Acessibilidade / Reportar erro

Uso da Hermenêutica Objetiva em pesquisas sobre livros didáticos

Using objective hermeneutics in research on textbooks

RESUMO

O objetivo do artigo é aproximar o aporte teórico-epistemológico da Hermenêutica Objetiva (HO) das análises de livros didáticos. Compõe o corpus de pesquisa uma coleção de Português do Ensino Médio aprovada pelo Programa Nacional do Livro Didático em 2018. Com base nos princípios da HO, foram desenvolvidas análises qualitativas junto a uma equipe multidisciplinar de pesquisadores da área de Educação. Os resultados indicam que o uso do método é adequado aos estudos sobre a materialidade textual dos livros escolares, visto que possibilita a identificação de contradições estabelecidas entre o livro didático e seus referenciais internos (Manual do Professor e gabaritos) e externos (documentos oficiais), assim como uma melhor compreensão do papel exercido por paratextos e elementos iconográficos.

Palavras-chave:
Hermenêutica Objetiva; Livros Didáticos; Pesquisa Social Empírica; Estudos Qualitativos; Teoria Crítica da Sociedade

ABSTRACT

The article aims to approach the theoretical-epistemological contribution of Objective Hermeneutics (OH) to research on textbooks. To this end, we analyzed a high school Portuguese language textbook approved by the national school textbook plan in 2018. Based on the principles of HO, qualitative analyses were developed with a multidisciplinary team from the field of Education. The results reveal that the use of the method is appropriate for research on textbooks, since it enables the identification of contradictions established between the textbook and its internal (Teacher’s Book and Answer keys) and external (official documents) referentials, as well as a better understanding of the role played by paratexts and iconographic elements.

Keywords:
Objective Hermeneutics; Textbooks; Empirical Social Research; Qualitative studies; Critical Theory of Society

Introdução

Bastante difundida e reconhecida na Alemanha, a Hermenêutica Objetiva (doravante HO) corresponde a “uma variante da pesquisa social qualitativa, desenvolvida por Ulrich Oevermann e adaptada à situação empírica da sala de aula por Andreas Gruschka, ambos pesquisadores da Universidade de Frankfurt” (Gomes, 2017GOMES, Luiz Roberto. Hermenêutica objetiva e pesquisa empírica em educação: a experiência com os estudos de sala de aula em Frankfurt am Main. Revista Eletrônica de Educação, v. 11, n. 2, p. 351-367, 2017. http://dx.doi.org/10.14244/198271992154
http://dx.doi.org/10.14244/198271992154...
, p. 354). O principal interesse do método é a questão da evidência das contradições, do embate entre a aparência e o real, o que, no âmbito das investigações em Educação, se traduz na atenção dirigida às tensões entre aspiração/teoria e ação/prática pedagógica. Não por acaso, a HO estabelece relação com a Dialética Negativa de Adorno, segundo a qual “apenas na contradição do que é com relação aquilo que pretende ser é que a coisa se permite ser conhecida” (Adorno, 2009, p. 144 apud Gomes, 2017, p. 354). Trata-se da possibilidade de formulação de explicações, com base empírica, sobre os motivos pelos quais as aspirações da escola, de educar, ensinar e formar não se realizam. Ou ainda, conforme Adorno, propor estudos que reflitam o problema da falsidade da educação, ao considerar que “seu objeto de trabalho é feito sob a medida dos destinatários e, portanto, seu trabalho acaba por não ser puramente objetivo, por não ser motivado pelo próprio tema. Isto é antes pedagogizado” (Adorno, 1999, p. 164 apud Gomes, 2017, p. 355).

É certo que a academia debate há algum tempo e com alguma frequência a eventual existência de desvios e de rupturas entre o que orientam os documentos/diretrizes oficiais e/ou as teorias educacionais e aquilo que é realizado e é efetivado nos currículos, nos materiais didáticos e/ou na prática docente. Contudo, a despeito de já se ter consciência desse tipo de dissonância, é possível observar que “na maioria das situações pedagógicas usuais, a contradição tem um arranjo mais complicado, ela é ocultada, mediada, aparentemente anulada” (Gruschka, 2014GRUSCHKA, Andreas. Frieza burguesa e educação: a frieza como mal-estar moral da cultura burguesa na educação. Campinas: Autores Associados, 2014., p. 173).

Desvelar essas incongruências, com auxílio, no caso, dos procedimentos interpretativos da HO, constitui-se, portanto, um esforço na direção de identificar, de compreender e de esclarecer objetivamente a natureza das contradições no processo de ensino-aprendizagem, e não um “desejo de normatização do teórico” (Gruschka, 2014GRUSCHKA, Andreas. Frieza burguesa e educação: a frieza como mal-estar moral da cultura burguesa na educação. Campinas: Autores Associados, 2014., p. 180). Isso significa que o interesse da HO pela investigação de contradições no campo da educação não tem como fim defender uma adoção normatizadora, autoritária e/ou uniformizante de diretrizes oficiais ou de teorias pedagógicas, que desconsidere a criatividade e a autoria inerentes às atividades dos agentes da educação, sejam eles professores, autores de materiais escolares, ou outros. Longe disso, a HO visa desvendar os processos e as condições de concretização de diretrizes e de conteúdos curriculares em sua complexidade, por meio de questionamentos do tipo: “Como a sala de aula revela as possibilidades e limites de concretização, na escola e através dela, das aspirações da própria educação ou pedagogia? O que pode explicar situações de não aprendizagem efetiva por parte dos alunos e uma variedade de críticas apontadas para a escola de hoje?” (Vilela; Noack-Napoles, 2010VILELA, Rita Almeida Teixeira; NOACK-NAPOLES, Juliane. “Hermenêutica Objetiva” e sua apropriação empírica na área de educação. Linhas Críticas, v. 16, n. 31, p. 305-326, 2010. https://www.redalyc.org/articulo.oa?id=193517492007
https://www.redalyc.org/articulo.oa?id=1...
, p. 318).

Sob esse prisma, o artigo1 1 Pesquisa apoiada pela Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (CAPES) - Processo nº 88887.474608/2020-00 e pela Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo (FAPESP) - Processo nº 2021/15222-5. propõe o reconhecimento do livro didático - na condição de objeto pedagógico dotado de certo grau de controle curricular (Apple, 1995APPLE, Michael Whitman. Cultura e comércio do livro didático. In: APPLE, Michael Whitman. Trabalho docente e textos: economia política das relações de classe e de gênero em educação. Porto Alegre: Artes Médicas, 1995. p. 81-105.) e que, ainda hoje, é amplamente utilizado nas escolas - como um material apropriado à verificação e à análise de possíveis embates entre teoria e prática pedagógicas, uma vez que “é premissa constitutiva da ‘hermenêutica objetiva’ que o mundo que nos é revelado é produzido com sentidos através da linguagem”, sendo sua finalidade “descortinar a lógica entre as estruturas de reprodução social e as estruturas de transformação, reveladas no texto” (Vilela; Noack-Napoles, 2010VILELA, Rita Almeida Teixeira; NOACK-NAPOLES, Juliane. “Hermenêutica Objetiva” e sua apropriação empírica na área de educação. Linhas Críticas, v. 16, n. 31, p. 305-326, 2010. https://www.redalyc.org/articulo.oa?id=193517492007
https://www.redalyc.org/articulo.oa?id=1...
, p. 312). Por isso, a HO afirma-se mais como uma “hermenêutica sociológica” e menos como uma “hermenêutica linguística, de análise do discurso”, pois ela é uma vertente de pesquisa

que procura trazer à tona as condições de alheamento e as particularidades do homem nas condições dadas da sua realidade e condição social, tirando assim a hermenêutica de sua condição de hermenêutica do texto e transformando-a em uma hermenêutica sociológica e de crítica cultural. Trata-se, conforme Kraimer (2000 apudVILELA, 2012VILELA, Rita Almeida Teixeira. A pesquisa empírica da sala de aula na perspectiva da teoria crítica: aportes metodológicos da hermenêutica objetiva de Ulrich Oevermann. In: PUCCI, Bruno; COSTA, Belarmino Cesar Guimarães da; DURÃO, Fabio Akcelrud (Org.). Teoria Crítica e Crises: reflexões sobre cultura, estética e educação. Campinas: Autores Associados, 2012. p. 157-180.) da reconstituição hermenêutica-sociológica de casos empíricos em uma situação historicamente determinada (Gomes; Gruschka; Zuin, 2021GOMES, Luiz Roberto; GRUSCHKA, Andreas; ZUIN, Antonio Alvaro Soares. Palavras Mágicas: solução instantânea para questões pedagógicas? Educação e Filosofia, v. 35, n. 73, p. 199-229, 2021. https://doi.org/10.14393/REVEDFIL.v35n73a2021-57274
https://doi.org/10.14393/REVEDFIL.v35n73...
, p. 210-211).

