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NOVAS TEMPORALIDADES EDUCACIONAIS NA CONSTRUÇÃO DA CULTURA DA ORGANIZAÇÃO ESCOLAR

NEW EDUCATIONAL TEMPORALITIES IN THE CONSTRUCTION OF THE SCHOOL ORGANIZATION CULTURE

NUEVAS TEMPORALIDADES EDUCATIVAS EN LA CONSTRUCCIÓN DE LA CULTURA DE ORGANIZACIÓN ESCOLAR

RESUMO

O artigo analisa os efeitos da Nova Gestão Pública e do processo de digitalização na reconfiguração da cultura das organizações escolares. A partir de três dimensões nucleares da cultura (tempo, espaço e ação), reflete-se sobre as metamorfoses culturais desenvolvidas nas organizações escolares. A discussão teórica é sustentada num modelo de análise multidimensional da cultura, que integra na sua matriz distintas faces culturaiscultura escolar, cultura organizacional escolar e cultura organizacional de escola. Esta digressão reflexiva, apoiada metodologicamente na revisitação dos contributos teóricos que marcaram esta problemática, permitiu inferir a presença de formas fragmentadoras de cultura, potenciadas pelo aumento do individualismo, e pela diminuição do sentido de pertença à organização.

Palavras-chave
Temporalidades educacionais; Cultura organizacional escolar; Cultura escolar; Dominação digital

ABSTRACT

The article analyzes the effects of the New Public Management and the digitalization in the reconfiguration of the school organizations culture. Based on three core dimensions of culture (time, space, and action), we reflect on the cultural metamorphoses developed in school organizations. The theoretical discussion is supported by a model of multidimensional analysis of culture, which integrates different cultural aspects in its matrix – school culture, school organizational culture, and organizational culture of the school. This reflexive digression, methodologically supported by the revisiting of theoretical contributions that have marked this issue, has allowed us to infer the presence of fragmenting forms of culture, enhanced by the increase of individualism, and by the decrease of the sense of belonging to the organization.

Keywords
Educational temporalities; School organizational culture; School culture; Digital domination

RESUMEN

El artículo analiza los efectos de la Nueva Gestión Pública y el proceso de digitalización en la reconfiguración de la cultura de las organizaciones escolares. A partir de tres dimensiones fundamentales de la cultura (tiempo, espacio y acción), reflexionamos sobre las metamorfosis culturales desarrolladas en las organizaciones escolares. La discusión teórica se apoya en un modelo de análisis multidimensional de la cultura, que integra diferentes aspectos culturales en su matriz: cultura escolar, cultura organizacional escolar y cultura organizacional del centro. Esta digresión reflexiva, apoyada metodológicamente en la revisión de aportes teóricos que han marcado esta problemática, nos ha permitido inferir la presencia de formas fragmentadoras de cultura, potenciadas por el aumento del individualismo y por la disminución del sentido de pertenencia a la organización.

Palabras clave
Temporalidades educativas; Cultura organizacional escolar; Cultura escolar; Dominación digital

Introdução: Novas Temporalidades Educacionais na Era Digital

De vocação eminentemente reflexiva, o presente artigo visa analisar os efeitos da Nova Gestão Pública e do processo de digitalização da educação na reconfiguração da cultura das organizações escolares. A partir de um quadro analítico multidimensional, exploram-se as diversas faces culturaiscultura escolar, cultura organizacional escolar e cultura organizacional de escola (TORRES, 2010TORRES, L. L. Cultura organizacional em contexto escolar. In: LIMA, L. C. (org.). Perspectivas de análise organizacional das escolas. Vila Nova de Gaia: Fundação Manuel Leão, 2010. p. 109-152.), procurando mostrar as suas especificidades no contexto escolar. Tomando como referência a realidade educativa portuguesa, reflete-se sobre o modo como os três pilares constitutivos da cultura – tempo, espaço e ação – têm sido fortemente condicionados pela digitalização, pelos imperativos da performatividade competitiva e por novas formas de poder induzidas pelo gerencialismo (BALL, 2005BALL, S. J. Profissionalismo, gerencialismo e performatividade. Cadernos de Pesquisa, São Paulo, v. 35, n. 126, p. 539-564, 2005. https://doi.org/10.1590/S0100-15742005000300002
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).

A expansão da Nova Gestão Pública, associada à intensa digitalização da educação, tem introduzido mudanças significativas nos mais diversos domínios da vida social. Analisando em perspetiva histórica o modo de funcionamento das organizações escolares (p. ex., GONÇALVES; FARIA FILHO, 2021GONÇALVES, I. A.; FARIA FILHO, L. M. Tecnologias e educação escolar: a escola pode ser contemporânea do seu tempo? Educação & Sociedade, Campinas, v. 42, e252589, 2021. https://doi.org/10.1590/ES.252589
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), ressalta como uma das mudanças mais significativas a sua dependência das tecnologias (agora reforçada com a pandemia do SARS-CoV-2), desde a definição das políticas estratégicas até o suporte das práticas profissionais e conviviais quotidianas. A difusão das tecnologias digitais no universo escolar irradia os seus efeitos a praticamente todos os recantos da escola: reforça e potencia uma gestão focada nos resultados e na prestação de contas, transforma as dinâmicas pedagógicas e as práticas de estudo, acelera a difusão da informação, incrementa a desmaterialização dos procedimentos e, entre outras dimensões relevantes, fomenta o desenvolvimento de estratégias de marketing institucional. Contudo, um dos efeitos mais poderosos, concomitante com o desenvolvimento de “culturas tecnológicas” (ABUBAKRE; RAVISHANKAR; COOMBS, 2017ABUBAKRE, M., RAVISHANKAR, M. N.; COOMBS, C. Revisiting the trajectory of IT implementation in organisations: an IT culture perspective. Information Technology & People, Bradford, v. 30, n. 3, p. 562-579, 2017. https://doi.org/10.1108/itp-09-2015-0217
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) ou “culturas da informação” (LIQUÈTE; OLIVEIRA; MARQUES, 2017LIQUÈTE, V. ; OLIVEIRA, I. L.; MARQUES, A. S. Les nouvelles cultures de l’information dans les organisations. Communication et Organisation, Bordeaux, v. 51, p. 5-11, 2017. https://doi.org/10.4000/communicationorganisation.5492
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), reside na reconfiguração dos sentidos de temporalidade, de espacialidade e de ação, vetores nucleares da cultura da organização.

