RESUMO
O artigo tem por objetivo analisar conexões da política de gestão da educação básica brasileira corrente no período de 2010 a 2018 com a regulação por resultados defendida pelo Banco Mundial (BM). Consiste na análise de enlaces estabelecidos entre receituários do BM identificados com a lógica da produção e da regulação por resultados, políticas educacionais brasileiras no cenário pós-2000. Os procedimentos de pesquisa compreenderam revisão teórico-conceitual e exame de dois documentos nacionais do período, situados como medidas de política de expressiva repercussão: o Plano Nacional de Educação (PNE) 2014-2024 e a Base Nacional Comum Curricular (BNCC). Destaca que os enlaces acontecem a partir do conceito de qualidade presente nos documentos, com conotação genérica e frequentemente ligado às avaliações, e da relação público-privado, com limites cada vez mais tênues. Conclui, portanto, que: i) o alinhamento entre competências gerais, currículos, formação docente e material didático é uma via de incidência de argumentos defendidos pelo BM e que se verificam em documentos nacionais, como ocorre na BNCC; ii) o tom de aconselhamento em documentos da agência e nos nacionais registra a necessidade de se perseguir o desempenho em avaliações padronizadas, como forma de impulsionar a aprendizagem. Mais ainda, como uma possibilidade de assegurar um modo de regulação fundamentado na produção de resultados. Outra simetria que pode contribuir para o vislumbre de enlace é iii) a associação entre accountability e a gestão educacional/escolar.
Palavras-chave: Gestão da Educação; Banco Mundial; Política Educacional; PNE; BNCC
ABSTRACT
The article investigates the connections between the policies to manage Brazilian basic education from 2010 to 2018 and the result-based regulations defended by the World Bank (WB). We analyze the links between WB guidelines identified with the production logic, result-based regulations, and Brazilian educational policies after the 2000s. The research procedures were a theoretical-conceptual review and the examination of two critical national documents: the Plano Nacional de Educação (PNE-National Education Plan) 2014-2024 and the Base Nacional Comum Curricular (BNCC-Common National Curriculum Framework). The connections occur from the concept of quality presented in the documents, which are generic and normally linked to assessment, and the increasingly blurred limits between public and private. Therefore, we conclude that: i) the alignment between general skills, curricula, teacher training, and didactic material is a way to support WB arguments that can be seen in national documents, as in BNCC; ii) the advising tone used in the WB and national documents shows the need to seek performance in standardized assessment as a way to ensure a regulation format based on results. Another symmetry that can help see this connection is iii) the association between accountability and school/education management.
Keywords: Education Management; World Bank; Educational Policy; PNE; BNCC
Introdução
A regulação educacional por resultados, presente nas atuais políticas para gestão da educação pública no Brasil, tem-se caracterizado pela ênfase na qualidade, não sem sintonia “[...] com a dinâmica variável do processo de reprodução socioeconômico” (Mészáros, 2011, p. 110). Evidências de princípios gerenciais, amplamente divulgados nas últimas três décadas, podem ser captadas de documentos nacionais que têm visado construir consensos acerca de políticas públicas para o atingimento de uma qualidade referenciada em resultados, segundo metas estabelecidas pelo Estado.
Referências gerais à garantia de padrão de qualidade são identificadas, por um lado, no art. 206, inciso VII, na Constituição Federal (CF) de 1988 (Brasil, 1988), com correspondência na Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (LDB) - Lei n. 9.394, de 20 de dezembro de 1996 -, em seu art. 3º, inciso IX (Brasil, 1996). Por outro lado, a melhoria da qualidade do ensino figurou como um dos objetivos centrais do Plano Nacional de Educação (PNE) de 2001 - Lei n. 10.172, de 9 de janeiro de 2001 (Brasil, 2001) -, enquanto no atual PNE (2014-2024) - Lei n. 13.005, de 25 de junho de 2014 (Brasil, 2014) -, a melhoria da qualidade da educação é a expressão identificadora do tema.
Acerca da concepção de qualidade da educação na perspectiva hegemônica, que está em consonância com a lógica importada da iniciativa privada, não restam dúvidas que sua presença tem sido fortalecida no País. Com o deslocamento das atenções do processo para os resultados, a gestão tem sido situada em um patamar estratégico, porquanto tratar-se de meio para assegurar que os esforços sejam canalizados para a produção de resultados, consoante o padrão de qualidade em voga. Uma das resultantes dessa lógica na gestão da educação pública é o entendimento amplamente difundido de que os problemas de gestão são, fundamentalmente, de natureza técnica, sobressaindo-se o conceito de governança, a caracterizar uma nova forma de gestão.
Imponente representante dessa perspectiva hegemônica, o Banco Mundial (BM) é aqui situado como sujeito coletivo do setor privado, que disputa o conteúdo e a direção das políticas da educação pública e que tende a ocupar um espaço determinante no contexto em que emergem a regulação por resultados e a governança. Sendo um “ator político-individual” (Pereira, 2014), “[...] essa estranha espécie de banco sempre explorou a sinergia entre empréstimos e pensamento econômico para ampliar a sua influência e institucionalizar a sua pauta de políticas em âmbito internacional” (Pereira, 2014, p. 79). Isso parece dar à agência uma margem maior para ser considerada representante dos interesses globais e, com isso, ter um papel de destaque nas questões ligadas à governança e naquilo que diz respeito às questões educacionais em âmbito global, como é o caso da qualidade.