Trata-se, pois, à luz dessas premissas, de encarar o livro escolar como uma fonte documental que nos permite, como prevê a HO, reconstruir a situação empírica da sala de aula, no caso, em específico, a situação postulada por esses manuais e materializada na transposição didática que seus editores fazem das diretrizes e dos documentos oficiais de educação, bem como de teorias pedagógicas.

Recordamos, por fim, que a HO é bastante utilizada na análise de interações de sala de aula e/ou de entrevistas, razão pela qual o “texto” investigado com base nas regras interpretativas do método corresponde, com muita frequência, a transcrições de aulas e/ou de questionários, ou ainda a materiais textuais de pequena extensão, como, por exemplo, cartazes de viés didático-pedagógico - no Brasil, os resultados do uso do método na análise desse tipo de corpus podem ser consultados em Gomes, Gruschka e Zuin (2021GOMES, Luiz Roberto; GRUSCHKA, Andreas; ZUIN, Antonio Alvaro Soares. Palavras Mágicas: solução instantânea para questões pedagógicas? Educação e Filosofia, v. 35, n. 73, p. 199-229, 2021. https://doi.org/10.14393/REVEDFIL.v35n73a2021-57274
https://doi.org/10.14393/REVEDFIL.v35n73...
) e em Vilela e Noack-Napoles (2010VILELA, Rita Almeida Teixeira; NOACK-NAPOLES, Juliane. “Hermenêutica Objetiva” e sua apropriação empírica na área de educação. Linhas Críticas, v. 16, n. 31, p. 305-326, 2010. https://www.redalyc.org/articulo.oa?id=193517492007
https://www.redalyc.org/articulo.oa?id=1...
).

Nesse sentido, a proposta de explorar a materialidade dos livros didáticos é inovadora pois reivindica a análise de objetos ainda ausentes nos estudos que recorrem aos subsídios da HO. Isso posto, o objetivo do artigo é aproximar o aporte teórico-metodológico da Hermenêutica Objetiva das análises de livros didáticos, testando as possibilidades de uso do método em pesquisas dessa natureza e caracterizando as adaptações demandadas e os desafios impostos por tal aproximação.

Sobre a Hermenêutica Objetiva

Conforme mencionado na introdução deste artigo, a Hermenêutica Objetiva (ou HO) - concebida por Oevermann (2004OEVERMANN, Ulrich. Adorno als empirischer Sozialforscher im Blickwinkel der heutigen Methodenlage. In: GRUSCHKA, Andreas; OEVERMANN, Ulrich (Hrsg.). Die Lebendigkeit der kritischen Gesellschaftstheorie. Wetzlar: Büchse der Pandora, 2004. p. 189-234.; 1986) e adaptada ao campo da educação por Gruschka (2014GRUSCHKA, Andreas. Frieza burguesa e educação: a frieza como mal-estar moral da cultura burguesa na educação. Campinas: Autores Associados, 2014.; 2013; 2009) - corresponde a um tipo de pesquisa social qualitativa, que tem como foco a análise das tensões (ou contradições) estabelecidas entre teoria e ação pedagógicas. Seu objeto de investigação, denominado de protocolo, é formado necessariamente por textos/imagens que permitam a reconstrução empírica de situações pedagógicas, a saber, transcrições de aulas, de entrevistas ou, como proposto neste artigo, os livros escolares, entre outros. Para tanto, cada um desses documentos deve ser “produzido especialmente para fins de análise, decorrente do processo de pesquisa empírica” (Gomes, 2017GOMES, Luiz Roberto. Hermenêutica objetiva e pesquisa empírica em educação: a experiência com os estudos de sala de aula em Frankfurt am Main. Revista Eletrônica de Educação, v. 11, n. 2, p. 351-367, 2017. http://dx.doi.org/10.14244/198271992154
http://dx.doi.org/10.14244/198271992154...
, p. 355).

Diferentemente dos casos em que os protocolos são elaborados a partir da transcrição de áudios, o uso de livros didáticos como fonte de pesquisa leva-nos a reconhecer o conteúdo desses materiais como sendo, eles mesmos, a reconstrução de situações empíricas de sala de aula, pois seus capítulos e seções são organizados de forma a propor sequências didáticas que possam ser adotadas na íntegra e de forma literal pelos professores. Por isso, prescindindo da etapa de transcrição ou de digitalização de dados, a geração de protocolos a partir de manuais escolares exige a divisão do corpus total em diferentes documentos, tendo como parâmetro de organização a estimativa de uma aula, ou proposição pedagógica, por protocolo. Assim, um capítulo de livro didático, por exemplo, pode dar origem a vários protocolos.

Esclarecidos o significado e o papel dos protocolos nas análises orientadas pela HO, sintetizamos os princípios fundamentais do método:

  • Sequencialidade: o texto deve ser analisado na íntegra, da primeira à última frase, com atenção a todos os seus detalhes (Vilela, 2012VILELA, Rita Almeida Teixeira. A pesquisa empírica da sala de aula na perspectiva da teoria crítica: aportes metodológicos da hermenêutica objetiva de Ulrich Oevermann. In: PUCCI, Bruno; COSTA, Belarmino Cesar Guimarães da; DURÃO, Fabio Akcelrud (Org.). Teoria Crítica e Crises: reflexões sobre cultura, estética e educação. Campinas: Autores Associados, 2012. p. 157-180., p. 165-167 apudGomes, 2017GOMES, Luiz Roberto. Hermenêutica objetiva e pesquisa empírica em educação: a experiência com os estudos de sala de aula em Frankfurt am Main. Revista Eletrônica de Educação, v. 11, n. 2, p. 351-367, 2017. http://dx.doi.org/10.14244/198271992154
    http://dx.doi.org/10.14244/198271992154...
    , p. 355). No caso dos livros didáticos, isso implica analisar não somente os exercícios de leitura, mas todo o conteúdo que introduz e/ou encerra tais atividades (os paratextos, as imagens, os boxes etc.);

  • Independência de contexto: apenas o conteúdo do protocolo deve guiar a interpretação de dados, o pesquisador “não deve projetar para a análise o que não pode ser confirmado no texto” (Vilela, 2012VILELA, Rita Almeida Teixeira. A pesquisa empírica da sala de aula na perspectiva da teoria crítica: aportes metodológicos da hermenêutica objetiva de Ulrich Oevermann. In: PUCCI, Bruno; COSTA, Belarmino Cesar Guimarães da; DURÃO, Fabio Akcelrud (Org.). Teoria Crítica e Crises: reflexões sobre cultura, estética e educação. Campinas: Autores Associados, 2012. p. 157-180., p. 165-167 apudGomes, 2017GOMES, Luiz Roberto. Hermenêutica objetiva e pesquisa empírica em educação: a experiência com os estudos de sala de aula em Frankfurt am Main. Revista Eletrônica de Educação, v. 11, n. 2, p. 351-367, 2017. http://dx.doi.org/10.14244/198271992154
    http://dx.doi.org/10.14244/198271992154...
    , p. 356). Essa premissa nos adverte quanto à necessidade de reconhecer o livro didático como a fonte exclusiva de respostas ao problema levantado, ao menos no decorrer da análise. Posteriormente a ela, informações relativas, por exemplo, ao contexto de produção, de avaliação e/ou de distribuição de livros didáticos podem vir a contribuir para o entendimento dos aspectos observados; durante a análise, porém, é importante que se atente sobretudo ao que é constituído pelos protocolos;

  • Literalidade: é preciso ter em vista que “o próprio texto é o instrumento de validade da interpretação, e [que] apenas o que está registrado deve ser analisado” (Vilela, 2012VILELA, Rita Almeida Teixeira. A pesquisa empírica da sala de aula na perspectiva da teoria crítica: aportes metodológicos da hermenêutica objetiva de Ulrich Oevermann. In: PUCCI, Bruno; COSTA, Belarmino Cesar Guimarães da; DURÃO, Fabio Akcelrud (Org.). Teoria Crítica e Crises: reflexões sobre cultura, estética e educação. Campinas: Autores Associados, 2012. p. 157-180., p. 165-167 apudGomes, 2017GOMES, Luiz Roberto. Hermenêutica objetiva e pesquisa empírica em educação: a experiência com os estudos de sala de aula em Frankfurt am Main. Revista Eletrônica de Educação, v. 11, n. 2, p. 351-367, 2017. http://dx.doi.org/10.14244/198271992154
    http://dx.doi.org/10.14244/198271992154...
    , p. 356). Trata-se de um princípio que nos recorda, inevitavelmente, da importância do rigor no momento de elaboração dos protocolos, pois, sem esse cuidado, a literalidade não pode ser garantida;