É inquestionável que as tecnologias constituem um recurso fundamental ao desenvolvimento das sociedades nas várias escalas (global, nacional, organizacional) e, simultaneamente, uma condição estruturante e estruturadora da vida contemporânea, que se expande para além dos espaços sociais e organizacionais. Sob a influência das teorias da Nova Gestão Pública, em particular, dos dois pilares ideológicos que as sustentam – o neoliberalismo e o (novo) gerencialismo (ver, entre outros, CHUBB; MOE, 1990CHUBB, J. E.; MOE, T. M. Politics, markets and America’s schools. Washington, D. C.: The Brookings Institution, 1990.; OSBORNE; GAEBLER, 1992OSBORNE, D.; GAEBLER, T. Reinventing government: how the entrepreneurial spirit is transforming the public sector. New York: Plume, 1992.; GORE, 1996GORE, A. Da burocracia à eficácia. Reinventar a administração pública. Lisboa: Quetzal, 1996.; CLARKE; NEWMAN, 1997CLARKE, J.; NEWMAN, J. The managerial state. Power, politics and ideology in the remaking of social welfare. London: Sage, 1997.; SALAMON, 2000SALAMON, L. M. The new governance and the tools of public action: An introduction. Fordham Urban Law Journal, New York, v. 28, n. 5, p. 1611-1674, 2000. https://ir.lawnet.fordham.edu/cgi/viewcontent.cgi?article=2182&context=ulj. Acesso em: 05 mar. 2015.
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; LANE, 2000LANE, J. E. New public management. London: Routledge, 2000.; SHEPHERD, 2018SHEPHERD, S. Managerialism: an ideal type. Studies in Higher Education, London, v. 43, n. 9, p. 1668-1678, 2018. https://doi.org/10.1080/03075079.2017.1281239
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), os efeitos da tecnologização foram consideravelmente ampliados e colocados ao serviço da mensuração dos resultados, da comparação de performances e da monitorização e do controlo da qualidade (AFONSO, 2010AFONSO, A. J. Gestão, autonomia e accountability na escola portuguesa: breve diacronia. Revista Brasileira de Política e Administração da Educação, Brasília, DF, v. 26, n. 1, p. 13-30, 2010. Disponível em: https://seer.ufrgs.br/rbpae/article/view/19678/11464. Acesso em: 20 abr. 2017.
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, 2014AFONSO, A. J. The emergence of accountability in the Portuguese education system. European Journal of Curriculum Studies, Braga, v. 1, n. 2, p. 125-132, 2014. http://pages.ie.uminho.pt/ejcs/index.php/ejcs/article/view/54/24. Acesso em: 20 maio 2016.
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, 2021AFONSO, A. J. Novos caminhos para a sociologia: tecnologias em educação e accountability digital. Educação & Sociedade, Campinas, v. 42, e250099, 2021. https://doi.org/10.1590/ES.250099
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; LIMA, 2015LIMA, L. C. A avaliação institucional como instrumento de racionalização e o retorno à escola como organização formal. Educação e Pesquisa, São Paulo, v. 41, n. especial, p. 1339-1352, 2015. https://doi.org/10.1590/S1517-9702201508142521
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; FENWICK; EDWARDS, 2016FENWICK, T.; EDWARDS, R. Exploring the impact of digital technologies on professional responsibilities and education. European Educational Research Journal, [S. l.], v. 15, n. 1, p. 117-131, 2016. https://doi.org/10.1177/1474904115608387
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; OZGA, 2016OZGA, J. Trust in numbers? Digital education governance and the inspection process. European Educational Research Journal, Berlin, v. 15, n. 1, p. 69-81, 2016. https://doi.org/10.1177/1474904115616629
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; WILLIAMSON, 2016WILLIAMSON, B. Digital methodologies of education governance: Pearson plc and the remediation of methods. European Educational Research Journal, [S. l.], v. 15, n. 1, p. 34-53, 2016. https://doi.org/10.1177/1474904115612485
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). De resto, como sublinha Lima, “[a] promessa de desburocratização, um dos núcleos temáticos centrais da Nova Gestão Pública, desde cedo foi associada à informatização da administração” (2021, p. 6). Objeto de apropriações muito variadas, as reformas educativas inspiradas neste quadro teórico-político introduziram alterações nos modos de governação e liderança das organizações escolares, cuja análise não pode dispensar os contextos culturais em que ocorrem tais processos. Perante a rigidez da forma escolar, fará sentido admitir o desenvolvimento de uma plasticidade estrutural que absorve as “ondas de choque” produzidas por estas alterações políticas e tecnológicas? Que travões e aceleradores são culturalmente acionados para manter o ethos e a identidade escolar? Na verdade, a performatividade e a natureza individualista e individualizante da educação escolar sempre existiram. O “novo” é a sua utilização e a sua função comparativista e mercantil, bem como a aceleração induzida pelas várias formas de accountability, em particular a accountability digital (AFONSO, 2021AFONSO, A. J. Novos caminhos para a sociologia: tecnologias em educação e accountability digital. Educação & Sociedade, Campinas, v. 42, e250099, 2021. https://doi.org/10.1590/ES.250099
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).

Partindo de várias sinalizações teóricas, o texto reflete sobre o processo de interiorização de um tempo, um espaço e uma ação acelerados, potenciado pela vaga tecnológica e gerencialista, com efeitos visíveis na reconfiguração da cultura organizacional. Algumas questões orientadoras serviram de fio condutor: a informatização acentuou a racionalidade técnico-burocrática da gestão e do trabalho docente? A cultura digital estará a induzir novas formas de competição, baseadas em lógicas comparativistas? Que reconfigurações ocorreram na cultura da instituição? Até que ponto a cultura das organizações existe per se, mantendo-se como realidade paralela, não obstante as mudanças tecnológicas e organizacionais?

O artigo está estruturado em quatro secções. Inicia-se com a sinalização dos pressupostos teóricos adotados na análise da cultura organizacional, tendo como referência os contributos científicos de âmbito internacional. Na segunda seção, analisa-se o processo de construção da cultura a partir das suas dimensões constitutivas – tempo, espaço e ação. Avança-se, na terceira seção, para a apresentação do modelo multidimensional de análise da cultura organizacional, a partir do qual se analisam os vários cenários e faces culturais, em articulação com as diferentes escalas de análise (mega, macro, meso e micro). Tomando como referencial este modelo, na última secção, reflete-se sobre os efeitos da Nova gestão Pública e da digitalização da educação na reconfiguração da cultura das organizações, nomeadamente no nível das suas condições de produção (ação, espaço e tempo) e das suas formas de manifestação (integração, diferenciação e fragmentação).

Tratando-se de uma abordagem de natureza analítica e reflexiva, os elementos empíricos mobilizados têm apenas o objetivo de ilustrar e clarificar a argumentação teórica desenvolvida ao longo deste artigo.

A Cultura da Organização: Sinalizando o Campo

Objeto das mais diversas abordagens e apropriações (científicas, políticas e normativas), a problemática da cultura organizacional apresenta vasto e consistente património teórico e metodológico, tornando-se inviável mapear as principais contribuições científicas. Contudo, dos inúmeros trabalhos de síntese disponíveis, é possível extrair ideias-chave essenciais à navegação nesta área específica. Profundamente conectadas, estas ideias só muito alusivamente são aqui expostas, o suficiente para situar o ponto de descolagem da presente reflexão.

A primeira ideia respeita à forma como a cultura é teoricamente perspetivada em termos de investigação. Em anteriores trabalhos (TORRES, 1997TORRES, L. L. Cultura organizacional escolar. Representações dos professores numa escola portuguesa. Oeiras: Celta Editora, 1997., 2004TORRES, L. L. Cultura organizacional em contexto educativo. Sedimentos culturais e processos de construção do simbólico numa escola secundária. Braga: Centro de Investigação em Educação da Universidade do Minho, 2004., 2007TORRES, L. L. Cultura organizacional escolar: apogeu investigativo no quadro de emergência das políticas neoliberais. Educação & Sociedade, Campinas, v. 28, n. 98, p. 151-179, 2007. https://doi.org/10.1590/S0101-73302007000100009
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), foi destacada a presença de dois movimentos teóricos movidos por diferentes objetivos: um movimento focado na análise dos impactos da cultura sobre os resultados, a eficácia, a liderança e a competitividade (movimento gestionário) (p. ex., DEAL; KENNEDY, 1988DEAL, T.; KENNEDY, A. A. Corporate cultures. The rites and rituals of corporate life. London: Penguin Books, 1988.; CUNNINGHAM; GRESSO, 1993CUNNINGHAM, W. G.; GRESSO, D. W. Cultural leadership: the culture of excellence in education. Boston: Allyn and Bacon, 1993. https://doi.org/10.1177/019263659407855930
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; PETERSON; DEAL, 2009PETERSON, K. D.; DEAL, T. E. The shaping school culture fieldbook. San Francisco: Jossey Bass, 2009.; FULLAN, 2003FULLAN, M. Liderar numa cultura de mudança. Porto: Edições ASA, 2003.; HARGREAVES; FINK, 2007HARGREAVES, A.; FINK, D. Liderança sustentável. Porto: Porto Editora, 2007.); e um movimento voltado para a compreensão crítica dos processos de construção das culturas organizacionais (movimento reflexivo) (p. ex., WESTOBY, 1985WESTOBY, A. (ed.). Culture and power in educational organizations. Milton Keynes: Open University Press, 1985.; ERICKSON, 1987ERICKSON, F. Conceptions of school culture: an overview. Educational Administration Quarterly, Columbus, v. 23, p. 4, p. 11-24, 1987. https://doi.org/10.1177/0013161X87023004003
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; PROSSER, 1999PROSSER, J. (ed.). School culture. London: Sage Publications, 1999. https://doi.org/10.4135/9781446219362
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; BUSH et al., 1999BUSH, T. et al. (eds.). Educational management. Redefining theory, policy and practice. London: Sage Publications, 1999. https://doi.org/10.4135/9781446219676
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; CONNOLLY; JAMES; BEALES, 2011CONNOLLY, M., JAMES, C.; BEALES, B. Contrasting perspectives on organizational culture change in schools. Journal of Educational Change, Dordrecht, v. 12, 421-439, 2011. https://doi.org/10.1007/s10833-011-9166-x
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; CONNOLY; KRUISE, 2019CONNOLLY, M.; KRUISE, A. D. Organizational culture in schools. A review of widely misunderstood concept. In: CONNOLLY, M. et al. (eds.). The Sage Handbook on School Organization. London: Sage Publications, 2019. p. 177-194 https://doi.org/10.4135/9781526465542.n11
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). Referenciados a correntes epistemológicas e teóricas distintas, os estudos inscritos nestes movimentos mostram a complexidade do processo de construção da cultura e as tensões que presidem à sua análise.