Em face do cenário de prioridade à produção de resultados, com suas repercussões nas políticas nacionais, o presente artigo tem por objetivo analisar conexões da política de gestão da educação básica brasileira corrente no período de 2010 a 2018 com a regulação por resultados defendida pelo Banco Mundial. Consiste, portanto, na análise de enlaces estabelecidos entre receituários do BM identificados com a lógica da produção e da regulação por resultados, políticas educacionais brasileiras no cenário pós-2000.
Para tanto, os procedimentos de pesquisa compreenderam revisão teórico-conceitual e exame de dois documentos nacionais do período1, tomados como medidas de política educacional de expressiva repercussão no País: o Plano Nacional de Educação (PNE) 2014-2024 e a Base Nacional Comum Curricular (BNCC). Sob o argumento de que proposições do BM para a gestão da educação básica são correspondidas nos mencionados documentos de política, as análises construídas têm em conta que tal circunstância não elide correlações de forças antagônicas no campo em que se encontram a regulação por resultados e a gestão educacional.
Medidas de política nacional: enlaces com prioridades do Banco Mundial para a educação
O Plano Nacional de Educação (PNE), a primeira medida de política aqui abordada, é um documento aprovado pela Lei nº 13.005 de 25 de junho de 2014 (Brasil, 2014), composto por 20 metas e 254 estratégias que permeiam a educação brasileira. Figura, portanto, como medida de política nacional fundamental para guiar encaminhamentos visando ao alcance de alguns objetivos para a educação no País.
Em entrevista à Associação Nacional de Pós-Graduação e Pesquisa em Educação (ANPEd), Saviani (2014a) discorre que o PNE é uma peça político-institucional que materializa interesses em disputa, necessária para que efetivamente assegure ao sistema condições para prover uma educação com o mesmo e elevado padrão de qualidade a toda a população brasileira. Em relação ao PNE de 2001, o de 2014 apresenta um enxugamento, já que, de 295 metas, passou a apresentar 190. Sobre a estrutura, Saviani (2014b) considera o plano atual mais frágil devido à ausência de diagnóstico, este que poderia caracterizar a situação com seus limites e carências, além de fornecer a base e a justificativa para o enunciado das metas. Ademais, ainda em entrevista à ANPEd, o autor assevera que “[...] o financiamento compõe com o magistério os dois pontos fulcrais sem os quais as demais metas do PNE não poderão ser atingidas” (Saviani, 2014a, p. 1).
O documento expressou embates em sua construção, ao passo que renovou as esperanças para o campo educacional após sua tramitação estendida no Congresso Nacional. Um dos embates que marcam o Plano é a disputa entre o público e o privado, disputa esta que remete ao período histórico do Manifesto de 1932, à Pedagogia Nova como tendência pedagógica predominante naquele cenário e ao período em que nasciam as discussões sobre a primeira LDB. Posteriormente, as discussões passaram a explicitar o conflito entre a defesa da escola pública versus escola privada.
Na atualidade, a relação público-privado, questão marcante na história da educação brasileira, é claramente elemento constituinte de um enlace entre prioridades do BM e política nacional de educação. Em contextos recentes, como a segunda década do século XXI, os embates ocorrem de modo mais incisivo com grandes grupos empresariais. Esse enfrentamento, conforme Saviani (2014a), tem tornado a luta atual mais complexa, em que a força do privado, traduzida na ênfase aos mecanismos de mercado, vem contaminando crescentemente a esfera pública. Sob a égide da Nova Gestão Pública (NGP), dos princípios neoliberais e da mundialização do capital, têm sido correntes novas formas de organização educacional e a relação delas com a privatização da educação.
A esse respeito, embora Behring (2018, p. 52) sustente a hipótese de que “[...] houve no Brasil dos governos petistas deslocamentos em relação às orientações neoliberais mais duras do Consenso de Washington, implementadas nos anos 1990 [...]”, isto é, na primeira fase do neoliberalismo no Brasil, em essência, conforme ressalva a própria a autora, não se deixou de responder às crises do capital. Tampouco deixou de se orientarem as políticas a partir do viés da NGP. Nessa direção, a exemplo de outros autores, Marques, Cabral e Maranhão (2020, p. 88) mencionam uma série de ações que têm sido implantadas em todo o País.
São programas com formatos diferentes, mas que, em última instância, buscam a reformulação da maneira de gerir a educação pública, visando suas qualificações. Nesta perspectiva, a qualidade da educação é entendida como bons resultados em avaliações de larga escala, tal como o IDEB e o PISA, sejam as nacionais ou as realizadas através de sistemas próprios de avaliação.
Como “[...] as disputas sociais e de classe estão presentes no interior do Plano” (Scheibe, 2014, p. 227), a relação entre público e privado é uma das tensões que constituem o PNE 2014-2024, já que, ao focalizar a qualidade educacional, cada uma das esferas tende a ter uma concepção de qualidade. Se da esfera pública e de uma perspectiva de classe trabalhadora a luta é por uma educação de qualidade socialmente referenciada, na esfera privada, de uma perspectiva de classe hegemônica, a qualidade assume traços de excelência e de eficácia com chances de ser reduzida aos índices, rankings e scores. Essa concepção dista muito da anterior, em que são levados em conta determinantes externos à escola - como fatores econômicos, socioculturais, financiamento público adequado e inclusive o compromisso dos gestores centrais -, bem como determinantes internos à escola, quais sejam: a organização do trabalho pedagógico e a gestão escolar; projetos escolares; interlocução da escola com as famílias; respeito às diferenças e o diálogo como premissa básica; trabalho colaborativo, envolvendo colegiados e conselhos escolares (Silva, 2009).
