sufocada? Deleuze nos provoca a afirmar a vida, criando modos outros de escapar daquilo que está instituído e tenta diminuir a potência de agir. Podemos, então, experimentar! Afinal, por que insistir em práticas pedagógicas que não fazem sentido nem afirmam a vida?
Sempre se pode substituir uma palavra por outra. Se esta não lhe agrada, não lhe convém, pegue outra, coloque outra no lugar. Se cada um fizer esse esforço, todo mundo poderá se compreender, e não haverá mais razão de colocar questões ou fazer objeções. Não há palavras próprias, [...] há apenas palavras inexatas para designar alguma coisa exatamente. Criemos palavras extraordinárias, com a condição de usá-las da maneira mais ordinária. [...] Hoje dispomos de novas maneiras de ler, e talvez de escrever (Deleuze; Parnet, 1998, p.3-4).
Desse modo, não há que se fixar em uma determinada teoria, se as multiplicidades não se deixam controlar. Não há que se dizer é por aqui e não por ali, se a diferença não puder proliferar. Não há receita pronta para o aprender nem como controlar como esse encontro vai acontecer. É preciso estar aberto a outros sentidos de escola, de educação, de docências, de currículos, de alfabetização, num exercício do pensamento que não se conforma com significações dominantes nem com exigências da ordem estabelecida (Deleuze; Parnet, 1998). Um pensamento que se abra ao novo, ao impensável, rachando postulados e inventando modos outros de (re)existir. Que sejamos desafiados cotidianamente a criar maneiras outras de ensinaraprender!
Em redes de conversações, professoras enunciaram acerca dos movimentos curriculares pensados para contribuir para as aprendizagens das crianças/estudantes, na tentativa de minimizar os efeitos da suspensão das aulas presenciais no período de pandemia da covid-19. Entre esses movimentos, há um projeto da Secretaria Municipal de Educação, com extensão da carga horária de professores/as para pensar movimentos curriculares com as crianças previamente indicadas por seus/suas professores/as. Na escola, o projeto começou no segundo semestre. Acerca desse movimento, uma professora pontuou:
“O projeto visa dar uma potencializada nas crianças com dificuldade. E tem muita criança com dificuldade de interpretação de texto, matemática, criança que não sabe ler nem escrever [...] que não estão alfabetizadas. A intenção do projeto é essa, na verdade, potencializar algo que eles já sabiam e avançar pro próximo nível, mas, na verdade, as crianças que chegam estão com muita dificuldade, algumas, né, não digo cem por cento não, mas para uns setenta por cento, não seria potencializar, seria lá do beabá mesmo, começar do zero, b mais a, bá.”
A diferença ainda é apontada como “dificuldade disso ou daquilo”. Que movimentos são necessários, no cotidiano escolar, para afirmar a vida e a diferença? Na lógica de uma educação pautada em códigos alfanuméricos, não há espaço para a diferença. O que se tem é o uso de códigos como uma maquinaria que difunde e projeta a qualidade almejada, de modo a estabelecer as regras para um cálculo maquínico que incide sobre a regulação do trabalho docente assentada numa normatividade impositiva (Frangella, 2021). Nesse pensamento, refirmamos, não há espaço para a diferença. Essa maquinaria precisa ser problematizada para dar abertura a outros possíveis.
Para a professora, nem todas as famílias se comprometeram com o movimento que a escola considera importante, embora tenha começado só no segundo semestre.
“É um movimento importante, mas começou tarde. Eu acho que tinha que ter começado lá do início. Tem crianças que eu não sei como é que vai ser essa coisa de avançar e precisaria também de uma parceria. A escola está fazendo a parte dela, mas precisaria de uma parceria maior da família, do cuidado, do estar ali acompanhando. Eu tenho crianças lá que estão comigo e que estão com a família, essas crianças já mudaram da água pro vinho, o avanço foi muito grande.”
Apostamos com Carvalho (2009) em movimentos curriculares em redes de conversações e ações complexas, desse modo, a participação ativa dos praticantespensantes do cotidiano escolar faz-se necessária para a problematização daquilo que afeta o corpo coletivo e a proposição de outros possíveis para os currículos. Assim, é importante pensar acerca dos movimentos curriculares que estamos constituindo, coletivamente, nos cotidianos escolares. O que intencionamos com os processos constituídos? Pautar nossa prática visando a alcançar resultados que desconsideram a diferença? Agir nas brechas do instituído e afirmar outros modos de ser e de estar na escola?