Uma segunda ideia reside na clarificação do estatuto conferido à cultura: se entendida como variável estática (dependente ou independente da organização), suscetível de diagnóstico, gestão e mudança, ou se vista como metáfora ou paradigma (SMIRCICH, 1983aSMIRCICH, L. Concepts of culture and organizational analysis. Administrative Science Quarterly, Ithaca, v. 28, p. 339-358, 1983a. https://doi.org/10.2307/2392246
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, 1983bSMIRCICH, L. Studying organizations as cultures. In: MORGAN, G. (ed.). Beyond method: social research strategies. Beverly Hills: Sage, 1983b. p. 160-172.). Percecionada como variável, a cultura pode ser medida, tipificada e correlacionada com as variáveis de sucesso (produtividade, eficácia, excelência); entendida como metáfora ou paradigma, a cultura é e está em permanente (re)construção, sendo interpretada a partir de um leque diversificado de teorias, conceitos e perspetivas.

A terceira ideia remete aos diferentes modos de manifestação da cultura, ou seja, à expressão variável do grau de partilha cultural. Enquanto a corrente mais gestionária privilegia as dimensões integradoras e monolíticas da cultura (grau máximo de partilha), procurando conexões com os resultados organizacionais, o movimento crítico admite a expressão de vários graus de partilha, mobilizando em simultâneo as lentes integradora, diferenciadora e fragmentadora (grau mínimo de partilha) (FROST et al., 1991FROST, P. J. et al. (eds.). Reframing organizational culture. London: Sage Publications, 1991.; MARTIN, 1992MARTIN, J. Cultures in organizations. Three perspectives. New York/Oxford: Oxford University Press. London: Sage Publications, 1992. https://dx.doi.org/10.4135/9781483328478.n4
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, 2002MARTIN, J. Organizational culture. Mapping the terrain. London: Sage Publications, 2002. https://doi.org/10.4135/9781483328478
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; ALVESSON; BERG, 1992ALVESSON, M.; BERG, P. O. Corporate culture and organizational symbolism. An overview. Berlin/New York: Walter de Gruyter, 1992. https://doi.org/10.1515/9783110136074
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; ALVESSON, 2002ALVESSON, M. Understanding organizational culture. London: Sage Publications, 2002. https://doi.org/10.4135/9781446280072
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; MARTIN; FROST; O’NEILL, 2006MARTIN, J.; FROST, P. J.; O’NEILL, O. A. Organizational culture. Beyond struggles for intellectual dominance. In: CLEGG, S. et al. (eds.). The Sage Handbook of Organization Studies. London: Sage Publications, 2006. p. 725-753.).

Enquadrada numa linha reflexiva e interpretativa da cultura, a abordagem dos tópicos seguintes busca a compreensão dos múltiplos fatores que intervêm na (re)construção da cultura, tendo presente a especificidade da organização (escolar, empresarial, hospitalar, política etc.) e o seu enquadramento social e político mais amplo.

A Construção da Cultura da Organização: Ação, Espaço e Tempo

A compreensão dos processos culturais e simbólicos sedimentados na longa duração exige uma análise aprofundada das suas categorias fundacionais: ação (recorrente), espaço (habitado) e tempo (curto e longo).

A ação é a essência da construção da cultura, uma vez que é a partir da interação social que se processam a troca, a partilha e a disputa de valores, crenças e ideologias. É no decurso da ação quotidiana que se enfrentam as adversidades (internas e externas), se criam alianças, se firmam interesses e visões e se incorporam hábitos e formas de estar. É ainda na ação recorrente, que perdura no tempo, que os atores ativam as suas capacidades criativas e inventivas e reconstroem as suas disposições para agir, sentir ou pensar (LAHIRE, 2003LAHIRE, B. O homem plural. As molas da ação. Lisboa: Instituto Piaget, 2003.). Sendo a escola um dos mais poderosos contextos de socialização, a experiência quotidiana dos atores constitui um locus de formação de habitus e de esquemas de disposições que interessa captar para aceder a outro patamar da incorporação do simbólico: os valores, as crenças e as ideologias.

O desenvolvimento da cultura organizacional é sempre contextual, na medida em que decorre em determinado espaço, regido por orientações específicas. Apesar de permeável às influências externas, a cultura constrói-se por referência ao território físico e material, à organização onde se desenrola a ação, sendo este espaço simultaneamente criador e reflexo da cultura. Desde logo, os edifícios traduzem as injunções sociais, normativas e ideológicas que respondem a lógicas de gestão e a racionalidades pedagógicas e educativas. As dimensões visuais induzidas pela configuração espacial, pelos elementos arquitetónicos, pela disposição e o ambiente constituem referências simbólicas que marcam e regulam ação, lugares e sítios que, pela sua silenciosa presença, constrangem, condicionam, mas também potenciam as interações, gerando significados mais ou menos partilhados. A habitação do espaço organizacional gera vínculos, abriga significados, refúgios e emoções e acomoda rotinas, habitus e costumes.

É no decurso do tempo que a construção simbólica ocorre, por via da interação social durável, que tende a fixar e legitimar padrões culturais. Neste sentido, “a temporalidade é, efetivamente, uma condição estruturante e estruturadora da cultura da organização” (TORRES, 2018TORRES, L. L. Culturas de escola e excelência: entre a integração de todos e a distinção dos melhores. Revista de Sociología de la Educación, Valencia, v. 11, n. 1, p. 167-185, 2018. https://doi.org/10.7203/RASE.10.1.9135
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, p. 171). Na esteira de EliasELIAS, N. Du temps. Paris: Fayard/Pluriel, 2019., o tempo é um símbolo social e um instrumento de orientação indissociável do processo civilizacional ou, mais concretamente, “le symbole d’une contrainte universelle et inéluctable”1 1 “O símbolo de uma coerção universal e inelutável” (em livre tradução). (2019, p. 26). Ao impor uma certa ordem, o tempo simboliza um instrumento de orientação e regulação institucionalizado dos comportamentos. Por esta razão, a antiguidade da organização emerge como uma das dimensões mais importantes na consolidação da cultura organizacional, pois é no decurso do tempo que as tradições, as rotinas e o modus operandi se convertem em regularidades culturais estáveis. Importa, por isso, reconhecer que estas invariantes estruturais constituem os pilares da identidade da organização, que norteiam e regulam a ação coletiva.

As coordenadas temporais, espaciais e acionais constituem as condições-base de produção da cultura organizacional, sendo, portanto, indispensável contextualizá-las historicamente. Profundamente relacionadas entre si, estas coordenadas não deixam de ter um papel específico na construção da cultura, que pode variar em função das conjunturas histórico-sociais.

Um Modelo Multidimensional: As Manifestações Plurais da Cultura da Organização

Paralelamente à compreensão do processo de construção da cultura, importa clarificar de que forma esta se manifesta nas organizações escolares. Os posicionamentos teóricos não são consensuais. De acordo com as abordagens de natureza gestionária, a cultura restringe-se aos padrões simbólicos efetivamente partilhados e aceitos pelos atores, o que significa considerar a ambiguidade e o dissenso como “anomalias” e desvios a exigir um realinhamento organizacional. Em contraposição, as correntes críticas admitem distintos graus de partilha cultural (valores, crenças, ideologias) numa mesma organização, cuja intensidade (maior ou menor partilha) pode originar diferentes manifestações culturais (Fig. 1): manifestações de tipo integrador, se o grau de identificação com os valores da organização for elevado; de tipo diferenciador, quando o vínculo cultural se estabelece apenas no interior do grupo de pertença; de tipo fragmentador, sempre que prevaleçam lógicas individuais, sem identificação com a organização nem com grupos de pertença mais restritos. (MEYERSON; MARTIN, 1987MEYERSON, D.; MARTIN, J. Cultural change: an integration of three different views. Journal of Management Studies, Oxford, v. 24, p. 623-647, 1987. https://doi.org/10.1111/j.1467-6486.1987.tb00466.x
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; MARTIN; MEYERSON, 1988MARTIN, J.; MEYERSON, D. Organizational culture and the denial, channeling and acknowledgement of ambiguity. In: PONDY, L. R.; BOLAND JR., R. J.; THOMAS, H. (eds.). Managing ambiguity and change. New York: John Wiley, 1988. p. 93-125.; MARTIN, 1992MARTIN, J. Cultures in organizations. Three perspectives. New York/Oxford: Oxford University Press. London: Sage Publications, 1992. https://dx.doi.org/10.4135/9781483328478.n4
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, 2002).

Figura 1
Manifestações da cultura organizacional

Do ponto de vista analítico, é possível encontrar diferentes formas de manifestação da cultura numa mesma organização, apesar de o seu grau de incidência poder variar significativamente. A captação da diversidade cultural exige, contudo, um olhar de dentro – do sistema educativo e da escola em particular, incluindo dimensões intra- e extramuros – e uma arquitetura metodológica que combine e articule diferentes escalas de observação.