  • Substancialidade da informação: os pesquisadores, pautados “pelo seu conhecimento disciplinar”, “devem formular hipóteses explicativas, que se sucedem e permitem que a mais plausível se estabeleça” (Vilela, 2012VILELA, Rita Almeida Teixeira. A pesquisa empírica da sala de aula na perspectiva da teoria crítica: aportes metodológicos da hermenêutica objetiva de Ulrich Oevermann. In: PUCCI, Bruno; COSTA, Belarmino Cesar Guimarães da; DURÃO, Fabio Akcelrud (Org.). Teoria Crítica e Crises: reflexões sobre cultura, estética e educação. Campinas: Autores Associados, 2012. p. 157-180., p. 165-167 apudGomes, 2017GOMES, Luiz Roberto. Hermenêutica objetiva e pesquisa empírica em educação: a experiência com os estudos de sala de aula em Frankfurt am Main. Revista Eletrônica de Educação, v. 11, n. 2, p. 351-367, 2017. http://dx.doi.org/10.14244/198271992154
    http://dx.doi.org/10.14244/198271992154...
    , p. 356). Em outras palavras, é no conjunto das hipóteses explicativas levantadas, objetivamente voltadas à interpretação do material empírico, que respostas ao problema podem ser encontradas;

  • Parcimônia: “de um lado, reitera a condição estabelecida nas regras anteriores: evitar conjecturas sobre o que está informado no registro, renúncia ao fictício, a considerações improváveis. De outro, indica que o processo de análise é metódico, paciente, profundo e que não pode ser precipitado” (Vilela, 2012VILELA, Rita Almeida Teixeira. A pesquisa empírica da sala de aula na perspectiva da teoria crítica: aportes metodológicos da hermenêutica objetiva de Ulrich Oevermann. In: PUCCI, Bruno; COSTA, Belarmino Cesar Guimarães da; DURÃO, Fabio Akcelrud (Org.). Teoria Crítica e Crises: reflexões sobre cultura, estética e educação. Campinas: Autores Associados, 2012. p. 157-180., p. 165-167 apudGomes, 2017GOMES, Luiz Roberto. Hermenêutica objetiva e pesquisa empírica em educação: a experiência com os estudos de sala de aula em Frankfurt am Main. Revista Eletrônica de Educação, v. 11, n. 2, p. 351-367, 2017. http://dx.doi.org/10.14244/198271992154
    http://dx.doi.org/10.14244/198271992154...
    , p. 356).

Sabe-se que o cumprimento parcial ou total desses princípios é esperado em grande parte dos estudos qualitativos interpretativos desenvolvidos na área de Educação. Entretanto, mais do que o rigor exigido no cumprimento de cada diretriz, os procedimentos metodológicos da HO destacam-se por postular que o corpus de pesquisa seja analisado por uma equipe multidisciplinar de pesquisadores vinculados, em alguma medida, à área da Educação, da qual se espera que façam parte, além de intérpretes voluntários, o pesquisador principal e um professor da disciplina escolar a que se referem os protocolos, a fim de “viabilizar o cruzamento de informações captadas ou ‘percebidas’ por diferentes pessoas, para testar e assegurar a pertinência da interpretação” (Vilela; Noack-Napoles, 2010VILELA, Rita Almeida Teixeira; NOACK-NAPOLES, Juliane. “Hermenêutica Objetiva” e sua apropriação empírica na área de educação. Linhas Críticas, v. 16, n. 31, p. 305-326, 2010. https://www.redalyc.org/articulo.oa?id=193517492007
https://www.redalyc.org/articulo.oa?id=1...
, p. 317; 320). Em vista deste e dos demais pressupostos elencados, a HO “não é apenas um procedimento de pesquisa qualitativa interpretativa que realiza a análise hermenêutica de textos, mas sim um procedimento metodológico que procura assegurar a validade da interpretação” (Vilela; Noack-Napoles, 2010, p. 312), sendo que, por meio dele, são desvendados:

[…] as normas sociais que são asseguradas no espaço da sala de aula; as visões de mundo que são propagadas; os conhecimentos e a maneira e a competência com que são inseridos na sala de aula; outros elementos que entram ou são negados com o conteúdo trabalhado; a didática em que o professor se apoia e seus efeitos e, finalmente, o clima reinante nas relações sociais e pedagógicas, intrínsecas ao momento aula. Cada uma das situações que se tornaram evidentes e que estão registradas nos protocolos são analisadas em busca do seu significado. Somente após esse exercício de interpretação através da “hermenêutica objetiva” será possível estabelecer algumas relações com a teoria social e com a pedagogia (Vilela; Noack-Napoles, 2010VILELA, Rita Almeida Teixeira; NOACK-NAPOLES, Juliane. “Hermenêutica Objetiva” e sua apropriação empírica na área de educação. Linhas Críticas, v. 16, n. 31, p. 305-326, 2010. https://www.redalyc.org/articulo.oa?id=193517492007
https://www.redalyc.org/articulo.oa?id=1...
, p. 316-317).

Pesquisas qualitativas em educação e os estudos sobre livros didáticos

As correntes de pesquisa mais tradicionais dos estudos sobre manuais escolares costumam se pautar numa análise de conteúdo composta por um mapeamento e por avaliações preliminares do(s) livro(s) didático(s), para que então sejam elaboradas e aplicadas categorias analíticas que permitam classificar os exercícios presentes nesses materiais. A partir disso, são desenvolvidas análises quantitativas e/ou qualitativas dos dados coletados, havendo algumas preferência pela análise dos conjuntos de perguntas e respostas propostos pelos manuais, em detrimento, por exemplo, da análise da iconografia e dos paratextos que precedem, acompanham ou encerram tais blocos de exercícios. Nesses casos, estamos diante de estudos que se valem, usualmente, dos livros escolares como fonte primária e da bibliografia referente ao tema/corpus como fonte secundária - explicações e exemplificações dessa corrente de pesquisa envolvendo, em específico, livros didáticos de Português são apresentadas por Barros-Mendes e Padilha (2005). Nota-se, em geral, certa predileção por um corpus de pesquisa centrado nas atividades (perguntas a respostas) ou, ainda que menos frequente, nos elementos iconográficos que integram o livro didático, sendo pouco usuais pesquisas que articulem, de forma aprofundada, a análise de seus diferentes elementos.

Por outro lado, verificam-se pesquisas de caráter empírico, que, ao invés de admitirem o livro didático como fonte de dados por si só, recorrem à observação presencial do uso que dele é feito por professores e/ou alunos em sala de aula ou então à análise de entrevistas/questionários sobre esses usos. Trata-se de estudos que têm atestado, entre outros aspectos, o papel ativo e autônomo exercido pela prática docente, uma vez que, longe de recorrer a um uso passivo do que é proposto pelas coleções didáticas, professores reinterpretam e reconfiguram esses manuais de acordo com suas necessidades e seus contextos de ensino-aprendizagem - acerca dos usos dos livros didáticos de Língua Portuguesa, vide, por exemplo, Bunzen (2009BUNZEN, Clecio. Dinâmicas discursivas na aula de português: os usos do livro didático e projetos didáticas autorais. Tese (Doutorado em Linguística Aplicada) - Universidade Estadual de Campinas, Campinas, 2009.). Sem negar esse dado, o foco do artigo é explorar as contradições entre teoria e prática pedagógicas que emergem do processo que antecede a chegada do livro escolar à sala de aula, atentando-se ao papel interpretativo que é exercido também pelas editoras ao traduzirem didaticamente aquilo que é prescrito por leis, por documentos regulatórios e/ou por editais de seleção e avaliação de obras didáticas. Por meio do aporte teórico-metodológico da HO, recorremos aos livros didáticos visando reconstruir, portanto, a situação empírica de sala tal qual direcionada por materiais distribuídos na rede pública de ensino, com a particularidade de desenvolver essas análises juntamente a uma equipe multidisciplinar.

É importante mencionar que, para além do fato de exigir um grupo de intérpretes, tal proposta de abordagem dos livros escolares - a qual, com base na HO, prescinde, a priori, tanto da elaboração de categorias de análise quanto da ida à sala de aula - revela-se pertinente e original à medida que seus procedimentos atendem ao princípio interpretativo da totalidade (Weller, 2011WELLER, Wivian. Aportes Hermenêuticos no Desenvolvimento de Metodologias Qualitativas. Linhas Críticas, v. 16, n. 31, p. 287-304, 2011. https://www.redalyc.org/articulo.oa?id=193517492006
https://www.redalyc.org/articulo.oa?id=1...
, p. 298). Isso porque

Na acepção do autor [Oevermann], tal princípio implica um processo de interpretação e busca de sentido para todas as expressões ou palavras contidas em um segmento, mesmo aquelas aparentemente desprovidas de sentido. De acordo com a hermenêutica objetiva, a reconstrução de um caso não é realizada por meio da classificação, ou seja,da inclusão ou exclusão de elementos a partir de um critério específico, mas através da ‘captação da legalidade interna’ do caso (‘die innere Gesetzmäßigkeiteines Falles zu erschließen’). Nesse sentido, expressões aparentemente sem sentido no contexto de uma frase ou segmento devem ser detalhadamente analisadas com o objetivo de verificar se são compatíveis com as interpretações realizadas ou se apontam contradições na análise desenvolvida pelo intérprete até essa etapa (Weller, 2011WELLER, Wivian. Aportes Hermenêuticos no Desenvolvimento de Metodologias Qualitativas. Linhas Críticas, v. 16, n. 31, p. 287-304, 2011. https://www.redalyc.org/articulo.oa?id=193517492006
https://www.redalyc.org/articulo.oa?id=1...
, p. 298).