Embora tenham começado bem depois do início do ano letivo, as professoras com as quais conversamos consideram importante o movimento curricular, mas apontam também a necessidade de um envolvimento maior das famílias nesse processo, além de mais profissionais da educação envolvidos, pois só há uma professora no turno e um número expressivo de crianças no projeto.
Acerca da relação das crianças com os conhecimentos trabalhados na escola, uma enunciação da professora faz-nos desejar problematizar os processos de aprenderensinar nesse tempo em que ainda reverberam as consequências da pandemia da covid-19:
“O que eu vejo hoje com os meus alunos de 4º ano. Eu olho assim e falo, gente, como eles estão despreparados, como eles perderam, vai ser difícil, sabe, se não houver aquela coisa da família, eles recuperarem tudo o que eles perderam, sabe? São crianças muito despreparadas. Eu ando aqui, em todas as salas, as crianças do primeiro ano e do segundo, elas têm uma maturidade que às vezes os meus alunos do quinto ano não têm.”
Que efeitos a pandemia provocou no cotidiano escolar? Que movimentos precisam ser pensados de modo a envolver todas/os as/os crianças/estudantes nos processos de aprenderensinar sem responsabilizá-los pelas possíveis consequências do que não puderam ter? Que efeitos a pandemia provocou nas docências, nos currículos, nos nossos modos de fazersentirpensar educação?
“O que eu tenho que lidar é que está bem claro que série/idade não funciona no sentido prático, porque querendo ou não, é um processo, e esse processo tem sido feito com vários traumas e esses traumas provocam uma situação que eu, como professora, não consigo vislumbrar o ideal. Porque o que está no documento exige uma situação ideal que eu não tenho isso mais. E isso dificulta, porque eu não faço planejamento mais em cima do que é a série, mas em cima dos estudantes que eu tenho hoje. E hoje, eu não tenho pretensão de ir muito. Cada dia é um dia. Se o estudante conseguiu hoje, ele entendeu o processo que ele precisa, né, ah, eu sei fazer isso e levar isso adiante, pra mim está de bom tamanho.”
Ao pensar a alfabetização, faz-se necessária a problematização dos contextos nos quais as/os crianças/estudantes estão inseridas/os, bem como as bases teórico-metodológicas que sustentam esses processos educativos. Já dissemos que não há que se apontar caminhos, e que preferimos (des)caminhos nos processos de aprenderensinar, porque esses podem abrir-se à desterritorialização e engendrar linhas de fuga rumo às terras outras. Do jeitinho que os andarilhos gostam!
Contudo, em tempos de políticas mercadológicas, há que se atentar e problematizar a intenção do que se propõe como salvação para os problemas da alfabetização que, como já afirmamos, se entrelaçam à ausência de outras políticas públicas tão necessárias.
Segundo o Ministério da Educação, a Política Nacional de Alfabetização (PNA) foi instituída para elevar a qualidade da alfabetização e combater o analfabetismo no país (Brasil, 2019). Para isso, tal política ancora-se na ciência cognitiva da leitura com foco no método fônico, que explora as relações entre sons e letras e letras e sons, preconizando tal método como único modo de alfabetizar, infringindo princípios constitucionais, como “a liberdade de aprender, ensinar, pesquisar e divulgar o pensamento, a arte e o saber”, como disposto na Constituição Federal do Brasil (1988, Art. 206, II).
Considerando que já estamos no quarto ano de implementação dessa política e a nova que se apresenta, o Compromisso Nacional Criança Alfabetizada nada tem para acrescentar e considerando que trazemos as marcas de uma pandemia nesse período, é importante problematizarmos os efeitos que essas políticas, com foco em um determinado modo de aprenderensinar, têm provocado nos currículos que estão sendo produzidos em nossas escolas. Por que priorizar a recognição em detrimento da diferença? Qual a intenção de políticas implementadas sem a participação daqueles que fazemsentempensam os currículos?