Os interesses em disputa e constituintes do Plano não se resumem à concepção de qualidade, mas constituíram o campo de forças pelo qual o projeto de lei tramitou. Traços desse aspecto são recuperados por Azevedo (2014, p. 266) quando argumenta que “[...] o largo período de sua tramitação [quase quatro anos] também pode ser o exemplo dos múltiplos e contraditórios interesses [...]”. A esse respeito, ao exemplificar porque a luta pela educação pública no Brasil atual tem se tornado mais complexa, Saviani (2014a, p. 1) expõe que:
O movimento dos empresários vem ocupando espaços nas redes públicas via Undime e Consed, nos Conselhos de Educação e no próprio aparelho de Estado, como o ilustram as ações do Movimento “Todos pela Educação”. É assim também que grande parte das redes públicas, em especial as municipais, vem dispensando os livros didáticos distribuídos gratuitamente pelo MEC e adquirindo os ditos “sistemas de ensino” como “Sistema COC”, “Sistema Objetivo”, “Sistema Positivo”, “Sistema Uno”, “Sistema Anglo” etc. com o argumento de que tais “sistemas” lhes permitem aumentar um pontinho nas avaliações do IDEB, o que até se entende: esses autodenominados “sistemas” têm know-how em adestrar para a realização de provas (grifos nossos).
Em meio a um contexto de interesses em disputa, o conceito de qualidade é como um “conceito à deriva” (Silva; Trindade, 2010, p. 170), capaz de se alargar para conter novas ideias, sem se desvincular da conjuntura e da correlação de forças de uma dada época. O contexto de 2014 representou um período de espaço ao diálogo, diferente do contexto de 2018 em que a marca fora um projeto de destruição e mesmo de negação do pensamento científico. Significa dizer que a ofensiva privatista e neoliberal se manteve em curso, embora a tensão entre público e privado ali presente não impedisse que proposições ao Plano fossem coletivamente construídas.
Cabe assinalar que, sem adjetivá-lo, o conceito de qualidade cabe em mais de um projeto de educação e, por conseguinte, societário. Por exemplo, na linguagem de um Aparelho Privado de Hegemonia (APH) como o Todos Pela Educação (TPE), defensor da lógica do privado, o impulso a fim de construir consensos está em “promover o salto de qualidade de que a Educação Básica brasileira necessita” (Todos..., 2011, p. 3); “melhorar os padrões de qualidade” (Todos..., 2011, p. 9); “oferecer a Educação de qualidade para todos” (Todos..., 2011, p. 9); “melhorar a qualidade da aprendizagem dos nossos alunos” (Todos..., 2011, p. 111).
Aparentemente, esse tipo de postura não parece problemática, pois sinalizaria “preocupação” com o quadro educacional do País. Todavia, o que não resta aparente é que, ao se apropriar do conceito qualidade, o TPE conjuga, consoante Martins (2013), demandas e propostas para a educação provenientes do governo, da iniciativa privada e de outros setores da sociedade. Ademais, a própria estruturação do TPE, que combina um pacto entre iniciativa privada, terceiro setor e governos, “[...] contribui para a ocultação dos conflitos entre classes e frações de classe, tornando mais complexa a compreensão da realidade, sobretudo no que se refere aos tênues limites entre o público e o privado” (Martins, 2013, p. 12). A reconfiguração desses limites integra as reflexões de Behring (2018) no debate sobre Estado e capitalismo no Brasil recente, uma vez que a autora situa os treze anos de governo do PT como um período de reformismo lento, de mediações novas, mas não de rupturas substantivas.
Uma preocupação que segue subjacente nessa segunda fase do neoliberalismo no Brasil é a busca por preparar a força de trabalho da sociedade brasileira contemporânea por meio da educação, de modo a ser consoante com os traços do capitalismo em seu estágio atual. Assim, a considerar a ascendência do neoliberalismo, da lógica de regulação por resultados e da financeirização do capital, a qualidade da educação tende a estar mais próxima do alcance de médias em índices como se, isoladamente, os números pudessem expressar, por si só, o nível da qualidade educacional. Sob essa perspectiva, o contexto, fatores intra e extraescolares e elementos do processo de ensino e de aprendizagem perdem importância na determinação da qualidade.
Portanto, embora possua um caráter polissêmico, o conceito de qualidade que toma a frente tem estado mais sintonizado com fins econômicos e, assim, tem sido transposto para o conceito de qualidade da educação (Silva, 2009). A Meta 7 do PNE, nesse caso, suscita um sinal de alerta quanto à tônica da qualidade pretendida para a educação básica, pois conecta a melhoria da aprendizagem diretamente ao alcance das médias nacionais para o Índice de Desenvolvimento da Educação Básica (IDEB).
Eis que um dos pontos de tensão do PNE consiste, portanto, no atrelamento do conceito de qualidade a índices como o IDEB. Isso dá pistas sobre a simpatia da lógica hegemônica pela ênfase às avaliações e sobre a distância em relação a um conceito de qualidade da educação com angulação social. Cabe dizer que o problema maior não reside na prática da avaliação, mas sim na prática de focar nos resultados pelos resultados, em detrimento do processo de ensino e de outras questões que perpassam o ensino, como fatores intra e extraescolares. Azevedo (2014, p. 276) reforça esses argumentos ao ponderar que:
As orientações para o sistema de avaliação privilegiam a estandardização de resultados, mostrando a forte interferência no PNE e na política educacional brasileira dos padrões de qualidade estabelecidos para as sociedades de mercado, segundo parâmetros globalizados. [...] Nesse quadro, avaliar a qualidade por meio de índices, como o Índice de Desenvolvimento da Educação Básica (Ideb), restringe aprendizagens a terminalidades, sem considerar processos. Do mesmo modo, tem-se o estímulo para que sejam reforçadas políticas de valorização de professores por meio de avaliação por desempenho de resultados e bonificação, prática que vem trazendo para as escolas a competição de acordo com elementos do mercado, segundo parâmetros da qualidade total e que não vêm apresentando a eficácia esperada.