Com base no exposto, apresentamos a seguir os resultados de uma investigação que buscou equacionar os fundamentos da Hermenêutica Objetiva e os estudos sobre livros didáticos. Tomando emprestadas as palavras de Bourdieu (1989BOURDIEU, Pierre. O poder simbólico. 4. ed. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 1989., p. 19), reconhecemos que estamos a apresentar uma pesquisa em seu “estado nascente”, pois, contrariando o apreço do “homo academicus” pelo acabado, o presente trabalho corresponde a uma arte inacabada, com “vestígios de pinceladas, dos toques e dos retoques”, uma exposição alinhada à reflexão dos próprios modos de fazer pesquisa empírica em educação.

Uso da Hermenêutica Objetiva em pesquisas sobre livros didáticos: relato crítico-reflexivo de experiência

Corpus

Para aproximar/adaptar o aporte teórico-metodológico da Hermenêutica Objetiva (HO) às análises de livros didáticos, optamos por um corpus de pesquisa composto por um capítulo de Literatura da segunda coleção didática de Português mais adotada pela rede pública de ensino na ocasião do Programa Nacional do Livro Didático em 2018, edição voltada à avaliação e à distribuição dos manuais escolares do ensino médio. Intitulado “Capítulo 5 - A prosa da segunda fase do Modernismo: retrato crítico do real”, o recorte de pesquisa situa-se na Unidade 3 do terceiro volume da coleção “Se liga na língua” (Ormundo; Siniscalchi, 2016ORMUNDO, Wilton; SINISCALCHI, Cristiane. Se Liga na Língua: Literatura, Produção de Texto, Linguagem. v. 3. São Paulo: Moderna, 2016.), da editora Moderna. Ao todo, o capítulo soma 23 páginas, nas quais se encontram cinco propostas de atividades de leitura. A versão à qual recorremos é aquela entregue ao professor, o dito “Manual do Professor”, que é composto pelo Caderno do Aluno acrescido dos gabaritos dos exercícios e de orientações didático-pedagógicas específicas e gerais direcionadas ao docente.

Com a escolha de tal corpus, as possíveis contradições entre aspiração e prática pedagógicas que foram objeto do estudo inscrevem-se, sobretudo, no rol dos debates sobre o ensino de leitura/literatura almejado e o ensino de leitura/literatura de fato ofertado nas escolas brasileiras. Por conseguinte, documentos regulatórios que tratam desse eixo de ensino servem de fonte para o entendimento daquilo que se projeta para a formação de leitores no ensino médio, com destaque às seções referentes à área de Linguagens e/ou à disciplina de Português nas Orientações Curriculares para o Ensino Médio (Brasil, 2006), na Base Nacional Comum Curricular (Brasil, 2018) e nos Guias do PNLD (Brasil, 2014; 2017). Em comum, esses textos anunciam a expectativa de que a leitura seja trabalhada de forma crítica e autônoma nas escolas, de modo a se garantir o reconhecimento do aluno-leitor como um agente ativo desse processo (Brasil, 2006, p. 69-71). Nota-se, em grande medida, a preconização de perspectivas dialógicas/reflexivas de ensino de leitura (Brasil, 2018, p. 499; 525; Brasil, 2017, p. 88; Brasil, 2014, p. 96), ao encontro, entre outros aspectos, da percepção de que ainda imperam em sala de aula práticas opostas a esses fundamentos, as quais restringem-se, muitas vezes, a atividades de metaleitura que insistem em encarar os estudantes como meros receptores passivos de conteúdos e de leituras autorizadas (Brasil, 2006, p. 70). E é a partir dessas premissas que a escolha do corpus de pesquisa privilegiou a produção modernista, pois ela corresponde a um conteúdo que costuma ser abordado sobretudo nos anos finais da educação básica - estágio em que, em tese, os jovens têm alguma experiência leitora que lhes permite exercer a autonomia diante do ato de ler -, bem como a uma corrente literária marcada por temáticas sociais relevantes - o que, supostamente, dá margem à proposição de exercícios bastante críticos e reflexivos. Assim, o ponto de interesse inicial das análises foi a questão do exercício ativo e autônomo de leitura.

A elaboração de protocolos a partir de livros didáticos: desafios e soluções

Para gerar protocolos a partir do capítulo selecionado, buscamos estimar conjuntos de textos e de atividades que formassem sequências didáticas passíveis de serem trabalhadas pelo professor no intervalo de uma aula de cerca de 40/50 minutos, tendo em vista o objetivo de reconstruir a situação empírica da sala de aula. Apoiamo-nos, evidentemente, em uma estimativa que atendesse à necessidade de gerarmos protocolos coesos, que, sem serem muito extensos, apresentassem propostas com começo, meio e fim, delimitadas pelo texto a ser estudado a cada aula. Assim, o capítulo composto por 23 páginas deu origem a 5 protocolos de pesquisa, cada qual constituído, ao menos, por uma atividade de leitura, sendo que o presente artigo baseia-se na análise completa do Protocolo 1 (correspondente ao conteúdo de Ormundo; Siniscalchi, 2016ORMUNDO, Wilton; SINISCALCHI, Cristiane. Se Liga na Língua: Literatura, Produção de Texto, Linguagem. v. 3. São Paulo: Moderna, 2016., p. 70-74) e do Protocolo 2 (correspondente ao conteúdo de Ormundo; Siniscalchi, 2016, p. 74-81), que centram suas principais atividades de interpretação textual no conto “Nós chorámos pelo Cão Tinhoso” (2009), do escritor angolano Ondjaki, e no capítulo “Baleia”, de Vidas Secas (1938), de Graciliano Ramos, respectivamente.

Em consonância com os princípios da sequencialidade e da literalidade reivindicados pela HO, os protocolos gerados abrangem não apenas as atividades interpretativas, mas também os paratextos do livro didático, ou seja, todo o conteúdo (verbal ou não verbal) que introduz, contextualiza e/ou complementa os exercícios de leitura literária. Contudo, um desafio ao cumprimento desses princípios se impôs já na fase de elaboração dos documentos a serem analisados: visando à dita “reconstrução empírica da situação de sala de aula”, julgamos ser adequado incluir nos protocolos as expectativas de resposta fornecidas ao professor por meio dos gabaritos das atividades, visto que tais instruções têm o poder de interferir e/ou de determinar, de forma mais direta, as práticas postuladas pelas coleções didáticas. Ocorre, entretanto, que, na versão do livro didático ofertada aos docentes, a sequência didática apresentada aos alunos mantém, com certa frequência, uma distância das respectivas orientações destinadas ao professor, isto é, o material destinado aos alunos e o material destinado ao professor nem sempre estão dispostos de forma sequencial.

No caso da coleção selecionada, há mais de 300 páginas de afastamento entre as atividades a serem analisadas e seus respectivos gabaritos, o que, à luz da HO, traria implicações aos princípios tanto da sequencialidade e da literalidade. Diante, portanto, da necessidade de adaptar o método às especificidades do corpus, optamos por compartilhar com a equipe multidisciplinar tanto o material na íntegra, a saber, os conteúdos do Caderno do Aluno em seu estado original, quanto um documento por nós elaborado no qual os conteúdos relativos aos exercícios de leitura são acrescidos das respostas registradas ao professor, destacadas com itálico. A Figura 1 corresponde a um fragmento da cópia dos capítulos, que ilustra como as atividades aparecem nos protocolos; a Figura 2, a uma cópia do documento complementar no qual agrupamos, sequencialmente, pergunta e resposta, de modo a aproximar Caderno do Aluno e Manual do Professor:

Figura 1:
Fragmento do Protocolo 1.

Figura 2:
Fragmento do Protocolo 1

A partir do acesso ao documento complementar, a equipe pôde ter uma visão global e integral das práticas que são propostas pela coleção didática, sem que, para isso, os protocolos sofressem edições que comprometessem sua literalidade.

A equipe multidisciplinar e as reuniões remotas para o desenvolvimento das análises

Para a interpretação e análise dos protocolos constituídos a partir do livro didático selecionado, foram realizados cinco encontros com o grupo multidisciplinar, com duração média de 1h45min. Ao todo, participaram das análises sete pesquisadores voluntários vinculados a um mesmo programa de Pós-Graduação em Educação, todos, em alguma medida, familiarizados com o método. Cumprindo com o que é sugerido pela HO, constavam na equipe participantes com experiência no ensino da disciplina escolar à qual se referem os protocolos, o componente Português. Os demais participantes somam experiências nas áreas de Filosofia, Pedagogia e Psicologia.