No plano macro, interessa compreender as lógicas que intersetam o contexto escolar, sobretudo as resultantes de orientações fixadas pelas políticas públicas (tanto transnacionais como nacionais, regionais e locais) que, apesar de não homogéneas e nem sempre explícitas, veiculam certa visão hegemónica de escola e de educação que enforma a cultura escolar (TORRES, 2004TORRES, L. L. Cultura organizacional em contexto educativo. Sedimentos culturais e processos de construção do simbólico numa escola secundária. Braga: Centro de Investigação em Educação da Universidade do Minho, 2004.). Importa aqui perspetivar as políticas de educação no sentido amplo, contemplando os múltiplos atores em circulação pelos vários espaços e escalas, na esteira do que propõe Carvalho quando analisa o processo de fabricação do Programa Internacional de Avaliação de Estudantes (PISA), no encalço da compreensão das relações entre conhecimento e governo da educação. Sustenta o autor que “as políticas de educação [...] são entendidas como espaços comunicacionais e sociais nos quais se exprimem e interagem diferentes conceções e modos de relação com o mundo educacional” (2011, p. 17). Ora, as políticas educativas – nesta aceção mais circular e interdependente das interações políticas – fixam e circunscrevem, na longue durée, repertórios de valores, crenças e condutas que enformam, no seu conjunto, o modelo escolar da sociedade contemporânea. Ou seja, o complexo processo de construção de políticas públicas, cada vez mais permeável à ação das organizações internacionais, envolve uma combinação sempre dinâmica de visões e normas relativas às estruturas e processos educativos que são transportadas para o mundo escolar, fixando-lhe os horizontes e os referenciais simbólicos (CARVALHO, 2016CARVALHO, L. M. Intensificação e sofisticação dos processos da regulação transnacional em educação: O caso do programa internacional de avaliação de estudantes. Educação & Sociedade, Campinas, v. 37, n. 136, p. 669-683, 2016. https://doi.org/10.1590/ES0101-73302016166669
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).

No nível da escala meso, a organização escolar enquadra a sua atividade neste quadro político e cultural de referência, ainda que de forma diferenciada em função das especificidades dos contextos escolares. Nesta escala contextual, e considerando um primeiro nível de apropriação cultural (nível 1), tendem a prevalecer os referenciais simbólicos que legitimam institucionalmente a ação educativa, assumindo uma natureza essencialmente integradora, embora reajustada à matriz organizacional da escola, à sua missão estratégia, à natureza da oferta educativa e seus públicos. A forma como cada organização se apropria da cultura escolar e encena valores e princípios de atuação institucional espelha (para dentro e para fora) uma visão unidimensional de cultura, materializada em valores, objetivos e processos educativos coesos, ao serviço de princípios institucionalmente legitimados, com forte dependência de critérios de “utilidade”, “produtividade”, mas igualmente de “democraticidade”. Todavia, entre o palco, onde tem lugar a encenação cultural e os bastidores, onde é construída a dinâmica cultural, existe uma distância considerável. À visão superficial de “cultura pública e estratégias de autoapresentação dos atores” (ALVESSON; KARREMAN; YBEMA, 2017ALVESSON, M., KARREMAN, D.; YBEMA, S. Studying culture in organizations: not taking for granted the taken-for-granted. In: WILKINSON, A.; ARMSTRONG, S. J.; LOUNSBURY, M. (eds.). The Oxford book of management. Oxford: Oxford, University Press, 2017. p. 103-126. https://doi.org/10.1093/oxfordhb/9780198708612.013.6
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, p. 104) sucede um nível mais profundo de apropriação cultural (nível 2), que dá conta das diferentes visões e dinâmicas do espaço escolar, sobretudo as mais invisíveis e silenciosas, como sugestivamente propõem estes autores num dos seus mais recentes trabalhos sobre a cultura organizacional:

Rather than scratching the surfaces of public culture and actors’ strategies of self-presentation, we suggest that organizational research needs to focus on critically examining outward appearances, puncturing its myths by demasking its symbolic and staged qualities, and probing into the not-readily observable, the silent and silenced, backstage and off-stage worlds in the organizational dungeons, rekindling its fascination for what might be under the skin, beneath the surface, behind the scenes, and between the lines (ALVESSON; KARREMAN; YBEMA, 2017ALVESSON, M., KARREMAN, D.; YBEMA, S. Studying culture in organizations: not taking for granted the taken-for-granted. In: WILKINSON, A.; ARMSTRONG, S. J.; LOUNSBURY, M. (eds.). The Oxford book of management. Oxford: Oxford, University Press, 2017. p. 103-126. https://doi.org/10.1093/oxfordhb/9780198708612.013.6
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, p. 104).2 2 “Em vez de arranhar a superfície da cultura pública e das estratégias de autoapresentação dos atores, sugerimos que a pesquisa organizacional precisa se concentrar no exame crítico das aparências externas, perfurando seus mitos desmascarando suas qualidades simbólicas e encenadas e investigando o que não é facilmente observável , os mundos silenciosos e silenciados, dos bastidores e fora do palco nas masmorras organizacionais, reacendendo seu fascínio pelo que pode estar sob a pele, sob a superfície, nos bastidores e nas entrelinhas (ALVESSON; KARREMAN; YBEMA, 2017, p . 104).

A captação dos quadros de interação e das trocas comunicacionais que medeiam as negociações entre os atores escolares e a própria construção da realidade assume uma particular relevância para a compreensão dos significados partilhados, mas igualmente dos conflitos que emergem na sua interpretação. Este “perfurar” dos bastidores permite uma aproximação à cultura em ação e à identificação de diferentes manifestações culturais, em particular identidades vincadas e subculturas em confronto, ou mesmo focos de fragmentação. Os níveis 1 e 2 da escala meso configuram conceptualmente o que tenho designado de cultura organizacional escolar (TORRES, 2004TORRES, L. L. Cultura organizacional em contexto educativo. Sedimentos culturais e processos de construção do simbólico numa escola secundária. Braga: Centro de Investigação em Educação da Universidade do Minho, 2004.), uma cultura permeada pela diversidade, que confere uma identidade única à organização escolar (Fig. 2).

Figura 2
Captação da diversidade cultural

Por último, a escala microssociológica abre o campo de observação aos atores em ação nos vários contextos em que circulam. É na rede das relações sociais que se forjam os vínculos e se tecem individual e coletivamente os significados, consoante a posição que o ator ocupa. O ator tanto encarna marcas sociais e organizacionais, que resultam de um longo processo de subjetivação e singularização, como age sobre as próprias estruturas escolares, ao apropriar-se ativamente dos seus códigos e convenções. Este olhar mais cirúrgico e etnográfico sobre o modo como os atores escolares são social e organizacionalmente produzidos, ao mesmo tempo sujeitos e agentes plurais num universo escolar culturalmente diferenciado, abre analiticamente as portas à exploração da cultura da organização a partir do seu núcleo-duro – o ator em interação com o mundo. Deste ângulo, o ator é perspetivado como culturalmente plural, catalisador de produções culturais, podendo interromper o decurso da fabricação do comum e transitar entre diferentes formas culturais, consoante as situações e posições na organização: ora comungando da cultura escolar (p. ex., nas relações com a comunidade), ora estrategicamente mais vinculado à matriz de valores da (sub)cultura de um grupo ou departamento específico, ora mais filiado à sua singularidade cultural, quando não se identifique com a matriz cultural da organização ou do grupo de pertença.

A construção da cultura da organização escolar decorre da ação quotidiana, do desenrolar contextualizado de acontecimentos que geram uma sobreposição dinâmica de significados que rompe com a fixidez espácio-temporal das rotinas e instituições. A captação da pluralidade e da complexidade cultural apenas se torna analiticamente acessível se se mobilizarem as várias escalas de observação, dando primazia aos cruzamentos e interseções. Ou seja, esta abordagem pluriescalar da cultura permite analisar os trânsitos (sub)culturais, fugindo dos pressupostos mais estáticos que perspetivam o contexto escolar como uma sucessão de rituais de repetição, um mero mosaico de subculturas incomunicantes. A multiplicação de escalas de observação da cultura organizacional permite, ainda, superar a lógica (mais positivista) da neutralização e despolitização dos espaços escolares, ao cruzar diferentes perspetivas e ângulos, que exigem um trabalho constante de desocultação das relações de poder instituídas no contexto escolar (TORRES, 2017TORRES, L. L.; PALHARES, J. A. (orgs.). A excelência académica na escola pública portuguesa. Vila Nova de Gaia: Fundação Manuel Leão, 2017., p. 284). Efetivamente, a arte de entrelaçar as dimensões estruturais com as dimensões conjunturais e individuais na exploração da cultura levarou-me a propor a designação de cultura organizacional de escola (TORRES, 2010TORRES, L. L. Cultura organizacional em contexto escolar. In: LIMA, L. C. (org.). Perspectivas de análise organizacional das escolas. Vila Nova de Gaia: Fundação Manuel Leão, 2010. p. 109-152.), para dar conta das dimensões perenes que teimam em resistir à mudança.