Outro ponto de tensão do PNE (2014-2024) reside na associação de determinados elementos, como é o caso da qualidade educacional e a avaliação. Da forma como ambas são tratadas no processo histórico das políticas educacionais brasileiras, este par de elementos pode ser considerado expressão de um enlace que constitui a produção, por um país de capitalismo periférico, de respostas às proposições do BM. Cabe aqui recuperar o tom de “aconselhamento” impresso nos documentos desse imponente APH, em vista de “[...] um sistema de regulação com bom funcionamento” (World Bank, 2010), da necessidade de o desempenho ser medido por avaliações, de se perseguir a obtenção de escores e, sobretudo, da abertura de amplas oportunidades de aprendizagem, reforçando o monitoramento e a avaliação da performance dos sistemas educacionais (World Bank, 2011a, 2011b).
Outro ponto de tensão que vai ao encontro da lógica de regular por resultados e de valorizar parâmetros de Qualidade Total, além de suscitar questionamentos quanto ao interesse investigativo no campo da gestão, é o conteúdo da Meta 19 do PNE. Essa meta versa sobre a gestão democrática da educação, porém, associada a critérios técnicos de mérito e desempenho (Brasil, 2014). Situada como meio para se levar adiante um projeto educacional - seja mais identificado com a classe trabalhadora ou com o capital -, é sabido que o domínio da gestão tem ocupado posição estratégica.
Por um lado, enquanto o final da década de 1970 e os anos 1980 expressaram um movimento crítico em prol da democratização da sociedade brasileira e, por extensão, da escola e da gestão, por outro, os anos 1990 em diante portam a marca de um projeto de sociedade fundamentado no neoliberalismo. A exemplo do conceito de gestão, depreende-se que também o de democracia e o de participação vêm sendo ressignificados e esvaziados de conotação política, pois, sob a lógica de regulação por resultados, importam mais o fazer técnico e os standards que não percam de vista metas e resultados.
Importa, em igual medida, mencionar o fenômeno da accountability, que carrega a ideia primordial de responsabilização, com um viés mais individualizado, tal como sob a lógica empresarial. Situada no contexto das reformas orientadas para a eficiência e eficácia do Estado, a accountability aqui referida é a que opera pela lógica dos resultados, cujos referentes são a avaliação (externa e em larga escala), a prestação de contas e a responsabilização (sanções e premiações), tendo por base determinados indicadores de qualidade (Schneider; Nardi, 2023). Ademais, tem sido com o apoio desse mecanismo que, em grande medida, “[...] o discurso de crise e de fracasso na escola pública favoreceu o estreitamento com a esfera privada, transferindo as responsabilidades para outros setores da sociedade, valorizando o papel da iniciativa privada e desobrigando o Estado da educação pública” (Stênico, 2019, p. 136).
Em alusão ao movimento crítico despontado nas décadas finais do século XX, em que se destacou o princípio da gestão democrática, Dourado (2006) situa documentos como balizadores para políticas e processos. Esse tom de aposta se mantém ao tratar o PNE de 2014 como um Plano com condições de ser epicentro das políticas educacionais (Dourado, 2014). No entanto, como se sabe, as conquistas referentes ao processo de democratização dividem lugar com os limites de uma democracia formal. Abranches, Coutinho e Azevedo (2020) corroboram essa leitura ao assumirem a concepção de democracia em uma perspectiva gramsciana, segundo a qual “[...] há uma contradição entre a perspectiva de uma maior participação popular através da sociedade civil e o projeto neoliberal, cujo pressuposto é a garantia de direitos individuais e a limitação da participação da sociedade civil a ações episódicas” (Abranches; Coutinho; Azevedo, 2020, p. 354).
Uma leitura mais atenta e mais afinada à desconfiança das aparências da Meta 19 desperta estranheza em relação ao fato de o princípio da gestão democrática estar associado, sobretudo, à observância de critérios técnicos de mérito e desempenho. De uma concepção de democracia enquanto processo, isso se afasta de mecanismos que ofereçam condições de materialização do princípio da gestão democrática da educação pública, como é o caso da eleição direta para diretores escolares. A própria menção ao “desempenho” na meta específica leva a se fazer remissão ao conceito de qualidade na lógica empresarial, haja vista ser este um traço marcante do processo de ascendência neoliberal nas políticas educacionais brasileiras.
O desempenho segue realçado em publicações do TPE, como nos relatórios De olho nas Metas. No documento de 2012, por exemplo, o termo é reiterado cerca de 30 vezes, o que dá pistas de sua relevância enquanto argumento presente no discurso veiculado por esse APH sobre a educação pública no Brasil. Traços da força do argumento sobre o desempenho dos alunos nas avaliações combinam-se às apostas do próprio TPE em relação ao PNE (2014-2024). Segundo consta no relatório em questão:
Para nós, o ano de 2012 foi muito importante em razão de nosso avanço nas propostas em torno de um Plano Nacional de Educação (PNE) que reflita as reais necessidades do País. O novo PNE, que terá vigência de dez anos, deve ser mais um documento importante para nortear o caminho rumo à verdadeira independência, que só acontecerá quando formos um País sem adultos analfabetos e com toda criança e jovem tendo o direito fundamental à Educação de qualidade plenamente assegurado. Aí, sim, seremos o País que queremos (Todos..., 2012, p. 5).