Em decorrência da pandemia, as reuniões ocorreram de forma remota através da plataforma Google Meet, totalizando 8h45min de análises, dedicadas à interpretação e discussão dos supracitados Protocolo 1 e Protocolo 2. A escolha por analisar dois protocolos, em detrimento da análise dos cinco protocolos gerados inicialmente, deu-se, para além da limitação de tempo, pelo fato de a equipe ter identificado repetições no modo como o livro didático conduz suas propostas didático-pedagógicas. A recorrência das mesmas estratégias e dos mesmos exercícios nos dois primeiros protocolos, somada a uma breve consulta ao teor dos protocolos subsequentes, levou a equipe a considerar suficiente a análise minuciosa de dois documentos. Em síntese, verificou-se que a disposição dos conteúdos da coleção analisada atende, em grande medida, ao mesmo padrão editorial.

Em linhas gerais, as análises foram possibilitadas pelo recurso “compartilhamento de tela”, a partir do qual todos os participantes analisaram concomitante e parcimoniosamente os documentos projetados na tela do Google Meet. E devido à experiência prévia da equipe com os métodos da HO, não houve dificuldades no atendimento aos princípios metodológicos.

Salientamos, por fim, que, a despeito de a participação do pesquisador principal e especialista ser um dos requisitos colocados pelos métodos da HO, é esperado que ele, de fato, limite-se a participar das análises, e não que interfira nas apreciações da equipe multidisciplinar. Também por essa razão, ou seja, com o objetivo de não induzir nem prejudicar a leitura crítica dos demais participantes, não foram apresentados previamente à equipe os pormenores das hipóteses e das teorias que, inicialmente, embasaram o estudo. Nesse sentido, a participação dos intérpretes voluntários não institui uma relação de coautoria, pois a análise conjunta corresponde a uma etapa da pesquisa após a qual cabe ao pesquisador principal, este sim exercendo seu papel de autor/especialista, examinar e organizar os resultados obtidos, assim como articulá-los à discussão dos embates entre teoria e práticas pedagógicas.

Resultados principais: um novo olhar aos paratextos, um novo olhar ao Manual do Professor

De início, destacam-se nos resultados das análises os contributos decorrentes do cumprimento dos princípios da sequencialidade e da parcimônia, que não se fazem necessariamente presentes entre os fundamentos das metodologias tradicionais de análise de livros didáticos.

Conforme mencionado anteriormente, na corrente de pesquisa mais tradicional, o estudo das atividades de manuais escolares costuma se orientar pela (re)elaboração e aplicação de categorias analíticas que permitam classificar os exercícios presentes nesses materiais. A partir disso, são desenvolvidas análises quantitativas e/ou qualitativas dos dados coletados. Nota-se, então, a composição de um corpus bastante centrado nas atividades (perguntas a respostas) propostas pelo livro didático, o que, na maioria das vezes, deixa em segundo plano a análise da iconografia e dos paratextos que precedem, acompanham ou encerram tais conjuntos de exercícios. É nesse sentido que o atendimento aos princípios da HO revelam seus contributos para as investigações da área: constatamos que, à luz dos aportes da HO, as atividades escolares deixam de ser analisadas de forma isolada, para serem exploradas também numa perspectiva macro, isto é, em relação ao lugar e ao papel por elas assumidos no projeto didático-pedagógico da coleção didática como um todo. Em síntese, a equipe verificou que não são somente as perguntas feitas aos alunos e as respostas sugeridas aos professores que dão um testemunho sobre como é pretendido que a leitura seja trabalhada em sala de aula, mas que também a disposição e a abordagem dos elementos não verbais adjacentes e dos paratextos fornecem dados relevantes à compreensão da situação empírica de sala de aula.

No Protocolo 1, ganham destaque, por exemplo, os desdobramentos da análise da imagem de abertura do capítulo, uma fotografia em preto e branco de Celso Oliveira, conforme mostra a Figura 3.

Ilustrando o início do capítulo a partir do qual foram gerados os protocolos, intitulado “A prosa da Segunda Fase do Modernismo: retrato crítico do real”, a fotografia não é acompanhada de exercícios interpretativos, sendo seguida apenas da legenda:

Quando leu uma matéria sobre a seca no Ceará na revista Realidade, em 1972, Celso Oliveira resolveu dedicar-se à fotografia e ao registro - geralmente em preto e branco - da realidade da gente simples do Nordeste. Dar luz a seres achatados por condições desumanas de vida foi a meta de muitos autores do chamado Romance de 30. Foto de 1993 (Ormundo; Siniscalchi, 2016ORMUNDO, Wilton; SINISCALCHI, Cristiane. Se Liga na Língua: Literatura, Produção de Texto, Linguagem. v. 3. São Paulo: Moderna, 2016., p. 70).

Figura 3:
Fragmento do Protocolo 1 (imagem de abertura).

De início, a equipe multidisciplinar levantou a hipótese de que a predileção do livro didático por uma imagem de abertura de capítulo em preto e branco poderia estar associada à validação da premissa presente na legenda, a de que o Nordeste corresponderia a uma região de “seres achatados”, ou seja, sem vitalidade, sem cor. Por isso, apesar de considerarmos a fotografia apropriada para a introdução de um capítulo cujo subtítulo anuncia “o retrato crítico do real”, observamos que o direcionamento de leitura feito pela legenda, ao ser desacompanhado de atividades de interpretação e de reflexão que explorem múltiplas perspectivas, limita os sentidos que a ela poderiam ser atribuídos, além de remeter a uma percepção redutora sobre os nordestinos. A equipe considerou que há na fotografia um rico material que, ao apresentar o retrato de um homem com o reflexo de seu olhar no espelho, extrapola estereótipos usualmente atribuídos à população nordestina, mas que, por outro lado, é empobrecido pelo teor da legenda, a qual dispensa o aluno-leitor de refletir e de compartilhar suas impressões de leitura acerca da imagem, de modo a exercitar o pensamento crítico e autônomo. Ou seja, na abertura do capítulo, a expressão da experiência estética e da voz do aluno-leitor não é requerida, prevalecendo a leitura (única) privilegiada pelo livro didático. Num primeiro momento, identificamos nessa ocorrência indícios de uma contradição entre a concepção de leitura reflexiva preconizada tanto por documentos oficiais de educação quanto pelo subtítulo “retrato crítico do real” e o tipo de atividade/abordagem dada pelo livro didático à leitura de imagens.

Em decorrência da análise parcimoniosa da fotografia de Celso Oliveira, elementos afins puderam ser melhor compreendidos na sequência didática. Tendo em vista que a legenda da imagem de abertura não dava margem para que fossem realizadas apreciações pessoais/autônomas por parte dos alunos, chamou a atenção da equipe o fato de haver nos paratextos subsequentes do Protocolo 1, assim como nos do Protocolo 2, passagens em que a expressão da subjetividade são enfaticamente demandadas pelo livro didático. No primeiro caso, no qual as atividades de interpretação textual baseiam-se na leitura do conto “Nós chorámos pelo Cão Tinhoso” (2009), do escritor angolano Ondjaki (Ormundo; Siniscalchi, 2016ORMUNDO, Wilton; SINISCALCHI, Cristiane. Se Liga na Língua: Literatura, Produção de Texto, Linguagem. v. 3. São Paulo: Moderna, 2016., p. 73), registra-se uma nota prévia ao professor informando que “com a leitura, os alunos notarão que, mesmo sem conhecer o texto de Honwana, é possível compreender o intertexto criado por Ondjaki e se emocionar com ele” (Ormundo; Siniscalchi, 2016 p. 71 - grifo nosso). De forma análoga, no Protocolo 2, os exercícios sobre a leitura do capítulo “Baleia” do romance Vidas Secas (1938), de Graciliano Ramos (Ormundo; Siniscalchi, 2016, p. 80-81), são precedidos, desta vez no Caderno do Aluno, da mensagem “Você gosta de cães? Tem animais de estimação? Pois se comoverá com o que vai ler agora” (destaque nosso) (Ormundo; Siniscalchi, 2016, p. 76).

Em suma, ora ao professor, ora ao estudante, é anunciada a expectativa de que os textos suscitem emoções e sentimentos, o que, a princípio, encaminha a atividade pedagógica para algum grau de reconhecimento e/ou acolhimento da experiência/do posicionamento crítico dos estudantes e/ou para a multiplicidade de percepções suscitadas pelo texto lido, diferentemente da abordagem dada à imagem de abertura do capítulo. No entanto, a análise sequencial dos protocolos revelou que apenas as questões de fechamento de cada uma das atividades de leitura, ambas presentes em um box intitulado “Fala Aí”, traziam, de fato, questões abertas a interpretações pessoais e/ou plurais, sendo as demais perguntas de viés metalinguístico/metaliterário, envolvendo tarefas de identificação, justificação, classificação, inferência etc.2 2 Para além do conteúdo do box “Fala aí”, no Protocolo 1 são elencadas sete questões sobre o conto de Ondjaki (vide Ormundo; Siniscalchi, 2016, p. 73); já no Protocolo 2, listam-se mais seis perguntas sobre o excerto do romance de Graciliano Ramos (vide Ormundo; Siniscalchi, 2016, p. 80-81). . Embora os enunciados dessas questões recorram, por vezes, a expressões do tipo “você concorda”/ “na sua opinião”, os gabaritos acabam por enquadrá-las no rol de perguntas para as quais são atribuídas uma única possibilidade e/ou expectativa de resposta, de modo semelhante ao observado na abordagem da imagem de abertura do capítulo.