A Vaga Gerencialista e a Dominação Digital: O Despontar Silenciosoda Fragmentação Cultural

A difusão dos princípios e valores associados ao gerencialismo, entendido como um sistema ideológico poderoso baseado nos poderes performativos da gestão (KLIKAUER, 2015KLIKAUER, T. What is Managerialism? Critical Sociology, London, v. 41, n. 7-8, p. 1103-1119, 2015.), tem vindo a deslocar as prioridades das organizações escolares para a produção de resultados. Esta tendência, comum a vários países da Europa, acelerada pela utilização massiva das tecnologias digitais, provocou alterações significativas nas várias escalas do sistema educativo (SELWYN, 2011SELWYN, N. It’s all about standardisation. Exploring the digital (re)configuration of school management and administration. Cambridge Journal of Education, Cambridge, v. 41, n. 4, p. 473-488, 2011. https://doi.org/10.1080/0305764X.2011.625003
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; WILLIAMSON, 2016WILLIAMSON, B. Digital methodologies of education governance: Pearson plc and the remediation of methods. European Educational Research Journal, [S. l.], v. 15, n. 1, p. 34-53, 2016. https://doi.org/10.1177/1474904115612485
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). No plano macropolítico, destaque para a racionalização da rede escolar, com a constituição de agrupamentos de escolas (school clusters) em vários continentes; para o alargamento dos programas de avaliação externa e interna; para a implementação de modelos de gestão unipessoal; para a intensificação de mecanismos de controlo e de accountability focados nos resultados; para a delegação de competências nas instâncias locais, entre outras orientações políticas de relevo. Enquadradas por estas pressões performativas, no plano meso, as organizações escolares aderem à ideologia meritocrática, impulsionadas por certos dispositivos e instrumentos de regulação transnacional (p. ex., PISA) (CARVALHO, 2011CARVALHO, L. M. Introdução. O PISA como dispositivo de conhecimento & política. In: CARVALHO, L. M. (coord.). O espelho do perito. Inquéritos internacionais, conhecimento e política em educação – o caso do PISA. Vila Nova de Gaia: Fundação Manuel Leão, 2011. p. 11-40., 2016CARVALHO, L. M. Intensificação e sofisticação dos processos da regulação transnacional em educação: O caso do programa internacional de avaliação de estudantes. Educação & Sociedade, Campinas, v. 37, n. 136, p. 669-683, 2016. https://doi.org/10.1590/ES0101-73302016166669
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), por uma governação centrada nas lideranças unipessoais e reforçada pelas tecnologias digitais que as constrangem e lhes delimitam o circuito de ação. A sala de aula (plano micro) constitui o espaço-tempo de conversão de um complexo jogo de forças que espelha o modo como as novas tecnologias influenciam o curso da ação pedagógica. Estas duas frentes de pendor racionalizador (gerencialismo e dominação tecnológica) esquematicamente esboçadas têm induzido variações na cultura das organizações, ao desestabilizarem as suas condições de produção (ação, espaço e tempo) e as suas formas de manifestação (integração, diferenciação e fragmentação).

A “Forma Escolar” como Lugar de Passagem

A organização escolar tornou-se um dos mais relevantes contextos de socialização dos jovens, em resultado da universalização e prolongamento da escolarização. Contudo, a longa permanência dos jovens no sistema escolar é hoje disputada por outras lógicas e formas de aprendizagem que ocorrem para além dos muros da escola. A dispersão dos jovens por diversos espaços e experiências educativas –por exemplo, a música, o desporto, as redes sociais, os grupos de amigos, as atividades políticas, associativas – tem vindo a alterar a relação simbólica com o espaço escolar. Por outro lado, o declínio do “programa institucional” (DUBET, 2002DUBET, F. Le déclin de l’institution. Paris: Éditions du Seuil, 2002. https://doi.org/10.4000/questionsdecommunication.7552
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) e a valorização crescente dos resultados académicos introduziram alterações nos mandatos da escola e nas suas prioridades educativas. Pressionada à produção de padrões de excelência, a escola tem intensificado o treino de competências e reduzido as experiências de aprendizagem não-formal e informal (PALHARES, 2008PALHARES, J. A. Os sítios de educação e socialização juvenis. Experiências e representações num contexto não-escolar. Educação, Sociedade & Culturas, Porto, v. 27, p. 109-130, 2008., 2014PALHARES, J. A. Centralidades e periferias nos quotidianos escolares e não-escolares de jovens distinguidos na escola pública. Investigar em Educação, Porto, IIª série, n. 1, v. 1, p. 51-73, 2014.), numa lógica simultânea de emagrecimento e musculação: por um lado, a redução das gorduras educativas, ou seja, das experiências de participação e cidadania; por outro, o aumento da massa muscular, por via da intensificação do treino dirigido e focado em competências “úteis”, passíveis de mensuração.

Ora, a sedimentação de um ideário de tipo performativo, alicerçado em estratégias de curto prazo que garantam vantagens competitivas, condiciona o modo como os atores se relacionam com o espaço escolar. A apropriação do espaço tende a reger-se por lógicas instrumentais, de custo-benefício, que dificultam o desenvolvimento da identidade organizacional. Para muitos estudantes, a ausência de correspondência entre o investimento escolar e a concretização de um sonho profissional acentuou ainda mais o sentimento de desencanto e distanciamento em relação à escola, percecionada como um mais um lugar de passagem (VIEIRA; PAPÁMIKAIL; NUNES, 2012VIEIRA, M. M.; PAPPÁMIKAIL, L.; NUNES, C. Escolhas escolares e modalidades de sucesso no ensino secundário: percursos e temporalidades. Sociologia, Problemas e Práticas, Lisboa, v. 70, p. 45-70, 2012. https://doi.org/10.7458/SPP2012701210
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). Como sustenta José Machado Pais, numa abordagem às “[t]essituras do tempo na contemporaneidade” (PAIS, 2016PAIS, J. M. Tessituras do tempo na contemporaneidade. ArtCultura, Uberlândia, v. 18, n. 33, p. 7-18, 2016. https://doi.org/10.14393/ArtC-V18n33-2016-2-01
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, p. 14), “a imprevisibilidade do futuro produz um efeito: um descompasso entre os espaços da experiência e os horizontes de espera” (PAIS, 2016PAIS, J. M. Tessituras do tempo na contemporaneidade. ArtCultura, Uberlândia, v. 18, n. 33, p. 7-18, 2016. https://doi.org/10.14393/ArtC-V18n33-2016-2-01
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, p. 14). Ou seja, tendo plena consciência de que o futuro é incerto, os jovens refugiam-se no presente: “Esta presentificação espelha, como já se sugeriu, uma erosão do sentimento de pertença a uma sucessão de gerações enraizadas no passado, sentimento de erosão que se prolonga no futuro” (PAIS, 2016PAIS, J. M. Tessituras do tempo na contemporaneidade. ArtCultura, Uberlândia, v. 18, n. 33, p. 7-18, 2016. https://doi.org/10.14393/ArtC-V18n33-2016-2-01
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, p. 14).

A título meramente ilustrativo, a Tabela 1 apresenta a frequência dos espaços escolares por parte dos melhores alunos (alunos distinguidos pelos excelentes desempenhos académicos, com classificações médias iguais ou superiores a 18 valores), de quatro escolas secundárias portuguesas.3 3 Dados recolhidos no âmbito do Projeto “Entre Mais e Melhor escola: a excelência académica na escola pública portuguesa”, financiado por Fundos Nacionais através da FCT (Fundação para a Ciência e a Tecnologia), no âmbito do projeto PTDC/IVC-PEC/4942/2012, do Centro de Investigação em Educação da Universidade do Minho (CIEd).

Tabela 1
Espaços escolares frequentados pelos alunos excelentes (n = 200)

Constata-se que, para além da sala de convívio e dos átrios exteriores (espaços utilizados sobretudo nos intervalos das aulas), os alunos revelam uma diminuta frequência dos demais espaços de aprendizagem e socialização escolar. A habitação do espaço escolar restringe-se, assim, ao território demarcado pela sala de aula e, nos intervalos, aos espaços de convívio, o que evidencia a relação instrumental e fugidia que estes alunos mantêm com a escola.