Em face da linguagem de acepção coletiva, a organização manifesta seu “interesse” não só relativo ao PNE que então nascia, mas também relativo à educação de modo mais abrangente, a fim de “sermos o País que queremos”. Assim, à primeira vista, a linguagem no plural parece mais uma estratégia para afastar desconfianças sobre o pretenso interesse da organização em fazer parte dos rumos das políticas educacionais no País. Contudo, caberia indagar: em que conceitos de Estado e de Sociedade Civil o TPE se apoia? Que conceito de qualidade é esse que tende a restringir a efetividade da educação ao desempenho dos alunos em testes? Por que a gestão educacional resta subsumida no apelo à governança?
À conta da natureza empresarial do TPE, imbricada a toda uma conjuntura que reúne correlação de forças de ideários progressistas e neoliberais, o desvelamento dos discursos pode ser facilitado. Está-se diante de um sujeito coletivo do setor privado que atende aos interesses do capital e segue em busca de tomar para si a tarefa de o Brasil alcançar cinco metas educacionais2, então previstas para serem atingidas até 2022. Não bastasse a ousadia em construir racionalidades consoantes à regulação por resultados, o TPE é um dos sujeitos coletivos que, como o BM, busca transferir para a educação pública a lógica do setor privado. Uma mostra disso é a existência de simetrias entre bandeiras, metas e discursos veiculados pelo TPE e ideias que constituem o PNE (2014-2024).
Por extensão, as simetrias também ocorrem com os receituários do BM, sendo a accountability e a gestão escolar um par de elementos identificadores, por fazerem parte da produção de respostas às proposições da agência, constituindo, portanto, um enlace entre BM e políticas educacionais nacionais. Nessa direção, assinala-se a relevância de se recuperar a premissa de fazer as escolas funcionarem contando com novas evidências sobre accountability e as reformas (World Bank, 2011c), pois a premissa se afirma na defesa de práticas exitosas, na responsabilização prioritariamente individual e em modelo de gestão educacional e escolar que esteja pautado em critérios técnicos de mérito e desempenho. Este mesmo relatório publicado pelo BM em 2011 traz à cena experiências exitosas, como a do estado do Paraná, onde houve, no período de 1999 a 2002, uma espécie de boletim escolar com o objetivo de aumentar o conhecimento dos pais sobre a qualidade educacional e a performance estudantil.
Considerando “Um dos exemplos mais concretos e claros” (World Bank, 2011c, p. 42, tradução livre), o boletim traz scores de avaliações realizadas nas turmas equivalentes à 4ª e à 8ª série, características sobre qualificações dos professores, taxas de promoção, retenção e evasão escolar, além de ter espaço reservado para a opinião dos pais relativa à satisfação com diversos aspectos, entre os quais estão as práticas docentes e a qualidade educacional. Há espaço reservado, inclusive, para a opinião dos pais sobre a disponibilidade de informação quanto ao desempenho escolar e às atividades. Engana-se quem se detém no aparente tom democrático que o exemplo levado a cabo no Paraná parece suscitar, pois a ideia que subjaz nessa prática exitosa é a de fazer circular um documento entre pais e professores que faz comparação entre médias municipais e estaduais.
É notável, portanto, o estímulo do BM para que sejam produzidas respostas às suas proposições, sobressaído o tom de “[...] ajuda aos países a identificarem prioridades para a reforma” (World Bank, 2013, p. 6). Entre as tais prioridades está a accountability com sentido de responsabilização com base em resultados. Conforme a visão da agência, ela geralmente se associa à prestação de contas, à transparência, ao compartilhamento de responsabilidades e de possibilidade de tornar a escola mais democrática por implicar autonomia.
De acordo com essa visão, é necessário haver cada vez mais sistemas de accountability, e eles serão viabilizados à medida que reformas forem realizadas no setor educacional. Os estudos de caso que o BM aponta como experiências exitosas sugerem impactos positivos oriundos das reformas, com vistas à accountability. Entre os impactos, o Banco realça: “[...] maior colaboração e melhor comunicação entre pais e professores, melhoria da participação dos pais nos assuntos escolares, mecanismos de notificação mais frequentes e melhores, melhor fluxo de recursos e, ainda, algumas sugestões de melhoria nos resultados educacionais” (World Bank, 2011a, p. 49, tradução livre)3.
Em observância aos enlaces anunciados nesta análise e que aludem à produção de respostas às proposições do BM, o conteúdo do PNE (2014-2024) também oferece algumas pistas nesse sentido. Uma delas, de acordo com Nardi (2014), é a afirmação dos sistemas de avaliação como via oficial para salvaguardar determinado padrão de qualidade, como sinal emergente de um contexto que abrange a NGP e a globalização neoliberal (Nardi, 2014). Outro ponto levantado nas análises do autor trata da aprovação de uma Lei de Responsabilidade Educacional prevista na estratégia 20.114 do PNE e que já era apontada como necessidade no Documento Final da Conferência Nacional de Educação (CONAE) de 2010. Como também aborda elementos normativo-legais em suas análises, o autor considera possível inferir que “[...] as opções em torno da matéria na seara legislativa parecem mesmo convergir para um modelo de responsabilização vinculado a metas de desempenho, com enfoque nas avaliações externas, uma via com potencial para ampliar a pressão sobre as escolas e professores” (Nardi, 2014, p. 289).