Selecionamos um exemplo do Protocolo 2, no qual o enunciado “você concorda” é posteriormente reduzido pela expectativa de resposta “espera-se que os alunos concordem”; em itálico, destacamos o gabarito disponibilizado ao professor:

1. Não são poucos os estudiosos que descrevem a literatura de Graciliano Ramos como objetiva, seca e concisa. Relendo o primeiro parágrafo, você concorda com essa descrição? Por quê? (Ormundo; Siniscalchi, 2016ORMUNDO, Wilton; SINISCALCHI, Cristiane. Se Liga na Língua: Literatura, Produção de Texto, Linguagem. v. 3. São Paulo: Moderna, 2016., p. 80)

Espera-se que os alunos concordem. Para tratar de um assunto tão duro e comovente, o autor não utiliza subterfúgios. Abre o capítulo de forma direta, informando ao leitor, sem sentimentalismos, que Baleia “estava para morrer”. Depois, em períodos curtos, descreve o estado físico deplorável da cachorra, utilizando poucos adjetivos para isso (Ormundo; Siniscalchi, 2016ORMUNDO, Wilton; SINISCALCHI, Cristiane. Se Liga na Língua: Literatura, Produção de Texto, Linguagem. v. 3. São Paulo: Moderna, 2016., p. 439).

Portanto, no Protocolo 1, é somente o box “Fala aí” que demanda, de fato, a expressão das emoções/subjetividades dos alunos a partir da análise de uma passagem do conto de Ondjaki, no qual é colocada a pergunta: “Na sua opinião, o que o trecho sugere sobre o poder da literatura? Que obras de sua biblioteca cultural o fariam reviver emoções como as citadas pelo narrador?” (Ormundo; Siniscalchi, 2016ORMUNDO, Wilton; SINISCALCHI, Cristiane. Se Liga na Língua: Literatura, Produção de Texto, Linguagem. v. 3. São Paulo: Moderna, 2016., p. 73). Algo semelhante se observa no Protocolo 2, no qual o mesmo box questiona quais são os desejos/sonhos dos alunos se comparados aos desejos atribuídos a uma personagem do texto de Graciliano Ramos: “Você concorda com Graciliano Ramos? Todos desejamos nossos “preás”? Quais seriam os seus? O que você faria para consegui-los?” (Ormundo; Siniscalchi, 2016, p. 81). No primeiro caso, o gabarito do referido box assinala, entre outros aspectos, “ouça a opinião dos alunos” e “ceda espaço para que os alunos mencionem e comentem o que os tenham emocionado” (Ormundo; Siniscalchi, 2016, p. 439); no segundo, sugere-se ao professor, por exemplo, verificar “que desejos têm seus alunos” e “incentivá-los” a falar (Ormundo; Siniscalchi, 2016, p. 439).

Diferentemente do que se verificou no box “Fala aí” - seção na qual, como mencionado, a questão da subjetividade/experiência pessoal de leitura é efetivamente abordada -, a equipe notou nos questionários de compreensão textual uma tendência à análise dos sentimentos vivenciados pelas personagens em detrimento daqueles experimentados pelos alunos. Isso ocorre, por exemplo, na questão 6 do Protocolo 1, quando é perguntado ao aluno o que justifica a ação de determinada personagem do conto de Ondjaki, pergunta cujo gabarito menciona o fato de a personagem “não saber lidar com a emoção […]” que começa a tomar conta de sua sala de aula após a leitura de um texto (Ormundo; Siniscalchi, 2016ORMUNDO, Wilton; SINISCALCHI, Cristiane. Se Liga na Língua: Literatura, Produção de Texto, Linguagem. v. 3. São Paulo: Moderna, 2016., p. 438); ou então na questão 6 do Protocolo 2, na qual o aluno é indagado sobre o porquê de uma das personagens “mescla[r] ações de violência e de afeto” (Ormundo; Siniscalchi, 2016, p. 80). Ou seja, é possível perceber que a coleção admite inicialmente a relação entre “leitura” e “emoção”/subjetividade, tal qual mencionada nos paratextos introdutórios, mas que posteriormente essa relação fundamenta-se mais no plano narrativo, da materialidade textual, do que no plano da experiência estética do aluno-leitor.

Há, assim, uma pontual contradição entre o que sugere parte dos paratextos - no caso, os textos introdutórios fornecidos aos alunos e aos docentes, que destacam, previamente, que os alunos poderão “se emocionar” ou “se comover” com a leitura - e o que se consolida nas atividades de leitura do manual analisado - que pouco trabalham a experiência subjetiva de leitura dos estudantes. Trata-se de um dado percebido, sobretudo, devido ao cumprimento do princípio da sequencialidade previsto pela HO, o qual nos levou a analisar todos os elementos do capítulo. Conforme observado no tratamento dado à imagem de abertura do capítulo, também os exercícios subsequentes não exploram com profundidade a leitura autônoma e pessoal dos textos-imagens trabalhados.

Neste ponto, ainda sobre o box “Fala aí”, também chamou especial atenção da equipe o lugar por ele ocupado na sequência didática. O fato de este box situar-se sempre após exercícios de viés metalinguístico-metaliterário fez-nos questionar a eficácia de se propor uma pergunta de cunho dialógico somente ao final das atividades de interpretação; sequencialmente, a equipe considerou que perguntas desse teor se mostrariam mais produtivas se lançadas imediatamente após a leitura do texto, momento em que as impressões pessoais encontram-se afloradas, e não após exercícios de viés instrumental/objetivo que conduzem somente a leituras autorizadas e únicas, como já advertido por documentos oficiais. Nesse sentido, a análise sequencial e parcimoniosa dos protocolos conduziu a equipe a reflexões que extrapolam a análise da materialidade das atividades textuais, possibilitando discussões sobre a coesão sequencial das propostas didático-pedagógicas presentes em livros didáticos.

Se, por um lado, o cumprimento do pressuposto da sequencialidade somou às análises elementos usualmente despercebidos ou desconsiderados pela metodologia tradicional dos estudos sobre exercícios de compreensão presentes em coleções didáticas, por outro, ele colocou em xeque a própria definição de sequencialidade quando o corpus de pesquisa é formado por esse tipo de documento, o que pode, em última instância, ter implicações no atendimento a outro importante princípio preconizado pela HO: o de literalidade.

Considerando que os manuais escolares dividem-se, em sua maioria, em unidades/seções que se desdobram em capítulos, observamos que nem sempre a abertura da unidade à qual pertence um capítulo, e menos ainda as orientações gerais dadas ao professor, estão dispostas sequencialmente. Pode haver, ao contrário, um distanciamento considerável de páginas entre o capítulo que integra o corpus de pesquisa e a abertura da unidade a que ele se refere, ou então entre o capítulo e as orientações dadas exclusivamente ao professor, que podem aparecer em seções anexas, por exemplo. Foi esse o caso da coleção por nós analisada, pois, com exceção dos gabaritos e de instruções pontuais que aparecem justapostas aos exercícios - contribuindo assim para o atendimento dos princípios da sequencialidade e da literalidade -, tanto a abertura da unidade à qual pertencia o corpus quanto o Manual do Professor encontravam-se para além dos limites do capítulo que a ser analisado. Eis que nos foi imposto um desafio à elaboração dos protocolos gerados a partir de livros didáticos: inserir ou não inserir nos protocolos passagens e/ou elementos da respectiva coleção que não estivessem de acordo com a sequencialidade do capítulo selecionado? Que lugar essas passagens e/ou elementos poderiam ocupar em protocolos a serem gerados segundo os princípios da HO?

A respeito dos conteúdos gerais reservados ao professor (de fundamentação teórico-metodológica, explicações sobre o projeto editorial da coleção etc.), optamos por admiti-los como fontes documentais (referenciais internos) através das quais a aspiração de ensino pode ser compreendida pelo pesquisador principal no momento do tratamento dos dados levantados durante as análises realizadas com a equipe multidisciplinar. Por isso, somente as respostas dos exercícios e as diretrizes especificamente a eles associadas integraram os documentos complementares por nós gerados e compartilhados com a equipe, pois se trata, a nosso ver, de elementos indissociáveis da sequência didática. Sem eles, é provável que tanto os princípios da literalidade quanto a reconstrução empírica da situação de sala de aula estariam comprometidos.