A configuração espacial também não está imune à intrusão das novas tecnologias, que invadem todos os lugares, desde os gabinetes de direção e gestão às salas de aulas. Colocadas ao serviço da eficácia comunicacional, as tecnologias digitais varreram de muitas instituições a presença física do papel, seja da sala de aula, seja das salas de reuniões, seja dos locais de afixação pública. Os efeitos visuais desta desmaterialização são nítidos nos arranjos espaciais, agora mais clean e menos mediados pela ação humana, em alguns casos habitados por écrans luminosos e quadros interativos que projetam informação atualizada. Estas novas formas de comunicação imaterial (e-mail, blogs, chats, social media) são ainda mais eficazes no contexto dos agrupamentos de escolas, na medida em que ampliam a intercomunicação em tempo real, gerando um efeito (aparente) de aproximação geográfica e cultural dos vários estabelecimentos à sede. De realçar que, no contexto português, a partir da década de 1990, a racionalização da rede escolar instituiu os agrupamentos de escolas como configuração organizacional dominante – 88% da rede pública é constituída por agrupamentos de escolas verticais, que agregam estabelecimentos de diferentes níveis e ciclos de escolaridade, dirigidos e controlados pela escola-sede, sob uma liderança unipessoal e omnipresente (LIMA; TORRES, 2020LIMA, L. C.; TORRES, L. L. Políticas, dinâmicas e perfis dos agrupamentos de escolas em Portugal. Análise Social, Lisboa, v. LV, n. 4, p. 237, 748-774, 2020. https://doi.org/10.31447/as00032573.2020237.03
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). A constituição dos agrupamentos de escolas arrastou, aliás, alterações visíveis na estrutura espacial, ao subordinar as lógicas de funcionamento dos estabelecimentos às orientações da escola-sede. Esta nova configuração organizacional restringe e possibilita, ao mesmo tempo, a expressão da cultura, na medida em que influi nas perceções dos atores como produtores e usuários do espaço. Ao perderem autonomia e poder de decisão, as “unidades de gestão” passam a ser representadas como extensões executivas da sede, diluindo, assim, o sentido de pertença ao contexto específico de ação.

É num contexto global de expansão do “individualismo institucionalizado” (BECK; BECK-GERNSHEIM, 2012BECK, U.; BECK-GERNSHEIM, E. La individualización. El individualismo institucionalizado y sus consecuencias sociales y políticas. Barcelona: Paidós, 2012.) que importa contextualizar as dinâmicas culturais da organização escolar. Com efeito, as vivências escolares são cada vez mais marcadas pela aceleração, a virtualização e a instrumentalização, o que não só dificulta a partilha cultural (cultura integradora), como impede a criação de vínculos à organização. A alteração das coordenadas temporais e espaciais tem contribuído para a desrotinização do quotidiano escolar. Num dos estudos de caso realizados numa escola secundária portuguesa,4 4 Dados recolhidos no âmbito do projeto “A governação e gestão das escolas públicas: o(a) diretor(a) em ação”, integrado no Grupo de Investigação sobre Políticas, Governação e Administração da Educação, do Centro de Investigação em Educação (CIEd) da Universidade do Minho (2013-2017). os professores entrevistados identificaram focos crescentes de individualismo, de um clima de trabalho mais fechado e mediado pelas novas tecnologias, denunciando igualmente a presença de fragmentações culturais, outrora inexistentes: “Sim, temos algumas subculturas. Depois temos a mistura também. [...] A história dos departamentos criou, às tantas, alguma fragmentação” (testemunho de um professor e coordenador dos diretores de turma). A propagação das tecnologias e das redes digitais não só desestabilizou as redes presenciais, que implicavam sociabilidades face a face, como provocou alterações nas práticas culturais e organizacionais dos professores.

A Opressão do Tempo como Marcador Cultural

A velocidade da circulação da informação e a sua constante desatualização torna os atores reféns da tecnologia, fazendo simultaneamente encurtar o tempo de resposta às diversas solicitações e alongar o tempo de espera de outras tantas demandas, num arco temporal que vem desestabilizar as fronteiras convencionais do mundo do trabalho e da esfera privada. A noção de tempo, apesar de teoricamente esquiva, parece emergir como um fator central na compreensão das dinâmicas sócio-organizacionais, desde logo, ao perder o seu estatuto de princípio organizador das práticas: o planeamento antecipado das tarefas sucumbe a outras urgências que irrompem sem aviso, desfazendo as rotinas horárias, associadas ao cumprimento de tarefas num tempo pré-definido. Sendo certo que esta propagação tecnológica invade todos os recantos do tempo e do espaço, o modo como os atores a incorporam não deixa de ter efeitos ao nível da comunicação e interação social, com diferentes expressões consoante o tipo de organizações.

No caso específico das organizações escolares, o impacto das Tecnologias da Informação e Comunicação vem sendo estudado de forma ainda parcelar, incidindo em diferentes dimensões, ora associadas às modalidades contabilísticas de prestação de contas, ora focadas nos processos de ensino-aprendizagem. Todavia, este surto tecno-comunicativo, ou, nas palavras de Beck (2017)BECK, U. A metamorfose do mundo. Como as alterações climáticas estão a transformar a sociedade. Lisboa: Edições 70, 2017., esta “metamorfose digital”, provoca igualmente mutações no nível ontológico, influenciando o modo de compreensão do mundo, a forma como o ator se adapta, vive e se apropria do quotidiano. O tempo do “cacifo” – metáfora da organização moderna –, em que o ator tomava contacto físico e material com as informações que circulavam nas organizações (ofícios, despachos, circulares, convocatórias, orientações diversas), cedeu lugar à “pasta eletrónica” – indiciadora do “não-lugar” (AUGÉ, 2005AUGÉ, M. Não-lugares. Introdução a uma antropologia da sobremodernidade. [S. l.]: 90 Graus Editora, 2005.) organizacional, da modernidade radicalizada – exigindo um tempo on-line cada vez mais contínuo que se desenrola em open space, sem paredes nem margens, para além de implicar uma gestão racional da informação pertinente. O tempo offline, cada vez mais reduzido, esvazia as possibilidades de convívio e de interação pessoal e enfraquece a identidade profissional e organizacional. Os usos em rede das novas tecnologias (sobretudo as comunicações móveis, como o telemóvel ou o computador) alteram a noção de tempo, colocando o sujeito (alunos, professores, gestores) em situação de disponibilidade contínua, o que por si só desencadeia a ativação de quadros disposicionais que se podem converter em automatismos incorporados. Stald (2008)STALD, G. Mobile identity: youth, identity, and mobile communication media. In: BUCKINGHAM, D. Youth, identity, and digital media. The John D. and Catherine T. MacArthur Foundation Series on Digital Media and Learning. Cambridge, MA: The MIT Press, 2008. p. 143-164. https://doi.org/10.1162/dmal.9780262524834.143
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refere-se, por exemplo, à “lealdade do contacto” para ilustrar o stress e o receio que os jovens têm de perderem a ligação, de estarem conectados. O défice de atenção que resulta da permanente tentativa de gerir várias solicitações simultâneas não deixa de ter repercussões sobre o fluxo normal de interação, alterando os elos e os vínculos comunicacionais.

Ao constituir um pilar estruturante da administração da educação e das escolas, a tecnologia transformou-se num poderoso recurso político que veio alterar consideravelmente a natureza do trabalho docente, os processos de ensino e aprendizagem, os modos de governação escolar e, inevitavelmente, as manifestações da cultura organizacional. Estas mutações em curso à escala global ocorrem sob uma nova matriz temporal que pressiona o ator à obtenção de resultados, à prestação de contas e à incorporação de lógicas competitivas e comparativistas. A eficácia ressurge como imperativo, agora ainda mais fortalecida pela rapidez de execução e de reação, mas igualmente pela velocidade de monitorização e vigilância eletrónica. A emergência de uma espécie de cibercultura ancorada em múltiplos dispositivos tecnológicos parece, de acordo com algumas perspetivas, diluir o papel da norma escrita (dimensão-chave da teoria da burocracia de Max Weber), ao propiciar a desmaterialização dos processos administrativos e a redução dos níveis hierárquicos e ao introduzir novos agentes no processo de regulação da educação. No entanto, esta suposta era pós-burocrática defronta-se com uma crescente intensificação de processos de racionalização técnico-instrumental, cujos efeitos estão longe de extinguir os traços caracterizadores da burocracia, nos moldes conceptualizados por WeberWEBER, K.; DACIN, T. The cultural construction of organizational life: Introduction to the special issue. Organization Science, Providence, v. 22, n. 2, p. 287-98, 2011. https://doi.org/10.1287/orsc.1100.0632
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(LIMA, 2012LIMA, L. C. Elementos de hiperburocratização da administração educacional. In: LUCENA, C.; JÚNIOR J. R. (orgs.). Trabalho e educação no século XXI. Experiências internacionais. São Paulo: Xamã, 2012. p. 129-158., 2015LIMA, L. C. A avaliação institucional como instrumento de racionalização e o retorno à escola como organização formal. Educação e Pesquisa, São Paulo, v. 41, n. especial, p. 1339-1352, 2015. https://doi.org/10.1590/S1517-9702201508142521
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, 2021LIMA, L. C. Máquinas de administrar a educação: dominação digital e burocracia aumentada. Educação & Sociedade, Campinas, v. 42, e249276, 2021. https://doi.org/10.1590/ES.249276
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). Pelo contrário, na esteira de investigações recentes (MEIRA, 2019aMEIRA, M. Os labirintos da burocracia eletrónica: as plataformas eletrónicas na administração da educação. Santo Tirso: De Facto Editores, 2019a., 2019bMEIRA, M. A difícil relação entre burocracia eletrónica e democracia na administração educativa em Portugal. Educação & Sociedade, Campinas, v. 40, 2019b. https://doi.org/10.1590/es0101-73302019206742
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; CATALÃO; PIRES, 2020CATALÃO, A. P. X.; PIRES, C. A. As plataformas informáticas como instrumentos de regulação da organização e gestão escolar. Revista Portuguesa de Investigação Educacional, Porto, n. esp., p. 85-110, 2020. https://doi.org/10.34632/investigacaoeducacional.2020.8502
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), assiste-se ao incremento de lógicas racionalizadoras que visam à obtenção do máximo de produtividade (resultados), impulsionadas por sofisticadas tecnologias e novas formas de dominação digital (LIMA, 2021LIMA, L. C. Máquinas de administrar a educação: dominação digital e burocracia aumentada. Educação & Sociedade, Campinas, v. 42, e249276, 2021. https://doi.org/10.1590/ES.249276
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).