O enlace entre proposições do BM e o PNE 2014, enquanto medida de política educacional, pode ser estabelecido, portanto, quando se trata da incidência da ideia de qualidade educacional e da concepção de gestão da educação. Do viés desse organismo, as concepções relativas à qualidade e à gestão acenam para propostas que levem cada vez mais em conta as avaliações em larga escala, além de sistemas de accountability que primem pela responsabilização individualizada com base em resultados. Para tanto, a agência reforça entre suas prioridades contemporâneas a realização contínua de reformas, como meio de assegurar estratégias condizentes ao seu slogan de Learning For All - Aprendizagem Para Todos - e ao paradigma da aprendizagem.
A segunda medida de política nacional aqui examinada e que se considera como evidência de conformação do processo de regulação educacional por resultados advogado pelo BM na política de gestão da educação básica no Brasil, consiste na Base Nacional Comum Curricular (BNCC). Na versão final homologada com a inclusão da etapa do ensino médio, o texto de apresentação já oferece alguns indícios de que a política educacional brasileira atenta para orientações que vêm sendo veiculadas ao longo do tempo por Organismos Multilaterais (OM) como o BM. Segundo o texto de apresentação assinado por Rossieli Soares da Silva, Ministro da Educação à época, a aprendizagem é uma meta a se seguir incansavelmente. Nessa direção, a BNCC seria um documento completo, contemporâneo e essencial para o início de mudanças (Brasil, 2018).
Nesse ponto, cabe enfatizar a correlação com alguns slogans veiculados pelo BM, como a Agenda 2020 e a Agenda 2030. No primeiro caso, a referência é aos documentos que marcam a virada de estratégia da instituição, pois, a partir de 2011, o foco deixa de ser o Education For All - Educação Para Todos - para se tornar o Learning For All - Aprendizagem Para Todos. A ascendência da aprendizagem se apoia no argumento reiterado sobre a necessidade de reformas, de superar o desafio da qualidade educacional e de acelerar a aprendizagem. Para o BM, o desenvolvimento da educação está mudando em nível global, e, como demanda desse contexto, novas competências precisam ser desenvolvidas pela força de trabalho.
No segundo caso, a Declaração de Incheon reforça os objetivos assumidos pelo BM e também por outros OM na direção de garantir a Aprendizagem Para Todos, a partir da Agenda 2030. Reafirma-se a educação como um bem público, direito humano fundamental, sendo ela a base para a garantia de outros direitos. Também se considera que a educação é essencial para a paz, tolerância, realização humana e para o desenvolvimento sustentável (World Bank, 2015).
Sem perder de vista a linguagem oficial em relação à Base, é assinalado que, por meio dela, as aprendizagens essenciais aos estudantes brasileiros serão garantidas, bem como seu desenvolvimento integral, contando com as dez competências gerais para a Educação Básica (Brasil, 2018). Mantendo o foco nessa linguagem, a definição é a de que a BNCC:
É um documento de caráter normativo que define o conjunto orgânico e progressivo de aprendizagens essenciais que todos os alunos devem desenvolver ao longo das etapas e modalidades da Educação Básica, de modo a que tenham assegurados seus direitos de aprendizagem e desenvolvimento [...] (Brasil, 2018, p. 7).
No rol das pretensas contribuições da Base, constam o seu alinhamento com outras políticas e ações, sejam elas em âmbito federal, estadual ou municipal, pertinentes à formação de professores, à avaliação e à elaboração de conteúdos educacionais (Brasil, 2018). Como demarcado no documento, a BNCC praticamente inaugura um período de novas reformas no campo educacional brasileiro, tanto que é apontada como essencial para o início das mudanças. Ela é como o carro-chefe de uma nova onda reformista, com repercussões nos currículos, na formação inicial e continuada de profissionais da educação, nos materiais didáticos e nas avaliações.
O período mais incisivo dessa onda pode ser relacionado ao golpe ocorrido em 2016, “[...] um golpe de Estado de novo tipo que abriu um novo e terceiro momento do neoliberalismo no país” (Behring, 2018, p. 61). Ao certo, 2016 é um marco para o País, por passar por um período sócio-político bastante instável. Foi um ano de muitas manifestações populares, político-partidárias, manobras políticas e um processo de impeachment que tirou do governo uma presidenta eleita pelo povo brasileiro. Na leitura de Santos (2019, p. 291, grifo nosso):
Após uma década “ganha” para a economia e para a maioria desvalida da sociedade brasileira, esse projeto não se sustentou frente a modificação do cenário internacional, de queda nos preços das commodities, e a ação desestabilizadora de seus adversários, que envolveram o PT numa ofensiva judicial-midiática, aliada à sabotagem e conspiração política do Congresso e das forças de direita que até aquele momento compunham o bloco partidário que dava sustentação aos governos petistas. O resultado foi o Golpe de Estado de 2016, disfarçado legalmente de impeachment, contra a então presidenta Dilma Rousseff e o desmanche, em poucos meses, de quase todas as políticas realizadas nos treze anos de governos do PT, com o retorno da ortodoxia neoliberal com seus malefícios já conhecidos.
Ademais, é nesse cenário complexo que foi baixado o Decreto nº 9.203, de 22 de novembro de 2017, assinado por Michel Temer, que dispõe sobre “[...] a política de governança da administração pública federal direta, autárquica e fundacional” (Brasil, 2017, p. 1). Como tal, é mais um dos ingredientes que robustecem a lógica de regulação por resultados em períodos recentes, após o golpe de Estado. O Decreto prevê, em seu art. 7º, o Comitê Interministerial de Governança (CIG), com a finalidade de assessorar o presidente da república na condução da política de governança da administração pública federal. É pertinente assinalar que entre os grupos de trabalho, que podem ser instituídos pelo CIG, estão representantes de órgãos e entidades públicas e privadas (Brasil, 2017, p. 1, grifo nosso), e aqui se salienta, portanto, um sinal de como o setor privado pode contar com o Estado como uma mediação para assegurar seus interesses.