É importante ainda perguntar: É essa política que desejamos? Que movimentos temos constituído no cotidiano escolar para problematizar políticas dessa natureza? Políticas que desconsideram a potência inventiva docente precisam ser problematizadas! Políticas que reduzem a alfabetização à codificação e decodificação precisam ser rechaçadas! Não podemos permitir que nos reduzam a códigos. Constituímo-nos com o outro, com o reconhecimento do outro, numa relação de forças entrelaçada por discursos de quem tem o que dizer, por que dizer e para que dizer.
Reafirmamos que a alfabetização é direito de todas as pessoas e, portanto, políticas de alfabetização precisam estar atreladas às políticas de direitos sociais. Desse modo, reafirmamos que políticas que dão ênfase à ciência cognitiva se firmam como verdade e negam outros saberes. Tais políticas precisam ser problematizadas. Políticas que se justificam culpabilizando a escola, os/as professores/as, as/os crianças/estudantes pelo baixo desempenho abrem portas para a privatização, para a evasão escolar e para a ampliação das desigualdades sociais.
Por isso, insistimos em que, a despeito das forças das macropolíticas (que se dão entrelaçadas às micropolíticas) que atravessam o cotidiano escolar, se faz necessária a criação de movimentos curriculares de afirmação da vida, de modo a resistir a essas forças que insistem em tornar a escola espaçotempo de mera reprodução. Criar currículos que levem em conta o que as/os crianças/estudantes, professores/as têm a dizer. Engendrar, coletivamente, movimentos curriculares entrelaçados aos signos da arte para rachar postulados e nos transportar a outros mundos, onde a imaginação pode voar.
Outros modos de aprenderensinar, com arte!
Em nossos movimentos de pesquisa, apostamos na potência do signo da arte para imaginar outros mundos, outros possíveis, como faz Manoel de Barros (2018) com a criança, o pássaro e o andarilho, fontes de inspiração. Não uma arte como representação, mas como abertura a outros modos de ser e de estar no mundo, a respiros, à vida. Afinal, qual o sentido de um currículo que não afirme a vida?
Como forma de pensamento (Deleuze, 2003), entrelaçamo-nos à arte, para ter a liberdade do pássaro e sobrevoar o cotidiano escolar, pousar em qualquer lugar, desprendendo-nos dos postulados que insistem em tentar aprisionar, ditando modos únicos de alfabetizar e de curricular.
Com a arte, entrelaçamo-nos em devir-criança nas linhas do rizoma (Deleuze; Guattari, 2011), para provocar desvios nas formas que tentam controlar a vida, que insiste em escapar. Com a arte, tornamo-nos andarilhos e inventamos outros (des)caminhos para constituir movimentos curriculares que afirmem uma vida intensiva no cotidiano escolar, uma vida bonita que não cessa de perseverar.
Acerca da importância da arte nos movimentos curriculares, uma professora enunciou:
“A felicidade que você vê no corpo da criança, no dia seguinte que ela participou de uma atividade que a família dela teve ou não a oportunidade de assistir, mas que naquele momento ela curtiu, ela se mostrou, ela se apresentou, ela foi feliz, como não? A arte tem essa condição e ela precisa. A arte liberta. A arte não será a opção, mas a solução”.
Que efeitos a arte pode provocar nos currículos? Uma criança que também participou do nosso movimento de pesquisa enuncia, em rede de conversações gravadas em um espaçotempo da escola que chamamos de bosque, acerca do modo como a professora trabalha a literatura infantil na sala de aula e de como ela gostaria que fosse esse movimento.
“A coisa que eu mais odeio é aquela coisa lá que eu falei sobre a raposa e o lobo. A tia, eu não gosto muito dela falar um texto e a gente ter que fazer, porque eu não consigo parar o troço que ela leu na minha cabeça pra eu poder desenhar, tipo, ela repete as coisas e eu fico só pensando em duas partes, uma parte cortada. Ela poderia pegar vários livrinhos, a gente poderia escolher o livro e fazer nosso tema. Ela ia pegar o livrinho, qualquer livro que ela quisesse, tipo, Rapunzel, e a gente ia fazer a história.”