No seguimento de algumas revisitações críticas da proposta weberiana, a burocracia, como constelação pluridimensional, implica sempre a sua consideração em termos de grau ou intensidade, o que significa admitir tanto a sua existência débil como a sua presença exacerbada, consoante o grau de proximidade ou de afastamento da realidade empírica ao ideal-tipo burocrático. A natureza elástica do modelo ideal-típico burocrático, por um lado, e a sedimentação na longa duração de culturas organizacionais assentes na racionalidade burocrática, por outro, constituem vetores de análise suficientemente robustos para reclamarem uma leitura crítica da realidade organizacional. Paul Du Gay, em 2005, referia-se à precocidade de alguns diagnósticos que preconizavam o fim das burocracias. De resto, num outro trabalho (DU GAY, 2013DU GAY, P. New spirits of public managment... Post-bureaucracy. In: DU GAY, P.; MORGAN, G. New spirits of capitalism? Crises, justifications, and dynamics. Oxford: Oxford University Press, 2013. p. 274-293. https://doi.org/10.1093/acprof:oso/9780199595341.003.0012
https://doi.org/10.1093/acprof:oso/97801...
), volta a sustentar a ideia de que a implementação das políticas inspiradas na nova gestão pública potenciou, paradoxalmente, novas formas de dominação gerencial. O mesmo será dizer que a modernização gerencialista e os novos modos de regulação das políticas públicas, a fim de alcançar os seus objetivos de eficácia e qualidade, necessitam de um suporte organizacional e administrativo que, na sua essência, não chega a romper com os referenciais nucleares da burocracia racional. Nesta linha, Lima alerta para “[...] a necessidade de estudar as novas formas de dominação digital das organizações e da administração da educação, as quais podem configurar uma burocracia aumentada” (2021, p. 5). Interessa, pois, questionar se esta dupla frente – ordem reguladora focada nos resultados e apoiada pela vaga tecnológica – teve força suficiente para derrubar as raízes da cultura burocrática instituída nas organizações, substituindo-a por novas racionalidades e práticas de trabalho profissional. Dito de outro modo, a regulação pelos resultados não constituirá hoje um forte mecanismo de controlo tão ou mais imperativo e racionalizador do que o controlo racional-legal?

Os dados de um inquérito por questionário administrado ao universo dos diretores de escolas e agrupamentos de escolas de Portugal continental5 5 Dados recolhidos no âmbito do projeto “A governação e gestão das escolas públicas: o(a) diretor(a) em ação”, integrado no Grupo de Investigação sobre Políticas, Governação e Administração da Educação, do Centro de Investigação em Educação (CIEd) da Universidade do Minho (2013-2017). indiciaram alguns traços do perfil de gestão e liderança dos diretores. Convidados a estimar o tempo médio dedicado a cada uma das tarefas desempenhadas numa semana normal de trabalho, os diretores inquiridos (n = 156, correspondendo a 20% dos inquiridos) realçam, em primeiro plano, o atendimento (professores e alunos) e as atividades de conceção e planeamento.

As tarefas eminentemente burocráticas ocupam uma parcela significativa do tempo dos diretores, sobretudo aquelas que exigem o recurso às tecnologias, sejam a gestão de plataformas informáticas (3,93 horas médias semanais), sejam as relacionadas com outros meios comunicacionais (telefone, correio eletrónico e computador). As reuniões constituem igualmente uma das tarefas mais frequentes, o que evidencia um padrão de liderança ancorado em tarefas de execução e gestão, certamente relacionadas com um perfil mais performativo (Fig. 3).

Figura 3
Tarefas desempenhadas pelos diretores numa semana normal de trabalho (número médio de horas, numa escala de 1 a 10)

Subjugados a pressões performativas num tempo cada vez mais comprimido e num espaço virtualmente mais alargado, os atores são impelidos a ativar estratégias de cálculo, de racionalidade instrumental, como mecanismo de preservação do seu status quo e, eventualmente, como meio de progressão na hierarquia profissional e social. A constante repriorização das atividades a executar vem transformando os profissionais da educação em gestores de urgências, sempre desatualizadas, retirando-lhes tempo e disponibilidade para as relações interpessoais, para a partilha e o debate interpares. O avanço progressivo do “tempo líquido” (BAUMAN, 2007BAUMAN, Z. Tiempos líquidos. Vivir en una época de incertidumbre. Barcelona: Ensayo Tusquets Editores, 2007.) exige uma permanente gestão do curto prazo imposta pela “sucessão de novos começos” característicos da “vida líquida” (BAUMAN, 2006BAUMAN, Z. Vida líquida. Barcelona: Paidós Ibérica S. A., 2006., p. 10), cujos efeitos se fazem sentir no desenvolvimento de disposições individualistas, autocentradas nas esferas do desempenho individual, com efeitos ao nível da fragmentação cultural.

A Ação Tecnologicamente Sitiada

A autonomia e a liberdade proclamadas pela Nova Gestão Pública são acompanhadas pelo desenvolvimento de uma disposição interior mais focada nos ganhos e desempenhos mensuráveis (orientação instrumental) e menos na adesão consciente a certos valores (orientação por valores). Uma ação que se vem ajustando às contingências de temporalidades plurais e que decorre, cada vez mais, em interação direta e regular com as tecnologias digitais, que lhe impõem os ritmos, as cadências e as prioridades. Mais do que o cumprimento estrito da norma escrita, o que passa a comandar a atividade nas organizações é a sistemática prestação de contas (interna e externa), baseada em provas e evidências de que o processo (norma) gerou resultados. Ou seja, os indicadores de eficácia (resultados) acabam por sobrepor-se à norma, convertendo-se (inconscientemente) nas principais âncoras da ação. A ação, cada vez mais multitarefa, passa a ser objeto constante de avaliação, ativando nos sujeitos mecanismos de antecipação calculada e tática (custo-benefício; investida e recuo) e de maximização associados a cada atividade.

A presença mais ou menos intensa destas circunstâncias temporais, espaciais e tecnológicas influencia os modos de pensar, de estar e de agir na organização e, consequentemente, afeta o modo de expressão da cultura organizacional. Restringidos os espaços e tempos de interação social, de partilha, confronto e negociação interpessoal, ampliam-se as possibilidades de uma atuação individual, silenciosa, autodeterminada e politicamente apassivada, já que dispensa o coletivo como força de resistência e aliança. O sedentarismo comunicacional (baseado nas interações on-line) ativa, portanto, o desenvolvimento de um (novo) habitus sociocultural. Os comportamentos e as práticas sociais construídas no e pelo ciberespaço tendem a enclausurar-se em circuitos cognitivos autorreferenciais, filtrados por lógicas comunicativas “empacotadas”, elas próprias autoprotetoras e inibidoras da argumentação crítica. Na verdade, a avalanche informativa propiciada pelas tecnologias, ao limitar a confrontação pessoal e a reflexividade, pode desencadear distorções interpretativas geradoras de falsas sentenças e inverdades (que não passam de rumores) sobre atores e órgãos, o que não deixa de ter efeitos sobre a cultura da instituição. O estado de hiperconexão à net parece dificultar o recuo crítico perante o frenesim de informação, impedindo o resgate da relação do ator com o tempo e com os outros.