É nesse contexto que a BNCC desponta, expressando disputas de interesses e distintas concepções de educação e de projetos societários. Por parte de defensores da BNCC e partidários da regulação por resultados, a Base é considerada elemento necessário, um balizador do currículo de estados e municípios de todo o Brasil, por meio do qual a qualidade e a equidade serão promovidas a fim de garantir às crianças e aos jovens os mesmos direitos de aprendizagem. O TPE e o Instituto Ayrton Senna (IAS) são exemplos de sujeitos coletivos do setor privado defensores da Base5 e que argumentam tratar-se de uma inovação para a educação brasileira. Para que assim o seja, convocam as redes de ensino a implementarem a BNCC para que “ninguém fique para trás”.
A inovação, nesta perspectiva, abarca o currículo e as competências que consubstanciariam os chamados direitos de aprendizagem. Na definição oferecida no documento, competência é “[...] a mobilização de conhecimentos (conceitos e procedimentos), habilidades (práticas, cognitivas e socioemocionais), atitudes e valores para resolver demandas complexas da vida cotidiana, do pleno exercício da cidadania e do mundo do trabalho” (Brasil, 2018, p. 8). Para tal formação de atitudes e valores, a própria Base afirma o alinhamento entre esse propósito e a Agenda 2030.
O apelo às competências é um dos pontos de tensão na medida em que, por parte de quem se dispõe a problematizar a origem e o desenvolvimento de um documento como a Base, assim como seu conteúdo, elas podem implicar o vislumbre de aspectos subjacentes, que são intencionalmente elididos do discurso oficial. No caminho de um viés crítico, a BNCC suscita questionamentos devido ao seu teor e abrangência, pois na condição de currículo nacional tende a ser encarada conforme o discurso hegemônico propaga: uma verdadeira panaceia para várias questões do campo educacional. Nascimento (2020, p. 191) reitera a crítica à Base, como redentora dos problemas educacionais do País, ao anotar que: “[...] a ação do TPE pode ser evidenciada nos debates sobre a BNCC ao longo de 2017, 2018 e 2019, na participação dos debates das subcomissões e na produção de materiais que foram utilizados para subsidiar a implementação da BNCC sobre o receituário dos empresários”.
Do conjunto de evidências aqui lançado, é possível dizer que, em meio às disputas de interesses, de conflito entre o público e o privado e da luta de classes que o discurso hegemônico busca ocultar, a lógica de regulação por resultados vai se espalhando pelas políticas educacionais. Nesse movimento, ela passa a agregar elementos e se complexifica. Consoante essa estratégia de ocultação, os discursos realçam: a conformidade entre objetivos de aprendizagem e o PNE - e outros documentos oficiais; a inovação curricular esperada a partir da Base; a expectativa de orientação para a formação inicial e continuada de professores, além da reorganização de materiais didáticos; a concepção de que a BNCC é uma ação política para uma nova política curricular e também para o Sistema Nacional de Educação; e a relação entre a Base e princípios da pedagogia do cotidiano, na perspectiva de considerar a compreensão de processos, espaços e tempos mais próximos dos estudantes. A serviço da preservação de interesses hegemônicos na sociedade brasileira, esses discursos favorecem desvios de atenção sobre questões de fundo e sobre potenciais consequências de determinadas políticas educacionais.
Notas para uma síntese conclusiva
Com a ideia motriz de evidenciar enlaces, isto é, relações dos receituários do BM, identificados com a lógica da produção e regulação por resultados com políticas educacionais brasileiras no cenário pós-2000, este estudo possibilita dizer que o enlace acontece a partir do conceito de qualidade, presente nos documentos com conotação genérica e frequentemente ligado às avaliações, e da relação público-privado, com limites cada vez mais tênues.
O enlace se vislumbra a partir de concepções estruturais dos documentos, que foram aqui agrupadas em dois pares de elementos: qualidade educacional e avaliação; accountability e gestão escolar. Ambos os pares se inscrevem em um contexto de disputa entre público e privado e em um movimento histórico em que, por um lado, seus conceitos são ressignificados e esvaziados de conotação política e, por outro, embalados pela lógica de produção de resultados e por princípios de acepção neoliberal. Cabe registrar, como elemento contributivo do mencionado enlace, o discurso de crise e de fracasso da escola pública, tão propagado por agências como o BM em referência às políticas educacionais de países de capitalismo periférico, como é o caso do Brasil.
Se os elementos mencionados - qualidade educacional e avaliação; accountability e gestão escola - são pontos de tensão no documento do PNE de 2014, o conceito de qualidade e o de gestão constituem pontos de tensão na BNCC pois, em primeiro lugar, no caso da qualidade, a conotação que ela expressa é a de Qualidade Total. Com uma lógica de fundo que impulsiona a privatização e o enfraquecimento do ensino público, a BNCC é uma opção clara pela pedagogia das competências (Arelaro, 2018). O ensino se torna algo periférico comparado ao paradigma da aprendizagem, no qual se institui que o sujeito tem que aprender sozinho e sempre.
Em segundo lugar, no caso da gestão educacional em relação à BNCC, por mais que o documento elida o termo de sua versão, a Base não deixa de contar com o domínio da gestão educacional e a escolar como meio para levar a sua implementação adiante. Aliás, como sua lógica de fundo converge para a privatização, acompanhada de desresponsabilização do Estado, isso não deixa de convergir também para a ideia de governança, entendida como uma nova maneira de governar (Oliveira, 2011).