A criança provoca-nos a pensar: Por que não fazer de outro modo? Por que não experimentar em vez de interpretar? Na correria desenfreada do cotidiano escolar, nem sempre damos pausas no automatismo das ações, como nos lembra Larrosa (2002), para ouvir as crianças, também praticantespensantes dos currículos. Mas elas têm muito a dizer, inclusive a escolher modos outros de entrar em relação com o que é tecido junto com os signos, aqueles que violentam o pensamento no movimento do aprender. Aprender que não pode ser controlado, que escapa da recognição, do dualismo e produz rachaduras na representação. Na violência do encontro com o signo, o pensamento se abre para pensar o impensado, contrariando a imagem dogmática do pensamento, aquela dos postulados (Deleuze, 2018).
Entrelaçar a arte aos currículos para tornar visível aquilo que não se vê! Pela arte, podemos criar mundos outros, que nada têm a ver com o real, por meio dos encontros com o que força o pensamento a pensar. Acerca desse movimento, outra criança enuncia:
“A gente vai conhecendo as coisas que a gente nem sabia. Na história, a gente vai reconhecendo as palavras. Eu também gosto das brincadeiras de imaginar. A gente imagina outras coisas que não poderiam acontecer. A gente pode inventar que tem alguma coisa na mão, mas sem ter nada na mão. Tinha um filme que tinha uma águia que ela pensava que não tinha cor [...], mas as pessoas veem a cor, só ela que não consegue ver. Esse filme pode treinar a imaginação. A águia ficou com um monte de cores e algumas dessas, não existia no mundo real, mas podia imaginar.”
Ao entrarmos em relação com o discurso da criança, entramos em relação também com as marcas das macropolíticas na lógica da recognição, ainda tão presente nos currículos, ditando determinados modos de ser e de estar no mundo. Para imaginar outros mundos, pela arte, não precisamos treinar a imaginação, mas abrir-nos ao novo, ao impensado, abalando o que é dado como fato (Frangella, 2021). Precisamos deixar a imaginação fluir! Dar asas à imaginação!
Faz-se necessário então, provocar deslocamentos, desterritorializar, imaginar outros mundos, criar modos outros de alfabetizar...e por que não com a arte? E quem disse que tem que ser ou isto ou aquilo? Pode ser tudo junto e misturado! Uma professora conta-nos acerca desse movimento de abrir-se a outros possíveis, com a arte.
“Eu levei o poema “Ou isto ou aquilo” pra trabalhar com eles. [...]Quando eu comecei a ler, na primeira estrofe, quando fala ou se tem chuva ou se tem sol, ou se tem sol ou se tem chuva, uma criança já questionou, que às vezes está sol e começa a chover, que às vezes está chovendo e abre o sol, e aí a gente começou a fazer esse movimento de, a cada estrofe que eu lia, eu perguntava a eles se realmente era uma coisa ou outra e eles foram conversando, discutindo, pensando em estratégias. Eles realmente embarcaram e queriam participar da atividade. Até alunos que às vezes não participam tanto, ficaram interessados em contra-argumentar e tentar pensar em estratégias para não ser ou um ou outro, para ter como as duas coisas acontecerem. E aí virou meio que um debate assim, que eles começaram a construir argumentos entre eles e conversar, eles mesmos falavam, ah, não, esse aqui acho que não funcionou não, e aí a gente foi conversando sobre o texto assim. Por exemplo, na parte que fala, ou se calça luva e não se põe o anel, ou se põe o anel e não se calça luva, eles pensaram que dá pra colocar sim o anel em cima da luva e as pessoas vão ver que o anel vai tá ali e a luva também. Outra criança falou também que dá pra usar o anel embaixo da luva. As outras pessoas não vão ver, mas a pessoa que está usando, vai sentir e vai saber que o anel tá ali. Então não vai ser uma coisa ou outra, dá pra usar os dois ao mesmo tempo de diferentes formas, inclusive, por cima da luva ou embaixo. A parte do dinheiro também, ou guarda o dinheiro e não compra o doce ou compra o doce e não gasta o dinheiro. Eles pensaram que não precisava gastar o dinheiro todo, você gastava uma quantidade com o doce e o troco que sobrasse, você guardava e aí daria para fazer as duas coisas, você guardava o dinheiro e não ficava sem o doce. E foi esse o movimento. Eles foram discutindo assim com o texto e pensando em estratégias pra contrapor a Cecília.”