Ao mudar o epicentro da atividade humana e o seu pilar processual, a velocidade muda igualmente a natureza do trabalho, seja ele mais ligado à gestão escolar, seja à docência ou seja à aprendizagem, envolvendo todos os atores numa atmosfera cultural distónica que gera tensões e contradições várias: entre o excesso de informação e o vazio da comunicação; entre os interesses institucionais e as contrapartidas meramente individuais; entre o apelo à integração e o refúgio na fragmentação. Resta saber se o trânsito de valores (materiais e simbólicos) que se sucedem na vertigem do tempo tende a dispersar-se e diluir-se, fragmentando-se, ou a sobrepor-se por acumulação (isto é, sem a dissolução do património adquirido no transcurso histórico). A persistência simultânea destes vetores pode converter-se num constrangimento estrutural que, na longa duração, acaba por exercer um efeito de erosão do sentido de pertença institucional. Os vínculos dos atores ao(s) grupo(s) de referência e à instituição parecem enfraquecer à medida que se acentuam comportamentos estratégicos que oscilam entre investidas ocasionais e recuos usuais, conforme a leitura que o ator faz dos benefícios individuais que retira dos seus envolvimentos organizacionais. Este padrão comportamental dilacera a cultura, tornando-a mais opaca no seu conteúdo e mais fragmentada na sua expressão.

Considerações Finais: O Poder Invisível dos Sedimentos Culturais

Mesmo que se assista a um movimento de uniformização de processos e dispositivos de inspiração gerencialista (avaliação, controlo, prestação de contas, foco nos resultados etc.), a natureza multiforme, dinâmica e híbrida que caracteriza as organizações educativas dificulta a identificação de tendências globais e de padrões de atuação comuns. Os efeitos organizacionais que decorrem desta cultura gerencialista são diversos e contraditórios, exigindo uma análise das intersubjetividades em contexto e tendo por referência as singularidades culturais sedimentadas na instituição. Esta linha de pesquisa, que orientou esta reflexão, pressupõe uma focalização meso-analítica, cujo ponto de partida corresponde a um patamar intermédio (especificidades organizacionais) que, precisamente por estar no meio, potencia a articulação entre as orientações macroanalíticas situadas imediatamente acima (Estado, mercado e/ou comunidade) e as práticas (ação) concretizadas abaixo. Ao perspetivarmos a realidade a partir deste ângulo mediador, o campo de visibilidade amplia-se e delimita-se num movimento simultâneo, permitindo captar a diversidade de factos (objetivos) no contexto específico em que ocorrem (subjetivo ou intersubjetivo). A ação resulta, assim, de um conjunto complexo de condicionantes, externas e internas à organização, de que os agentes nem sempre têm consciência.

Apesar de se constatar, em termos tendenciais, um movimento evolutivo marcado pelo reforço da centralização e pela simultânea expansão do mercado educacional, na verdade, as instituições escolares caracterizam-se pela diversidade de culturas organizacionais e de vocações políticas que refletem as suas transmutações no tempo histórico. Mas, neste contexto de desenvolvimento sinuoso, os novos modos de regulação política que vão intersetando o espaço educativo têm vindo a pressionar as organizações à adoção de processos de burocratização multiformes, frequentemente conflituantes com lógicas culturais de tipo integrador. E é neste quadro de inteligibilidade que faz sentido repensar no movimento de burocratização das organizações, marcado simultaneamente pela heterogeneidade e pela uniformização. Por um lado, a evolução mostra-nos o quanto o padrão tradicional de organização escolar foi invadida por novas configurações, processos, morfologias, relações de poder e micropolíticas; por outro lado e ao mesmo tempo, desenvolve-se uma pressão uniformizadora de tipo técnico, instrumental e gerencial (lógica hiperburocrática), por via da subordinação a requisitos legais e tecnológicos e a dispositivos de avaliação e prestação de contas (AFONSO, 2010AFONSO, A. J. Gestão, autonomia e accountability na escola portuguesa: breve diacronia. Revista Brasileira de Política e Administração da Educação, Brasília, DF, v. 26, n. 1, p. 13-30, 2010. Disponível em: https://seer.ufrgs.br/rbpae/article/view/19678/11464. Acesso em: 20 abr. 2017.
https://seer.ufrgs.br/rbpae/article/view...
, 2014; LIMA; AFONSO, 2006LIMA, L. C.; AFONSO, A. J. Políticas públicas, novos contextos e atores em educação de adultos. In: LIMA, L. C. (org.). Educação não-escolar de adultos. Iniciativas de educação e formação em contexto associativo. Braga: Universidade do Minho/Unidade de Educação de Adultos, 2006. p. 205-229.; LIMA, 2012LIMA, L. C. Elementos de hiperburocratização da administração educacional. In: LUCENA, C.; JÚNIOR J. R. (orgs.). Trabalho e educação no século XXI. Experiências internacionais. São Paulo: Xamã, 2012. p. 129-158., 2021LIMA, L. C. Máquinas de administrar a educação: dominação digital e burocracia aumentada. Educação & Sociedade, Campinas, v. 42, e249276, 2021. https://doi.org/10.1590/ES.249276
https://doi.org/10.1590/ES.249276...
). Perante esta relação de forças algo contraditória, que ao mesmo tempo diferencia e impele à uniformização, impõe-se perguntar até que ponto os “sedimentos culturais” destas organizações resistirão aos processos de fragmentação em curso? De que modo as lógicas de cooperação e participação democrática convivem com a crescente competição intra- e interorganizacional?

A existência de condições propícias à manifestação de formas fragmentadoras de cultura interpela a missão democratizadora da escola pública, no sentido de que o enfraquecimento dos vínculos à instituição, a diluição das identidades e o reforço do individualismo geram padrões de comportamento alienados da participação nas esferas escolares. Convertidos em espectadores de itinerários propostos pelas plataformas, os atores são silenciosamente dirigidos pelo tempo dromocrático, ainda que a retórica do tempo democrático persista como referente simbólico, que teima em embaciar a leitura do real.

  • Trabalho financiado pelo CIEd (Centro de Investigação em Educação), Instituto de Educação, Universidade do Minho, projetos UIDB/01661/2020 e UIDP/01661/2020, através de fundos nacionais da FCT/MCTES-PT.

Notas

  • 1
    “O símbolo de uma coerção universal e inelutável” (em livre tradução).
  • 2
    “Em vez de arranhar a superfície da cultura pública e das estratégias de autoapresentação dos atores, sugerimos que a pesquisa organizacional precisa se concentrar no exame crítico das aparências externas, perfurando seus mitos desmascarando suas qualidades simbólicas e encenadas e investigando o que não é facilmente observável , os mundos silenciosos e silenciados, dos bastidores e fora do palco nas masmorras organizacionais, reacendendo seu fascínio pelo que pode estar sob a pele, sob a superfície, nos bastidores e nas entrelinhas (ALVESSON; KARREMAN; YBEMA, 2017ALVESSON, M., KARREMAN, D.; YBEMA, S. Studying culture in organizations: not taking for granted the taken-for-granted. In: WILKINSON, A.; ARMSTRONG, S. J.; LOUNSBURY, M. (eds.). The Oxford book of management. Oxford: Oxford, University Press, 2017. p. 103-126. https://doi.org/10.1093/oxfordhb/9780198708612.013.6
    https://doi.org/10.1093/oxfordhb/9780198...
    , p . 104).
  • 3
    Dados recolhidos no âmbito do Projeto “Entre Mais e Melhor escola: a excelência académica na escola pública portuguesa”, financiado por Fundos Nacionais através da FCT (Fundação para a Ciência e a Tecnologia), no âmbito do projeto PTDC/IVC-PEC/4942/2012, do Centro de Investigação em Educação da Universidade do Minho (CIEd).
  • 4
    Dados recolhidos no âmbito do projeto “A governação e gestão das escolas públicas: o(a) diretor(a) em ação”, integrado no Grupo de Investigação sobre Políticas, Governação e Administração da Educação, do Centro de Investigação em Educação (CIEd) da Universidade do Minho (2013-2017).
  • 5
    Dados recolhidos no âmbito do projeto “A governação e gestão das escolas públicas: o(a) diretor(a) em ação”, integrado no Grupo de Investigação sobre Políticas, Governação e Administração da Educação, do Centro de Investigação em Educação (CIEd) da Universidade do Minho (2013-2017).

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Editor de seção: Luís Miguel Carvalho. https://orcid.org/0000-0003-0301-1592

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    14 Abr 2023
  • Data do Fascículo
    2023

Histórico

  • Recebido
    21 Dez 2022
  • Aceito
    27 Jan 2023
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