As conexões, ou seja, os enlaces entre proposituras da agência e medidas de políticas nacionais seguramente não se esgotam nos aspectos explorados neste estudo. Entretanto, buscando tecer algumas notas conclusivas, convém recuperar i) o alinhamento - entre competências gerais, currículos, formação docente e material didático -, aliás, é uma via de incidência de argumentos defendidos pelo BM e que se verificam em documentos nacionais, como ocorre na BNCC, e aqui é sinalizado um enlace; ii) o tom de aconselhamento presente em documentos do Banco e nos nacionais, que registra a necessidade de se perseguir o desempenho em avaliações padronizadas como forma de impulsionar a aprendizagem. Mais ainda, como uma possibilidade de assegurar um modo de regulação que se fundamenta na produção de resultados. Outra simetria entre os documentos e que pode contribuir para o vislumbre de enlace é iii) a associação entre accountability, de caráter deletério e de responsabilização individualizada, e a gestão educacional/escolar.
Na perspectiva hegemônica, isso tudo é abordado como uma maneira de “fazer as escolas funcionarem”, desde que as reformas no sistema educacional e que perpassam vários domínios - marcos legais, financiamento, gestão, currículo, formação docente, materiais didáticos - sejam continuamente promovidas. Nessa direção, a accountability pode ser somada ao fomento de práticas exitosas, acompanhadas de processos de responsabilização e que estão em consonância com a prática contínua de reformas, uma das prioridades contemporâneas do BM. Isso pode ser entendido como mais uma simetria e, no caso das reformas, como práticas que se alinham ao apelo à governança, a uma gestão eficaz e com resultados, além de convergirem tanto para as proposituras do BM quanto para as medidas de políticas nacionais.
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APOIO/FINANCIAMENTO
O presente trabalho foi realizado com apoio da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (CAPES) e do CNPq (Processo nº 407527/2021-4).
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DISPONIBILIDADE DE DADOS DE PESQUISA
Não se aplica.
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COMO CITAR ESTE ARTIGO
SANTOS, Aline Bettiolo dos; NARDI, Elton Luiz. Banco Mundial e políticas nacionais: enlaces no campo da gestão da educação básica pós-2000. Educar em Revista, Curitiba, v. 40, e93774, 2024. https://doi.org/10.1590/1984-0411.93774
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1
O exame de políticas nacionais de educação incidentes no campo da gestão da educação básica pública levadas a efeito no recorte temporal indicado é desdobramento de um estudo maior, em que foram investigadas interfaces da regulação educacional por resultados na política de gestão da educação básica brasileira com orientações do BM. Nesse exame, os referidos documentos nacionais foram selecionados a partir de uma verificação do acúmulo de conhecimento, no sentido de que os estudos constantes nessa etapa de verificação serviram de inspiração para que a seleção fosse feita, o que constitui um caminho inverso ao da mera determinação dos achados.
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2
Nos relatórios De olho nas metas, o TPE já traz suas metas e bandeiras na parte inicial dos documentos. Para esse APH, o objetivo de garantir o direito de todas as crianças e jovens brasileiros à Educação Básica de qualidade foi traduzido em cinco metas e cinco bandeiras. Meta 1: Toda criança e jovem de 4 a 17 anos na escola; Meta 2: Toda criança plenamente alfabetizada até os 8 anos; Meta 3: Todo aluno com aprendizado adequado ao seu ano; Meta 4: Todo jovem com Ensino Médio concluído até os 19 anos; Meta 5: Investimento em Educação ampliado e bem gerido. Para o alcance dessas metas, cujo prazo de cumprimento era até o ano de 2022, foram adotadas as seguintes bandeiras: Formação e carreira do professor; Definição das expectativas de aprendizagem; Uso relevante das avaliações externas na gestão educacional; Aperfeiçoamento da gestão e da governança da Educação; e, por fim, a ampliação da exposição dos alunos ao Ensino (Todos…, 2012, p. 6).
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No original: This largely qualitative and anecdotal evidence suggests that information-for-accountability reforms might have positive impacts: greater collaborations and better communications between parents and teachers, improved parental participation in school matters, better and more frequent data reporting mechanisms, better resource flows, and some suggestion of improved education outcomes (World Bank, 2011a, p. 49).
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Segundo consta na página do Observatório do PNE, a estratégia 20.11 incide sobre a Lei de Responsabilidade Educacional. Prevê: Aprovar, no prazo de 1 (um) ano, Lei de Responsabilidade Educacional, assegurando padrão de qualidade na educação básica, em cada sistema e rede de ensino, aferida pelo processo de metas de qualidade verificadas por institutos oficiais de avaliação educacionais. Maiores informações, conferir em: https://www.observatoriodopne.org.br/meta/financiamento-da-educacao.
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Ao conjunto de defensores da BNCC se alia o Movimento Pela Base, que se define como uma rede não governamental e apartidária de pessoas e instituições dedicadas a apoiar a construção e a implementação de qualidade da BNCC e do Novo Ensino Médio, de acordo com informações oferecidas na página desse sujeito coletivo. O Movimento Pela Base não é objeto de análise neste estudo, entretanto, cabe frisar a presença de alguns “parceiros institucionais” como o Conselho Nacional de Secretários de Educação (CONSED) e a União Nacional dos Dirigentes Municipais de Educação (UNDIME), pois constituem sujeitos coletivos com tendência a serem mediações entre os interesses do setor privado no setor público.
Disponibilidade de dados
Não se aplica.
Datas de Publicação
-
Publicação nesta coleção
06 Dez 2024 -
Data do Fascículo
2024
Histórico
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Recebido
15 Dez 2023 -
Aceito
25 Jul 2024