Portanto, ao reconhecermos as orientações gerais, não específicas, do Manual do Professor apenas como referências para o entendimento da aspiração de ensino assumida pela coleção, elas acabaram servindo, a posteriori, de material de consulta e de acesso exclusivo ao pesquisador principal. E foi justamente na etapa final do trabalho, na qual o pesquisador principal organiza, avalia e sintetiza os resultados das análises desenvolvidas coletivamente, que nos deparamos com um dado emergente de grande importância. Nessa etapa, verificamos que as instruções gerais contidas no Manual do Professor, situado nas páginas finais do livro, fornecem diretrizes gerais para a mediação da leitura de textos não verbais, o que nos deu novos elementos para a análise da presença da supracitada fotografia em preto e branco de Celso Oliveira (vide Figura 3).

Conforme exposto anteriormente, sem ter acesso integral aos conteúdos do Manual do Professor, a equipe multidisciplinar concluiu que a imagem era apresentada ao aluno de forma bastante redutora; porém, ao se ter acesso a esses conteúdos complementares, é possível notar que há por parte da coleção o indicativo de que as imagens de abertura dos capítulos da coleção sejam sempre trabalhadas “com ênfase”, cabendo ao docente: “Questionar os alunos sobre a forma como ela dialoga com o tema do capítulo. Explorar os elementos constitutivos da imagem apresentada. [...] se for uma fotografia artística, explore: luz, recorte, cores, personagens, estilo do fotógrafo, etc. [...]” (Ormundo; Siniscalchi, 2016ORMUNDO, Wilton; SINISCALCHI, Cristiane. Se Liga na Língua: Literatura, Produção de Texto, Linguagem. v. 3. São Paulo: Moderna, 2016., p. 383). Apesar de tais sugestões não enfatizarem necessariamente a promoção de múltiplas leituras, elas demonstram que a coleção não limita a leitura de imagens a uma única legenda, mas elenca, ao professor, estratégias/caminhos analíticos para uma leitura mais ampla/crítica. Por outro lado, é adequado questionar também se não estamos diante de uma contradição entre Manual do Professor e Caderno do Aluno, visto que os paratextos que acompanham a fotografia de Celso Oliveira no Caderno do Aluno não corroboram a expectativa de trabalho didático-pedagógico anunciada ao professor. Essa ocorrência chama a atenção para o fato de que a questão da aspiração versus realidade no contexto do papel exercido por livros didáticos pode ser abordada, à luz da HO, sob dois prismas: sob o prisma das aspirações registradas em um referente externo ao livro (os documentos oficiais e teorias pedagógicas) e sob o prisma das aspirações de um referente interno ao livro (o Manual do Professor), cada qual responsável por projetar, a seu modo, o que se espera em termos de prática escolar.

A partir dos pressupostos teórico-epistemológicos da HO, tem-se, portanto, uma perspectiva de análise que nos leva a encarar a transposição didática feita por livros escolares como uma transposição que envolve duas vertentes interpretativas. De um lado, aquela concernente à interpretação dos documentos oficiais que é materializada no Caderno do Aluno, de outro, a vertente relativa à interpretação que é fornecida exclusivamente ao professor, razão pela qual o estudo de eventuais contradições entre teoria e prática pedagógicas passa a ter em vista não apenas dissonâncias referentes ao alinhamento (ou não) a diretrizes legais, mas também as contradições internas do próprio material. Pensando em trabalhos futuros, as análises realizadas indicam que o uso da HO em pesquisas sobre livros didáticos demanda dos pesquisadores atenção redobrada ao cumprimento dos princípios da sequencialidade e da literalidade logo no momento de geração dos protocolos, a fim de que em cada caso seja tomada a decisão mais adequada acerca de quais elementos do Manual do Professor precisam compor ou não os protocolos, e, consequentemente, de quais aspectos merecem ser compartilhados com a equipe de análise. Trata-se, decerto, de um ponto a ser amadurecido por estudos afins.

Conclusões

Os resultados da investigação revelam que não apenas é possível aproximar o aporte teórico-metodológico da Hermenêutica Objetiva (HO) das análises de livros escolares, como também apontam para um horizonte crítico de estudo desses materiais. Para tanto, percebemos que é preciso ter especial atenção ao processo de elaboração dos protocolos, de modo a organizá-los em sequências didáticas que tenham como estimativa a equivalência de um protocolo por aula, haja vista o intuito de reconstruir a situação empírica de sala de aula tal qual sugerida pelas obras didáticas.

Isso feito, o cumprimento dos princípios do método, sobretudo os da sequencialidade, da parcimônia e da literalidade - a serem assegurados pela análise conjunta de uma equipe multidisciplinar da área de educação -, mostrou-se vantajoso à medida que exige a superação de análises usualmente restritas ao conjunto de perguntas e respostas, em prol de uma investigação que considere, para além das atividades, os paratextos e a iconografia dos livros didáticos em sua totalidade. Nesse sentido, a HO favorece a avaliação global do projeto editorial de cada coleção, assim como a leitura crítica de aspectos que costumam escapar à investigação de livros didáticos quando esta foca apenas os exercícios interpretativos, sem se atentar aos demais conteúdos que integram os capítulos analisados. Por conseguinte, à luz da HO, a avaliação dos eventuais efeitos da sequência didático-pedagógica definida pelo livro torna-se mais crítica, pois ao se analisar todos os elementos que integram os capítulos, na ordem em que eles aparecem no material, a questão do lugar ocupado e do papel exercido por cada conteúdo (verbal e não verbal) e/ou exercício passa a ser um fator relevante. Portanto, com o uso do método, a coesão do projeto didático-pedagógico do livro didático passa a ser melhor explorada, bem como seus elementos iconográficos e paratextuais (os quais são relegados com certa frequência a segundo plano nas análises tradicionais de livros didáticos) passam a ser investigados com a mesma atenção que é dada aos exercícios.

Em relação ao interesse da HO pelas possíveis contradições estabelecidas entre aspiração e prática pedagógicas, é necessário considerar as especificidades de se adotar os livros didáticos como corpus de pesquisa. Percebemos que, em se tratando de manuais escolares, as contradições podem emergir tanto em relação às aspirações projetadas pelos referentes externos desses materiais, a saber, os documentos oficiais de educação e as teorias pedagógicas, quanto de seus referentes internos, o Manual do Professor, uma vez que este, ao traduzir as diretrizes e orientações feitas pelos documentos regulatórios, apresenta ao docente sua própria aspiração pedagógica, a qual pode revelar discrepâncias em relação àquilo que é concretizado no Caderno do Aluno.

Acerca do protagonismo que o Manual do Professor acaba por ganhar nesse contexto de pesquisa, é válido enfatizar que se, por um lado, tal relevância atribuída aos conteúdos fornecidos ao docente faz da HO um aporte teórico-metodológico inovador no que tange, justamente, ao grau de criticidade e de atenção a ser dirigido aos conteúdos complementares ao Caderno do Aluno, por outro, ele impõe desafios na formulação dos protocolos, posto que nem sempre as orientações fornecidas ao professor situam-se próximas dos conteúdos do Caderno do Aluno, podendo estar localizadas em parte anexa, ao final do livro. Considerando os princípios da sequencialidade e da literalidade previstos pela HO, concluímos que o modo de lidar com esse fator precisa ser amadurecido por meio de novas aplicações do método. Com base nas aplicações por nós realizadas, entendemos que no momento de elaboração dos protocolos, cabe ao pesquisador observar e decidir em que medida é necessário articular sequencialmente os conteúdos do Caderno do Aluno com a complementação presente no Manual do Professor - no caso específico dos gabaritos das atividades, concluímos ser esta uma articulação necessária -, e em que medida determinados conteúdos destinados exclusivamente ao docente devem ser encarados apenas como aspirações a serem levadas em conta pelo investigador principal, não sendo relevante que a equipe multidisciplinar analise esses conteúdos em sua totalidade. Acerca dessa escolha, registramos que, a depender do objetivo da pesquisa, é possível, ainda, elaborar protocolos a partir, exclusivamente, dos apêndices reservados ao docente, alternativa por nós desconsiderada, mas igualmente válida.

Em linhas gerais, os resultados expostos neste artigo validam a HO como uma variante de pesquisa qualitativa adequada e produtiva para o desenvolvimento de análises críticas dos conteúdos presentes em livros didáticos, permitindo, em certa medida, a reconstrução de possíveis situação de uso desses materiais, de modo a verificar as origens e os caminhos para se superar determinadas contradições entre aspiração e prática pedagógicas no que concerne àquilo que é proposto por coleções escolares. Mais do que isso, tem-se, com a HO, a oportunidade de se verificar se essas contradições advêm de um descompasso em relação aos documentos oficiais de educação, ou se trata-se de uma contradição interna ao próprio material, isto é, se há dissonâncias entre o que se anuncia ao docente como aspiração e aquilo que é colocado em prática no Caderno do Aluno. E é partindo dos resultados e indicadores obtidos neste trabalho que destacamos a importância da realização de novas pesquisas que explorem os livros didáticos à luz da HO, a fim de que novos desafios sejam superados, que a adaptação do método seja aprimorada e que a interpretação crítica dos projetos educacionais possa indicar limites e possibilidades do processo formativo.