Experimentações curriculares entrelaçadas à arte podem fazer fissuras nas fixações do currículo que tenta ditar modo único para alfabetizar. Podem abalar políticas de alfabetização que, dando ênfase à ciência cognitiva, se firmam como verdade, negam outros saberes e corresponsabilizam crianças-estudantes e famílias, como afirma Caldeira (2022). Nesse sentido, em meio às macropolíticas, diferentes teorias e concepções de alfabetização, de currículos, de escola e de aprendizagem que atravessam os movimentos curriculares, este artigo convida a pensar: A quem interessam as práticas esvaziadas de sentido, em que os praticantespensantes do cotidiano escolar têm a tarefa apenas de reproduzir? Aliás, por que reproduzirmos, se podemos experimentar? Experimentar por meio do pensamento (Deleuze, 1992) para romper com a ideia fixa de currículo e dar outros sentidos aos processos educativos, com a arte.
Apostamos na escola como corpo coletivo (Carvalho, 2009) para a constituição de movimentos curriculares que forcem o pensamento a questionar o estabelecido, a perguntar qual é o sentido, a entrar em relação com o que é pensadovividosentido e faz a vida transbordar. Apostamos em movimentos curriculares que se proponham, ao invés de reproduzir, experimentar. Experimentar modos outros de ser e de estar na escola, com a arte, para deslocar pensamentos e nos transportarmos a outros possíveis, imaginar outros modos de ser e de estar no mundo, como nos lembra uma criança que gosta de inventar:
“Todos os dias eu levo livro pra ler. Eu fico contando as histórias que eu fico inventando na minha cabeça e ela (a amiga) fica falando, ih, que falta de imaginação! Uai, qual o problema? Não pode imaginar mais não? Ela fala que são umas histórias nada a ver”.
Como um convite a experimentar, sem a intenção de convencer, mas de contagiar, concluímos este artigo produzido no mergulho do cotidiano escolar, em uma cartografia sempre aberta às experimentações, afirmando que, nesse espaçotempo, entre formas e forças, há criação de movimentos curriculares de afirmação da vida, num exercício de pensamento que se abre ao novo, ao impensável, rachando postulados e inventando outros modos de existir, com a arte. Insistimos: é preciso ousar experimentar!
Experimentar criar mundos outros, no encontro com a arte, é mergulhar numa experiência do pensamento que não está em conformidade com o real. É causar fissuras nas macropolíticas de regulação e controle dos modos de aprenderensinar. Experimentar movimentos curriculares entrelaçados aos signos da arte é (re)existir à redução da vida a códigos alfanuméricos. “E não se trata de um combate numa lógica substitutiva, na busca do que se põe nesse lugar. É a abertura que não teme o que chega de forma imprevista” (Frangella, 2021, p. 1165). É andarilhar por terras nômades, sem intenção de se fixar. É experimentar movimentos curriculares de afirmação da vida e da diferença e... e... e...
Referências
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1
Nesta escrita, algumas palavras são grafadas juntas, na intenção de conferir sentidos outros àquilo que acontece simultaneamente, como aprendemos com Nilda Alves (2019).
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2
Consideramos importante ressaltar que esta pesquisa se insere em uma pesquisa maior, “Currículos, culturas, formação de professores e cinema: cartografias de resistências inventivas nos cotidianos escolares”, financiada pela Fundação de Amparo à Pesquisa e Inovação do Espírito Santo (FAPES), coordenada pela professora Sandra Kretli da Silva.
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3
Serra é um município localizado na Região Metropolitana da Grande Vitória, com uma população de mais de 520 mil habitantes, de acordo com o censo demográfico do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE, 2022). É, portanto, o município mais populoso do estado do Espírito Santo, com diferentes situações socioeconômico-culturais.
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4
Concordamos com a professora Inês Barbosa de Oliveira, na afirmação de que, para Certeau, os seres humanos nos cotidianos são praticantes e criam, nesses espaçostempos, conhecimento permanentemente; por isso, são praticantespensantes (Andrade; Caldas; Alves, 2019).
Disponibilidade de dados
Dados serão fornecidos se solicitados.
Datas de Publicação
-
Publicação nesta coleção
26 Ago 2024 -
Data do Fascículo
2024
Histórico
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Recebido
22 Out 2023 -
Aceito
07 Maio 2024