RESENHAS
Natureza em boiões (medicinas e boticários no Brasil setecentista)
Iris Stern
Professora do Colégio Militar de Curitiba -Mestranda em Educação-Universidade Federal do Paraná
MARQUES, Vera Regina Beltrão. Natureza em boiões (medicinas e boticários no Brasil setecentista). São Paulo: Unicamp, 1999.
Em Natureza em boiões, Vera Marques tece uma trama reveladora dos movimentos de idas e vindas, desenvolvidos no Setecentos brasílico entre Portugal e Brasil, de modo a construir a história das práticas curativas desse período. Ela resgata os saberes indígenas e procura, com sucesso, identificar as apropriações feitas pelo colonizador europeu, que não reconhecia oficialmente esse conhecimento, acreditando que os indígenas apenas intuíam ou adivinhavam o uso terapêutico de algumas plantas. Porém, apesar da descrença oficial sobre os saberes indígenas, era observada, já no final dos Setecentos, a existência de uma extensa lista de plantas presentes em terras brasileiras. Estas tinham suas muitas propriedades curativas arroladas em fontes variadas e eram indicadas no tratamento de diversos males. Porém, tanto o uso quanto a identificação dessas plantas era feito sem rigor científico, até porque, esse tipo de normatização ainda não existia. Foi em meados do século XVIII que os estudos sobre a natureza ganharam um cunho científico mais moderno, com o início das classificações seguindo normas criadas por Linneu. Essa prática, iniciada na Europa, se alastrou e chegou até o Brasil estimulada pela metrópole, que, receosa de perder o controle sobre os saberes curativos oriundos da exuberante natureza da colónia, cuidou em não divulgá-los.
Nessa época, também foram criadas Academias e Sociedades de estudos em Medicina e História Natural e a autora estabelece uma ligação entre o aparecimento tardio dessas instituições, no Brasil e em Portugal, em relação à Europa e à necessidade sentida pela metrópole em conseguir substituir os minérios (então escassos) de sua pauta de exportações por produtos agrícolas ou plantas com caráter curativo.
Ela revela ainda que, paralelamente a esse interesse comercial, era preservada a prática de que as descobertas efetivadas na colónia deveriam ser mantidas em segredo, pois eram de propriedade da metrópole, que se resguardava o direito de revelá-las quando entendesse conveniente. Essa forma de encarar o conhecimento científico que ia sendo, penosamente, construído, acarretou a perda do reconhecimento internacional dos achados de alguns naturalistas portugueses durante as expedições pelo país que, não tendo seus trabalhos publicados em tempo hábil, perderam a primazia das descobertas para outros naturalistas estrangeiros, isto porque havia um certo desinteresse com a questão científica, apesar de ter sido a metrópole a patrocinadora dessas expedições.
Esse segmento do livro mostra que é impossível deixar de fazer um desagradável paralelo com os dias presentes, em que a biopirataria e a apropriação dos saberes dos povos indígenas é palavra de ordem na ação de diversos grupos internacionais.
No livro, Vera mostra a trajetória, nem sempre linear, da profissão de boticário, colocada, em alguns momentos, quase no mesmo patamar que a dos doutores médicos, para logo em seguida ser considerada um ofício menor, sendo os boticários vistos como pessoas nem sempre confiáveis e olhados com desconfiança por grande parcela dos governantes e populares. Mostra também quão antiga é a separação entre a arte de identificar as doenças e prescrever medicamentos para curá-las, o que, inicialmente era atribuição dos doutores, e a tarefa, às vezes tida como meramente física, de preparar os produtos indicados para o tratamento. Nos Setecentos, as artes de curar não tinham atribuições bem delimitadas entre os diversos profissionais que de alguma maneira atuavam nessa área. Assim, apesar das tentativas de regulamentação, em momentos de epidemias, por exemplo, lançava-se mão de tantos quantos pudessem ajudar a controlar o problema, recorrendo-se então, a médicos, cirurgiões, boticários, sangradores e barbeiros.
O livro mostra uma interessante e intrincada teia de interesses contrariados, de favorecimentos , de corrupção e do uso de expedientes variados para conceder cartas de exame que permitiam o exercício da profissão e também mostra como se valorizavam os medicamentos importados da metrópole em detrimento dos produtos locais, que eram vistos com desconfiança pelos boticários. Faça-se, aqui, a ressalva de que muitos desses produtos "importados" eram extraídos de plantas nativas do Brasil, os quais, porém, retornavam à colónia após longas e onerosas viagens.
Embasada em uma vastíssima pesquisa de fontes documentais e bibliográficas, realizada no Brasil e em Portugal, a autora remete ao passado pelas descrições:
- das crenças sobre a origem das moléstias, atribuídas às condições ambientais, onde os miasmas e eflúvios "podres" seriam os responsáveis pelas epidemias e doenças que grassavam livremente;
- do aspecto e da organização das boticas trazidas de Portugal, quando ela nos diz que:
[...] chegado a salvamento ao Brasil a encomenda, o boticário preparava as prateleiras, onde ia tudo dispondo, mais os vidros cristalinos, frascos e potes de barro vidrado para os remédios do uso. Numa mesa, almofarizes e bronze, espátulas de latão, tachos de cobre e ferro, gral de pedra e de marfim [...] Na estante ao lado, livros de receitas manuscritas e alguns impressos como a "Luz da Medicina", "Farmacopeia Lusitana", "Rccopilação da Cirurgia"...
- das boticas como locais de sociabilidades, onde serviam-se refeições para conquistar a clientela e onde jogos como o gamão eram praticados. Além disso, ali também realizavam-se reuniões políticas proibidas.
Finalmente, ela revela o encanto dos remédios de segredo, terapia de escolha dos pacientes de então, onde destaca-se a Triaga Brasílica, inventada pelos religiosos da Companhia de Jesus. Ela era preparada na botica do Colégio da Bahia a partir de 21 raízes, extratos, gomas e substâncias químicas (óleos e sais), misturadas em quantidades e variedades secretas (segredo guardado a sete chaves) e usada para evitar a ação de venenos de cobra, de animais peçonhentos, contra dores de estômago, cólicas, vómitos, vermes, epilepsia, apoplexia, melancolia, convulsão e diversos outros males. É desse período também a fama de águas curativas, como as da Lagoa Grande de Sabará, que era exportada em garrafas para a Europa e seria capaz de curar uma grande variedade de doenças, inclusive paralisias. Mas, se os remédios de segredo têm sua aura mística, algumas terapias prescritas mais parecem saídas de receitas ligadas à bruxaria, como quando se recomenda: "chapinhar as partes pudendas com a água em que se tivesse cozido um morcego".
Assim, chega-se à conclusão de que, ainda no século XIX, as artes de curar, a magia e a crença mantinham um entrelaçamento profundo, deixando pouco espaço para a razão na identificação de doenças e seus métodos de cura.
Texto recebido em 30/05/2001
Datas de Publicação
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Publicação nesta coleção
05 Mar 2015 -
Data do Fascículo
Dez 2001