Cabe salientar, por fim, que o propósito dos estudos com a HO decorrem da tradição da Teoria Crítica da Sociedade, especialmente na perspectiva que fora explicitada por Max Horkheimer no ensaio “Teoria Tradicional e Teoria Crítica”, publicado na Revista do Instituto de Pesquisa Social de Frankfurt, em 1937. O comportamento crítico da teoria e a orientação para a emancipação situam-se, no nosso entender, tanto na análise rigorosa do material empírico, como nas possibilidades formativas e emancipatórias inerentes às questões e à dinâmica de pesquisa que circunscrevem o objeto de estudo.

Referências

  • ADORNO, Theodor Ludwig Wiesengrund. Dialética negativa. Rio de Janeiro: Zahar, 2009.
  • APPLE, Michael Whitman. Cultura e comércio do livro didático. In: APPLE, Michael Whitman. Trabalho docente e textos: economia política das relações de classe e de gênero em educação. Porto Alegre: Artes Médicas, 1995. p. 81-105.
  • BARROS-MENDES, Adelma das Neves Nunes; PADILHA, Simone de Jesus. Metodologia de análise de livros didáticos de língua portuguesa: desafios e possibilidades. In: COSTA VAL, Maria da Graça Ferreira da Costa; MARCUSCHI, Beth (Org.). Livros didáticos de língua portuguesa: letramento, inclusão e cidadania. Belo Horizonte: Ceale/Autêntica, 2005. p. 119-146.
  • BRASIL. Ministério da Educação. Secretaria de Educação Básica. Orientações Curriculares para o Ensino Médio (OCEM) - Volume I: Linguagens, códigos e suas tecnologias. Brasília: MEC/SEB, 2006. http://portal.mec.gov.br/seb/arquivos/pdf/book_volume_01_internet.pdf
    » http://portal.mec.gov.br/seb/arquivos/pdf/book_volume_01_internet.pdf
  • BRASIL. Ministério da Educação. Secretaria de Educação Básica. Guia de livros didáticos PNLD 2015 (Ensino Médio) - Língua Portuguesa. Brasília: MEC/SEB, 2014. https://www.fnde.gov.br/index.php/programas/programas-do-livro/pnld/guia-do-pnld/item/5940-guia-pnld-2015
    » https://www.fnde.gov.br/index.php/programas/programas-do-livro/pnld/guia-do-pnld/item/5940-guia-pnld-2015
  • BRASIL. Ministério da Educação. Secretaria de Educação Básica. Guia de livros didáticos PNLD 2018 (Ensino Médio) - Língua Portuguesa. Brasília: MEC/SEB, 2017. https://www.fnde.gov.br/index.php/programas/programas-do-livro/pnld/guia-do-pnld/item/11148-guia-pnld-2018
    » https://www.fnde.gov.br/index.php/programas/programas-do-livro/pnld/guia-do-pnld/item/11148-guia-pnld-2018
  • BRASIL. Ministério da Educação. Base Nacional Comum Curricular (versão final). Brasília: MEC, 2018. http://basenacionalcomum.mec.gov.br/a-base
    » http://basenacionalcomum.mec.gov.br/a-base
  • BOURDIEU, Pierre. O poder simbólico. 4. ed. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 1989.
  • BUNZEN, Clecio. Dinâmicas discursivas na aula de português: os usos do livro didático e projetos didáticas autorais. Tese (Doutorado em Linguística Aplicada) - Universidade Estadual de Campinas, Campinas, 2009.
  • GOMES, Luiz Roberto. Hermenêutica objetiva e pesquisa empírica em educação: a experiência com os estudos de sala de aula em Frankfurt am Main. Revista Eletrônica de Educação, v. 11, n. 2, p. 351-367, 2017. http://dx.doi.org/10.14244/198271992154
    » http://dx.doi.org/10.14244/198271992154
  • GOMES, Luiz Roberto; GRUSCHKA, Andreas; ZUIN, Antonio Alvaro Soares. Palavras Mágicas: solução instantânea para questões pedagógicas? Educação e Filosofia, v. 35, n. 73, p. 199-229, 2021. https://doi.org/10.14393/REVEDFIL.v35n73a2021-57274
    » https://doi.org/10.14393/REVEDFIL.v35n73a2021-57274
  • GRUSCHKA, Andreas. Pedagogia negativa como crítica da pedagogia. In: PUCCI, Bruno; ALMEIDA, Jorge de; LASTÓRIA, Luiz Antônio Calmon Nabuco. Experiência formativa e emancipação. São Paulo: Nankin, 2009.
  • GRUSCHKA, Andreas. Unterrichten: eine pädagogische Theorie auf empirischer Basis. Toronto: Verlag Barbara Budrich, 2013.
  • GRUSCHKA, Andreas. Frieza burguesa e educação: a frieza como mal-estar moral da cultura burguesa na educação. Campinas: Autores Associados, 2014.
  • HORKHEIMER, Max. Traditional and Critical theory. In: HORKHEIMER, Max. Critical theory: selected essays. New York: Continuum, 1972, p. 188-243. [Traditionelle und kritische Theorie, 1937]
  • OEVERMANN, Ulrich. Kontroverse über sinnverstehende Soziologie. Einige wiederkerende Problema und Missverständnisse in der Rezeption der “objektiven Hemeneutik”. In: Aufenanger und Lensen (HG). Handlung und sinnstruktur. Bedeutung und Anwendung der objektiven Hemeneutik. München: Kindt Verlag, 1986. p. 14-29.
  • OEVERMANN, Ulrich. Adorno als empirischer Sozialforscher im Blickwinkel der heutigen Methodenlage. In: GRUSCHKA, Andreas; OEVERMANN, Ulrich (Hrsg.). Die Lebendigkeit der kritischen Gesellschaftstheorie. Wetzlar: Büchse der Pandora, 2004. p. 189-234.
  • ORMUNDO, Wilton; SINISCALCHI, Cristiane. Se Liga na Língua: Literatura, Produção de Texto, Linguagem. v. 3. São Paulo: Moderna, 2016.
  • VILELA, Rita Almeida Teixeira. A pesquisa empírica da sala de aula na perspectiva da teoria crítica: aportes metodológicos da hermenêutica objetiva de Ulrich Oevermann. In: PUCCI, Bruno; COSTA, Belarmino Cesar Guimarães da; DURÃO, Fabio Akcelrud (Org.). Teoria Crítica e Crises: reflexões sobre cultura, estética e educação. Campinas: Autores Associados, 2012. p. 157-180.
  • VILELA, Rita Almeida Teixeira; NOACK-NAPOLES, Juliane. “Hermenêutica Objetiva” e sua apropriação empírica na área de educação. Linhas Críticas, v. 16, n. 31, p. 305-326, 2010. https://www.redalyc.org/articulo.oa?id=193517492007
    » https://www.redalyc.org/articulo.oa?id=193517492007
  • WELLER, Wivian. Aportes Hermenêuticos no Desenvolvimento de Metodologias Qualitativas. Linhas Críticas, v. 16, n. 31, p. 287-304, 2011. https://www.redalyc.org/articulo.oa?id=193517492006
    » https://www.redalyc.org/articulo.oa?id=193517492006
  • APOIO/FINANCIAMENTO

    Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (CAPES) - Processo n.º 88887.474608/2020-00; Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo (FAPESP) - Processo nº 2021/15222-5
  • DISPONIBILIDADE DE DADOS DE PESQUISA

    Todos os dados foram gerados/analisados no presente artigo.
  • 1
    Pesquisa apoiada pela Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (CAPES) - Processo nº 88887.474608/2020-00 e pela Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo (FAPESP) - Processo nº 2021/15222-5.
  • 2
    Para além do conteúdo do box “Fala aí”, no Protocolo 1 são elencadas sete questões sobre o conto de Ondjaki (vide Ormundo; Siniscalchi, 2016ORMUNDO, Wilton; SINISCALCHI, Cristiane. Se Liga na Língua: Literatura, Produção de Texto, Linguagem. v. 3. São Paulo: Moderna, 2016., p. 73); já no Protocolo 2, listam-se mais seis perguntas sobre o excerto do romance de Graciliano Ramos (vide Ormundo; Siniscalchi, 2016, p. 80-81).

Disponibilidade de dados

Todos os dados foram gerados/analisados no presente artigo.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    19 Jul 2024
  • Data do Fascículo
    2024

Histórico

  • Recebido
    21 Mar 2023
  • Aceito
    20 Jun 2023
Setor de Educação da Universidade Federal do Paraná Educar em Revista, Setor de Educação - Campus Rebouças - UFPR, Rua Rockefeller, nº 57, 2.º andar - Sala 202 , Rebouças - Curitiba - Paraná - Brasil, CEP 80230-130 - Curitiba - PR - Brazil
E-mail: educar@ufpr.br